Como lidar com os pensamentos passageiros que nos atravessam?

June 9, 2017 | Autor: L. Belinaso Guima... | Categoria: Cultural Studies, Visual Arts, Estudos Culturais, Artes Visuais
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Revista Linha Mestra

Ano VIII. No. 24 (jan.jul.2014) ISSN: 1980-9026

LEITURAS SEM MARGENS

Bia Porto Artista visual | designer gráfica | designer de roupas infantis (JayKali) www.biaporto.weebly.com www.jaykali.weebly.com

SUMÁRIO EXPEDIENTE ........................................................................................................................................ 1   APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 3   Davina Marques   Ana Lúcia Horta Nogueira   EDITORIAL............................................................................................................................................ 4   ENTRE LEITURAS SEM MARGENS .................................................................................................. 4   Davina Marques   Ana Lúcia Horta Nogueira   ADJETIVAR AS LEITURAS POR ‘SEM MARGENS’ ....................................................................... 9   Antonio Carlos Amorim MESAS-REDONDAS ......................................................................................................................... 13 DIÁLOGOS SOBRE PRODUÇÃO DE SENTIDOS NAS LEITURAS DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES ............................................................................................................................ 13   Marcia Soares de Alvarenga   - DE CRIANÇA PARA CRIANÇA - LEITURA E ESCRITA: UM CONVITE à AUTORIA............ 25   Carmen Lúcia Vidal Pérez   POR QUE LER E ESCREVER A CIDADE COM AS CRIANÇAS?.................................................. 37   Maria Tereza Goudard Tavares   DAR A ESCREVER: REAPRENDENDO A LER AS ESCRITAS DOCENTES ............................... 52   Inês Barbosa de Oliveira   DAR A LER AS PESQUISAS SOBRE CURRÍCULO COM OS COTIDIANOS DAS ESCOLAS ... 66   Carlos Eduardo Ferraço   DAR A FALAR: REDES DE CONVERSAÇÕES NAS PESQUISAS EM CURRÍCULOS COM OS COTIDIANOS DAS ESCOLAS ........................................................................................................... 76   Janete Magalhães Carvalho   COMO LIDAR COM OS PENSAMENTOS PASSAGEIROS QUE NOS ATRAVESSAM.............. 86   Leandro Belinaso Guimarães   O QUE VEJO E O QUE DESEJO VER NAS FOTOGRAFIAS DE SEBASTIÃO SALGADO ........ 96   Lucia Estevinho Guido   UM OLHAR (MAIS OU MENOS DISTRAÍDO) PARA AS AMAZÔNIAS INVENTADAS NO TEMPO PRESENTE........................................................................................................................... 108   Shaula Maíra Vicentini de Sampaio   LA RABIA: GRITOS E SENSAÇÕES .............................................................................................. 119  

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SUMÁRIO

Pamela Zacharias Sanches Oda   A POÉTICA DO (IN)VISÍVEL DA FRONTERIA BRASIL/URUGUAI NA OBRA DE FABIÁN SEVERO ............................................................................................................................................. 126   Moacir Lopes de Camargos   (DES)LOCANDO (I)MA(R)GENS: BREVE ICONOGRAFIA DA TRINCHEIRA......................... 133   Monica Vasconcellos Cruvinel   O TRABALHO PEDAGÓGICO EM UMA PERSPECTIVA FREIREANA .................................... 143   Adriana Alves Fernandes Vicentini   A MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA INSPIRADA EM PAULO FREIRE .............................................. 149   Daniela Gobbo Donadon Gazoli COMUNICAÇÕES ........................................................................................................................... 159 PRISIONEIRO DAS “ILUSÕES JURISPRUDENCIAIS”: A IDEOLOGIA NO DISCURSO JURÍDICO BRASILEIRO .................................................................................................................. 159   Adreana Dulcina Platt   Maria Carolina de Godoy   À MARGEM DA LEITURA E DA ESCRITA: QUANDO UM ADOLESCENTE É PROTAGONISTA DE UM CASO DE ENSINO ............................................................................... 175   Ádria Maria Ribeiro Rodrigues   Simone Albuquerque da Rocha   Maria da Graça Nicoletti Mizukami   OS SENTIDOS DO ENSINO DA LEITURA NA EJA: AS VOZES DAS PROFESSORAS SEM MARGENS E SEM RETOQUES ....................................................................................................... 179   Adriana Cavalcanti dos Santos   Antonio Francisco Ribeiro de Freitas   Marinaide Lima de Queiroz Freitas   A LEITURA DE LITERATURA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POSSIBILIDADES QUE SE ENCAMINHAM PELAS TERCEIRAS MARGENS... ....................................................... 184   Adriana Cavalcanti dos Santos   Edna Telma Fonseca e Silva Vilar   Marinaide Lima de Queiroz Freitas   PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E GÊNEROS TEXTUAIS NAS AULAS DE MATEMÁTICA EM UMA COMUNIDADE DE APRENDIZES DE 6º ANO ................................................................... 189   Adriana Correia Almeida Batista   A INTERDISCIPLINARIDADE NA PRODUÇÃO DE UM LIVRO PARADIDÁTICO NO CURSO DE PEDAGOGIA ............................................................................................................................... 193   Adriana M. L. de Campos Rodrigues  

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SUMÁRIO

O ENSINO DA GRAFIA EM CAIXA DUPLA NA EDUCAÇÃO INFANTIL ................................ 197   Adriana Naomi Fukushima da Silva   O ENSINO INTENCIONAL E NÃO INTENCIONAL DOS ATOS DE LEITURA NO ENSINO FUNDAMENTAL .............................................................................................................................. 201   Adriana Naomi Fukushima da Silva   DISCURSO RELATADO EM TEXTOS JORNALÍSTICOS SOBRE AVALIAÇÕES EXTERNAS ............................................................................................................................................................. 205   Adriana Santos Batista   PRÁTICAS DE LEITURA EM TEMPOS DIGITAIS: UM ESTUDO COM ALUNOS INGRESSANTES NO ENSINO SUPERIOR TECNOLÓGICO ....................................................... 209   Adriane Belluci Belório de Castro   FORMAÇÃO DE CORPO INTEIRO: A EXPERIÊNCIA DO CURSO DE EXTENSÃO DA UNIRIO “EDUCAÇÃO INFANTIL: ARTE, CORPO E NATUREZA” .......................................................... 213   Adrianne Ogêda   Nuelna Vieira   PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DELEITE NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR LEITOR ............................................... 217   Aida do Amaral Antunes   Moyra Ribeiro Marques   Suzana Lima Vargas   OS SINAIS QUE VÊM DO MAR ...................................................................................................... 221   Aira Suzana Ribeiro Martins   FOTO-ESCRITA-EXPERIMENTAÇÃO........................................................................................... 225   Alda Romaguera   Alik Wunder   ( )... ..................................................................................................................................................... 230   Alessandra Aparecida de Melo   Ana Bittencourt   Cláudio Camargo   ORALIDADE E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA LEITURA DE POESIA.............................. 234   Alessandra Cardozo de Freitas   O ACESSO À LITERATURA COMO UM DIREITO: PRÁTICAS DE LEITURA LITERÁRIA COM ALUNOS SURDOS ............................................................................................................................ 238   Alessandra Gomes da Silva   ENSINO MÉDIO PROFISSIONALIZANTE: UM ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA ............................................................................................................................................................. 242   Alessandra Pereira Gomes Machado  

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SUMÁRIO

Marluce de Souza Lopes Santos   AÇÃO TRANSDISCIPLINAR: POSSIBILIDADE DE ATENUAR AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS ALUNOS DO ENSINO MÉDIO NA PRODUÇÃO ESCRITA .............. 246   Alexandra Cardoso Rinaldi da Silva   Márcia Regina Galvão   José Arnaldo de Macedo Júnior  

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Revista Linha Mestra – Ano VIII. No. 24 (jan.jul.2014). ISSN: 1980-9026  

Expediente Editoras Alda Regina Tognini Romaguera Alik Wunder Comitê Científico Colegiado de Representantes da ALB Diretoria da ALB Participação Especial nesta Edição da Revista Linha Mestra Comitê Científico e de Avaliação do 19º COLE Coordenação Geral: Ana Lúcia Horta Nogueira (USP) e Davina Marques (IFSP) Adair Mendes Nacarato (USF) Adilson Nascimento de Jesus (DELART/FE/UNICAMP) Adriana Lia Friszman de Laplane (FCM/UNICAMP) Adriane Teresinha Sartori (FALE/UFMG) Alik Wunder (FE/UNICAMP) Ana Cristina do Canto Lopes Bastos (Fundação CASA) Ana Lúcia Goulart de Faria (DECISE/FE/UNICAMP) Antonio Miguel (DEPRAC/FE/UNICAMP) Cândida Maria Santos Daltro Alves (UESC) Carlos Eduardo Miranda (DELART/FE/UNICAMP) Cecília Maria Aldigueri Goulart (UFF) Celi A. Spasandin Lopes (Univ. Cruzeiro do Sul) Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto (UNESP/Marília) Dagoberto Buim Arena (UNESP/Marília) Daniela Finco (UNIFESP) Elenise Cristina P. de Andrade (UEFS) Eliana Kefalás Oliveira (UFAL) Elizeu Clementino de Souza (PPGEduC/UNEB) Érica Speglich (Pesquisadora independente) Filomena Elaine Paiva Assolini (FFCLRF/USP) Gabriela Domingues Coppola (IA/UNICAMP) Gabriela Fiorin Rigotti (FIMI/Mogi-Guaçu) Giovana Scareli (UFSJ) Guilherme do Val Toledo Prado (FE/UNICAMP) Heloísa Andréia de Matos Lins (DEPE/FE/UNICAMP) Heloísa Helena Pimenta Rocha (DELART/FE/UNICAMP) José Fernando Teles da Rocha (Fund. Mun. de Ens. Superior de Bragança Paulista) Letícia F. R. Freitas (UFPEL) Lilian Lopes Martin da Silva (DELART/FE/UNICAMP) Luciane Moreira de Oliveira (PUC Campinas) Márcia Aparecida Gobbi (USP) Marco Antonio Martins (UFRN) Maria das Graças Monteiro Castro (UFG)

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EXPEDIENTE

Maria das Graças Sandi Magalhães (Fac.Anhanguera/São José dos Campos) Maria do Carmo Martins (DELART/FE/UNICAMP) Maria Inês Ghilardi Lucena (PUC-Campinas) Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo (UNESP) Marly Amarilha (UFRN) Mirian Lange Noel (UFMS) Nélia Aparecida da Silva (Prefeitura Municipal de Campinas) Norma Sandra de Almeida Ferreira (DELART/FE/UNICAMP) Núbio Delanne Ferraz Mafra (UEL) Raquel Salek Fiad (IEL/UNICAMP) Rogério Adolfo de Moura (DELART/FE/UNICAMP) Rosa Maria Hessel Silveira (UFRGS) Sara Mourão Monteiro (UFMG) Sulemi Fabiano Campos (UFRN) Susana Oliveira Dias (Labjor/UNICAMP) Thomas Massao Fairchild (UFPA) Ubirajara Alencar Rodrigues (FE/UNICAMP) Vanessa Ferraz A. Neves (UFMG) Wenceslao Machado de Oliveira Jr. (DELART/FE/UNICAMP) 19º Congresso de Leitura do Brasil (COLE) - Coordenação Geral Diretoria da Associação de Leitura do Brasil (Biênio 2013-2014)* Comitê Organizador Alda Regina Tognini Romaguera (UNISO/Sorocaba)* Alik Wunder (FE/UNICAMP)* Ana Lúcia Horta Nogueira (FFCLRP/USP)* Antonio Carlos Rodrigues de Amorim (FE/UNICAMP)* Davina Marques (IFSP-HTO)* Ubirajara Alencar Rodrigues (FE/UNICAMP)* Elizabeth Serra (FNLIJ/RJ) Heloísa Helena Pimenta Rocha (FE/UNICAMP) Guilherme do Val Toledo Prado (FE/UNICAMP; PIBID/UNICAMP) Eliana Ayoub (FE/UNICAMP; PIBID/UNICAMP) Maria do Carmo Martins (FE/UNICAMP) Ana Lúcia Guedes Pinto (FE/UNICAMP; PNAIC/UNICAMP) Maria Ângela Pinheiro (CEPROCAMP/PMCampinas) Lilian Lopes Martin da Silva (FE/UNICAMP) Luciane Moreira de Oliveira (FE/PUC-Campinas) Secretaria Lucy A. Rudék Maria José Duarte Marcussi Editoração: Nelson Silva Arte: Bia Porto www.biaporto.weebly.com

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APRESENTAÇÃO Davina Marques 1 Ana Lúcia Horta Nogueira 2 Esta edição da Revista Linha Mestra reúne textos apresentados no 19° Congresso de Leitura do Brasil (COLE), com o tema leituras sem margens. O COLE foi realizado entre os dias 22 e 25 de julho de 2014, organizado pela Associação de Leitura do Brasil (ALB), com apoio da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A revista divide-se em duas partes: uma dedicada a artigos apresentados em mesasredondas durante o congresso; outra dedicada a trabalhos das sessões de comunicação dos nossos conferencistas. A primeira, dos artigos das mesas-redondas, foi organizada em grupos de três trabalhos de acordo com a proposta de mesas-redondas enviadas por seus componentes. São cinco mesas com três trabalhos em cada uma delas, totalizando 15 artigos. A segunda, das comunicações, reúne 706 textos e representa a produção parcial dos nossos 1.009 conferencistas, pois nem todos enviaram o trabalho completo para avaliação e publicação neste periódico. Foram quase 2.500 participantes no 19o COLE. A ALB e o Comitê Científico do 19° COLE compartilham, aqui, o material apresentado no congresso. Boa leitura!

