Como fazer resenhas Indicativas, temáticas e críticas: manual com exemplos

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2016 Manual de Resenhas

Ms. Magna Campos

Manual de Resenhas

A RESENHA COMO UM GÊNERO ACADÊMICO1 Ms. Magna Campos

1. Sobre o gênero textual resenha:

Dentre os gêneros comuns de serem elaborados em um curso superior (resumo, resenha, artigos e ensaios), a resenha figura como um dos mais recorrentes em alguns cursos, especialmente, de graduação e de especialização. Pertencente à categoria de gêneros apreciativo-avaliativos, os quais avaliam as contribuições, os argumentos, o estilo e o posicionamento de dado texto ou obra, esse gênero pode contribuir para desenvolver não apenas a escrita, mas também a leitura crítica do estudante, uma vez que aprender a realizar uma resenha é aprender a realizar a análise crítica de um texto, fundamentando-a em parâmetros que extrapolem o senso comum ou a superficialidade do texto e adentrem as discussões acadêmico-científicas de dada questão. Pois, de acordo com Motta-Roth e Hendges (2010, p. 27)2, a resenha é “um gênero discursivo usado na academia para avaliar – elogiar ou criticar – o resultado da produção intelectual em uma área do conhecimento” nela o resenhador basicamente “descreve e avalia uma dada obra a partir de um ponto de vista informado pelo conhecimento produzido anteriormente sobre aquele tema. Seus comentários devem se conectar com área do saber em que a obra foi produzida”. O gênero textual resenha, de acordo com Alcoverde e Alcoverde (2007)3, assim como muitos outros gêneros, possui suas especificidades e configurações. Assim, o mero ensino da organização global de um gênero não é suficiente para fazer com que o aprendiz chegue a uma produção adequada. Precisa-se, também, levar em consideração qual o papel social e o propósito desse gênero. Afinal, como ensina Bakhtin (2003)4, o domínio de um repertório de gêneros relevantes ao nosso 1

Texto adaptado dos livros: CAMPOS, Magna. Letramento acadêmico e argumentação: incursões teóricas e práticas. Mariana: EA, 2015. 142p. ISBN: 978-85-918919-4-8 e CAMPOS, Magna. Manual de gêneros acadêmicos: resenha, fichamento, memorial, resumo científico, relatório, projeto de pesquisa, artigo científico/paper, normas da ABNT. Mariana: EA, 2012-2015. ISBN: 978-85-918919-17. 2 MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela. Produção textual na universidade. São Paulo: Parábola, 2010. 3 ALCOVERDE, Maria Divanira; ALCOVERDE, Rossana Delmar. Produzindo gêneros textuais: a resenha. Natal: UEPB/UFRN, 2007. 4 BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 277-326.

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contexto social nos possibilita a participação nessa vida grupal de maneira mais igualitária, espontânea e verdadeira. Motta-Roth e Hendges (2010) contribuem, quando ensinam que a análise do gênero textual resenha evidencia que resenhar um texto implica quatro ações: apresentar, descrever, avaliar, (não) recomendar o livro. Essas ações tendem, em geral, a aparecerem nesta ordem ou, dependendo do estilo do resenhador, a descrição e a avaliação aparecem juntas: à medida que se descreve, avalia-se. Nesta perspectiva, Campos (2012-2015) explica que a resenha consiste, portanto, na apresentação sucinta do texto resenhado e de seu autor, no resumo, na apreciação crítica do conteúdo e do estilo e na indicação de leitura, sendo antecedida pela referência do texto resenhado. A resenha deve levar ao leitor informações objetivas sobre o assunto de que trata a obra, destacando, assim, a contribuição do autor no que tange à abordagem inovadora do tema ou problema, aos novos conhecimentos, às novas teorias, às relações com os saberes de uma determinada área do conhecimento, dentre outras possibilidades de avaliação crítica, além de ser capaz indicar o “leitor virtual” mais adequado para a leitura da obra, por isso o recomendar ou não sua leitura.

2. Relevância do trabalho com resenhas nos cursos de Direito

O Ministério da Educação (MEC), por meio do Conselho Nacional de Educação (CNE), institui as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) apontando as competências (conhecimentos desenvolvidos) e as habilidades (saber fazer) necessárias de serem desenvolvidas pelo curso de graduação em Direito. Tais competências e habilidades são as seguintes5: Art. 4º. O curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competências: I - leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas; II - interpretação e aplicação do Direito; III - pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do Direito; IV - adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilização de processos, atos e procedimentos; V - correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito; 5

Baseado em: BRASIL. CNE. Resolução CNE/CES 9/2004: Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito. Diário Oficial da União, Brasília, 1 de outubro de 2004.

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VI - utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica; VII - julgamento e tomada de decisões; e, VIII - domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e 6 aplicação do Direito .

A leitura das competências e habilidades básicas propostas pelos órgãos reguladores do Ensino Superior de nosso país evidencia a necessidade de desenvolvimento de trabalho consistente e constante, no interior dos cursos de Direito, voltado para o desenvolvimento de competências e de habilidades relacionadas à escrita e à leitura proficientes tanto de textos científicos, quanto técnicos e do dia a dia. Além disso, o desenvolvimento da leitura e da escrita proficientes no meio acadêmico propicia melhoria qualitativa dos trabalhos do curso, dos projetos de pesquisa e das monografias elaborados pelos estudantes, bem como, abre caminho para a publicação de textos em revistas científicas, anais de congressos e coletâneas de textos acadêmicos, com a orientação de professores, hoje tão cobrada pelos órgãos avaliadores de qualidade das instituições de Ensino Superior do país. Por isso, o trabalho com o gênero textual resenha crítica ganha relevância e se justifica como uma tentativa de implementação de produção de textos acadêmicos com maior qualidade e desenvoltura textuais, além de propiciar a leitura e reflexão crítica de textos do universo das disciplinas estudadas ou relacionados aos conhecimentos gerais. Não bastassem tais razões, a produção efetiva de resenhas críticas ainda ajuda a preparar os graduandos da instituição para as avaliações externas como o ENADE, cuja nota compõe 70% do Conceito Preliminar de Curso (CPC), uma das notas mais importantes na formação da nota definitiva do curso e da classificação da instituição no ranking nacional de instituições de Ensino Superior. As competências mencionadas anteriormente configuram a base norteadora para a elaboração das 40 questões da prova do ENADE, aplicada a todos os cursos, em ciclo de 03 em 03 anos. 3. Tipos de resenhas7:

