Como escrever com os ruídos do mundo?

May 24, 2017 | Autor: L. Belinaso Guima... | Categoria: Cultural Studies, Arte Educação, Estudos Culturais, Escrita
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SÍLVIA NOGUEIRA CHAVES MARIA DOS REMÉDIOS DE BRITO (Organizadoras)

Formação, ciência e arte (Autobiografia, arte e ciência na docência)

2016

Copyright © 2016 Editora Livraria da Física 1ª Edição Direção editorial José Roberto Marinho

Revisão As organizadoras Projeto gráfico e diagramação Fabrício Ribeiro Capa Erasmo Borges de Souza Filho

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Formação, ciência e arte: (autobiografia, arte e ciência na docência) / Sílvia Nogueira Chaves, Maria dos Remédios de Brito, (organizadoras). – São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016.

Vários autores. ISBN 978-85-7861-449-2 1. Arte - Estudo e ensino 2. Ciência - Estudo e ensino 3. Educação 4. Pedagogia 5. Práticas educacionais 6. Professores - Formação I. Chaves, Sílvia Nogueira II. Brito, Maria dos Remédios de. 16-00111

CDD-370.71

Índices para catálogo sistemático: 1. Práticas educativas: Formação docente: Educação 370.71 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

Editora Livraria da Física www.livrariadafisica.com.br

SUMÁRIO O começo nunca é um fim.................................................11 Prefácio ..............................................................................19 ENTRE POLÍTICA, ESTÉTICA E RESISTÊNCIA: MODOS DE EXISTÊNCIA

O logos sensível da educação: arte como experiência, ética e estética...............................................................................27

Emanuela Mancino

Notas sobre um encontro intempestivo: Foucault e Matta-Clark.....................................................43 Jorge Vasconcellos

Correndo risco de vida: uma história para contar de si ......57 Wladilene de Sousa Lima

Artes visuais como plataforma para pensar e viver: outros espaços para a docência .....................................................71 Luciana Gruppelli Loponte

Como escrever com os ruídos do mundo? .........................89 Leandro Belinaso

O rádio: diálogo entre mídias, tradição e contemporaneidade .........................................................103 Joel Cardoso

Como escrever com os ruídos do mundo? Leandro Belinaso31

Escrever é uma tarefa de devir, sempre inacabada, sempre a fazer-se, e que extravasa toda a matéria que se pode viver ou vivida. (Gilles Deleuze, Crítica e clínica)32.

G

ostaria de agradecer muito a oportunidade de estar em Belém, participando deste instigante, relevante, rebelde, ruidoso encontro que é a Mostra “Focar”. Estive pela primeira vez na cidade em dezembro do ano passado, e foram dias ótimos. Quando recebi o convite de Silvia Chaves para retornar, fui tomado por uma alegria efusiva. Viajar para Belém se traduziu em uma oportunidade de deixar vibrar intensamente no corpo uma pergunta vital e com ela tecer, ensaiar, rascunhar um texto. Podemos entrar de diferentes formas na indagação: como escrever com os ruídos do mundo? Prefiro deixar de lado a pertinente suposição de que vivemos em um mundo demasiadamente 31 Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contatos: [email protected] ou www.facebook.com/tecendo.

32 Agradeço à Juliana Crispe pela lembrança do conceito de “devir”, levando-me a estudar o texto de onde extraí a epígrafe. Deixo também meu muito obrigado à Alessandra Klug, Amanda Leite e Karina dal Pont pelos pertinentes comentários sobre a primeira versão do texto.

