Como desfazer o rosto da sustentabilidade?

June 14, 2017 | Autor: L. Belinaso Guima... | Categoria: Cultural Studies, Environmental Education, Educação Ambiental, Estudos Culturais
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Como desfazer o rosto da sustentabilidade? Leandro Belinaso Guimarães1

Resumo: O ensaio deriva de uma pesquisa sobre meio ambiente que relaciona imagens e narrativas de experimentação. O texto abre uma conversa com textualidades midiáticas focadas em sustentabilidade. A partir dos conceitos de rostidade, de Gilles Deleuze, e de rosto, de Giorgio Agamben, o artigo explora, de modo introdutório, sua pergunta-título: como desfazer o rosto da sustentabilidade? Com a ajuda de um romance de Haruki Murakami o entendimento mais comum dado ao rosto (o de algo, sempre, expressar) é pontuado. Em conversas paralelas com o/a leitor/a, o ensaio vai desdobrando sua principal questão até propor, em suas linhas finais, um exercício com a segunda série de imagens apresentadas no texto (repleta de faces humanas). Ele permitiria, quem sabe, o surgimento diante de nós de fotografias desconformes e insustentáveis. Palavras-chave: rostidade; educação ambiental; imagem; sustentabilidade

(P ³$SyV R DQRLWHFHU´ URPDQFH GH +DUXNL 0XUDNDPL   DGHQWUDPRV HP XPD KLVWyULD entrecortada por intervalos cronológicos de uma mesma madrugada vivida diferentemente, em pedaços distintos da cidade, por duas jovens irmãs. Estamos em uma Tókio, surpreendentemente, silenciosa. A narrativa é delineada com o auxílio da descrição dos contornos e das expressões das faces de suas protagonistas. Minuciosamente focadas pelo narrador, elas nos ajudam a compor sentidos à história. A narrativa nos apresenta as protagonistas menos por seus modos de viver, suas personalidades, seus WHVWHPXQKRV H PDLV SHODV VXDV VXWLV H[SUHVV}HV IDFLDLV ³6HX URVWR HVWi YROWDGR SDUD IUHQWH H SDrece fazer SURIXQGDV UHIOH[}HV´ S   'H VDtGD SRGHPRV DSUHHQGHU HVWH VHQWLGR FRPXP GDGR DR URVWR R GH DOJR expressar. Voltaremos a este entendimento ao longo deste breve ensaio, pois nos interessa pensar em como desfazer um rosto, no nosso caso o da sustentabilidade, já exaustivamente delineado, conhecido, desenhado. Isso para, quem sabe, desgarrar linhas de rostidade, que se articulariam em outras composições inexpressivas e menores, no sentido apreendido em Ana Godoy (2008). Tais linhas escapariam da produção de um rosto definido, fechado, identificável. Elas brincariam no aberto sem mundo, sem linguagem, sem expressão, sem nós, sem rosto.

Todos os seres vivos estão no aberto, manifestam-se e resplandecem na aparência. Mas somente o homem quer apropriar-se dessa abertura, apreender a própria                                                                                                                       1

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do Grupo Tecendo. Contato: [email protected] ou www.facebook.com/tecendo. Este ensaio foi pensado e iniciado durante o pós-doutorado que realizei no segundo semestre de 2013 na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Agradeço a Antonio Carlos Amorim a possibilidade desta escrita. ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br  

 

aparência, o próprio ser manifesto. A linguagem é essa apropriação, que transforma a natureza em rosto. (AGAMBEN, 2015, p. 87)