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O gênero textual resenha, conforme Campos (2012-2015), apresenta três espécies distintas: a resenha indicativa ou descritiva, a resenha temática e a resenha crítica. A) A resenha indicativa é aquela encontrada em jornais e encartes de Dvds, por exemplo, cuja função é fazer uma breve apresentação da obra (livro ou filme), seguida de uma classificação do material, além de fazer uma indicação de públicoalvo (leitor virtual). Apresenta comumente: 1. Resumo bem sintético; 2. Dados gerais da obra; 3. Apreciação.

Quadro 01: Exemplo de resenha indicativa de filme: A MAÇÃ O filme narra a história de duas irmãs gêmeas que ficaram aprisionadas em casa por onze dos seus treze anos de vida. Vítimas da obediência extrema a um preceito do Alcorão que reza que "meninas são como flores que, expostas ao sol, murchariam", foram libertadas após uma denúncia feita pelos vizinhos e publicada nos jornais. Samira Makhmalbaf, uma menina de 18 anos, decide filmar o processo de libertação e adaptação das irmãs à vida social. Este processo é marcado por muitos desafios e descobertas do mundo externo como andar nas ruas, ir à feira, conviver com outras crianças, tudo balizado por um novo prazer de viver. As cenas são fortes e comoventes, revelando a descoberta da liberdade e da vida. Vale a pena! FICHA TÉCNICA Características: filme iraniano, colorido, legendado, com 86 minutos, produzido em 1998. Direção: Samira Makhmalbaf Gênero: drama Distribuição em vídeo: Cult Filmes Qualificação: Fonte: portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/cat_res.pdf

B) A resenha temática trata de uma leitura apreciativa de um mesmo tema em textos diferentes ou em diferentes autores. De acordo Köche, Boff e Pavani

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Na internet, há inúmeras confusões sobre o que é de fato uma resenha. Alguns sites inclusive apontam o resumo crítico como sendo uma resenha, o que configura uma falha descritiva e conteudística.

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(2009, p. 105)8 “a resenha temática consiste em um gênero textual que sintetiza mais de um texto ou obra, em torno de um só assunto, estabelecendo relações entre suas ideias”. Geralmente esse tipo de resenha segue o seguinte ordenamento: 1. Título 2. Apresentação do tema 3. Resumo os textos ou dos posicionamentos 4. Apreciação/comparação/conclusão 5. Fontes bibliográficas.

Quadro 2: Exemplo de resenha temática: Entre anima e corpo Este trabalho refere-se a uma brevíssima comparação da visão de homem que perpassa a Filosofia e as Ciências Naturais. Para isso, toma os conceitos de mecanicismo e como vértice explicativo do homem, na dualidade, mente e alma, de René Descartes; passa pelo dualismo "mente e comportamento”, de Skinner e o comportamento operante; indo até Richard Dawkins e o homem funcional dotado de intenção biológica, imbuído e "destinado" a ser uma "maquina gênica". É necessário para uma melhor compreensão voltarmos ao século XVII, no qual o filósofo René Descartes confere ao homem uma parte no mundo puramente mecânica semelhante às marionetes manipuladas por fios e cordas do teatro francês. O dualismo cartesiano aparta o homem da besta-fera, quando lhe confere o que chama de "substância" (alma/mente). Skinner formula a teoria do comportamento operante, já que o comportamento seria a base explicativa da ação do homem sob o meio. Skinner entende que o comportamento do homem é produto da relação deste com o meio e propõe que três seriam os determinantes da modelagem do comportamento: a filogenia, ontogenia e a cultura. A alma ou mente é deixada de lado e, segundo essa perspectiva, não poderia determinar nem influenciar no comportamento humano. Toda a explicação influenciada pela metafísica ou que inferiria que a entidade "mente" influencia ou opera sobre o somático é tida como mentalista ou uma explicação “fictícia", que não tem base, nem valor científico. Dawkins resgata e o mecanicismo ingênuo de Descartes, e com a cientificidade da biologia inverte o conceito do antropomorfismo e devolve ao homem o "status" de animal, desprovido de característica ou ancestralidade divina. Como Skinner, deixa de lado o fator alma ou razão metafisica para explicar o razão da existência e comportamento humano. Como zoólogo, Dawkins vincula a existência humana a uma espécie de "padrão fixo de ação”, ou seja, a replicação gênica e perpetuação da espécie (homo sapiens). O pensamento mecanicista e pragmático de homem "máquina", dotado de estruturas ou conjuntos orgânicos com uma funcionalidade previsível, não é uma corrente epistemológica nova, mas, remete-nos a origem do pensamento racional e é anterior ao "positivismo" Comtiano. Descartes entendia o homem como semelhante aos animais na forma e estrutura fisiológica. Assim, a mecânica hidráulica de seu tempo servia-lhe de inspiração, e se houve um "erro" cometido por Descartes, segundo Damásio (1996), é o de não ter alocado no encéfalo do homem o que ele chamava de "substância" ou mente. Damásio, como neurologista, entende a tal "mente" intrínseca a processos neuronais. Skinner, seguindo a influência do behaviorismo de Watson quanto a necessidade da cientificidade e operacionalização da psicologia, cria o behaviorismo radical que não nega sentimentos ou emoções humanas, mas, procura entende-los como uma forma de comportamento possível de análise.