barulhento e perturbador, que nos subtrai a tranquilidade necessária à escrita. Já não podemos mais, creio eu, retornar a um tempo desacelerado ou, então, ficarmos reclusos em algum canto acolhedor e não ruidoso para conseguirmos, de modo satisfatório, encher de palavras uma folha de papel em branco, tornando-a repleta de sentidos para nós e para quem nos lerá. Em vez de clamar, aqui, por calmaria, desejo pensar na potência do ruído que nunca cessa. Refletir sobre o que prestamos pouca atenção em nosso cotidiano, mas que está soando de modo muito presente e vivo. Ruído arrítmico, instável, variante, desorganizador, que, como pontua José Miguel Wisnik (1989), produz uma interferência na comunicação, por vezes a bloqueando. Nesse processo, o ruído pode se tornar um elemento criativo, “desorganizador de mensagens/códigos cristalizados e provocador de novas linguagens” (WISNIK, 1989, p. 33). Interessa-me refletir sobre como fazer desses estilhaços cotidianos, dessas desordens ruidosas, munições criativas para o pensamento e, portanto, para a escrita. Talvez, para isso, seja necessário um bom tanto de tempo livre. Mas importa menos, para mim, fazer durar o estado de contemplação silenciosa de uma paisagem (algo importante, sem dúvida)33. Desejo, simplesmente, lentidão para ouvir e escrever sobre o que efetiva e afetivamente me instiga, arrebata, alucina, ensurdece. Encaro este texto como uma oportunidade de exercitar, de ensaiar esta escrita que me exige, quem sabe, um outro tempo e um modo diferente de ver e criar mundos. Inspirado nos apontamentos de Regina Kohlrausch (2013) sobre duas crônicas de Caio Fernando Abreu, ambas publicadas nos anos 1980, no jornal O Estado de São Paulo, penso que minha 33 Em outro ensaio, produzido em 2009, mas só publicado recentemente, escrevi sobre a importância do silêncio em processos formativos. Ver Guimarães (2015).

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viagem para Belém trouxe a possibilidade de uma “circunstância” para voltar a ensaiar a escrita. E a Mostra “Focar” chegou no exato momento de finalização de trabalhos técnicos que me solicitaram muita energia em textos ligeiramente afastados de mim. Uma vez finalizados, pude me entregar a um outro começo, a alguns exercícios ficcionais de escrita34, para com eles abrir algumas perguntas, no jogo proposto pelo evento, entre a autobiografia, o cinema e a formação. Quero marcar desde já que, embora eu tenha começado rabiscando notas sobre a escrita, e ainda seguirei um pouco mais nesta toada, este ensaio se esforça em apresentar, através de duas brevíssimas autobiografias ficcionais, cada qual de uma personagem diferente, elementos que nos permitiriam pensar a respeito das relações entre o cinema e a formação. Pelo menos essa é a minha aposta. Os artefatos midiáticos, questão maior da mesa-redonda da qual participo, estarão em cena nos textos. Na parte final do ensaio, comento rapidamente o modo como a mídia atuou nos exercícios ficcionais que rascunhei. Em uma de suas muitas crônicas, Caio Fernando Abreu (1987) problematiza a escrita como uma tarefa, uma obrigação, um trabalho. O autor questiona a escrita que nos exige um tempo acelerado, distante da lentidão necessária para “pensar, reler, reescrever”. Quem atua na Universidade conhece muito bem esse modo ligeiro de compor com palavras! Na crônica, o escritor anuncia a falta de tempo para sair de casa, para ler os livros nunca terminados, para escutar alguns discos com calma, para, eu acrescentaria, deixar-se afetar pelos ruídos cotidianos. “O mais 34 Foi fundamental para esse processo o curso que fiz sobre escrita com Adriana Lisboa (autora dos belíssimos romances: Rakushisha, Azul Corvo, Hanói, entre outros) de janeiro a abril de 2016. As autobiografias inseridas, logo adiante, no ensaio, foram compostas, primeiramente, como respostas a uma proposição do curso.

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complicado [nos alerta Caio] é que, para escrever, é preciso ver o mundo”. O autor finaliza seu breve texto fazendo uma feroz e ácida autocrítica: “escrevendo assim, para sobreviver, não escrevo o que me mantém vivo”. Estou muito interessado em algumas questões que perpassam este curto e esquecido texto de Caio Fernando Abreu. A primeira diz respeito ao modo como ele anuncia a inquebrantável relação entre a vida cotidiana e o ato de escrever. Questão que podemos encontrar em outros textos, de outros autores, como, por exemplo, no cinematográfico livro A tarde de um escritor, de Peter Handke (1993). Nele, podemos ler: Assim como precisava da máquina de escrever, ele [o escritor] carecia, em dado momento, dos ruídos do mundo exterior: uma vez, após meses de escrita em um arranha-céu quase à prova de som, bem próximo às nuvens, portanto, ele havia se mudado para um quarto de rés-do-chão em uma rua principal de tráfego muito barulhento, a fim de poder continuar trabalhando... (HANDKE, 1993, p. 13, grifos meus).