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Formada em Letras – Português/Inglês (UNIMEP) e em Pedagogia (UNICAMP), Mestre em Educação (UNICAMP) e Doutora em Letras (USP). Faz parte da diretoria da ALB, coordena a Revista Leitura: Teoria & Prática – da ALB, e leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Coordenou o Comitê Científico do 19o COLE com Ana L. H. Nogueira. 2 Formada em Pedagogia (UNICAMP), com mestrado e doutorado em Educação (UNICAMP), pós-doutorado em Linguística Aplicada (UNICAMP) e em Psicologia (Clark University). Atualmente é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Faz parte da diretoria da ALB, é membro titular do Conselho Técnico-Científico do Centro de Estudos Educação e Sociedade CEDES, também participa do Comitê Editorial da Revista Leitura: Teoria & Prática e dos Cadernos CEDES. Coordenou o Comitê Científico do 19o COLE com Davina Marques.

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EDITORIAL ENTRE LEITURAS SEM MARGENS Davina Marques 1 Ana Lúcia Horta Nogueira 2 O 19° Congresso de Leitura do Brasil (COLE), com o tema leituras sem margens, realizado entre os dias 22 e 25 de julho de 2012, provocou a produção dos trabalhos aqui reunidos. Embora não reflitam a posição oficial da Associação de Leitura do Brasil (ALB), mas a de seus autores, os trabalhos trazem a público parte significativa do pensamento de educadores e pesquisadores sobre o tema da leitura no nosso país. A diretoria da ALB, neste biênio de 2013-2014, buscou com o tema “sem margens” privilegiar o aspecto multifacetado das leituras, seu caráter plural, atravessado por múltiplas linguagens. No momento em que escrevemos este pequeno texto, ao nos aproximarmos do congresso, nós nos surpreendemos com o tamanho e o alcance dessa proposta, que se desdobrou em comunicações, mesas-redondas, conferências e toda uma programação literária e cultural oferecida inclusive ao público em geral – extrapolando as margens do próprio evento. O COLE convidou os participantes a inscreverem trabalhos no formato de comunicações orais e em outras linguagens, oferecendo aos congressistas outras formas de expressão das questões que os afetam no campo da leitura. Tivemos 833 comunicações, assinadas por até três coautores (1009 congressistas), reunidas em 281 sessões de três trabalhos, com um momento de discussão dos temas apresentados. Houve 21 mesas-redondas que se dividiram em livro (lançamento do COLE: Leituras sem Margens, com organização de Antonio Carlos Amorim e Alik Wunder) e na coletânea aqui apresentada. As mesas-redondas foram avaliadas e escolhidas por pareceristas e os títulos refletem a amplitude dos temas discutidos no nosso congresso: Alteridade e Preconceito: a Terceira Margem da Diferença; Contemporaneidade Complexa e as Práticas de Leitura dos Professores; Dar a ler, dar a falar, dar a escrever; Em busca de leituras sem margens por meio de vozes em diálogo: bibliotecários, professores e leitores; Entre margens e imagens; Escrituras e Edições Católicas; Formação continuada no contexto do PNAIC

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Formada em Letras – Português/Inglês (UNIMEP) e em Pedagogia (UNICAMP), Mestre em Educação (UNICAMP) e Doutora em Letras (USP). Faz parte da diretoria da ALB, coordena a Revista Leitura: Teoria & Prática – da ALB, e leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. 2 Formada em Pedagogia (UNICAMP), com mestrado e doutorado em Educação (UNICAMP), pós-doutorado em Linguística Aplicada (UNICAMP) e em Psicologia (Clark University). Atualmente é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Faz parte da diretoria da ALB, é membro titular do Conselho Técnico-Científico do Centro de Estudos Educação e Sociedade CEDES, também participa do Comitê Editorial da Revista Leitura: Teoria & Prática e dos Cadernos CEDES.

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EDITORIAL

(Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa): projetos e experiências a compartilhar; Leitura da imagem: leitura sem margens para o olhar e o pensar; Leitura sobre/com o ambiente: imagens, palavras, silêncios; Leitura, leitores: autoria e percursos pós-web; “Mestiço é que é bom”; Milton José de Almeida - Criador em Imagens e Palavras; O que os olhos veem, o que move um corpo? Afecções (s)em margens...; Percursos de pesquisa, imagens de crianças: sentido e não sentidos de experiências infantis; Pontes e Passagens: Diálogos entre Estágio Interdisciplinar, Residência Pedagógica e Iniciação à Docência; Prática pedagógica em EJA na perspectiva freiriana; Problematizando a obrigatoriedade da música na Educação Básica: políticas públicas, relações música/cultura e práticas em sala de aula; Produção de Sentidos sobre Leituras com Crianças, Jovens e Adultos em Escolas Públicas de Periferias Urbanas; Qual o lugar da fantasia na LIJ hoje?; Uma Proposta de Integração entre Língua Portuguesa e Matemática na Alfabetização: o Desafio da Unicamp no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (em duas versões). Criamos também um espaço no COLE para o debate que questões de políticas públicas que dizem respeito à leitura no Brasil, uma espécie de fórum em que organizações e associações de diferentes enfoques de atuação puderam oferecer novos olhares sobre temas de nosso interesse. Organizamos esses grupos em sessões especiais que intitulamos Perspectivas da Leitura no Brasil. Foram cinco momentos de discussão: Movimento por um Brasil Literário; Empréstimo de eBooks: a revolução na palma da mão; Leitura e Escrita de Qualidade para Todos; Leitura e liberdade – com quantas letras L se faz políticas públicas?; Tem gente fazendo sim! – Políticas municipais de promoção da leitura. Uma sessão especial que certamente foi um marco deste congresso é O Texto na Sala de Aula: 30 anos! Celebrando o aniversário da coletânea O Texto na Sala de Aula: leitura e produção, organizada por João Wanderley Geraldi e editada pela primeira vez em 1984, obra importante nos projetos de formação docente e ainda hoje referência em bibliografias de concursos, disciplinas e propostas curriculares, e o lançamento de O texto na sala de aula: um clássico sobre o ensino de Língua Portuguesa, durante o congresso, preparamos uma mesaredonda com os organizadores dos dois livros. Houve, inclusive, uma exposição comemorativa, com materiais produzidos por alunos, professores e equipes técnicas, que foram recolhidos e selecionados para apresentação ao público. Entre as cinco conferências encomendadas do 19o COLE, tivemos Cenas de vida numa favela: da leitura de um romance através de sua encenação até uma pesquisa de campo, do professor Willi Bolle, da Universidade de São Paulo, que nos apresentou o balanço final de uma experiência com uma oficina teatral realizada em Belém/PA com professores e alunos de uma escola de ensino médio da periferia da cidade. O projeto fez adaptações cênicas de cinco romances do escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979), cuja ação se passa na década de 1920 nos subúrbios de Belém, onde se estabeleceram os migrantes pobres vindos do interior. Educação pública e a dádiva do tempo: leitura e escrita como práticas de bens comuns, do convidado internacional Jan Masschelein, do Laboratório para Educação e Sociedade, da Bélgica, ofereceu-nos um exercício de pensamento como tentativa de retomar o espírito original de “o que é educação?”, tentando articular o acontecimento ao qual a palavra dá

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EDITORIAL

nome, as experiências nas quais esse acontecimento se manifesta e as formas (materiais) que a constituem ou fazem com que encontre/tome o (seu) lugar. Com É possível ensinar eficientemente todas as crianças de 5 a 7 anos a ler e escrever?, nosso segundo convidado internacional Jacques Fijalkow, da Universidade de Toulose-le-Mirail, França, fez uma introdução cronológica que pretende explicar por que e como esse assunto foi escolhido, as posições fundamentais sobre as dificuldades de se aprender a ler, os diferentes tipos de pesquisa sobre leitura, com um desenvolvimento especial baseado em pesquisa-ação realizada durante 30 anos, apresentando-nos, inclusive, o estado atual dessa pesquisa-ação, seus princípios teóricos e aspectos pedagógicos e didáticos, ressaltando questões políticas nessa e dessa pesquisa. A escritora brasileira Marina Colasanti enfeitou literariamente a festa com a conferência O navio fantasma atraca na terceira margem do rio, levando-nos a pensar quanto é previsível “navegar em águas limitadas por duas únicas margens!” e mostrando-nos como a busca por espaços mais amplos, invisíveis e etéreos, tem a ver com o processo de criação. E o professor Ezequiel Theodoro da Silva, da Universidade Estadual de Campinas, em O alfabetizador-etcetera – a (re)invenção de si no desmanche das fronteiras, a partir do conceito de “artista-etcetera” de Ricardo Basbaum (2013) e pensando o campo das práticas de alfabetização, fez pensar sobre os perigos dos especialismos e dos afunilamentos teóricopráticos do trabalho do professor-alfabetizador, mostrando a necessidade do pensamento crítico e atualizado frente a uma contemporaneidade complexa, múltipla e plural. O último dia do congresso foi reservado à formação, dando oportunidade aos participantes de escolherem um dos 39 minicursos oferecidos no período da manhã ou da tarde: A afetividade no processo de constituição do leitor; A Análise Narrativa na Pesquisa sobre Aprendizagem e Desenvolvimento Profissional Docente; A mediação de gêneros textuais em âmbito escolar: reflexões acerca da formação do leitor crítico; Arte Postal: leituras híbridas para além das margens da escrita e da imagem; As tradições africanas em narrativas infantis e juvenis; Biblioteca infantil e leitura literária: acervos, espaços e mediações; Caiu na rede é texto! – o trabalho com leitura em tempos de Internet; Celular na sala de aula: uma alternativa para as práticas de leitura e escrita de textos em tela; Constatar-cotejar-transformar - a teoria na prática; El papel de las bibliotecas en el acceso a la cultura escrita; Ensinar como acontecimento: professor vírus; Entre pensamentos, ideias e silêncios: lugares imaginários; Gênero e sexualidades infantis: as possibilidades de (mul)triplicar margens (in)visíveis, (in)tangíveis na educação; Gestão Escolar: trabalho e formação – alguns contornos possíveis para a constituição de um ethos profissional; Gesto e expressão: buscando leituras sem margens; Impressos efêmeros: fontes à margem. Perspectivas de abordagem a partir da história da educação, da leitura e da propaganda; Infâncias que habitam terceiras margens: resistências...choros, gritos e sussurros; In-ver-ter - imagens e pensamentos; Leitura e Subjetividade: produção de sentidos e singularidade; Leitura literária, vocalidade poética e escuta do corpo; Leitura verbo-visual de textos de divulgação científica na Educação Básica; Leitura: aprendizagem e formação do leitor. Processos cognitivos e metacognitivos; Leituras sem margens: os desafios da coordenadora pedagógica na formação dos profissionais da escola; Leituras sobre o Cárcere; Ler, levar a

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ler, defender o direito de ler literatura – O Movimento por um Brasil Literário; Literatura infantil nas aulas de matemática: recursos de comunicação e de aprendizagem; Literatura Infantil/Juvenil Contemporânea: além das margens e imagens; Literatura surda e tradução cultural: uma proposta interdisciplinar na educação básica; Margens (in)certas da Leitura: o leitor e o(s) outro(s); O Ensino da Língua Portuguesa como segunda língua para alunos surdos; O valor e os efeitos dos paratextos nos livros de literatura para crianças; Os direitos das crianças pequenininhas à educação e leitura sem margens; Quando a palavra não cabe na escrita: Vivência em Pedagogia Griô; (Re)Velar-ações: olhares cotidianos sobre o meu meio ambiente por meio da fotografia Pinhole; Saquinho de relíquias: um traçado poético e lúdico aos nossos núcleos internos de infância; Tecnologia em sala de aula: uma proposta de linguagem para produção de animação; Teorias e Metodologias de Pesquisa Acerca de Práticas Contemporâneas de Leitura: Interfaces entre Análise do Discurso e História Cultural; Traços e rastros da periferia: cenas de escrita literária marginal contemporânea; Ver de perto: despertando a consciência ambiental através de vivênvias e leituras sem margens. Entendemos, no entanto, que o COLE extrapolou as leituras importantes da sua parte acadêmica ao abrir-se para o público em geral, alargando-se para além das fronteiras da universidade que o acolhe, em nossa Feira Cultural e Literária, em sua segunda versão, com organização encabeçada pela professora Alik Wunder e com a parceria do SESC-Campinas e do SESI-Amoreiras. Desde o dia 21, já no período da manhã, a cidade de Campinas recebeu as intervenções culturais no centro da cidade com uma Parada Literária e os grupos Família Burg, Giralua Companhia de Artes e Passarinhê. Na Unicamp, contamos com esses e o grupo Choro da Mata, o show Eu sou Sinhá com Rosária Antônia, João Arruda e convidados, Grupo Cantavento (para crianças de todas as idades), e Duo Carol Ladeira e Vinícius Bastos. Tivemos contação de histórias com Malu Neves, a performance teatral Jardim Zen, e as conversas sobre Garatujas Teatrais com Elisabetta Martinelli e Maurizia Querciagrossa (professoras de creche de Bolonha, Itália) - para crianças pequenas da educação infantil e suas famílias, professoras e professores de crianças de 0-10 anos, com coordenação de Ana Lúcia Goulart de Faria. Tivemos o lançamento de 24 novos livros e conversa com os autores. Entre eles, gostaríamos de lembrar o artista Laerte Coutinho, Carlos Rodrigues Brandão e convidados (João Arruda e Eliana Oliveira), Raquel Conti e Leca Machado – de O que cabe numa linha, Allan da Rosa em As Tranças do Verbo - literatura periférica, e Glória Freitas – Margeando a realidade de Povos Indígenas do Maranhão: uma leitura da realidade e uma narrativa possível para contar. O espaço da Feira Literária e Cultural do 19o COLE abriu-se ainda a duas oficinas experimentais: Furoshiki (tradicional arte japonesa) e customização das bolsas do COLE com Marli Wunder, e Arte estencil, com Juliana Jonson. E, para marcar o espaço das outras linguagens, tivemos o Ciclo de Cinema Eduardo Coutinho, coordenado pela professora Giovana Scareli (UFSJ), com exibição e debate dos filmes Cabra Marcado para Morrer, Edifício Master e As canções. E, além do cinema, a apresentação teatral de Cora Coralina, da Cia. Teatro do Interior.