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KÖCHE, Vanilda; BOFF, Odete; PAVANI, Cinara. Prática textual: atividades de leitura e escrita. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Assim, a filosofia do comportamento entende o homem como sendo determinado pelas contingências ambientais. Skinner cria uma psicologia empirista e pragmatica, deixando para o senso comum conceitos como alma, mente ou espírito. Para ele, o homem é influenciado pelo ambiente e difere-se da marionete pensada por Descartes, por esse não ser um autômato. Segundo Skinner, o homem modifica e interage com o meio, e por este é transformado. Ou seja, não é passivo, atua e é modificado, transformado, vive uma relação dinâmica com o meio, que modela seu comportamento cria novas contingências tornando-o mais adaptado à sobrevivência no meio. Dawkins, como cientista da biologia, influencia a discussão quanto ao comportamento, pois parece concordar com a ideia de que processos neurais e comportamentais enquadram-se em modelos computacionais. O homem seria uma “máquina”, um organismo dotado de racionalidade, porém, puramente biológico, livre de influências externas de caráter divino como mente ou espírito. Dawkins é mais radical que Skinner e propõe que os experimentos com animais podem ser realizados de forma simulada em um ambiente totalmente controlado. Pode-se depreender, portanto, que a ideia dos dois últimos autores difere bastante da ideia de Descartes. Skinner e Dawkins, mesmo entendendo a singularidade do homem e respeitando-a, apresenta fortes argumentos de que o "animal" homem é multideterminado em seu comportamento, mas nao é superior, ou melhor, que um animal infra-humano (ratos e pombos). Já Descartes, introduz a ideia de que o homem seria uma máquina que pensa, os seus músculos são comandados pelo cérebro através do sistema nervoso, além de figurar um dualismo: o corpo capaz de movimento resultante do engenho divino e um corpo autómato capaz de movimento resultante do engenho humano. Referências bibliográficas: DAWKINS, R. O gene egoísta. São Paulo: EDUSP. 1979. DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras. 1996. DESCARTES, R.. Discurso do método. São Paulo, SP: Editora Escala, 2006 SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. 8. Ed. São Paulo: Martins Fontes. 1993. Fonte: Texto reescrito e adaptado a partir do texto de Hilton Caio Vieira. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/61000137/Resenha-Tematica-Hilton-Caio-Vieira.

C) A resenha crítica, por sua vez, é a espécie de resenha mais comum no meio acadêmico, e se inicia pela referência bibliográfica do texto resenhado, apresenta o autor e a obra, resume as principais ideias do texto, apresenta uma apreciação crítica tanto de aspectos formais quando conteudísticos desse mesmo texto e ainda faz a recomendação ou não de quem deve lê-lo. Não raro, as resenhas trazem também, em sua construção, material extratexto, ou seja, outros posicionamentos ou posicionamentos que corroboram a perspectiva do autor resenhado, como forma de expansão da análise e comparação de ideias. Neste caso, o material extratexto deve ser mencionado nas referências bibliográficas posteriores ao texto, uma vez que a referência que abre a resenha é a de apresentação técnica apenas do texto resenhado. Em Campos (2012-2015), aproveitando-se os ensinamentos da sociorretórica, especialmente o modelo CARS9 de Swales (1990) e a adaptação proposta por Motta-Roth (2010), apresenta-se um esquema potencial deste gênero (apresentar, descrever, avaliar, (não) recomendar o texto), elaborado pela autora deste capítulo e 9

Create a Research Space. Modelo de organização retórica de um gênero textual.

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empregado nas disciplinas em que ensina aos estudantes a elaborarem a resenha crítica. QUADRO 3: ESQUEMA DO GÊNERO TEXTUAL RESENHA CRÍTICA (passo a passo) Movimento 1 REFERENCIANDO O LIVRO Passo 1

Nome do organizador e dos autores.

Passo 2

Título completo e exato da obra: subtítulo.

Passo 3

Número da edição. Lugar da publicação:

Passo 4

Nome da Editora.

Passo 5

Data da publicação. Número de páginas (todos dentro das normas da NBR 6023 para referências bibliográficas)

Movimento 2

APRESENTANDO O LIVRO

Passo 6

Informando sobre o autor/a / suas credenciais acadêmicas

Passo 7

Falando sobre a obra / Definindo o tópico geral do livro

Movimento 3

ESQUEMATIZANDO O LIVRO/ RESUMO

Passo 8

Delineando a organização geral do livro: capítulos, seções, tópicos etc.

Passo 9

Resumindo cada capítulo ou subdivisão: o que trata e/ou porque trata e/ou como trata e/ou para que trata. (ou resumo geral)

Passo 10(opcional)

Citando material extratexto: material de apoio, outro(s) autor(es) que confirma(m) ou contrapõe(m) posicionamentos

Movimento 4

AVALIANDO O LIVRO/POSICIONAMENTO

Passo 11

Avaliando estrutura formal do texto: linguagem, organização, exemplos, informatividade

Passo 12

Avaliando a parte conteudística do texto e discutindo o assunto: o assunto, a abordagem, argumentos, o que o diferencia ou o aproxima de outros autores, posicionamento, relação do texto com a disciplina, com acontecimentos do mundo.

Passo 15(opcional)

Avaliando partes específicas

Movimento 5

FORNECENDO AVALIAÇÃO FINAL DO LIVRO/REFERÊNCIAS

Passo 16

Recomendando a leitura do texto

Passo 17

Bibliografia de apoio utilizada (se foi usado algo além do texto resenhado).

Fonte: CAMPOS, Magna. Manual de gêneros acadêmicos. Mariana: Edição do autor, [2012]-2015.