O autor finaliza o primeiro capítulo do romance com uma passagem que considero delicada, magistral, retumbante. Para conseguir continuar escrevendo, foi preciso que o escritor se dispusesse a caminhar pela cidade (e isso efetivamente acontece, já a partir do segundo capítulo). Ele se arrumou e saiu. Entretanto, bastou que estivesse a caminho do portão, a passos de chegar à rua, para que voltasse correndo para dentro de casa: “irrompeu escritório adentro e substituiu uma palavra por outra. Só então sentiu o cheiro de suor no cômodo e viu o vapor nos vidros” (HANDKE, 1993, p. 14).

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O escritor Julio Cortázar (2015), em um livro que reúne suas aulas ministradas em 1980, em Berkeley, na Califórnia, também pontua, logo no começo do seu curso, que para escrever literatura é preciso ter contato com as ruas, “com tudo o que faz de uma cidade uma espécie de cenário contínuo, variável, maravilhoso para um escritor” (CORTÁZAR, 2015, p. 16). Em outro ensaio, no qual Cortázar (2008) expõe alguns aspectos relativos ao conto, o autor argumenta que para escrever é imprescindível uma motivação entranhável (assim mesmo, advinda das entranhas do corpo), pois “se os seus contos não nasceram de uma profunda vivência, sua obra não irá além de um mero exercício estético” (CORTÁZAR, 2008, p. 160). Nos textos citados, transparece uma necessidade vital: para uma escrita que não seja mera sobrevivência, há que se ter tempo para viver a cidade, para ver o mundo, para escutar e se deixar afetar por seus ruídos mais sutis. Algo cada vez mais difícil em algumas cidades latino-americanas, seja pelas dificuldades gigantescas de mobilidade, pelas violências física e simbólica avassaladoras, pelo esvaziamento dos espaços públicos como lugares de convivência. Néstor Garcia Canclini (1995) nos alertava, já no início dos anos 1990, para a transformação das grandes cidades (ele pensava sobretudo na Cidade do México) em espécies de videoclipes fragmentários, atomizados, desconexos, velozes; e se perguntava sobre como tecer histórias, criar narrativas com essas cidades pós-modernas, que nos permitam construir uma ideia de pertencimento e uma possibilidade de participação cidadã. Contudo, deixo essa questão específica, relativa às cidades, para ser mais e melhor elaborada em um próximo ensaio. Gostaria, agora, de retomar a crônica de Caio Fernando Abreu (1987) para chamar atenção para um detalhe presente

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nela, este que me interessará desenvolver um pouco mais neste ensaio através das breves ficções autobiográficas que rascunhei. O escritor nos presenteia com seus repertórios, com o que estava desejando ler e escutar no momento de escrita de sua crônica jornalística: Susan Sontag, Edmund Wilson, U2, Raul Seixas. Cortázar (2008), em seus ensaios, também nos indica seus contistas preferidos: Edgar Allan Poe, Ernest Hemingway, Juan Carlos Onetti, Guy de Maupassant. Com esse apontamento, quero marcar que sair para ver o mundo e ouvir seus ruídos para poder escrever passa, também, pelo tempo que destinamos à leitura, à escuta das textualidades que nos levam a olhar o cotidiano de modos diferenciados, com outras lentes. E essa parece ser uma das contribuições da ficção: levar-nos a enxergar o mundo de uma maneira nunca antes vista e imaginada por nós. Ficção, aqui, deve ser entendida na acepção de Jacques Rancière (2009), como o (re)arranjo, a (re)articulação inusitada dos ruídos, dos rastros, dos materiais, dos signos e das imagens. “O real precisa ser ficcionado para ser pensado” (RANCIÈRE, 2009, p. 58), vaticina o filósofo. Ao sairmos à rua, ao tocarmos o cotidiano acompanhados pela delicadeza da palavra demoradamente escolhida pela poetiza, pela imagem sutilmente construída para aquele filme lento e arrebatador, pode ser que já não enxerguemos o mundo (e a nós mesmos) do mesmo jeito que havíamos feito ontem. Se concordarmos com tal relação indelével entre vida e escrita, podemos passar, agora, a indagar sobre os modos pelos quais temos escrito sobre e com o cinema (começar, portanto, a entrar em um dos temas da Mostra “Focar”) como pesquisadores em educação envolvidos com uma formação para, com, e sobre a imagem. Será que o fato de nos relacionarmos cada vez menos com a cidade, quando vamos a uma sala de cinema, tem