Cabe registrar, antes de você seguir adiante acompanhando palavras titubeantes que se juntam para formar instáveis argumentos, que se trata, aqui, de um texto em rascunho. Um ensaio que não deseja expressar um rosto. Estranho movimento este: oferecer à leitura um texto sem face. Escrito para o Seminário Conexões (edição 2015), o artigo se apresenta, apenas, como uma abertura à conversa. Seria possível escrever um ensaio sem rosto2? Vale destacar, para efeito de introduzir a questão deste texto, uma personagem específica, singular, clandestina, desajustada, até mesmo sufocante, do citado romance de Murakami. Trata-VHGR³KRPHPVHP URVWR´ ,PSRUWD SRXFR VDEHU VH DR ORQJR GD KLVWyULD HVWD SHUVRQDJHP GHVFRQIRUWDQWH DGTXLULX XP rosto-H[SUHVVmRXPURVWR³IRUPDWDGRRUJDQLFDPHQWHVHUYLQGRDIRUPDVSUHGHWHUPLQDGDV´ 081+2= p. 163) que o permitiria VHULGHQWLILFDGRDRVHUWUDoDGDVXDHVVHQFLDOLGDGHVXDVROLGH]6REUHR³KRPHPVHP URVWR´OHPRVHPXPWUHFKRHPTXHDSHUVRQDJHPpGHVFULWDSHODSULPHLUDYH]QROLYUR

... a câmera se desloca para a frente do homem e nos mostra seu rosto. Mas, mesmo assim, não conseguimos identificá-lo. O mistério apenas aumenta, pois eis que uma máscara semitransparente encobre seu rosto. (...) ela oculta-lhe feições e expressões faciais. A única coisa que podemos fazer, mesmo que superficialmente, é imaginar os contornos de seu rosto. (...) o verdadeiro mistério dessa máscara não se restringe ao fato de estar aderida ao rosto, mas ao de impossibilitar que alguém descubra o que a pessoa por detrás dela pensa, sente, planeja. (...) resolvemos parar de tentar analisá-lo e optamos por aceitar essa condição. E, por isso, decidimos então chamá-ORGH³KRPHPVHPURVWR´ 085$.$0,SH

Caro leitor e leitora, é chegada a hora de mergulhar mais densamente na questão que dá título ao ensaio. Você deve ter percebido que lá está sugerido que a sustentabilidade tem rosto. Você consegue imaginar algumas de suas faces? Lá também está posto o desejo de desfazê-lo. Eis a questão quase impossível aberta pelo ensaio. Como desfazer o rosto da sustentabilidade? Está claro para você os motivos que nos levam a este desejo? Não? Então seguiremos um pouco mais com o texto. Quem sabe você se sinta impelido, caro leitor, a pensar conosco esta difícil questão. Se ela não te interessar, até logo. Talvez possamos nos encontrar em um outro ensaio, quem sabe.

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É preciso pontuar que o rosto não se confunde com a face humana. Mas ela pode se encontrar em um URVWR³2QGH quer que uma coisa chegue à exposição e tente agarrar o próprio ser exposto (...), tem-VHXPURVWR´. (AGAMBEN, 2015, p. 88) ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br  

 

Seria possível uma educação ambiental sem rosto? Essa que toparia a condição de estar, logo de saída, impossibilitada de descobrir o que ela deveria, mesmo, pensar, sentir, planejar? Se nossa atuação pelas tramas da educação ambiental estiver sintonizada com a questão da sustentabilidade, do desenvolvimento sustentável, das sociedades sustentáveis (em suas variadas faces, noções e distinções políticas), o contorno de um rosto já estará traçado. E mais, suas linhas expressivas estarão previamente marcadas, acentuadas, controladas. Com essa afirmação, a questão do ensaio se coloca quase como um grito inaudível soado em um ambiente sem ar: enfim, como desfazer o rosto da sustentabilidade? Importa pouco delinearmos neste ensaio que rosto serLDHVVH1RVVRVHVFULWRVVREUHR³GLVSRVLWLYRGD VXVWHQWDELOLGDGH´ *8,0$5­(6  H  6$03$,2 H *8,0$5­(6  *8,0$5­(6 H CODES, 2014; GUIMARÃES e PEREIRA, 2015) já mostraram algumas de suas faces mais evidentes, sobretudo as que circulam exaustivamente pela mídia impressa. O que nos parece importante atacar com este texto é a ideia de que nossa tarefa, ao nos tramarmos à educação ambiental, seria cosmética ou, então, cirurgicamente plástica. Combatemos os enunciados pedagógicos que nos convocam a aprimorar o rosto da sustentabilidade, a retocar sua maquiagem, a melhorar a elasticidade da sua pele, a corrigir suas imperfeições e a transformar completamente sua face por outra. Queremos rugas, imprecisões, outras possibilidades de pensar, novidades, vLGD³LQVXVWHQWDYHOPHQWH´YLYDYDULDGDPRQVWUXRVDHFULDWLYD