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Dessa forma, é possível entender que elaborar uma resenha crítica implica construir de modo persuasivo cada um dos estágios, movimento-ação, a fim trabalharem para levar o leitor a validar ou não a apreciação/avaliação realizada, além de evidenciar o resenhador como membro capaz de avaliar criticamente um texto, de forma plausível, consistente e coerentemente. Em cursos de graduação, a resenha é solicitada tanto como uma atividade de leitura quanto de escrita, e recai mais sobre a apreciação de capítulos de livros e de artigos científicos, não sendo muito comum, pelos menos nos períodos iniciais, resenhar-se um livro teórico inteiro. Todavia, no caso de textos literários, mesmo na graduação, é comum solicitar-se a resenha do livro inteiro.

Quadro 4: Exemplo de resenha crítica O autor, Dr. Mauricio Gomes Pereira, é médico com especialização em pediatria e em saúde pública e professor titular da Universidade de Brasília. Tem vários livros publicados, entre eles Epidemiologia: teoria e prática, e vasta experiência na área de metodologia científica e de epidemiologia. O livro Artigos Científicos: como redigir, publicar e avaliar torna maior sua contribuição para o ensino e a pesquisa no Brasil, foi lançado recentemente pela Editora Guanabara Koogan. Com o objetivo de orientar os potenciais autores sobre como vencer as muitas barreiras na elaboração e publicação de artigos científicos, o livro aborda cada uma das etapas desse processo em 24 capítulos. Os três primeiros capítulos tratam dos aspectos da preparação do trabalho. O primeiro capítulo, Pesquisa e Comunicação Cientifica, versa sobre a necessidade de divulgação dos resultados das pesquisas como forma de finalização da mesma. Aborda, de modo geral, a evolução da comunicação cientifica nas ciências da saúde, menciona os periódicos de acesso livre e a situação atual de elevada competição para publicar . No segundo capítulo, Canais de Comunicação Cientifica, o autor descreve os tipos de periódicos, os tipos de artigos, as formas de publicação e as normas que as regem. Do terceiro ao décimo quinto capítulo é apresentada cada parte da estrutura de um trabalho cientifico, começando pelo planejamento, abordando a estrutura, redação e revisão do texto, a introdução, o método, os resultados, a discussão, as referências bibliográficas, o título, a autoria, o resumo, as palavras-chave, a escolha do periódico e um capítulo com temas para a complementação do artigo (capítulo 15). Somam-se a esse conjunto de capítulos, que orientam a elaboração de cada seção do artigo cientifico, outros três capítulos que exploram a Estatística (capítulo 18), a Preparação de Tabelas (capítulo 19) e a Preparação de Figuras (capítulo 20). O leitor irá encontrar também capítulos sobre a Submissão do Artigo para a Publicação, sobre a Avaliação de artigo Cientifico e sobre Ética (capítulo 21). Os três últimos capítulos do livro versam sobre temas auxiliares, enfocando a motivação para divulgar os resultados de uma pesquisa e os recursos para publicá-los. O capítulo 22 , Vale a pena publicar Artigo Científico?, lista os motivos pelos quais esta prática é cada vez mais importante e competitiva assim como os auxílios disponíveis para uma escrita de qualidade. O capitulo seguinte, Como ter Artigo aprovado para Publicação, aponta as particularidades dos textos recusados, como falta de relevância do tema, pouca originalidade, os erros mais comuns de redação, entre outros aspectos que devem ser evitados para que um trabalho seja aprovado para publicação. O livro termina com Síntese das Sugestões sobre Redação Científica, onde são agregadas as informações que resumem os demais capítulos do livro. Os capítulos são estruturados em itens, apresentados com texto curto e com um ou mais exemplos, quando pertinente. A estrutura do texto obedece a lógica de apresentação de cada tópico, do geral ao especifico, havendo dois itens comuns a todos os capítulos, o item Sugestões e outro com Comentário final.

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Os temas são apresentados com uma linguagem clara e direta. Além disso, vários recursos utilizados pelo autor facilitam a leitura, como a inclusão de exemplos e o resumo do conteúdo de cada capítulo, apresentado em tabela, fazendo referência à seção onde cada tema aparece. O leitor pode esperar instruções sobre cada etapa do processo de elaboração de um texto científico para publicação, com a exposição de cada detalhe envolvido e dicas sobre o que deve ser considerado para se obter um resultado apropriado. Além disso, aspectos importantes relacionados ao encaminhamento e à publicação do artigo são abordados na obra. Entre esses, como preparar uma carta ao editor, como lidar com o processo de revisão, e como proceder para avaliar um artigo cientifico. A inclusão de um capítulo sobre estatística, assim como sobre a preparação de tabelas e figuras reflete a abrangência da obra. Nota-se, em toda a obra, uma abordagem além do que seria esperado para os temas propostos. O autor não se limita a identificar o conteúdo básico de cada item de um artigo cientifico e a explorar formas de preparar cada parte do trabalho, oferecendo ao leitor a chance de rever cada tópico da preparação do estudo. Por exemplo, o capítulo de Método aborda detalhes de cada um dos seus itens como tipos de estudo, características da amostra, classificação das variáveis, erros a serem evitados, entre outros. No capítulo Resultados, somado à seqüência de apresentação dos dados, o autor também descreve as formas estatísticas para apresentar o efeito encontrado no estudo. No capítulo sobre Complementação do Artigo o leitor encontrará instruções sobre as revisões para o aprimoramento do artigo, os erros e os vícios de linguagem a serem evitados, normas para o uso de siglas e de citação de números no texto, tempos verbais a serem usados em cada parte do artigo, entre outros aspectos necessários a uma redação correta. A abrangência do conteúdo torna inevitável algumas repetições, até porque alguns temas apresentados se sobrepõem. Ainda que o foco seja a redação de artigo cientifico, é evidente a quantidade de informação teórica sobre pesquisa epidemiológica disponibilizada. O livro não se limita a propor normas de redação, como uma receita do que deve conter a introdução, a parte de métodos ou as demais partes do artigo, mas inclui um conteúdo teórico sobre temas relacionados a cada tópico. Desta forma, o livro pode ser útil para aqueles que querem um roteiro ou orientação para aprimorar seus manuscritos científicos e que têm dúvidas específicas, mas também para os iniciantes, que se beneficiarão ao ler um texto mais extenso, com um teor maior de informação sobre cada aspecto envolvido na produção cientifica. Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2012000200021. Acesso em: 19 out. 2015.