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Assim, entre a feira de livros, toda a parte cultural, artística e acadêmica do COLE, foi possível vivenciar, de maneira impactante as muitas leituras sem margens que constantemente nos atravessam e nos são oferecidas a cada dia. Como organizadoras da parte acadêmica do congresso, não podíamos deixar de lembrar que as leituras vão além das margens da pesquisa e da educação e que a arte, em todas as suas manifestações, marca de forma significativa as nossas práticas.

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ADJETIVAR AS LEITURAS POR ‘SEM MARGENS’ Antonio Carlos Amorim 1 Deslocados para as sem margens, aquele povo que ainda não tinha encontrado para si um nome próprio ou poderia a si mesmo ser chamado de grupo, comum-unidade e que a história não lhes havia dados o veneno da hereditariedade, encontrara-se. Nem precisaram mover-se, deslocar-se ou irem em direção a qualquer ponto. As sem margens abrem um tipo de espaço vacuolar, tal qual o que o gago faz com a palavra, assombrando-a na expectativa de que pode não ser dita e arrancando-lhe sonoridades e junções antes nunca audíveis. Lembram as sem margens o tempo intervalar do malabarismo e a urgência da continuidade. Mas, apostam muito mais na demora entre o tempo do que sua aceleração e compressão. As sem margens buscam conservar do tempo a espera pelo acontecimento. E, se menos agitação for feita, mais chances há de surgirem os corpos agentes e minimizam-se aquelas de se acordarem os sujeitos que narrarão o acontecimento. As sem margens são faceiras com as bordas. Até mesmo flertam e se enamoram. Quanto mais as bordas transformam-se, mais as sem margens gostam. O transbordamento tem o gosto pelo desenho das faces no jogo entre interioridade e exterioridade e, quando isso começa a se tornar muito identificável, reconhecível e palpável, as sem margens partem em viagens ao infinito do céu, do mar e do deserto. Não se trata de esquivar-se do compromisso ou de negar comprometimento. É que qualquer tentativa de igualar-se ao outro é estranha às sem margens, deixa-as inquietas e muito coesas entre si. Recordam-se da vida não vivida como unidade. Ao realizar considerações sobre textos de Kafka, Michel Petterson empresta-nos dois sentidos à palavra “desdobramento”, com os quais se continua o percurso das sem margens: “o botão se ‘desdobra’ na flor, mas o papel ‘dobrado’ em forma de barco, na brincadeira infantil, pode ser ‘desdobrado’, transformando-se de novo em papel liso. Nessa segunda espécie de desdobramento (...) o prazer do leitor é fazer dela uma coisa lisa, cuja significação caiba na palma da mão”. Uma rememoração pode, então, demonstrar as superfícies lisas, sem estriamento e transformações (embora resultem de ações desses dois processos), a serem realizados nas áreas de conexões ou nas que delas fogem, criando linhas de fuga, dando o sentido de serem abertas. Amantes das linhas, as sem margens enrolam-se. Quais novelos e emaranhados de fios que criam grumos, nós desatáveis, confluências em pontos cinzas. Não são coloridas ou abertas ao espectro da luz branca refletida em um prisma. Sem margens têm a cor que o olho

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Presidente da Associação de Leitura do Brasil (ALB) – Biênios 2011-2012; 2012-2014. Professor LivreDocente, Associado 2 (MS-5.2) da Universidade Estadual de Campinas, no Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte na Faculdade de Educação.

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ADJETIVAR AS LEITURAS POR ‘SEM MARGENS’

não enxerga. E tal invisibilidade convida à sensação do toque, do suspiro, da pressão que a água, o sangue, a lava fazem em uma superfície em repouso. leituras sem margens. Como fazer dos movimentos de uma vida em que a política seja afectada por fluxos e contrastes uma adjetivação? Pensar o impossível e torná-lo parcialmente efetuado em leituras é criar um problema que a multiplicidade das sem margens deseja. De maneira inspiradora, a música Pronomes, do trio paulistano Zabomba e cantada no novo álbum de Ney Matogrosso. Eu, você e ele, você e ela, eu e ela, nós dois, você e ele... Combinações variadas com quatro pronomes, sem serem sujeitos de qualquer frase. Talvez se trate da criação imanente das letras do alfabeto a que José Gil, filósofo português, faz referência ao propor a combinação e atravessamentos das letras antes de a organização que a gramática faz.Sã o “pequenas deslocações de termos, precisões introduzidas nos conceitos, abandonos e adjunções de outras noções, marcam as transformações sofridas pelo alfabeto” (GIL, 2007, p. 42). O plano que organiza as letras e que prescinde de um corpo para lhes dar a forma e a intenção reconhecíveis. As sem margens fazem da leitura sua adjetivação, estendendo um plano de criação dos pontos singulares, de pontos notáveis, dentro do novelo e emaranhado de linhas indefinidas. Fazem da leitura sua adjetivação aproximando esses pontos singulares – tais quais os pronomes Eu, Você, Ela, Ele, Nós – e gerando zonas em que não podem mais se diferenciar e podem ser um ou outro. As sem margens adjetivam a leitura e criam com ela, tal qual o nome Hurbinek; a sua palavra é a palavra secreta que nasce do abandono. O nome da criança assemelha-se ao som dos seus gritos inarticulados. Eugénia Vilela (2009) escolhe a presença obsessiva de uma criança, no Primo Levi de ‘A trégua’, para tratar de dissonâncias entre narrativa e experiência. Mais do que uma metáfora do holocausto, a história de Hurbinek encerra uma aporia: qualquer testemunho a respeito do campo é, quando possível, aproximativo; os que tudo viram – e que tudo sabem – não sobrevivem para contar. O que parece evidente é a constante de uma aporia: é impossível representar, mas é imprescindível fazê-lo (BAVESI, 2013). Na sua mais intensa, inacessível e silenciosa imanência, a criança Hurbinek é a ferida da/na linguagem, expressão da sua impotência frente ao “inenarrável”. Pela literatura, “de uma realidade incompreensível e caótica como a do Holocauto podemos ter uma ideia realística somente graças à imaginação estética” (BAVESI, 2013, p. 165). Que sentidos atravessam a criança que nasce no campo do extermínio? Essa pergunta acaba sendo descartada de ser objeto de interesse a partir de um esquema de captura pelo conhecimento da verdade. Dessa inconsistência, entretanto, nasceria a questão que a literatura de Levi imprime como um tipo de espera nos limites da verdade: é possível a minha morte? É possível falar da minha morte? A impossibilidade do possível como tal é tratada por Eugénia Vilela (2009) pelo testemunho, uma via de acesso ao acontecimento onde a compreensão é rizoma [Hurbinek] e por Rosa Fischer (2011) pelo amor à narrativa [a lua abandonada no

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peito]. A literatura surge, então, para poder narrar o que aconteceu e, ao mesmo tempo, ela é a expressão da dificuldade de poder encontrar uma linguagem própria para dizer o vivido. Ou, então, as sem margens de um hífen, que separaria, as leituras de Ser-Professor, um povo ainda a ser inventado. Sem margens das escritas em carvão que ainda hoje percorrem os muros e seus espaços vazios e suas fendas e sua superfície na qual o limbo nasce. A repetição da palavra que se volta ao novo, ao sentido ainda não encontrado que Bartolomeu Campos de Queirós tanto buscou criar e nos ensinar em seu texto ‘Foram tantos os professores’. O carvão no muro é a imagem hífen do professor, do leitor, da leitura como adjetivações das sem margens; como emergência estrutural da expressão das experiências, sua evidenciação e possibilidade de ‘dar a ver’ e que, segundo alguns dos referenciais que vão ao seu encontro, e são muitas vezes rapidamente, velozmente, abandonados, tal hífen necessita ser desconstruído, arruinado, movimentado violentamente em ambos os lados, perfurando o Ser e o Professor, fazendo deles, com eles, o Professer, Profeserssor, Serprofe, Rossefropres... Um ovo que derrama a estabilidade de uma existência, e Faz de Clarice um ser cuja escritura nomadiza-se em gema, em clara, Em oco. Para além da definição e delimitação do que poderia ‘Ser’ ‘-’ ‘Professor’, buscam-se os efeitos, a expressão: - em outras palavras - em movimento - em diferença Se nas ‘culturas’, o hífen concentra sua pedagogia do Ser, as perguntas a respeito do que o hífen conta de nós mesmos/as, a quem interessam as narrativas de hífen, ou o quanto, em intensidade, o hífen trabalha com sistemas de significação e jogos de representação, de identificação num estilo que imprima ao ‘Ser’ nuances cambiantes de reconhecimento e ausência do sentido, da sensação e da palavra ‘Professor’, não são suficientes, pois se encontram ainda na arena estruturada e cansativa da interpretação que cega ao mundo, inventa micro-universos que se replicam, simulacros do decalque, do encontro do mesmo, naquilo que o gesto mínimo, ínfimo, na duração de uma bombinha explodindo no chão da sala de aula, faz esquecer... Em contrapartida, se o hífen con‘Ser’ta com uma pedagogia da ‘palavra’, da ‘coisa’ e do ‘objeto’, a pragmática estrutural – qual seja a palavra Professor confinada ao seu delineamento de forma – existe como signos, como objetos e coisas (continentes que criam um universo de onde eles devem estratificar e observar) e como conteúdo das coisas que é apenas delas, que não podem ser superpostas pela memória. As políticas da escrita aconteceriam à medida que as palavras ganhassem um caráter prático e que fossem colocadas a trabalhar ao mesmo tempo da ocorrência de nossas experiências. Assim, uma política cuja

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‘utopia’ expressar-se-ia na falência ou na falácia da realidade experienciada poder ‘Ser’-, Professor. A política possível que é gerada no conflito com a experiência das coisas que ensinam e que não permitem réplicas, nem através do diálogo, nem a partir de qualquer ato educativo, auto-reflexivo ou que seja permeável a perpassar por entre ‘Ser’ es. Há um registro escrito que afirme a possibilidade de resistência com e no vazio da hifenação? sem margens a proliferar.

Referências BAVESI, Anna. Silêncio e literatura: as aporias da testemunha. Alea [online]. 2013, vol.15, n.1, pp. 152-169. GIL, José. O imperceptível devir da imanência. Sobe a filosofia de Deleuze. Lisboa/Portugal: Relógio D´Água. 2007. PETERSON, Michel. Introdução. In: DERRIDA, Jacques. O Olho da Universidade. Trad. Ricardo Iuri Canko e Ignacio Antonio Neis. São Paulo: Estação Liberdade. 1999. p. 53. VILELA, E. A criança imemorial. Experiência, silêncio e testemunho. In: BORBA, S., KOAN, W. (orgs). Filosofia, aprendizagem, experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 133-150.

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MESAS-REDONDAS DIÁLOGOS SOBRE PRODUÇÃO DE SENTIDOS NAS LEITURAS DE JOVENS E ADULTOS TRABALHADORES Marcia Soares de Alvarenga 1 Introdução Ao nos defrontar diante das difíceis barreiras histórico-sociais enfrentadas pelos estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), vemos que o professor que atua nesta modalidade produz sentidos 2 sobre atividades de leitura e escrita propostas aos alunos, bem como, a partir delas, por estes realizadas. Podemos afirmar que ao iniciar o seu trabalho com jovens e adultos o professor realiza um movimento inicial de leitura sobre quem são estes sujeitos, quais são as suas motivações para retomarem o seu percurso escolar, que desafios abastecem as suas vidas. No presente texto, abordamos a questão da produção de sentidos a partir de leituras produzidas e provocadas pela e na produção de textos de jovens e adultos a com os quais vimos dialogando através de trabalho em que inter-relacionamos pesquisa 3 e extensão, realizado em uma escola pública de periferia urbana no município de São Gonçalo, localizado no leste metropolitano do estado do Rio de Janeiro. A complexidade que envolve sensibilidades sobre a alfabetização de jovens e adultos trabalhadores no faz reconhecer que é grande o desafio de aproximar Bakhtin e Paulo Freire, dois pensadores que nos legaram a perspectiva dialética e dialógica da linguagem nas Ciências Humanas. Nesse texto, é relevante lembrar o belo trabalho de Geraldi (2005) como um dos primeiros a promover este encontro, ou melhor, e em suas palavras, um encontro que não houve, em face às condições em que viveu cada um destes autores em seus respectivos contextos históricos, sociais e políticos. Podemos dizer, entretanto, que seus trabalhos se entrelaçam, dialogam, fazem sentido para educadores e educadoras que buscam construir uma pedagogia da autonomia (FREIRE, 2011), onde docência e discência, enquanto relação, são indissociáveis, interrogam e são interrogadas pelas condições materiais de vida e de trabalho dos sujeitos que participam desta relação.