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impactado o modo como escrevemos sobre e com os filmes? Ir cada vez menos a pé, de bicicleta, de transporte público, sozinhos ou acompanhados, a uma sala de cinema na rua faz com que tenhamos outras apreensões dos filmes que, cada vez mais, assistimos em salas de shoppings, na televisão de casa, nas telas móveis que nos acompanham por todos os lados? O que perdemos com essas práticas em desuso, que nos mergulhavam mais lentamente na cidade e em seus ruídos? Quando escrevemos sobre filmes ou ministramos aulas com eles, os modos como nos encontramos com a imagem têm sido problematizados por nós? Estou me perguntando pela performance, pela atuação do cinema no espaço formativo e pelo cinema como provocador de encontros com a cidade, com a vida cotidiana (papel que, hoje, pode estar nas mãos dos cineclubes). Abrir essas questões é o meu intento com este ensaio. E elas passam pela relação entre a vida cotidiana, a escrita e os modos pelos quais temos visto as imagens cinematográficas. Já consegui minimamente conectar até aqui duas das temáticas propostas pela Mostra “Focar”: o cinema e a formação. Estou pensando esta última – vale a pena marcar mais claramente – em sintonia com os modos como exercitamos a escrita, a partir dos ruídos que nos chegam pelas nossas andanças nos mundos da cidade, da literatura, do cinema, da fotografia, do cotidiano. Porém, resta articular ainda a questão da autobiografia. E faço isso a partir, então, de dois textos ficcionais, conforme já anunciei mais de uma vez (e peço desculpas por isso). Retomando, são duas autobiografias, de duas personagens distintas. Ambas se pensam na relação com um “outro” e têm com o cinema uma história que merece ser contada. Vamos aos textos. Depois, tecerei brevíssimos comentários conclusivos, mas abertos às conversas que nunca cessam.

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AUTOBIOGRAFIA 1 Sempre me faltou chão! Pensar desse modo pouco implicou em me enxergar flutuando no espaço. A sensação da falta de um lugar, paradoxalmente, me enraizou nas responsabilidades da vida de adulto desde muito cedo. De repente, as brincadeiras cessaram. Queria, acho, fazer caber em mim a ideia de ser alguém. Minha bicicleta testemunhou tudo – presente chegado de surpresa no aniversário de doze para treze anos. Lembro-me da cena como se fosse hoje. Ela ali, quietinha, no pequeno pátio da casa, me esperando. Foi amor à primeira vista. Tudo aconteceu naquela cidade quente e perdida, onde morei por alguns meses. O selim lembrava uma Harley-Davidson. Quanto orgulho de ir com ela para a escola cantarolando Billie Jean, fingindo saber a letra. Os meses por lá foram intensos e poucos. Naquele lugar, obtive meu passaporte para a vida adulta. Era inebriante ir de ônibus urbano ao centro, para ver um filme qualquer no cinema da praça, em domingos ensolarados. Tal lembrança me faz rememorar um tempo mais espichado, vivido em uma outra cidade. Nela, havia um cinema gigante na mesma quadra em que eu morava. Não me deixavam sair sozinho. Estava sempre acompanhado nas matinês. Nem filme dos Trapalhões podia ver sem alguém. Já na cidade da bicicleta, algumas vezes, ia sozinho ao cinema, outras, com meu irmão mais novo. Estava prenhe de algumas responsabilidades, mas as brincadeiras existiam. Minha bicicleta testemunhou tudo. Sempre me faltou chão! Em uma outra cidade, onde a rua e a noite passaram a ser muito vivas, ela assumiria comigo mais e mais responsabilidades. O trabalho de office-boy abalou nossa relação. Cansamos um do outro e nos abandonamos, pouco tempo depois. As brincadeiras foram cessando. Mas com a grana do trabalho, quanta alegria, dava para comprar o último disco do Ira! ou dos