Quadro 5: Exemplo 2 de resenha crítica Outro exemplo de resenha crítica, devidamente formatada e com apontamentos das partes que a compõem se encontra no Anexo A deste manual. Cada espécie do gênero textual resenha implica, como pode ser observado nos processos descritos anteriormente, aprendizado que envolve propósitos comunicativos e movimentos retóricos específicos, além de diferentes tipos de conhecimentos. Sendo assim, o ensino deve levar em consideração tais especificidades, uma vez que o ensino da produção textual não pode ser o mesmo para todo e qualquer espécie e gênero a ser estudado.

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ATENÇÃO: Modalidade mais comum em nossa faculdade: resenha crítica. Em uma resenha crítica, portanto, são necessárias cinco partes (ver esquema detalhado na página 07):

1. Referência bibliográfica do texto resenhado 2. Credenciais do autor e apresentação do texto 3. Resumo do texto resenhado 4. Crítica à forma e ao conteúdo 5. Indicação de leitura (não se separam as seções por tópicos, texto elaborado com sequência de parágrafos normais) Na avaliação da resenha crítica, além da qualidade da escrita acadêmica empregada, deve ter mais peso, sempre que possível: 1° - a qualidade da crítica desenvolvida; 2° - a qualidade do resumo (bem sintético, mas representativo do conteúdo principal) 3° - a qualidade das credenciais e apresentação do texto 4° a qualidade da indicação de leitura e a percepção crítica de pessoas a serem beneficiadas pela leitura do texto resenhado. 5° - a correção da referência bibliográfica e a formatação do texto

FORMATAÇÃO DA RESENHA ACADÊMICA DIGITADA Cabeçalho com: nome da faculdade, disciplina, professor, aluno(s) e data Fonte: Arial Tamanho da fonte: 12 (salvo nas citações longas e legendas, nestes casos, usar fonte arial 10, texto justificado). Alinhamento do texto: justificado Espacejamento entre linhas: 1,5 (salvo nas citações longas e notas de rodapé, espaço simples) Margens: esquerda e superior – 3 cm / direita e inferior – 2 cm Separação entre as seções do trabalho: um enter entre o cabeçalho e a referência bibliográfica inicial, e entre essa referência e o corpo do texto da resenha.

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ANEXO A: Exemplo de resenha crítica com indicação das partes-movimentos Movimento 1: referência bibliográfica do texto resenhado.

SANTIN, Janaína Rigo. O Município no Constitucionalismo Brasileiro e o tratamento histórico do poder local. São Paulo, Revista Lex, n. 23, abr./ 2006. Janaína Rigo Santin é Doutora em Direito das Relações Sociais, pela Universidade Federal do Paraná, Mestre em Instituições Jurídico-políticas, pela Universidade de Santa Catarina, professora do Curso de Direito e do Programa de

Movimento 2: credenciais da autora e apresentação da obra

Mestrado em Historia da Universidade de Passo Fundo e Advogada. O artigo apresentado por Santin, no II Congresso Sul-Americano de História, na cidade de Passo Fundo no ano de 2005, traz à memória a formação do poder local no Brasil, perseguindo a influência e a condução de políticas públicas desse poder sobre a sociedade civil. A autora ressalta os períodos dos governos nacionais e a projeção de limites dados aos municípios a cada época, relacionando ainda em seu texto a participação civil e o conceito de democracia para os dias atuais. O objetivo dessa obra é fazer com que a sociedade organizada reflita sobre as influências no processo de formação do Estado brasileiro. Na primeira parte do artigo, a autora contextualiza a formação do município no Brasil, estabelecendo uma ligação do modelo atual com as épocas da colônia, do império e das constituições de 1824, 1891, 1934, 1946 e 1967, dada ao ordenamento jurídico português. Nessa parte, a autora versa ainda sobre a autonomia municipalista mostrando que no período colonial a autonomia foi mais abrangente que no período imperial.

Movimento 3: resumo informativo do texto

Santin descreve que, ao longo do tempo, com sucessivas formas de governo e no constitucionalismo brasileiro, acontece novas restrições de autonomia municipalista. Mesmo com a implantação de autonomia de direito, de fato acontece o contrário, pois os sucessivos golpes militares restringiram o poder político administrativo e financeiro dos municípios, impondo intervenções de governabilidade de todos eles. Na segunda parte do artigo, menciona sobre as práticas influenciadoras que caracterizaram a formação do poder local no Brasil, estendendo-as ao poder central e a perpetuação ainda vista nos dias de hoje. A pesquisadora destaca o clientelismo e o personalismo como sendo o principal comprometedor das políticas públicas em prol do cidadão. Essas práticas herdadas do império português se alastraram como um câncer nas relações políticas entre coronéis, poder central e cidadão. Os

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recursos liberados eram para atender, como forma de agradecimento, aos favores dos coronéis que garantiam governabilidade ao poder central com imposição por força e temor aos eleitores. São destacadas nessa parte do texto as práticas coronelistas representados na pessoa dos proprietários de terra e dos detentores do poder econômico local. Continuação do Movimento 3

Segundo a autora, esses homens eram dominadores pelo carisma, pelo medo e pelo conhecimento técnico-intelectual, além do econômico. Esse período que antecede a constituição cidadã de 1988, conforme Santin, é marcado por uma forte atuação do fenômeno político social chamado de coronelismo. O poder é muito maior quando a localidade ou um município é mais distante dos centros urbanos. O contato dos cidadãos com os políticos se dava em época de eleição, quando ocorriam as trocas de favores “personalismo e clientelismo”. Na última parte do texto, a doutora define poder local como paradigma de legitimação do poder político e da nova democracia em que difere do “demos” do passado no qual o povo exercia a soberania (Grécia antiga). Hoje justificada numa visão liberal e individualista de representatividade. A autora encerra narrando o poder local como alternativa para criar novas formas de representação tradicional, em que os cidadãos de forma organizada possam participar do processo político ativamente na sua comunidade local.