Você está mais convencido/a leitor/a de embarcar conosco nesta aventura? Esta que se esforça por desfazer o rosto da sustentabilidade? Suponhamos que não ou que sim! Quem sabe você mesmo possa tecer as próximas palavras deste texto. Envie para nós por carta escrita à mão, para que passamos ler você em sua singular grafia. Se quiser digitar, tudo bem! No computador fica sempre mais fácil apagar algo que escrevemos. No papel geralmente rasgamos aquilo que não gostamos ou não queremos mais. Mande para nós estes papéis picados. Aproveitamos para lhe pedir mais uma coisa. Teria uma fotografia para nos enviar? Pode ser uma imagem que nos remeta ao rosto da sustentabilidade. Ou a um já desfeito rosto, quem sabe3. O rosto da sustentabilidade nos parece demasiadamente redundante e humano. Tomemos seus traços, seus contornos, seus sorrisos como aqueles de antemão definidores de zonas de frequência ou de SUREDELOLGDGH GHOLPLWDGRUDV GH ³XP FDPSR TXH QHXWUDOL]D DQWHFLSDGDPHQWH DV H[SUHVV}HV H FRQH[}HV UHEHOGHVjVVLJQLILFDo}HVFRQIRUPHV´ '(/(8=(H*8$77$5,S (QWUHDVPXLWDV de suas faces, vejamos algumas:

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Envie para: Leandro Guimarães. Rua Salvatina Feliciana dos Santos, 155/408-B. Itacorubi. Florianópolis/SC. CEP: 88034-600. ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br  

 

Já podemos apontar, à leitora ainda desnorteada com o que estamos nos ocupando neste texto, duas afirmações a serem perfuradas. Primeiramente, a consideração de que a sustentabilidade tem rosto. Examinaremos, agora, algumas características de sua produção em seus efeitos concretos na série de imagens que apresentamos acima, nas quais vemos, em primeiro plano, faces humanas. Importa salientar que o rosto da sustentabilidade não se traduz, apenas, por seres humanos e seus sorrisos, suas bochechas, seus cabelos lavados e penteados cuidadosamente. Há outras séries de imagens derivadas de seu rosto-expressão. Contudo, estas que colam à sustentabilidade uma face humana foram selecionadas para este ensaio por sua profusão na cultura e por nos permitirem destrinchar algo da segunda afirmação a que nos esforçaremos para perfurar: se a sustentabilidade tem rosto uma de suas faces mais endurecidas (porque cria e define um gradiente de distinção) é a que tipifica um humano que melhor o traduziria: branco, de classe média alta, homem, jovem, empreendedor. Nas imagens dispostas vemos as linhas imperiais (HARDT e NEGRI, 2006) de contorno do rosto da sustentabilidade. Suas expressões mostram-se intimamente conectadas com o mundo dos negócios empresariais. E mais, pouco ou quase nada diferenciam estas fotografias das que ilustram os Cadernos dos jornais focados no noticiário econômico, mesmo quando não falam sobre sustentabilidade. Os homens de negócios DEXQGDP HP SULPHLUR SODQR QDV SiJLQDV VREUH ³ILQDQoDV´ H VREUH ³LQYHVWLPHQWRV HPSUHVDULDLV´ destes textos jornalísticos. Eles estampam suas faces, humanizam com suas peles lustrosas os lucros a que se destinam conquistar cada vez mais sustentavelmente. Esse rosto-reflexão, pensando com Deleuze (2009), costuma ser abstraído de suas coordenadas WHPSRUDLVHHVSDFLDLV³$QRVVDVHQVDomRGRHVSDoRpDEROLGD´ S (FRPRQRVGL]RILOyVRIR³QDGD WHPRV GH OKH DFUHVFHQWDU FRP R SHQVDPHQWR´ S   2 URVWR imutável da sustentabilidade desativa, inclusive, o devir ambiental da educação. Este que nos desapropriaria e nos lançaria à vida em sua abertura e multiplicidade. Vejamos nossa série anterior apenas com as fotografias das faces humanas que acompanham as reportagens.