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Doutora em EducaçãopelaUFRJ.Professora da Graduação e do Mestrado em Educação Processos Formativos e Desigualdades Sociais da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa financiada com auxílio FAPERJ. [email protected] 2 Na primeira seção deste artigo abordaremos esta noção referenciada em Bakhtin (2000). 3 Trata-se da pesquisa Produção de sentidos sobre políticas de formação de professores de jovens e adultos em que buscamos analisar sobre que sentidos professores de jovens e adultos atribuíam à sua formação docente. A pesquisa contou com apoio FAPERJ para o período 2012-2013.

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Sendo a linguagem a expressividade de todo ato humano, as experiências de jovens e adultos informam práticas sociais pelas quais são inscritas suas formas de conhecer e se relacionar com os outros e com a realidade social. Como, também nos lembra Thompson (2002, p. 13) Toda educação que faz jus a esse nome envolve a relação de mutualidade, uma dialética, e nenhum educador que se preze pensa no material a seu dispor como uma turma de passivos recipientes. (..). O que é diferente acerca do estudante adulto é sua experiência que ele traz para a relação. A experiência modifica, às vezes de maneira sutil e às vezes de maneira mais radicalmente, todo o processo educacional.

Na perspectiva do referencial teórico que nos ancora neste texto, assumimos político e epistemologicamnte a temática da leitura como produção de sentidos. Para este efeito, o objetivo da pesquisa buscou analisar diálogos entre sentidos de experiência de jovens e adultos mediados pelos textos escritos em contexto escolar. Tendo como perspectiva a linguagem em sua dimensão dialética e dialógica, o presente texto foi organizado em três seções. Na primeira seção, discorremos brevemente sobre a perspectiva dialética dialógica da linguagem, aproximando Paulo Freire e Mikhail Bakhtin; na segunda seção, abordamos o percurso teórico-metodológico, o problema e questões da pesquisa ancoradas em noções e conceitos dos dois autores centrais deste artigo; já na terceira seção, dialogamos sobre excertos orais e escritos de estudantes jovens e adultos em contexto de sala de aula, entrelaçando possíveis sentidos produzidos por professoras alfabetizadoras ao cotejarem textos dos estudantes. Nas considerações finais, mantemos perspectivas abertas para a continuidade de outros possíveis sentidos ao trabalho de pesquisa, considerando dados que ainda dispomos para novos desdobramentos e que compõem o corpus empírico da pesquisa. Notas sobre diálogos e sentidos nas leituras de jovens e adultos Realizar o duplo movimento da pesquisa e da docência em diálogo com os saberes de jovens e adultos potencializa a compreensão responsiva sobre a questão-convite feita por Freire (1996, p. 30) Por que não estabelecer uma ‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles já têm como indivíduos? A escola na qual vimos realizando a pesquisa, pertence à rede pública municipal de São Gonçalo, município do leste metropolitano do estado do Rio de Janeiro, cujo índice de analfabetismo, entre pessoas com mais de 15 anos, aproxima-se a 6 %, um dos maiores índices do estado (IDEB, 2007). Ao problematizarmos, junto às professores de turmas de alfabetização e pósalfabetização da escola, as dificuldades de acesso a textos escritos considerados como “adequados para a alfabetização de jovens e adultos”, expressamos o nosso interesse em

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compreender como os enunciados dos estudantes poderiam contribuir para o ensino da língua materna. Entendemos por enunciados a instância ativa que rege a comunicação verbal entre sujeitos falantes. Bakhtin (2000) explica melhor o significado desta noção ao nos dizer que a fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um sujeito. Os enunciados se constituem, pois, em unidades reais da comunicação. Assim, a enunciação é formada pelo encadeamento dessas unidades que correspondem aos elos na cadeia da comunicação verbal. Essa tese bakhtiniana se aproxima da perspectiva da teoria da ação dialógica de Paulo Freire (1987, p.166) na relação educador-educando como sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo. Diálogo, no sentido freireano, não significa, apenas, fazer perguntas e ouvir respostas. Mas sim, o diálogo dialetizado pela relação “eu-tu”, provocador do encontro de intencionalidades entre sujeitos que buscam, a partir da sua relação com a realidade, as razões da sua procura, das suas indagações e da sua rebeldia com o que lhes acenam sobre o já conhecido. A partir dos autores com os quais dialogamos neste trabalho, tínhamos como hipótese a perspectiva de que jovens e adultos como sujeitos do diálogo na corrente da comunicação verbal produzem sentidos sobre a função social da linguagem em diferentes contextos. Por outro lado, perguntávamos como as professoras iriam dispor deste acervo enunciativo nas atividades prático-pedagógicas. Dessas inquietações, uma questão se impunha para o desafio da pesquisa: fariam sentidos para elas próprias os textos produzidos pelos seus alunos em contexto social escolar? Os enunciados, enquanto textos, nascem do pensamento humano expressão das relações dialéticas e dialógicas do ser no mundo. É por isso que os textos nunca podem ser traduzidos até o fim, pois não existe um texto dos textos, potencial e único. Decorre daí a idéia de o sentido ser potencialmente infinito. O trabalho docente envolvendo produção de sentidos sobre práticas textuais orais e escritas com jovens e adultos intui sobre a necessidade de que textos produzidos por professores e estudantes não encerram em si um sentido único, tendo na sala de aula uma de suas possibilidades do querer-dizer destes sujeitos. Para nos ajudar a buscar responder a esta questão, recorremos a Bakhtin (2000, p. 386) ao concordarmos que sentido é aquilo que é resposta a uma indagação. Aquilo que não responde a alguma questão carece de sentido. Em suas palavras: O sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contato com outro sentido (o sentido do outro) (...). O sentido não se atualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram e entram em contato. Não há um “sentido em si”. (...). Na vida histórica, essa cadeia cresce infinitamente; é por essa razão que cada um dos seus elos se renova sempre; a bem dizer, renasce outra vez.

O trabalho que desenvolvemos se insere em uma corrente dialógica em que participaram “várias consciências” (pesquisadoras, professoras e estudantes da EJA), cujo movimento de ver e compreender estas consciências implicou em ver e compreender outra

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consciência: a consciência do outro e seu universo, isto é, outro sujeito (um tu). (...). A compreensão sempre é, em certa medida, dialógica. (BAKHTIN, op. cit. 338). Nestes termos, explica Bakhtin, criamos e compartilhamos relações dialógicas de sentido, cujos efeitos foram produzidos em determinadas situações do presente relato de pesquisa, mas que nelas não se esgotaram. O percurso metodológico da pesquisa Nas atividades de pesquisa desenvolvidas no período de 2012-2013 buscamos complexificar/superar a lógica que restringe as produções textuais como mera relação codificação/decodificação de signos. Com Freire (1989, p. 12) aprendemos que a leitura de mundo precede a leitura da palavra. (...). Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Deste modo podemos compreender que o jovem e adulto da EJA, inseridos em diversos contextos de sociabilidades como o da família, do trabalho, da igreja, do lazer, etc, produzem e atribuem sentidos aos textos que circulam em sala de aula enquanto comunidade verbal. Se em linguagem bakhtiniana, a compreensão envolve duas consciências, dois sujeitos, vimos a possibilidade de sentidos produzidos pelas professoras dialogarem com os sentidos dos textos dos estudantes, animando o trabalho com a língua materna como móvel para o trabalho com diversos gêneros textuais. Nessa perspectiva, nos perguntamos: seria possível para as professoras das turmas da EJA, com as quais pesquisamos, buscarem caminhos teórico-metodológicos para práticas pedagógicas de ensino da língua com jovens e adultos? A rigor, o que fundamentou as práticas de ensino de textos escritos com jovens e adultos participantes da pesquisa foi a compreensão de que suas histórias de vida narradas oralmente e/ou escritas, os diálogos produzidos em sala de aula produzem sentidos e, portanto, poderiam ser tomados como textos para o diálogo com outros textos. Os textos de sentidos dos jovens e adultos podem ser dialogados com as contribuições de Mikhail Bakthin e Paulo Freire. Estes autores nos legaram de maneira original e criativa, o conceito de ideologia, tendo a linguagem, como ação político-cultural, campo crítico e epistemológico que tece e é tecida por este conceito. Se Bakhtin toma como seu intenso propósito o de demonstrar que as abordagens filosófico-linguísticas dominantes praticam um reducionismo epistemológico sobre a linguagem, aprisionando-a a um sistema abstrato e monológico, Paulo Freire, por sua vez, critica que a colonização cultural da palavra retira dela o seu marco valorativo e ideológico (idem, p. 180). Pelas lentes de Bakhtin, a lingüística formal, ao tratar a palavra viva como se fosse algo acabado e isolado das situações e experiências sociais humanas, nada mais faz que cortar todos os fios que ligam a palavra ao contexto histórico de sua produção e, portanto, de suas múltiplas significações construídas pelos sujeitos encarnados.

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Para a consciência dos indivíduos que fazem parte de uma mesma comunidade lingüística, as palavras jamais são ou se apresentam como signos contidos em formas normativas. Na realidade, comenta Bakhtin, Não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial (1992, p. 95).

Para ele, a linguagem é um palco de lutas ideológicas que, marcadas por um tempo histórico e em um espaço social determinados, disputam a hegemonia da determinação do seu conteúdo e do seu sentido em uma sociedade. Assim, será através dos diálogos vívidos, vividos ou imaginados que os sentidos refletem e se confrontam no e durante o percurso das amplas temporalidades contextuais. Nestes diálogos, não apenas estão presentes as vozes das pessoas que imediatamente deles participam, mas as vozes distantes que transitam no presente da interação verbal, dando-lhes e/ou confrontando-lhes sentidos. Na leitura de Freire, o ensino da língua materna, como a alfabetização de jovens, é concebido como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador (1989, p. 19), daí sua crítica ao ensino mecanizado que reduz o educando à condição de objeto e não de sujeito do processo educativo. A compreensão crítica do ato de ler é dotada de um movimento dinâmico em que a leitura do mundo precede a leitura da palavra: Este movimento do mundo da palavra e da palavra ao mundo está presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente (idem, p. 20).

Assim referenciadas, as relações polifônicas e dialógicas de sentidos dos enunciados/textos dos estudantes da EJA, às quais a presente pesquisa procurou manter-se atenta, sugerem a emergência de sentidos esperados e inesperados. Em termo teórico-epistemológico de pesquisa, com Bakhtin e Freire depreendemos que o paradigma positivista posiciona o sujeito pesquisador/a diante do seu objeto para falar sobre ele, dispensando a sua voz, pois não o reconhece nele a sua própria humanidade. Para Bakhtin as ciências naturais produzem o conhecimento sobre a realidade de forma monológica, significando que o pesquisador contempla o objeto, pronuncia-se sobre ele, sem com ele dialogar, pois não vê nele sua consciência refletida e refratada. Esta forma monológica só admite a existência de um único sujeito – o pesquisador – aquele que pratica o ato de conhecimento sobre o objeto. Portanto, somente o pesquisador é sujeito, negando ao outro exercer papel recíproco na produção do conhecimento, mas apenas existir enquanto coisa muda.

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Por sua vez Freire (1987) enfatiza a possibilidade que têm os seres humanos de atuar sobre a realidade objetiva e de saber que atuam por meio de sua linguagem criadora, a pluralidade de respostas a um desafio singular, testemunham a criticidade que há nas relações entre eles e o mundo (p.66). Nas teses de Bakhtin e Freire, as palavras, habitadas que são pelas vozes dos outros, são portadoras e partejadoras de visões de mundo no qual a língua escrita penetra a consciência e a consciência penetra a língua escrita. Diálogos com textos de jovens e adultos: produzindo leituras de sentidos Durante o período de realização da pesquisa, produzimos um conjunto de registros documentais orais, escritos e em vídeo a partir das oficinas 4 de produção textual junto aos jovens e adultos, das quais apresentamos alguns dos seus resultados. Mantivemos a orientação teórico-epistemológica de que o ensino da língua, em sua forma escrita, não pode ser dissociado de sua forma enunciativa na comunicação verbal viva e da leitura como produção de sentidos outros. Com efeito, sabemos que a linguagem oral constitui um gênero de discurso mais presente na nossa vida cotidiana e em uma comunidade dialógica. Em um contexto escolar, jovens e adultos participam desta comunidade, são locutores de um intuito discursivo de um querer-dizer. Este intuito, em diferentes situações discursivas espontâneas ou estimuladas, possui um caráter subjetivo que em combinação com o objetivo do diálogo da comunidade produz sentido, pois compreendido a partir do contexto concreto que o gerou. Dentre os textos produzidos pelos estudantes, trazemos quatro que foram frutos da mediação das professoras em atividades entremeadas entre linguagem oral e linguagem escrita em aula. Tendo como tema “Histórias de Vida”, nos excertos a seguir, os dois primeiros textos são transcrições de vozes dos estudantes e dois são textos escritos. Quando eu era um criança Eu tinha que trabalhar ao invez de estudar Eu tinha que trabalhar todo os dias E quando o padeiro passava dizendo olha o padeiro Conpra o pão quem tem dinheiro eu ficava muito triste. A escola eu não podia ir poque o meu pai não deixava. Ele dizia a escola não dar comida a ninguém, Você trabalha se quiser comer.