Movimento 4: crítica à parte formal do texto

O texto apresentado por Santin é conciso, possui uma linguagem de fácil entendimento, pois adota o critério de divisão cronológica, o que facilita o acompanhamento da perspectiva apresentada. Além disso, os fatos descritos no texto demonstram que ainda hoje se convive com as práticas de nepotismo, de personalismo e clientelismo embutidos nas administrações locais. A abordagem de Santin sobre o poder local serve ao debate sobre o

Movimento 4: crítica ao conteúdo do texto

nepotismo, não somente na esfera do agora, mas, principalmente, na observação de ser este um traço tristemente arraigado em nossa história política. Elemento que pode ser exemplificado, segundo os casos mencionados pela autora e que encontram reverberação nos noticiários atuais, como a manchete a seguir: “PF investigará denúncia por compra de votos na Bahia” (FOLHA DE S. PAULO, p. 8, 15 jul. 2014). Em uma realidade atual, em que a corrupção e a descrença política são notórias, haja vista o grande número de denúncias de políticos envolvidos com lavagens de dinheiro, recebimentos de propina, desvios de verbas públicas tanto no

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âmbito municipal, quanto estadual e federal, o texto da autora e seus argumentos Movimento 4: crítica ao conteúdo do texto

fortemente desenvolvido servem para evidenciar também, além da formação do poder público e político municipal, que o Brasil convive com política de favores e de apropriação indevida de dinheiro público há mais tempo que muitos supunham.

continuação

Ainda, uma grande contribuição da autora é na articulação dos estudos de poder local e de suas relações com o Estado nacional no Brasil, definido claramente e exemplificando conceitos básicos como mandonismo, coronelismo, clientelismo, patrimonialismo. Movimento 5: Indicação de leitura e referência de outros textos usados.

Dada a importante retomada histórica para evidenciar as raízes do “nepotismo” na política brasileira, no âmbito do poder local, o texto pode ser muito útil aos leitores mais preocupados com as questões políticas em geral, pois apadrinhamento é algo que se tornou um “desvirtuoso” traço cultural em nossa sociedade e precisa ser entendido para que possa ser combatido.

Referência Bibliográfica: PF investigará denúncia por compra de votos na Bahia. Folha de São, p. 8, 15 jul. 2014.

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EXEMPLO DE RESENHA CRÍTICA PUBLICADA EM REVISTA CIENTÍFICA MAGNA CAMPOS

Consumo e Consumismo: deslocamentos nas ressonâncias do contemporâneo Marisa Vorraber Costa Viviane Castro Camozzato

RESENHA CRÍTICA BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 199p. Zygmunt Bauman1, considerado um dos expoentes da teoria social contemporânea, vem abordando o tema do consumo na maior parte de seus livros, dentre os quais citamos Modernidade e Ambivalência (publicado originalmente em 1991, e no Brasil só oito anos depois), O Mal-estar da PósModernidade (1998), Globalização: as conseqüências humanas (1999b), Modernidade Líquida (2001), Vida Líquida (2007). Tal fato demonstra, além da centralidade do conceito para a compreensão da vida nas sociedades do início do século XXI, também o alinhamento das análises de Bauman entre as de autores que consideram o consumo uma dominante cultural. Em Vida para consumo (2008), Bauman elege o consumo como foco preferencial, e desenvolve sua análise apresentando o que considera ser uma das principais consequências da condição pós-moderna: a progressiva e constante transformação das pessoas em mercadorias. Um dos mais notáveis analistas das transformações dos modos de vida nas sociedades da segunda metade do século XX e início do XXI, Bauman nos Educ. Real., Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 343-349, set./dez., 2010. Disponível em:

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apresenta sintomas que considera próprios da cultura de nossos dias, essa a que nos referimos como cultura contemporânea. Envolvendo-nos em análises sobre artefatos e temas que nos circundam, ele aborda casos expressivos dos modos de vida em nossos dias, localizados em matérias de jornais, quadros midiáticos, estratégias mercantis, usos da tecnologia, etc. Para ele, todos podem ser compreendidos como enunciados que falam sobre nossas sociedades e os sujeitos que as compõem. São convocações para assumirmos determinados modos de ser, e que expressam, ao mesmo tempo, as marcas e singularidades do nosso tempo. Evidencia-se aí uma das principais características das obras de Bauman, que é esse modo profícuo como analisa as configurações da atualidade, escrutinando suas injunções e operando com ferramentas que nos fazem pensar sobre aquilo em que estamos nos tornando. Chama atenção a habilidade do autor para articular a complexidade dos empreendimentos analíticos que utiliza ao problematizar as configurações sociopolíticas e culturais que se erguem, cotidianamente, em nosso entorno, com uma forma despretensiosa e acessível de expressão de ideias e de desenvolvimento da reflexão. É isso que, somado a tantos outros admiráveis atributos de seu trabalho intelectual, entre eles a aguçada sensibilidade para as questões sociais mais críticas do nosso tempo, vem despertando cada vez mais interesse por seu pensamento, posicionando seus livros entre os sucessos editoriais da atualidade pelo mundo afora. Já na Introdução de Vida para consumo, Bauman expõe três diferentes casos a partir de matérias selecionadas em duas edições do jornal britânico The Guardian. No primeiro, aborda a tendência cada vez mais forte, hoje, de uma visibilização de si em redes sociais da Internet. No segundo, trata da seleção, por parte de muitas empresas, dos bons consumidores em detrimento dos chamados consumidores falhos. E, no terceiro, aborda a política de imigração britânica, que coloca em disputa um sistema de pontuação para a avaliação dos imigrantes que interessam ao país. Esses três casos, localizados em diferentes seções do jornal e relacionados a distintas esferas da vida, são reunidos e conectados por Bauman como expressões de nossa cultura, que cada vez mais incitam os sujeitos a fazerem de si mesmos mercadorias desejáveis e vendáveis nos inflacionados mercados do século XXI. Essa exposição a que as pessoas se submetem ressalta o quanto nossas experiências estão implicadas com a disposição para nos tornarmos mercadorias. Afinal, desde as incursões sobre nós mesmos, envolvendo investimentos corporais e estéticos, relacionamentos amorosos e de trabalho, entre tantos outros, somos instados a uma série de processos que implicam uma remodelagem constante. A obra de Bauman expressa um refinamento importante nas discussões e formas de se pensar sobre consumo, apontando deslocamentos do conceito. De um entendimento do consumo como apropriação de objetos e produtos, há um alargamento para comportar também a produção dos próprios sujeitos e sua disponibilidade para se transformarem em mercadorias. A esse processo Bauman refere-se empregando o termo comodificação, aludindo a operações em que as