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Titãs. Aquele livro do Ken Follett ou do Stephen King. E podia ir livremente me deliciar na locadora de vídeo. Como gostava daquela ansiedade pela chegada da cópia pirata do último filme do John Hughes. Dirigir o fusca do meu pai fazia minhas pernas tremerem. As sextas de cinema e as madrugadas de sábado no “Porão” foram inesquecíveis. Elas me ensinaram que eu tinha um corpo. Sempre me faltou chão! Quando me dei conta, estava lá, sozinho na cidade que tinha prédios, cursando biologia. Por que mesmo? Busquei respostas bem longe de mim. Na zoologia, na paleontologia, na botânica. Quando me vi sozinho dentro de uma mata com uma espécie de arpão para caçar flor em copa de árvore, me desesperei. Fui pertencer ao centro acadêmico, cursar disciplinas de humanas e dar aulas. A biologia jamais me abandonou. E nunca mais parei. Intervalei o professor em mim só por um curto período. Sempre me faltou chão! Quando cheguei naquela outra cidade distante e de muitos mais prédios, logo comprei um CD do Nei Lisboa. Foi escutando aquele som e entregando currículos pelas escolas particulares que me dei conta: era preciso fazer com que as brincadeiras voltassem a estar presentes. E encontrei um amor e comecei a viajar e a conhecer um pouco dos chãos do mundo que nunca havia pisado. Depois de anos, já na cidade onde hoje moro, sem saber se vou ficar, comprei, finalmente, uma bicicleta. E, ao som de Camila Honda, prometi levá-la para passear no novo ano que acabou de chegar.

AUTOBIOGRAFIA 2 Vivi tempos áureos! Naqueles dias esplendorosos, todos na casa me desejavam. Reinaria absoluta, talvez, se não houvesse a televisão. Quando o videocassete chegou, assustei-me com o

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encanto que causou. Mas segui poderosa. Agora estou ali, sem forças, sem pedaços de mim, sem minha linda caixa protetora. Naquele canto empoeirado do quartinho das inutilidades, passo os dias que já não são meus. Nunca imaginei que uma enceradeira se tornaria minha única amiga. Logo ela, que sempre achei escandalosa e demasiadamente solar. Nunca entendi porque repentinamente saía dançando e “cantando” pela casa. O videocassete, coitado, que vida curta. Nunca mais tivemos notícias. Vivi tempos áureos! Eu prezava pela discrição. Sabia da minha importância. Era convidada a atuar na seriedade das questões da casa. Não importava a hora. Sempre fui íntima da madrugada. Depois que um fim me foi decretado, esqueci algumas das delícias de um cotidiano agitado. Dia desses, a enceradeira me confidenciou um pensamento que compartilho com ela. Todos deveriam ter uma chance de se reinventar, de ganhar uma vida distante daquela que fora, antes, traçada. A escuridão daquele quarto de ninguém dói. Vivi tempos áureos! Testemunhei lágrimas, alegrias, raivas, sorrisos, delicadezas, sofrimentos. Vivi cada segundo como se em cada um coubesse mundos vastamente inimagináveis. Nem todo mundo gostava de mim. Alguns, escutei certa vez, diziam que havia uma forma correta de lidar comigo, porque eu era temperamental, soturna até. Soube que davam cursos para aprenderem a se relacionar comigo. Nunca compreendi isso. Confesso que até desejei ter em mim a simplicidade alegre da enceradeira. Eu não era dessas que estavam fadadas a viver para sempre trancafiadas em um escritório de contabilidade ou em uma sala de aula dos cursos sobre mim. Nasci para ser portátil, única. Vim ao mundo para viajar e poetizar. Queria ser a companheira para todas as horas. Através de mim, sentimentos aflorariam, sentidos brotariam, o inimaginável se criaria. Esses eram meus desejos desde

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pequena. Aliás, sempre fui pequenina. Menor que a maioria. Diziam que era metida, só porque tinha uma caixa aveludada para me proteger. Saudade dela, aliás. Sempre fui avessa às burocracias que, vira e mexe, insistiam em me fazer produzir. Vivi tempos áureos! Viajava e voltava contando tudo à enceradeira. Ela não se importava muito. Só fingia prestar atenção. Dançar e “cantar” seu zunido de sempre lhe bastava. Eu não: sonhava com as histórias que ajudava a criar. Pareciam minhas. Será que me reconheceriam pelas marcas que eu deixava? Um dia a enceradeira parou de dançar. Passei anos sem a ver. E nos reencontramos no quartinho das coisas inúteis. O videocassete não estava lá. Acho que teve outro destino. Ela ficou surpresa em me ver ali. Tão pequena, tão tristonha, tão sem nada. A enceradeira me confidenciou que passou a desejar poder ajudar alguém a sonhar, a criar outras vidas. Eu – disse a ela – só queria ter a oportunidade de um dia poder dançar e “cantar”, nem que fosse uma música gritada e irritante. Ficaríamos muito contentes se tivéssemos notícias do videocassete. Que elas pudessem chegar por carta (datilografada, quem sabe), em uma casa cujo piso antigo e lindo estaria brilhando de tão bem encerado e lustrado. Com este ensaio procurei tatear a questão: como escrever com os ruídos do mundo? Abri uma breve discussão sobre a escrita e sobre a potência da ficção para lidarmos com as perguntas que criamos no campo da educação. Ao escrever as autobiografias de dois narradores inventados e sem nomes, pensei que deveria fazê-lo pondo em cena outras personagens: a bicicleta, a enceradeira, o videocassete. Os acontecimentos nas duas narrativas autobiográficas vão sendo contextualizados pelos artefatos midiáticos. Eles atuam