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Os temas das oficinas de produção de textos eram discutidos e selecionados em nossos encontros quinzenais com as três professoras, orientadora pedagógica e duas bolsistas de iniciação à docência vinculadas ao projeto, sendo uma do curso de Letras e a outra do curso de Pedagogia, ambas da FFP/UERJ. As oficinas eram desenvolvidas tanto por nós professores quanto pelas bolsistas em um trabalho em que articulamos formação continuada e formação inicial de professoras da EJA.

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(Estudante do sexo masculino, 53 anos de idade, Grupo I Alfabetização, turma a).

Ao narrarem sua infância e vida adulta roubadas pela negação de direitos fundamentais, os estudantes buscam escrever, não só palavras que fazem parte do seu cotidiano para descrever suas lutas, suas histórias, mas, o seu querer-dizer através de um gênero do discurso, o discurso oral, ao qual buscam se ajustar independentemente de dominar a gramática e estrutura do texto escrito. É interessante observarmos nos textos dos estudantes uma linguagem estético-poética pela qual reinventam, através de palavras, a própria vida. Ao assumir o papel de autor/a jovens e adultos buscam reencantar a língua materna, sem as amarras dos textos escolarizados que não respondem às perguntas relacionadas à vida e às expectativas de jovens e adultos. Portanto, esvaziadas de sentidos. Em nossos círculos de discussões e estudos quinzenais, as professoras das turmas de pós-alfabetização, respectivamente turma a e turma b, reconheceram que É importante valorizar o aluno da EJA, suas histórias de vida, suas lutas. Hoje temos mais condições de conhecer este aluno e fazer um trabalho a partir dessas suas histórias. Mas, também é importante que eles saiam da escola sabendo ler e escrever (...). Escrever um texto com correção, pois é o que vão exigir lá fora. A dificuldade de ter acesso a material próprio para o adulto faz, muitas vezes, que a gente utilize os livros que tem na escola. Em geral livros voltados para crianças. A gente faz adaptações dos exercícios. Mas, tenho trabalhado com muitas situações que eles trazem da vida deles, das suas histórias, das situações de trabalho. Fazemos poesias, acrósticos. Para os adultos principalmente, eles querem copiar do quadro, pois tem essa ideia de escola (...). Por isso que a gente tem que equilibrar entre o conteúdo e a sua bagagem de vida.

Estas abordagens das professoras sobre a questão de tentar “equilibrar” o conteúdo formal do currículo escolar e os saberes e práticas dos estudantes se mostraram bastante relevante em nossas reflexões. A escola, na visão dos estudantes, é ideologizada, ou seja, historicamente se consolidou a ideia de que é através da escola que ascendemos socialmente, sendo a única via para a cidadania. No entanto, e a despeito desta ideologia, entendemos que não podemos impor aos estudantes, de forma autoritária, uma visão de escola diferente desta que eles imaginam, mas de superar esta visão ingênua pela elaboração da crítica às limitações desta instituição na sociedade capitalista . Nesse sentido, o bom-senso é a forma como as professoras tentam

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orientar as práticas por elas narradas. Freire (idem, 2011, p. 64) nos chama atenção para o exercício do bom-senso nas práticas educativas dos professores: A responsabilidade do professor, às vezes não nos damos conta, é sempre grande. A natureza mesma de sua prática, eminentemente formadora, sublinha a maneira como a realiza. Sua presença na sala é de tal maneira exemplar que nenhum professor ou professora escapa ao juízo que dele ou dela fazem os alunos. E o pior talvez dos juízos é o que se expressa na “falta” de juízo. O pior juízo é o que considera o professor uma ausência na sala.

Em relação aos sentidos atribuídos pelos professores participantes, relembramos, também, a importância dada por Nóvoa (1995, p. 10) ao enfatizar que esta profissão precisa de se dizer e de se contar: é uma maneira de a compreender em toda a sua complexidade humana e científica. Em nossos círculos de estudos na escola, dialogamos sobre possíveis motivações que marcaram as trajetórias e sentidos profissionais que motivaram a criação de vínculos e processos identitários como professores de jovens e adultos. Identidade não como algo fixo ou um dado adquirido, mas, como explicita Nóvoa (1995, idem, p. 16), como processo, espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão. Ser professor de EJA é participar de um campo não definido a priori e que produz sentidos que se atualizam na escola, a partir do encontro com o outro. Para as professoras, Pensar no sujeito da EJA é pensar numa parcela da população brasileira que sofre discriminação e exploração de todo tipo por parte de um pequeno grupo dominante, eles lutam contra o sistema e arranca o direito à Educação Pública e gratuita.A história desses sujeitos é contada a partir das conquistas alcançadas através de lutas incansáveis pelo direito ao acesso a Educação. (Professora alfabetizadora – Grupo I, turma a) São tantas as dificuldades pelos quais os estudantes nos revelam e que passam na vida, que penso que nossa formação volta a acontecer de modo diferente. Aliás, ela acontece todos os dias, pois cada dia exige de nós uma resposta diferente de ser professor de jovens e adultos. (Professora do Grupo II, turma b).

Nesse aspecto, é interessante voltarmos a Freire (1992) quando ele nos afirma que um dos erros mais freqüentes nos trabalhos com grupos populares, advém da tendência de querermos levar para os sujeitos aos quais nos dirigimos a nossa “verdade” técnica e científica, sem refletir sobre os condicionantes sociais, históricos e culturais que produziram a realidade na qual vivem esses sujeitos.

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Outro erro freqüente, explica Freire, é o de subestimarmos o poder e a capacidade que as classes oprimidas possuem de conhecer e problematizar a sua própria realidade, sem ter que esperar que algum “iluminado” venha a fazer isso por elas e para elas. Dessa presunção elitista e epistemológica, acrescenta o autor, surge a atitude preferencial dos técnicos ou intelectuais em transformarmos as classes oprimidas em objeto de conhecimento ou o receptor passivo das doações ou idéias às quais lhes introjetam. Os textos de jovens e adultos parecem ressonar junto a esta reflexão freireana, pois conhecem a língua materna e engendram esforços para ajustar seus enunciados à forma da língua escrita. Em outra atividade realizada no Grupo II, turma A, o poema “Retrato Natural”, de Cecília Meireles, foi lido para a turma pela professora e bolsista de iniciação à docência, sendo, em seguida proposto, aos estudantes que reescrevessem o poema a partir de um olhar sobre si mesmo: Hoje sinto no rosto as margas Do meu cansaço, nas minhas Mãos ainda que cansada de tanto Trabalhar, mais assim mesmo Continuam a serem ages! (Estudante do sexo feminino, 56 anos de idade, GII – 3ª e 4ª série ensino fundamental).

Os textos escritos de jovens e adultos, sejam através de um gênero discursivo cotidiano biográfico, sejam através de gênero literário (Minha História, O meu retrato, por exemplo) enunciam os lugares sociais de sentidos, vale dizer, os contextos vividos, a saga heróica de homens e mulheres simples. Estes textos expressam a poesia do vivencial como sugere Martins (2005). São fragmentos com os quais tentam construir o mosaico de suas vidas e imaginar possibilidades de existência digna. Por isto mesmo, entendemos que quando as professoras discutiam sobre o ensino da língua materna, cotejando os textos dos estudantes, acabavam por produzir sentidos aos textos, mantendo viva a corrente dialógica de uma comunidade discursiva, trazendo para a sala de aula a poesia do vivencial em que elas, também, eram autoras. Ao balizarmos o trabalho docente nesta perspectiva, nos aproximamos, uma vez mais de Paulo Freire ao defender que os textos escritos por jovens e adultos é fruto de um quefazer que os envolve em suas relações com o mundo e com os outros. Vale dizer, os saberes das classes populares são saberes construídos de sua compreensão sobre o mundo, da sua experiência de vida, de trabalho, de afetos, de sua experiência ética e estética, da sua relação com os outros e, portanto, são saberes do cotidiano e da forma como se relacionam com o mundo. Esse processo tem no diálogo um princípio fundamental, pois o educador, ao dialogar com o educando, o faz sobre situações concretas e enunciados concretos, promovendo mediações sobre o contexto e os meios com e pelos quais o educando se reconhece e, com os quais, possa se alfabetizar e dar continuidade ao processo de alfabetização.

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Nesse aspecto, esclarece, também, Bakhtin, a língua escrita é marcada, não somente pelos gêneros secundários (literários, científicos, filosóficos, entre outros), mas, também, pelos gêneros primários (linguagem familiar, do trabalho, do cotidiano, entre outros). Ainda sobre a análise dos enunciados escritos por jovens e adultos, Geraldi (1999) nos chama atenção sobre o fato de que o ensino da língua materna com ênfase na gramática tem sido compreendido, tradicionalmente, como o meio de correção da expressão lingüística dos estudantes, descartando as possibilidades que a linguagem cotidiana pode oferecer para ampliar a sua participação na comunidade dialógica. Procede deste pensamento a ideia de que as relações dialógicas são sempre relações de sentido, sejam elas produzidas entre enunciados de um diálogo real imediato, sejam elas produzidas pelas concepções ou pontos de vista criados por outras pessoas ou grupos sociais em tempos e espaços distintos. A rigor, nossa fala e enunciados estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas em graus variados pela alteridade ou pela assimilação, pelo emprego consciente ou não das palavras do outro. Ao dialogarmos com os textos de jovens e adultos, podemos analisar que estes trazem para o gênero discursivo palavras de outros e introduz o seu próprio tom valorativo, a sua própria expressividade, atribuem novas expressividades e novos tons valorativos juntando-se à ciranda polifônica que ressona em seus enunciados. Considerações finais Na pesquisa realizada, pareceu-nos possível e rico dialogarmos com Paulo Freire e Mikhail Bakhtin, sobre o que de original e criativo estes autores nos sugerem a respeito do ensino da linguagem materna. Com efeito, este diálogo tem nos permitido ampliar as possibilidades teórico-metodológicas da pesquisa junto aos professores, especialmente, nas reflexões e análises sobre o trabalho voltado ao ensino da língua materna. Procurando enfatizar os diálogos sobre sentidos dos enunciados dos estudantes de jovens e adultos, compreendemos ser fundamental atribuir sentidos aos seus enunciados como gêneros discursivos, entendidos como objetos de diálogos, portanto de sentidos, para as atividades de ensino da língua materna. As leituras de sentidos dos enunciados dos jovens e adultos, enquanto sujeitos de uma comunidade dialógica, nos permite compreendê-los como textos, cuja forma escrita nos informa sobre o conhecimento produzido, suas visões de mundo e (re)criação de seus cotidianos de lutas, trabalho e sonhos. A pesquisa tem contribuído para o aprofundamento compreensivo sobre o papel da linguagem na mediação entre o sujeito-mundo, como defende Paulo Freire, buscando entender que o que falamos, sobre o que falamos emerge de contextos, ao contrário do que, durante muito tempo, foi apregoado por teorias lingüísticas ao separarem a palavra do mundo que a criou, como acentua Bakhtin. Isso nos remete aos pressupostos bakhtinianos que tão bem despertaram essa dimensão dialógica sobre enunciados verbais enquanto signos ideológicos. Para este autor a palavra não

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pode ser tomada fora da enunciação, pois é esta que lhe dá vida inserindo-a no processo ininterrupto da comunicação e garantindo a sua polifonia. Entendemos a escuta sobre o querer-dizer de jovens e adultos como uma ponte por onde transitam os sentidos dos discursos de professores e estudantes de jovens e adultos. Ao longo do texto, acentuamos que os textos de sentidos de jovens e adultos, recortados para análise, são pontes pelas quais circulam as suas experiências e que potencializam o seu (re)encontro com o direito à educação. Foi, sobretudo, sobre a dialética entre linguagem e experiência que nos lançamos às questões que desafiam a sensibilidade ético-política da educação de jovens e adultos, renovando o sentido de nossa produção acadêmica e estudos militantes, ao (re)descobrimos as potencialidades de outras fontes, outras linguagens que contribuem para reafirmarmos o direito à educação. Para nós que desenvolvemos a presente pesquisa significa que, na prática da docência com jovens e adultos, o ensino da língua materna pressupõe, inequivocamente, realizar-se com textos que despertem dialogicamente, em professores e estudantes da EJA, às ressonâncias sobre o que move os nossos sentidos sobre a vida em diferentes contextos e relações. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ___________. Marxismo e filosofia da linguagem. (V. N. Volochinov). 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992. FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2011. __________.Pedagogia da Esperança. Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo. Paz e Terra. 1996. _________. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989. _________. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. _________. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. GERALDI, W. J . Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. O encontro que não houve. In. FERREIRA, N. S. A. Leitura: um cons(c)erto. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005. ______________. Da sala de aula à construção externa da aula. In. ZACCUR, E. (org.) A magia da linguagem. Rio de Janeiro DP&A, 1999.