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pessoas assumem a condição de mercadorias, de bens a serem desejados, mercantilizados, ultrapassando a exclusiva condição de consumidores. Contudo, segundo o autor, se o fetichismo da mercadoria, na fase sólida da modernidade, tendia a encobrir os fatores humanos incrustados na sociedade de produtores, o fetichismo da subjetividade tende, por sua vez, a encobrir a condição “comodificada da sociedade de consumidores” (Bauman, 2008, p.23). É nesse sentido que o fetichismo da subjetividade atua, produzindo nos sujeitos a crença de que as movimentações se dão por uma liberdade de escolha que é basicamente individual, não sendo pré-estabelecida por catálogos de formas de vida à venda em diferentes âmbitos de nossa sociedade de consumidores. O livro é composto de uma Introdução e mais quatro capítulos: Consumismo versus consumo, Sociedade de consumidores, Cultura consumista e Baixas colaterais do consumismo. Os capítulos são entrelaçados de maneira excepcional pelo autor, que problematiza as configurações contemporâneas em relação ao consumo desmembrando os seus pontos de articulação e interligando-os, fazendo-nos transitar por uma análise cuidadosa e metodologicamente útil às nossas pesquisas. Optamos, frente à complexidade de apresentar capítulos que se articulam de maneira tão magistral, por fazer ressoar os usos dos conceitos e das estratégias metodológicas de Bauman no livro. Isso porque, talvez, tenhamos sentido que o tema e a escrita se inscrevem numa fugacidade e dinamicidade que não temos como apreender de todo. Mostrar as ressonâncias nos parece, assim, o mais apropriado frente a uma obra que nos incita a pensar muitas outras coisas a partir e para além dela. O autor articula suas análises pautando-se por novos conceitos, muitos deles buscados em autores com os quais compartilha visões e interpretações, e que servem para compreender as singularidades deste tempo. Sociedade de consumidores, comodificação, cultura consumista, tempo pontilhista, fetichismo da subjetividade, agrupamentos por enxames, entre outros, são alguns dos conceitos tensionados no livro. Ressoa para nós o quanto a compreensão de novos fenômenos, emergentes em uma sociedade de consumidores, não são passíveis de ser produtivamente problematizados se recorremos a conceitos que são, ainda, mais próprios de uma sociedade de produtores. A análise parece indicar, assim, o quanto cada conceito, como salientam Derrida e Roudinesco (2004, p.14), “[...]nomeia o gesto de uma apreensão, é uma captura”. Outro dos importantes delineamentos realizados por Bauman diz respeito à acepção de que houve um deslocamento do consumo para o consumismo. Enquanto o consumo inscreve-se na ordem da necessidade, o consumismo caracteriza-se como “um atributo, a capacidade profundamente individual de querer, desejar e almejar” (Bauman, 2008, p.41). Podemos pensar que o consumismo inscreve-se como sendo da ordem dos excessos, da sobrepujança, pois é uma condição que se esboça na fase líquida da modernidade2. Assim, enquanto a sociedade de produtores, situada na fase sólida da modernidade, movia-se com o consumo garantindo a apropriação e posse, apostando na

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prudência, em planejamentos de longo prazo, com uma ênfase na segurança e no valor de durabilidade, o consumismo, por sua vez, atua: [...]em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades [...] mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos desejos destinados a satisfazê-la (Bauman, 2008, p.44, grifos do autor).

As considerações sobre a sociedade de produtores por um lado, e, de outro, a sociedade de consumidores, são, assim, articuladoras importantes para a compreensão dos processos implicados e desenvolvidos em Vida para consumo. Afinal, a sociedade de consumidores caracteriza-se, principalmente, por convocar os sujeitos em sua categoria de consumidores. Somos, primeiramente, consumidores, tornando-nos sujeitos prioritariamente pelas capacidades demonstradas para tal condição. Dentre as discussões associadas às transformações em andamento na modernidade – da modernidade sólida para a líquida – outra questão se destaca para a compreensão dos deslocamentos tensionados no decorrer do livro. Mais especificamente, trata-se da operação de uma “renegociação do significado do tempo” (Bauman, 2008, p.45). Ou seja, de um tempo cíclico e linear, da sociedade de produtores, passa-se a um tempo pontilhista – metáfora de Michel Maffesoli (2003) utilizada por Bauman – marcado por uma multiplicidade de instantes, descontinuidades e fragmentações. Outros termos, como cultura agorista ou cultura apressada, tomados emprestados de Stephen Bertman (1998), também endereçam a esta renegociação do significado do tempo que atua sobre os sujeitos, produzindo estados de movimentação constante entre distintos pontos. Talvez aí tenhamos um fecundo argumento para as discussões sobre a produção de identidades contemporâneas, pois esta relação com o tempo, tão destoante de outras épocas e contextos, é uma das condições de possibilidade para que os sujeitos se movam incansavelmente. Ademais, um dos modos de manter-se em movimento nos pontilhados do tempo e do espaço é através do consumismo, que insta novos e diversificados significados aos que consomem as novidades sempre emergentes. Não se trata, em suma, de adquirir, juntar e acumular, mas, sobretudo, de adotar o imperativo de descartar e substituir, afinal, “A ‘síndrome consumista’ envolve velocidade, excesso e desperdício” (Bauman, 2008, p.111, grifos do autor). Com isso há um dilatamento do consumo que passa a englobar o conjunto da população. Não apenas adultos são alvos privilegiados, como na sociedade de produtores, mas sobretudo crianças, jovens, todas as estratificações sociais, etc., pois o importante é ser consumidor, renegociar os significados do tempo e de si mesmo pela movimentação dos significados embutidos nos processos de compra e venda de objetos e de si. É um processo que se alia à máxima dos desempenhos individuais. Mover-se nas tramas do consumo é