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Temos agora diante de nós, leitor e leitora, faces humanas com boca, nariz, olhos e sorrisos. O que faremos com elas? Chegamos a uma encruzilhada. Não podemos deixar esta série de fotografias permanecer como está. Estamos incomodados com ela! E você? Rasgá-las e jogá-las fora? Incinerá-las? Mas este texto queimará junto, não? E se deixássemos algumas linhas de rostidade se libertarem das imagens? Poderíamos, com elas, tecer outras composições? Será que conseguiremos subtrair traços de rostidade da organização do URVWR GD VXVWHQWDELOLGDGH" 7UDoRV TXH ³QmR VH GHL[HP PDLV VXEVXPLU SHOR URVWR VDUGDV TXH HVFRDP QR KRUL]RQWHFDEHORVOHYDGRVSHORYHQWRROKRVTXHDWUDYHVVDPRVDRLQYpVGHQRVYHUPRVQHOHV´ DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 36). Faça sua imagem, cara leitora, procurando desfazer o rosto da sustentabilidade. Torne-se imperceptível e nos envie sua produção clandestina. Obrigado por nos acompanhar até aqui. Como, enfim, desfazer o rosto da sustentabilidade? Para isso, talvez haja necessidade de certa lentidão. Deixaremos as imagens se desmancharem com o tempo, expostas ao vento, à chuva, ao sol. Plantadas em um vaso, acompanharemos suas transformações. Por vezes pousarão nelas alguns insetos curiosos. O tempo irá inscrever, pouco a pouco, outros traços nas imagens-rosto repletas de faces humanas. As linhas de rostidade atuarão escavando e decompondo a superfície das fotografias. O rosto-expressão da sustentabilidade não será mais tão evidente. O tempo e as forças do ambiente atuarão. E diante de nós surgirão imagens anárquicas, abertas, insustentáveis!

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Tradução: Davi Pessoa Carneiro. M eios sem fim: notas sobre política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DELEUZE, Gilles. Tradução: Sousa Dias. A imagem-movimento (Cinema 1). 2a Edição. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. M il platôs: capitalismo e esquizofrenia (volume 3). São Paulo: Editora 34, 1996. GODOY, Ana. A menor das ecologias. São Paulo: EDUSP, 2008. ALEGRAR - nº16 - Dez/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br  

 

GUIMARÃES, Leandro Belinaso e PEREIRA, Juliana Cristina. Os ambientes da imagem: pedagogias em foco. Revista E ducação (PUCRS), v. 38, p. 70-76, 2015. GUIMARÃES, Leandro Belinaso e CODES, Davi. Imagem e Educação Ambiental: percursos de pesquisa. Interacções, v. 10, p. 239-253, 2014. GUIMARÃES, Leandro Belinaso. Notas sobre o dispositivo da sustentabilidade e a formação de sujeitos verdes. In: SARAIVA, Karla e MARCELLO, Fabiana (Org.). Estudos C ulturais e educação: desafios atuais. Canoas: ULBRA, 2012. GUIMARÃES, Leandro Belinaso. Imagens da sustentabilidade em um mundo sem ilhas. In: HENNING, Paula; RIBEIRO, Paula e SCHIMIDT, Elisabeth (Org.). Perspectivas de investigação no campo da E ducação Ambiental & Educação em Ciências. Rio Grande: FURG, 2011. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Tradução: Berilo Vargas. Império. 8a. Edição. Rio de Janeiro: Record, 2006. MUNHOZ, Angélica Vier. Rostidade em solo. Repertório, número 19, p. 161-164, 2012. MURAKAMI, Haruki. A pós o anoitecer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. SAMPAIO, Shaula e GUIMARÃES, Leandro Belinaso. O dispositivo da sustentabilidade: pedagogias no contemporâneo. Perspectiva (UFSC), v. 30, p. 395-409, 2012.  

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