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MARTINS, J. S, ECKERT, C. e CAIUBY, N. (Orgs.). O imaginário e o poético em ciências sociais. Bauru, SP: Edusc, 2005. MARTINS, J. S. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Hucitec, 2000. NÓVOA, Antonio (Org.). Vidas de Professores. 2. Ed. Porto: Editora, 1995. THOMPSON, E. P.. Os Românticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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- DE CRIANÇA PARA CRIANÇA LEITURA E ESCRITA: UM CONVITE À AUTORIA Carmen Lúcia Vidal Pérez 1 A alfabetização, apesar de todos os esforços e políticas, ainda é o grande nó da educação brasileira. Após décadas de farta produção teórica e implementação de políticas de fortalecimento da formação inicial e continuada de professores dos anos iniciais do ensino fundamental, a alfabetização das crianças das classes populares ainda é um grande desafio para a escola. Apesar de se constituir como temática de grande abrangência nas pesquisas educacionais; as formulações teóricas, os debates acadêmicos, as discussões teórico práticas e, as políticas de incentivo a formação de professoras alfabetizadoras e de formação de leitores, tem-se mostrado insuficientes, tanto para ampliar os índices de desempenho escolar, no que se refere a apropriação da leitura e da escrita, quanto para ultrapassar princípios teóricos e descaracterizar pressupostos metodológicos e práticas docentes que fundamentam a “crença pedagógica” de que alfabetizar é ensinar a língua padrão, com ênfase na leitura técnica e nas habilidades mecânicas de escrita. Ao longo dos últimos trinta anos vimos assistindo o fracasso das crianças das classes populares nos quatro (agora cinco) primeiros anos de escolaridade; por outro lado, os programas de formação inicial e continuada de professores, não têm conseguido dar conseqüência prática ao pressuposto teórico de que a alfabetização é um processo discursivo que se desenvolve na interação com as experiências culturais das crianças das classes populares: suas formas de falar - variações lingüísticas que, de um modo geral, não são legitimadas como saber na escola -, as diferentes formas de lidar com a leitura e escrita fora da escola e suas formas singulares de ler, pensar e agir no mundo. As crianças e suas formas singulares de aprender são eixo articulador de minhas investigações. Faço questão de ressaltar que defendo uma política cognitiva pautada na afirmação do direito das crianças das classes populares de terem seus processos de aprender respeitados. O combustível que move minhas pesquisas é o desejo de buscar, junto com professoras e crianças, outros princípios organizadores do trabalho pedagógico substituindo a fragmentação pela invenção. Busco em minhas investigações 2 ampliar o conceito de alfabetização como processo discursivo, ético, estético e epistêmico. Busco ainda implementar/desenvolver no cotidiano da sala de aula uma abordagem conceitual que, ao propor outra organização para a prática 1

Doutora em Educação pela USP. Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense.E-mail: [email protected] 2 Refiro-me as pesquisas “DE CRIANÇA PARA CRIANÇA, ALFABETIZAÇÃO A PARTIR DALITERATURA: Leitura e Escrita - um convite a autoria, projeto de investigação formação que vem sendo desenvolvido desde 2011, com apoio da CAPES – Programa PIBID e com apoio do CNPq – Programa PIBIC e, a pesquisa “ Injustiças Cognitivas: ressignificando os conceitos de cognição, aprendizagem e saberes no cotidiano da escolar”, que vem de sendo desenvoldida desde 2008 com apoio da FAPERJ e CNPq - Programa PIBIC.

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educativa, rechaça a concepção de que o trabalho com as crianças se reduz a produção de meios “facilitadores da aprendizagem” ou a processos de “infantilização do saber” e promove a inversão da lógica hegemônica da escola - ao substituir a explicação pela descoberta potencializa a capacidade criadora das crianças, sua imaginação, suas diferentes percepções de mundo e a diversidade de significações presentes em seu universo simbólico e material. As ações que desenvolvo com crianças e professoras dos anos iniciais do ensino fundamental se pautam na observação, no acompanhamento, na narrativa e na reflexão cotidiana das práticas alfabetizadoras. Meu olhar investigativo está voltado para as lógicas operatórias das crianças das classes populares, presentes em suas relações cotidianas e em seus processos de construção de conhecimentos sobre a leitura e a escrita. Busco, juntamente com as crianças e suas professoras, investigar (e instaurar) outras possibilidades estéticas, éticas e cognitivas que desfazem a trama lógico discursiva que nomeia as crianças das classes populares como incapazes, insubordinadas, indisciplinadas e/ou portadoras de dificuldades de aprendizagem. As pesquisas tem me permitido afirmar outros funcionamentos para a prática educativa: a aula é um acontecimento que traduz experiências de criação e de encontro de formas singulares de aprender, conhecer e viver. A aula como acontecimento 3 é uma experiência de encontros entre o aprender e o ensinar, portanto, para além dos métodos e teorias totalizantes elegemos três princípios que organizam as ações com as crianças e suas professoras: (i) pensamento é criação conhecimento é autoria; (ii) a aprendizagem é um processo coletivo – aprender não é fazer como, mas fazer com; (iii) educar não é conduzir (como postula a perspectiva clássica da pedagogia), mas alimentar: a prática potencializa (no sentido de nutrir) a criação e é a professora quem alimenta o fazer com, a conquista da autonomia e a afirmação da autoria. A aula como acontecimento As investigações que desenvolvemos com crianças e professoras apostam na conversa como metodologia. As conversas se constituem em dispositivos de produção de uma cultura escolar que reinventa o espaçotempo da sala de aula a partir das redes de conversações que, tecidas no exercício do diálogo e na atitude da escuta engendram movimentos de desconstrução e reconstrução de saberes e práticas e possibilitam a emergência de novas experiências e aprendizagens. Tal perspectiva metodológica entende a produção de conhecimentos como um tapete tecido a várias mãos que entrelaça movimentos, surpresas e descobertas – movimento de nos constituirmos pesquisadoras junto com as crianças, surpresa de sermos desafiadas pelas lógicas próprias da infância e descobertas de que aprendemos com elas (as crianças e suas lógicas) pois, ao aprenderem nos ensinam a ensinar (Cf. Pérez e Alves, 2009,p.32) 3

A esse respeito ver GERALDI, João Wanderley. A Aula como Acontecimento. São Carlos-SP. Pedro& João Editores, 2010, p.95

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Tenho investido em minhas investigações na configuração de metodologias e práticas, produzidas em parceria com as crianças, que apostam na potência da autoria, inventando, com elas outras formas de aprenderensinar, a partir de um paradigma ético e estético que se distancia das lógicas, práticas e teorizações tecnocráticas. O senso comum científico característico do conhecimento escolar, não possibilita que crianças e professoras pratiquem a “pedagogia da pergunta”. A ênfase no conhecimento como um processo de assimilação de informações impede que se instale o processo de investigação da realidade, a potencialização da curiosidade e a descoberta, como formas de conhecer (idem,p.34). Na pesquisa a prática da Pedagogia da Pergunta (Freire,1996) vem se configurando como o que venho chamando, apoiada em Geraldi (2010), de aula como acontecimento, em que a relação com a experiência vivida é a base da aprendizagem e a inspiração do ensino. Trata-se de reencontrar o vivido para nele desvelar o saber auxiliado pelos conhecimentos disponíveis na herança cultural. Ao contrário do lema “aprender para viver”, trata-se de assumir efetivamente que “vivemos aprendendo”. E “viver aprendendo” não descarta a herança cultural, ao contrário, demanda que a usemos e para usá-la é preciso conhecê-la. (GERALDI, 2010, p.95).

A aula como acontecimento se inspira na transversalidade, pois, ao articular conhecimento e experiência cotidiana mobiliza conexões entre os diferentes campos do saber, engendra outra abordagem e funcionamento para o conhecimento e supera sua fragmentação, ao romper com hierarquizações e disciplinarizações. Tal perspectiva nos desafia a abandonar a centralidade de conteúdos disciplinarizados na organização curricular e assumir o paradigma rizomático e transversal do saber, num movimento cotidiano de ruptura com a racionalidade pedagógica hegemônica que sustenta modelos tecnicistas de alfabetização (Cf Pérez e Silvestri, 2013, p.8). Aprender a ler e a escrever - lendo e escrevendo histórias, narrando experiências, compartilhando saberes e descobertas na e pela leitura, brincando com palavras, experimentando a escrita, explorando linguagens - num movimento coletivo de troca de saberes e fazeres, exercício de aprendizagem que revela um campo força desarticulaor de certezas e verdades sobre a alfabetização das crianças das classes populares. Experiências, cotidianamente vividas que transformam a aula num acontecimento. Na aula como acontecimento a alfabetização se orienta pela experiência: as crianças sentem as palavras e vão ao seu encontro para narrar suas experiências. Voz e letra dialogam com o sentir e o fazer nas rodas de conversas – espaçotempo coletivo de narrativa e de exercício de escuta – e, na página em branco – espaçotempo singular de produção e registro de escrita viva – movimentos de aproximação, experimentação e construção coletiva de conhecimento e aprendizagem da leitura e da escrita, que fazem da alfabetização um processo de autoria e um acontecimento estético.

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A alfabetização como transcriação Entendo a alfabetização como um processo de autoria – movimento vivo de construção coletiva de conhecimentos sobre a leitura e a escrita, que se realiza a partir do e no diálogo dos saberes das crianças com os saberes da professora e com os saberes das diferentes áreas do conhecimento escolar. A alfabetização pensada como movimento de criação e autoria, nos remete a outras possibilidades para ação educativa a partir de uma abordagem político epistemológica que compreende as operações cognitivas da criança e seus diferentes modos de aprender, como um processo de transcriação. Geraldi (2010) defende que “...quem escreve não faz mera transcrição ou toma notas, mas muito mais que isso, transcria a vida e a experiência por meio da linguagem escrita” (2010). Apoiada neste autor e em seus estudos sobre Bakhtin entendo a alfabetização como um processo transcriação, portanto, um processo de autoria. Tal perspectiva articula os processos criadores, éticos e cognitivos, o que confere ao ato de ler e escrever uma dimensão estética e política, para além da dimensão pedagógica e escolar. A alfabetização como processo de transcriação implica a assunção da autoria e a produção de redes de sentidos e significação singulares. A transcriação mobiliza as diferentes lógicas operatórias e afirma o estilo cognitivo de cada criança, ao mesmo tempo em que potencializa aprendizagens singulares. A noção de autoria (Bakhtin), como fundamento da prática alfabetizadora nos desafia a explorar a conjugação de linguagens - desenho, escrita, oralidade e informática, etc. - como caminho metodológico que permite ampliar nossa compreensão sobre os processos cognitivos/criativos das crianças: a informação veiculada pelo desenho é complementada pela escrita e ampliada pelo relato oral. Michel de Certeau (1998) nos lembra que todo relato é uma prática e são as narrativas que vão “....precisar as formas elementares das práticas organizadoras das focalizações enunciativas” (p.201). As ações que desenvolvemos com as crianças têm confirmado as formulações de Michel de Certeau, ao apontar que as lógicas operatórias são plurais, por que são plurais as experiências dos praticantes. No que se refere às lógicas singulares das crianças a conjugação de linguagens (gráfica,oral e escrita, artística, digital, etc.), tem se revelado um procedimento bastante eficaz do ponto de vista metodológico para a compreensão de suas decifrações cotidianas. A alfabetização como exercício de autoria implica na leitura e na escrita da palavramundo e num linguagear próprio, inventado por cada criança, que faz “da escritura uma maneira de fazer sucata” (Certeau, 1998, p. 90). Crianças narradoras e seus linguageares Imersas num mundo de histórias, as crianças escutam e produzem suas narrativas em suas brincadeiras e conversas. Pela narrativa de suas histórias, (re)organizam discursivamente

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sua ação sobre (e com) o outro. A narrativa possibilita o exercício da imaginação e de diferentes usos da linguagem. Ao “brincar” com a realidade, a criança concebe, pela linguagem, outras realidades e experimenta outras perspectivas de compreensão do mundo e de si mesma, num movimento contínuo entre o eu e o outro. Na narrativa infantil a palavra é verdadeira, no sentido bakthiniano do termo, ou seja, a palavra é sempre plural e, sendo plural é arena de luta e lócus de encontros. Encontro com o outro na narrativa, me desloco, me transformo – eu e o outro não somos o que éramos, estamos sendo. A narrativa potencializa o tornar-se, a criança não é se torna e, se torna falando, contando suas histórias, narrando suas experiências. Na narrativa a criança experimenta novas possibilidades de viver e/ou transformar-se, de libertar-se de ser quem ela é, reconfigurando a vida – a sua vida. Na narrativa a linguagem está imersa numa intrincada rede de relações dialógicas, o que nos permite conceber a realidade em permanente transformação. O acontecimento enunciativo é o lócus efetivo da produção narrativa, um espaço ampliado de formação da subjetividade. “Toda história começa com era uma vez e acaba felizes para sempre...” é assim que Luisy inicia a atividade de contação de história. As crianças concordam com ela, já definiram como começará e acabará a história que será contada por todos. Luisy comanda a narração – pois foi dela a idéia de contar a história diferente, proposta imediatamente aceita pelo grupo. Luisy inicia a história, as crianças a interrompem com sugestões para o enredo, algumas são aceitas, outras não. Algumas pausas para discussões e opiniões divergentes. Momento coletivo de negociações sobre o conteúdo da história e a produção do texto final. A professora assiste e anota as decisões.     

“Apaga, risca, não vai ser assim!” “Vai sim, quem está contando a história sou eu!” “Mas a história é de todo mundo!” “ Então conta sozinha!” “É para todo mundo contar junto!”

Conflitos. Negociações. Tensões. Momentos e movimentos de criação. Após algumas confusões o texto final está pronto e agora Luisy vai lê-lo para a turma....    

Não é assim que está escrito! Você mudou a história! Não falamos nada disso! Você está inventando! Mentira!