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algo a ser feito por si mesmo, afinal, consumir “significa investir na afiliação social de si próprio” (Bauman, 2008, p.75). É a partir de considerações deste tipo que Bauman pinça, no terceiro capítulo do livro, mais um argumento de um excerto de manual de moda de um prestigiado jornal, em que são oferecidos aos leitores meia dúzia de visuaischave para os próximos meses. De um enunciado como este, que orienta leitores em relação ao estilo – visuais com um prazo pré-estabelecido para durar somente alguns meses –, Bauman mapeia o ambiente existencial erigido pela sociedade de consumidores. Ambiente composto, ainda, por uma cultura consumista: cultura que expressa uma “revogação dos valores vinculados respectivamente à duração e à efemeridade” (Bauman, 2008, p.111, grifos do autor). Trata-se, mais objetivamente, de uma cultura produzida histórica e socialmente a partir de condições e significações precisas, como foi o caso das formações sociais produzidas pela sociedade de produtores. Este é o ambiente em que se vive e em que novos significados continuam a ser produzidos ininterruptamente. Somos instados a pensar, ainda, especialmente no quarto capítulo, sobre as baixas colaterais do consumismo. Se a sociedade de consumidores – que “avalia qualquer pessoa e qualquer coisa por seu valor como mercadoria” (Bauman, 2008, p.157) – é erigida a partir das supostas benesses do consumo e de dispor-se incessantemente ao consumo, esta experiência não é compartilhada de forma igual por todos. Erige-se, também, “uma nova categoria de população, antes ausente dos mapas mentais das divisões sociais” (Bauman, 2008, p.155): a subclasse. Esta subclasse seria formada por “pessoas sem valor de mercado”, “homens e mulheres não-comodificados”, em suma, “consumidores falhos” (Bauman, 2008, 158). Se a sociedade de consumidores transforma-nos em mercadorias, os que não incitam o consumo e/ou são privados de algum modo deste processo são vistos como inúteis, não sendo capazes de associarse a este mesmo processo. São indivíduos visibilizados, agora, pelo perigo que supostamente representam para este modelo de sociedade. Dentre muitas outras ressonâncias, importa destacar, ainda, o grande número de autores e obras que Bauman articula em sua análise. Sociólogos, filósofos e escritores de obras literárias, ao lado de autores de matérias de jornais em seções tão variadas que vão da política externa à editoria de moda, são interlocutores de seu trabalho. De Max Weber a Michel Foucault, de Milan Kundera a matérias do jornal britânico The Guardian, o tema do consumo e seu efeito de excesso na sociedade de consumidores, o consumismo, vão sendo literalmente dissecados com as diversificadas lentes teóricas operacionalizadas pelo autor. Sem dúvida, esta é uma obra de grande fecundidade e importância e que interessa, de maneira especial, aos que pensam, pesquisam e fazem a educação dos nossos dias. Recebido em abril de 2010 e aprovado em agosto de 2010.

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Notas 1 Sociólogo nascido na Polônia em 1925, onde lecionou na Universidade de Varsóvia. Fugindo do nazismo durante a Segunda Guerra, peregrinou pelo mundo radicando-se, por fim, na Inglaterra, onde vive até hoje. É autor de inúmeros livros, sendo que sua produção intelectual mais importante surge a partir dos últimos anos do séc. XX. No Brasil, desde 1997, circulam mais de vinte títulos traduzidos para o português, alguns publicados em menos de um ano após seu lançamento na Inglaterra. Zygmunt Bauman é professor emérito de Sociologia das universidades de Leeds e de Varsóvia. Recebeu o Prêmio Amalfi, em 1989, por Modernidade e Holocausto, e em 1998 recebeu o prêmio Adorno pelo conjunto de sua obra. 2 Por modernidade líquida – diferentemente da modernidade sólida, mais pesada – Bauman (2001) passa a referir-se à fase instável, fluída, dinâmica e mutante na modernidade, a qual ele mesmo vinha denominando de pós-modernidade. Para uma aproximação sintética ao conjunto da obra de Bauman ver Costa (2009).

Referências BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade. Tradução Mauro Gama; Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999a. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999b. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. BERTMAN, Stephen. Hyperculture: The Human Cost of Speed. Westport: Praeger, 1998. COSTA, Marisa Vorraber. Zygmunt Bauman – Compreender a vida na modernidade líquida. Educação, ed. Segmento, São Paulo, v.1, p. 60-75, set. 2009. DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que Amanhã: diálogo. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. MAFFESOLI, Michel. O Instante Eterno: o retorno do trágico nas sociedades pósmodernas. Tradução Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk, 2003.

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Marisa Vorraber Costa é doutora em Educação e professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil e da ULBRA. Integrante do NECCSO. Pesquisadora do Cnpq – Brasil. E-mail: [email protected] Viviane Castro Camozzato é licenciada em Pedagogia e doutoranda em Educação na UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil. Integrante do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO). Bolsista do Cnpq – Brasil. E-mail: [email protected]

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