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nelas (sobretudo na primeira) como se fossem pequenos ruídos que nos indicam algo sobre as personagens e sobre o tempo da própria narrativa. Em um outro ensaio (GUIMARÃES, 2014), perguntei-me sobre como escreveríamos, como planejaríamos uma aula ou organizaríamos um processo formativo se as noções acadêmicas, científicas ou filosóficas se equivalessem em importância aos filmes assistidos, às músicas escutadas, às narrativas lidas, às conversas mínimas e cotidianas vividas. E, inspirado em Denílson Lopes (2012), pontuei que os artefatos midiáticos podem ser vistos como propulsores de afetos e de memórias. Foi com esse entendimento que procurei costurar positivamente referências advindas das culturas pop e midiática às autobiografias. Ao ler o primeiro texto, encontramo-nos com o cinema de rua. Impossível deixar de lembrar do cheiro da sala que frequentava assiduamente, todas as semanas, lá nos longínquos anos 1980. Daquela árvore na calçada, ao lado da entrada, que exalava um perfume até hoje identificado como “de cinema”. E a imensa cortina que cobria a tela? Difícil pôr em palavras o que sentia quando ela abria e as luzes se apagavam. E o que dizer da irritação com o “lanterninha” buscando, quando o filme já transcorria, um lugar vazio para o atrasado da vez? Sem querer romantizar um tempo que já não está em sua inteireza, resta insistir na pergunta sobre como temos visto filmes cinematográficos hoje. Eles têm relação com as maneiras pelas quais nos relacionamos com as cidades no tempo presente? E como temos convivido com as cidades e nas cidades? O segundo texto rememora a chegada do videocassete às nossas casas de classe média naqueles anos 1980, fazendo o cinema estar presente na sala de estar, em um tempo em que a internet era apenas uma promessa. A narrativa relembra este

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momento sob o olhar de dois objetos obsoletos na atualidade. Fico me perguntando o que uma enceradeira diria para nós, hoje, se nos dispuséssemos a ter com ela uma conversa. O que será que a ausência de seus ruídos em nosso dia a dia produziu em nós? Sem ela nos transformamos em sujeitos mais produtivos, mais acelerados, mais consumidores de materiais que fazem o chão brilhar sem esforço e barulho? Vou chegando ao fim do ensaio, e acho que ainda há muito a ser dito a propósito de sua pergunta-título. Como conviver – com as cidades, com os outros, com o cinema, com os objetos – é uma questão para seguirmos pensando em outros tantos ensaios, ficções e conversas. Que possamos escrever ruidosamente, sem calar a vida que fervilha. E, nesse movimento, criar mundos repletos de encontros alegres, éticos, rebeldes, como estes que a Mostra “Focar” nos propiciou. Obrigado!

Referências ABREU, Caio Fernando. Querem acabar comigo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 29 de abril de 1987, Caderno 2. CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Trad. Maurício S. Dias Xavier Rapp. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. CORTÁZAR, Julio. Os caminhos de um escritor. In: ______. Aulas de literatura. Trad. Fabiana Camargo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ______. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2008. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Século XXI, 2000.

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GUIMARÃES, Leandro Belinaso. O que silencia em nós os temas controversos? Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande, v. 1, p. 55-64, 2015. Disponível em: . GUIMARÃES, Leandro Belinaso. Culturas, biologias, ensinos, formações: atravessamentos. In: BARZANO, Marco et al. Ensino de biologia: experiências e contextos formativos. Goiânia: Índice, 2014. HANDKE, Peter. A tarde de um escritor. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. KOHLRAUSCH, Regina. “Querem acabar comigo” e “Despedida provisória”, de Caio Fernando Abreu: escritas do eu. In: MELLO, Ana Maria Lisboa de (Org.). Escritas do eu: introspecção, memória, ficção. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. LOPES, Denílson. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2. ed. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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