Luisy altera algumas passagens interferindo no enredo negociado.  Tem que ler como está escrito. Não pode mudar!  A gente não falou isso!

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Contra vontade Luisy retoma a leitura do texto ‘corrigindo” os ‘desvios’. Por fim todos ficam satisfeitos com a história criada.  Conta de novo sem mudar a história! E Luisy inicia a leitura: PRETA DA NOITE “Era uma vez Preta da Noite. Um dia Preta da Noite estava passeando na floresta e viu um caçador de lobisomem. O caçador estava procurando o namorado dela, que era o Lobisomem da Lua Cheia. Ele pegou Preta da Noite e levou para uma casa bem longe dali. Lá Preta da Noite tinha que fazer tudo para o caçador e os anões malvados. Ela era escrava deles. Um dia ela fugiu e encontrou uma árvore bem grande e se escondeu. Enquanto isso o caçador voltou e não encontrou Preta da Noite e mandou os anões procurarem Preta da Noite na Floresta. O Lobisomem da Lua Cheia também estava preocupado com o sumiço de Preta da Noite. Ele também foi para a floresta procurar por ela. De repente os anões encontram o Lobisomem da Lua Cheia. Os anões partem para cima, mas o Lobisomem se defende. Os anões jogam uma rede, mas o Lobisomem se solta. O Lobisomem mata todos os anões. O caçador chega e da um tiro no Lobisomem, que cai no chão, morto. O caçador vai embora feliz, porque matou o Lobisomem. Mas é lua cheia. E o Lobisomem se transforma num príncipe preto. Preta da Noite encontra o príncipe preto e beija ele. Cuida dos machucados e ele fica bom. Os bichos da floresta fazem uma casa para o príncipe preto e Preta da Noite morarem. Mas quando a lua cheia vai embora o príncipe preto vira Lobisomem outra vez, por isso ele se chama Lobisomem da Lua Cheia. Preta da Noite se casa com o Lobisomem da Lua Cheia, que é também o príncipe preto. E sempre tem festa na casa deles da floresta quando é lua cheia. Eles viveram felizes para sempre”.

A história de Preta da Noite é um texto inscrito num movimento compartilhado de produção de um processo de (re)existência que não sendo uma representação do real é o real de uma representação. A criança produz suas narrativas no contexto de sua vida cotidiana e nas interações que participa: cria histórias, em que muitas vezes é ela mesma o personagem principal – seus atos, reações e características são ressaltados, enfatizados, elogiados, julgados, comparados, etc. A narrativa permite a organização da experiência (de si e do outro) numa sucessão de acontecimentos que situam personagens e ações, num cenário determinado. A narrativa surge do e, provoca o, encontro com o outro. A criança narradora identifica-se (ou não) com personagens (humanos, não humanos e humanizados) e vive experiências de confronto, negociação, alianças e sedução do e com o outro (na tentativa de envolvê-lo nas histórias que conta), num movimento aprendente de vir a ser.

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Segundo Bakhtin a comunicação estética engloba três elementos fundamentais: a obra de arte (o texto), o criador e o contemplador. O que caracteriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte e as suas contínuas recriações por meio da co-criação dos contempladores e não requer nenhum outro tipo de objetivação. Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação (1992. p.5).

Concebo apoiada em Bakhtin a narrativa infantil como uma forma de comunicação estética, porque no caso da história da Preta da Noite, emerge de uma situação extraverbal presente nas relações cotidianas das crianças. Na poética, como na vida, o discurso verbal é um ‘cenário’ de um evento.[...] O discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa e, conseqüentemente, só no processo da comunicação social viva (1992, p.14).

Para Bakhtin, no mundo estético o autor tem a possibilidade de olhar para o herói como um sujeito situado temporal e existencialmente dentro da obra (no caso a história Preta da Noite). No cotidiano da vida – mundo ético - as crianças, não são personagens que possuem um autor. Sujeitos da linguagem, as crianças, no mundo da vida, produzem sentido para sua existência na interação com outros sujeitos. A narrativa é um evento discursivo que possibilita através da interação, a interlocução de fatores extraverbais ao enunciado. Apoiada em Bakhtin, compreendo as narrativas infantis como uma “oferta de contrapalavras”que emergem do diálogo autor narrador ouvinte, em que as palavras povoam o contexto cotidiano da vida das crianças. A linguagem, que marca as trajetórias individuais de sujeitos e sua subjetividade é, também, lócus de compreensão. Crianças narradoras lutam com as palavras para compreender o mundo em que vivem. A concepção bakthiniana de linguagem nos coloca diante de um outro modo de compreender o mundo – vivo o mundo, sinto o mundo, sou (eu e outro) o mundo. Crianças narradoras que exercitam a exploração das contrapalavras das diferentes compreensões de si, do outro, do mundo e de si no mundo. Compreensões que engendram o excedente de visão: “a visão do outro nos vê como um todo com um fundo que não dominamos” (Bakhtin, 1992, p.5), que torna inacessível para o sujeito, a experiência do outro em relação a ele próprio, mas que dialeticamente possibilita ao próprio sujeito produzir suas contrapalavras que mobilizam desejos, sonhos e ações potencializando as diferenças de modo a impedir sua transformação em desigualdades.

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A leitura e a escrita como conhecimento e invenção A criança é o centro do processo educativo, portanto, nossas ações de investigação tomam como referencia suas necessidades, interesses, curiosidades e desejos, o que por muitas vezes tem nos levado a abandonar a sala de aula para ir ao encontro do conhecimento no mundo mergulhando no mundo do conhecimento, o que tem permitido a produção (e a aprendizagem ) da escrita encarnada na experiência. Da mesma forma que Freinet promoveu suas aulas-passeios, a emergência de nossas saídas de campo se deu pela necessidade da vivência dos conhecimentos que deixaram de caber na escola, configurando, para as duas turmas, um transbordamento ético, estético e cognitivo dos limites espaciais impostos. (PÉREZ e BARENCO, 2013, p.4)

Sair da sala de aula, fazer do conhecimento uma experiência singular, possibilitar que as crianças produzam, coletivamente, significações para o ato de aprender tecendo novas redes de sentido para a escola e para a vida escolar é, do nosso ponto de vista, uma prática políticoepistemológica de resistência e de reexistência na/da educação. Snyders, aponta que “...é partir da própria escola, dos fragmentos felizes que ela deixa transparecer, que se pode começar a pensar em como superar a escola atual”(1991:12); as saídas de campo, são sem dúvida, um desses fragmentos felizes, que nos possibilitam reinventar a escola pela acontecimentalização da aula. A Aula Campo no Corpo de Bombeiros Autor da matéria: Victor dos Santos Silva Ontem eu fui ao corpo de Bombeiros e gostei muito, nunca vou esquecer! Vou contar tudo que eu vi. Primeiro vi a cabine de atendimento. Depois a oficina aonde se conserta os carros. Vi também o caminhão de água, o mais utilizado pelos bombeiros. Vi também a ambulância e os botes, o de ar e o de ferro. O sargento Amon disse que o bote de ar não pode levar muitas pessoas, mas é bom para ondas fortes. O bote de ferro pode carregar muitas pessoas mais não é feito para ondas fortes. Conheci o Lucas, a tesoura de cortar ferro. Vi os capacetes, a máscara de oxigênio, colete, roupas de bombeiros e o extintor de incêndio de CO2 (que é uma fumaça branca) e de água. Tinha também um campo de futebol e muitas baias para os carros. Em cima tem um alojamento para os bombeiros que trabalham de noite. Os bombeiros atendem 50 ou 60 chamados por dia. Vi também a escada Magirus, ela sobe 37 metros do chão. Nós subimos na escada. Eu gostei muito da escada Magirus. Eu nunca vou esquecer esta aula campo.

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Revista Eletrônica Tô de Olho: a escrita como ato de conhecimento A criação, produção e uso de uma revista eletrônica, como suporte dos processos pedagógicos vividos no cotidiano da sala de aula, afirma a oposição às intervenções lineares voltadas à mera transmissão de conhecimentos. A organização do espaçotempo a partir da criação de uma revista eletrônica subverte a lógica da aula e, reinventa os processos de produção de conhecimentos: a criação dos textos, figuras e imagens da revista forjam movimentos de colaboração e negociação de tensões e contradições e, transforma o planejamento das aulas num ato inventivo. Planejar com as crianças não é uma tarefa fácil, todos querem fazer valer suas ideias e desejos e nem sempre isso é possível - por razões práticas e materiais ou por questões que envolvem segurança. O planejamento com as crianças ressignifica o processo de aprendizagem, pois o “...planejar ajuda as crianças entenderem que podem provocar acontecimentos para si próprias”. (GRAVES,1996, p.115 ). As discussões travadas pela perspectiva da criança, ao elaborarem textos e imagens que comporiam as matérias dos (três) números da Revista Eletrônica Tô de Olho, revelaram um campo de significações individuais e coletivas. Os encontros feitos de acontecimento marcaram a experiência vivida. "Cada situação cotidiana é sempre única e, portanto, exceção às regras predefinidas. As teorias formuladas sempre se modificam em virtude dos acontecimentos." (FERRAÇO, 2012, p. 98). As crianças mostram a todo o momento que o lócus do acontecimento é a aula. A racionalidade escolar fundada na lógica da economia escriturística e no ensino livresco não responde às exigências sociais e cognitivas da contemporaneidade. Atualmente o mundo se organiza e funciona na interconexão tempoespaço, que possibilita o desenvolvimento de outras capacidades cognitivas potencializadoras formas de pensar e aprender fundadas em conexões simultâneas entre diferentes linguagens e significações. A produção da revista eletrônica insere no tempoespaço da aula o uso de outras tecnologias vividas e experiênciadas na vida cotidiana. Vivemos imersos na cultura digital, cinema, televisão, viodegames, DVDs, internet, softwares de compartilhamento de informações como chats, blogs, sites, constituem espaços virtuais de ampliação de informações e conhecimentos que, ao introduzirem novos regimes de visualidade permitiram, do ponto de vista cognitivo, o desenvolvimento de outras capacidades perceptivas. Martin Barbero (2000), nos chama atenção para o fato de que as tecnologias alteram a cultura, o conhecimento e as formas de aprendizagem a partir de uma cumplicidade cognitiva com uma nova gramática tecnoperceptiva, ao forjar “um novo projeto de saber que revaloriza as práticas e experiências, que iluminam um saber mosaico feito de objetos móveis e de fronteiras difusas, de intertextualidades e bricolagens.” (p. 86). Produzir com as crianças uma revista eletrônica proporcionou a vivência de outros processos de aprender e ensinar. A produção coletiva e o compartilhar de experiências na produção da revista ampliou o que Pierre Levy (2007) chama de inteligência coletiva de todos os envolvidos. Para Levy, o aumento vertiginoso da circulação de informações modificou a

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natureza do trabalho e do conhecimento humano, pois “trabalhar equivale cada vez mais a aprender, transmitir saberes e produzir conhecimentos.” (p. 9) Nesse sentido a produção da revista faz da aula uma experiência coletiva, um espaço aberto que conecta habilidades, recursos, estilos cognitivos singulares e formas de aprender diferenciadas, ao mesmo tempo em que mobiliza outras energias afetivas e outras lógicas, éticas e estéticas na produção de conhecimentos. (Cf. PÉREZ e SILVESTRI, 2014). Editorial Este é o nosso terceiro número, tem muita escrita legal, muito desenho lindo e muita novidade. A gente achou legal colocar no editorial a opinião das pessoas, por que tem muita gente que já leu nossa revista e nós também lemos. É muito bom organizar a revista e saber que as pessoas leem e a gente também lê as coisas que a gente mesmo escreve, e que outras crianças de outras escola também escrevem e leem. Olha o que as pessoas estão achando da nossa revista.   - Eu gostei muito da Revista Tô de Olho. O nome é muito legal! Gostei da matéria dos Bombeiros e da matéria da cobra - Luiz Gustavo - A revista Tô de Olho é muito maneira. A melhor reportagem foi dos esportes radicais - Pablo Luiz Aquino - Eu gostei muito da revista. Foi muito legal as reportagens das cobras, dos escorpiões e das aranhas - João Victor - Eu gostei muito da revista Tô de Olho por que os trabalhos que eu fiz estavam lá Vitória Oliveira - A Revista Tô de Olho ficou muito legal! Eu gostei muito, muito mesmo. Foi muito maneiro. A gente aprendeu mais coisas de um jeito melhor - Érika Araújo - Muito boa a Revista Tô de Olho. Eu gostei de tudo - Julio Cesar - Eu achei a história da Revista Tô de Olho muito legal. Eu adorei a matéria do Bombeiro, eu fui na escada magirus e achei legal - Luiza Ribeiro. - Eu gostei dos desenhos da Revista Tô de Olho. Gostei da Arara Azul, do Boto Cor de Rosa e do Tubarão - Rayanne Sobral. As professoras da UFF falaram que tem muito adulto que também gostou da revista e mandou e-mail para elas dizendo que a revista é um trabalho importante e muito lindo. A gente também acha isso e é por isso que a gente quer continuar a escrever mais histórias e mais reportagens para ter muitas Tô de Olho.   Um abraço de todos nós que escrevemos as matérias dessa Tô de Olho

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Na produção da revista eletrônica os saberes cotidianos e o conhecimento escolar (não escolarizado) são como “nós” de uma rede formada por diferentes fios, tramas e composições que matizam formas singulares de pensar e praticar a leitura e a escrita como exercício de autoria .

A alfabetização como exercício da autoria é um processo de criação e invenção permanente da escrita: a criança aprende a dizer, através da escrita, o que pensa, o que sente o que deseja. As crianças aprendem a escrever escrevendo suas experiências e, como aponta Geraldi (1997), a escrita deixa de ser reconhecimento e reprodução e torna-se conhecimento e produção, ou como já afirmei anteriormente, experiência e invenção. Referências BAKHTIN, Mikhail (Voloshinov, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem. SãoPaulo: Hucitec, 1999. __________________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BARBIER, René. A Escuta Sensível na Abordagem Transversal. São Carlos. Editora UFSCAR, 1998. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano I. As artes de fazer. Petrópolis. Vozes,1998. FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido.Campinas.Editora da UNICAMP, 1997. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo. Paz e Terra, 1996.

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GALLO, Sílvio. Transversalidade e Educação: pensando uma educação não disciplinar. In: ALVES, N. & GARCIA, Regina Leite. O Sentido da escola. Rio de Janeiro. DP&A Editora, 1999. GERALDI, João Wanderley. A Aula como Acontecimento. São Carlos-SP. Pedro &João Editores, 2010. _______________________. Leitura: uma oferta de contrapalavras. Conferência proferida no 13o Congresso de leitura do Brasil. UNICAMP – Campinas, São Paulo:2001. ________________________. Portos de passagens. São Paulo. Martins Fontes, 1997 – 4a ed. MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagens na Educação e na Política. Belo Horizonte. UFMG, 1998. PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Professoras Alfabetizadoras. Historias Plurais, Práticas Singulares. Rio de Janeiro. DP&A Editora, 2003. PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e ALVES, Luciana Pires. Entre Pontes e Travessias: a alfabetização como arte do desvio. In: PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e SAMPAIO, Carmen Sanches. Nós e a Escola: sujeitos, saberes e fazeres cotidianos. Rio de Janeiro. Editora Rovelle, 2009. PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e BARENCO, Marisol. Salidas de campo: cuando El conocimiento se desborda de la escuela. In: Novedades Educativas, v. 267. Buenos Aires,. Noveduc, 2013. PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal e SILVESTRI, Monica. A criação de uma revista eletrônica na escola - uma experiência coletiva de formação. Niterói, UFF, 2013, mimeo. SNYDERS, Georges. Alunos Felizes. Reflexões sobre a alegria na escola a partir de textos literários. São Paulo. Paz e Terra, 2001, 3a ed.

DA REVISTA ELETRÔNICA TÔ DE OLHO, Nº 3/ DEZEMBRO DE 2013

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POR QUE LER E ESCREVER A CIDADE COM AS CRIANÇAS? Maria Tereza Goudard Tavares 1 (...) Nuvens de gafanhotos de escritura, que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para os habitantes das grandes cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte. (BENJAMIN, 1993)

A cidade como um (con)texto Em diferentes contextos da história humana, as cidades têm sido estudadas e representadas por inúmeros pensadores nas diversas áreas do conhecimento. Lugar do simbólico, onde se produz a história, cenário das tramas humanas, a cidade pode ser lida, segundo Machado (2002, p.213), como: “Macrocosmo social, encontro de funções e sinergia de criações, texto e discurso, a cidade atravessa as ciências humanas e fecunda artes e letras como questão (o que é a cidade?) e como problema (Por que a cidade?)”.

Em meu longo processo de pesquisa na rede escolar de São Gonçalo, desde 1998, com o início do doutorado, e finalizado com o trabalho da tese “Os pequenos e a cidade: O papel da escola na construção de uma alfabetização cidadã” (TAVARES, 2003), tomar a cidade como um livro de espaços, cujas práticas e relações sociais era necessário e urgente com os sujeitos escolares investigar e ler, implicou a complexificação do conceito de alfabetização para além de sua acepção usual na cultura escolar. Isto é, implicou tomarmos a “cidade como um problema” como nos desafia Machado (2002). Fundamentada em Freire (1979, 1986, 1990 e 1993), vimos defendendo que aprender a ler e escrever é antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender seu contexto, localizar-se no espaço social mais amplo, a partir da noção linguagem/realidade. Do ponto de vista dos estudos realizados, afirmamos que ler o mundo é também ler o espaço: construção social e histórica da ação humana. Assim, ler o mundo é estudar a sociedade; é estudar o processo de humanização a partir do território usado, conforme nos ensina Milton Santos (1996). É na contemporaneidade, especialmente, estudar as relações sociais com e na cidade. O ato de aprender a ler e escrever deve começar a partir de uma compreensão muito abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem antes de ler a palavra. Até mesmo historicamente, os seres humanos primeiro mudaram o mundo, depois revelaram o mundo e a seguir escreveram as palavras. Esses são momentos da história. Os seres humanos

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não começam por nomear A! F! N! Começam por libertar a mão e apossar-se do mundo (FREIRE & MACEDO, 1990, p.32).

Com base em Freire e em sua concepção sócio-antropológica do ato de ler, venho compreendendo que linguagem e realidade se constroem mutuamente; daí que uma alfabetização crítica implicaria construir, com as crianças das escolas pesquisadas, a percepção das relações entre o texto e o contexto, na qual a leitura da palavra, da frase, do texto jamais significasse uma ruptura com a leitura do mundo (FREIRE, 1986). Porém, se ler “é interpretar signos, é captar a realidade significante dos signos (...) é conhecer o significado pela interpretação do significante” (GUTIERREZ, 1978), é urgente discutir, no mundo da escola, a insuficiência da concepção hegemônica da alfabetização apenas como aprendizagem da leitura e da escrita, isto é, apenas como instrumento de decodificação, frente aos desafios de um tempo histórico atravessado pelos mass media, pelo meio técnicocientífico-informacional, e por outras gramáticas tecnoperceptivas que atravessam as nossas formas de leitura de mundo. Nesse sentido, sem abrir mão do compromisso de lutar pela universalização da leitura e da escrita no país, visto serem os altos índices de analfabetismo nacional denúncia de que estamos adentrando o terceiro milênio sem a democratização da escola e da própria experiência da alfabetização para todos, é necessário complexificar e ressignificar o conceito de alfabetização: Por más escandaloso que nos suene es un hecho que las mayorias en América Latina se estan incorporando a la modernidad; no de la mano del libro sino desde los discursos y ias narrativas, los saberes y ios lenguajes, de la industria y la experiencia audiovisual. (Martín Barbero, 1996, p. 1).

Assim, não é por acaso que alguns teóricos latino-americanos do campo da comunicação e dos estudos culturais, como Canclini, Martím-Barbero, Beatriz Sarlo, Milton José de Almeida, dentre outros, vêm buscando refletir e problematizar uma outra concepção de leitura na América Latina. 2 Portanto, é necessário ampliar as discussões sobre o significado político e epistemológico do que seja alfabetização, do que seja leitura, num tempo de profundas reordenações de linguagens e hegemonia da imagem na constituição das subjetividades contemporâneas. E isto implica em complexificar a questão da leitura e da escrita na contemporaneidade, especialmente no mundo da escola, principalmente, porque o capitalismo pós-industrial — o capitalismo mundial integrado (CMI) tende, cada vez mais, a descentrar seus focos de poder das estruturas de produção de bens e de serviço, enfocando “as estruturas 2

Sobre essa questão, os livros Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, de Canclini (1997), Os exercícios de ver: Hegemonia visual, ficção televisiva de Martin-Barbeiro (2001), Cenas da vida pósmoderna, de Sarlo (2000) e Imagens e sons: a nova cultura oral de Milton Almeida (1994) constituem referências importantes, no sentido que complexificam os exercícios do ver (e do ler) na América Latina.

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produtivas de signos, de sintaxe, de subjetividade, por intermédio, especialmente, do controle que exerce sobre a mídia, a publicidade, as sondagens etc”.(GUATTARI, 1990, p.31).

Nessa perspectiva, entendemos ser urgente a ressignificação do conceito de alfabetização devido à complexidade de delimitação do que seja um (a) leitor (a)/escritor (a) na contemporaneidade. O arcabouço teórico-metodológico que vem alimentando as pesquisas que desenvolvo no campo da semiótica urbana (CERTEAU, 1994 e BARTHES, 1985 ), e que procura dar materialidade às nossas ações no campo empírico de nosso trabalho investigativo na rede escolar de São Gonçalo, enxerga no conceito de alfabetização cidadã uma possibilidade (dentre outras), da ressignificação do que seja alfabetização, ou de uma alfabetização que preocupada com a leitura do mundo, politiza e complexifica a leitura da palavra. Neste contexto, a texturologia (CERTEAU, 1994) da cidade, a densa paisagem de textos — anúncios, cartazes, outdoors, placas de trânsito, sinais, letreiros, informações, luminosos, os corpos dos citadinos, suas roupas, a moda, a estética urbana, os fluxos de informações, enfim, a gigantesca constelação escritural que materializa a cidade contemporânea, suas redes semióticas poderiam ser um pretexto para que professores e crianças pudessem construir a experiência de uma alfabetização cidadã. Ao investigar e complexificar a relação das crianças (e as suas próprias) com a densa paisagem escritural da cidade, professores/as e crianças poderiam construir, compartilhadamente, outro modo de pensar e um olhar mais complexo, investigativo que, ao questionar o pensamento único, convergente, abrisse espaço na escola para que, especialmente as crianças, pudessem com confiança dizer e escrever as suas palavras, e que esse movimento propiciasse, aos diferentes atores escolares, interrogar e compreender questões centrais no universo escolar, tais como: Como as crianças aprendem? Como e onde aprendem a ler e escrever? Com que lógicas constroem suas aprendizagens? Por que é fundamental nessa sociedade aprender a ler e escrever? Quais os impactos de escrever e dizer a própria palavra, na escola e na vida? Enfim, compreender o compreender do outro traduziria o horizonte democrático de uma escola, na qual o ler e escrever estariam vinculados à produção da existência humana em novos contextos históricos, onde o(s) paradigma(s) de conhecimento(s) se caracterizariam pela heterogeneidade e dialogicidade das múltiplas lógicas, racionalidades, e modos de conhecer. Nessa perspectiva, os processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita estariam vinculadas a um outro projeto societário, a uma responsabilidade coletiva, de todos/as, portanto uma construção política, atravessada permanentemente pela disputa em torno do problema epistemológico do conhecimento (SANTOS, 2000 e 1989). Com base em estudos sócio-históricos, sabemos que ler e escrever nas sociedades ocidentais têm sido entendido como sinônimo de força (GRAFF, 1995). E, se na primeira ruptura epistemológica, a aprendizagem da leitura e da escrita pôde ser identificada com controle, dominação, regulação, colonização, epistemicídio e rupturas, por outro lado, ler e escrever podem tornar-se artefatos de ressignificação, democratização, de superação das dicotomias criadas na racionalidade ocidental, que apartam homens e mulheres do mundo, e

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em última instância ensinam nos sistemas educacionais a escrevê-lo, objetivamente, distanciando-nos de interrogações fundamentais do tipo: Por que escrevemos? A quem escrevemos? Como escrevemos? Onde escrevemos? Na contra-mão de uma perspectiva instrumental da aprendizagem da leitura e da escrita, entendemos, que, se na escola professores(as) e crianças pudessem problematizar a cidade, lêla em sua “geografia existencial” 3, descrevendo-a, narrando-a, escrevendo-a de acordo com os diferentes sentidos (negociados na diversidade que qualquer coletivo expressa), uma outra experiência alfabetizadora poderia estar sendo construída. Experiência alfabetizadora que implicasse apropriar-se da palavra e dela fazer uso, não apenas de forma instrumental, mas através de uma prática alfabetizadora que pudesse conjugar desejo, necessidade e responsabilidade — movimento fundamental, individual-coletivo para se enunciar/construir escolas/sociedades mais agenciadas com a vida, como por exemplo, na situação concreta de uso significativo da palavra escrita. A escola poderia ser lócus de uma outra experiência alfabetizadora que possibilitasse às professoras e às crianças se potencializar individual e coletivamente para decifrar os segredos da cidade. E que nesse movimento permitisse interrogar e decifrar também as arcanas dei, os arcanas naturei, os arcanas imperii 4 (GINZBURG, 1990), práticas de conhecimento fundamentais para a edificação de uma escola “mais perguntadeira”, curiosa, sociopoética, na qual a dialética do ensinar/aprender se implicasse com/o ensinado/aprendido, sendo respaldada por um devir societário mais amplo, comprometido com a solidariedade, com a justiça, com a alteridade e com a desejada inclusão de todos/as que habitam a cidade de São Gonçalo. Com relação à aprendizagem da alfabetização, vimos compreendendo que aprender a ler e escrever a língua materna parece ser um dos maiores esforços de aprendizagem realizados pelos seres humanos no Ocidente. Trata-se, na verdade, de uma mudança radical na maneira como se observam e se sistematizam as experiências que nos cercam. Milhares e milhares de anos foram necessários para que se inventasse a escrita, e os povos que conseguiram criá-la e sistematizá-la sofreram transformações radicais em suas tecnologias de vida muito mais rapidamente que outros.

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Para Milton Santos, as relações do homem com o seu espaço são relações temporais, transcendentes e criativas. Assim, a geografia existencial de uma cidade implicaria a recriação desse espaço, como o seu espaço de viver. Para Santos (1998), a cultura é produzida nos lugares, as idéias são produtos da vivência do lugar. Nos lugares, as ações são solidárias, no sentido de que não são independentes, pois é nos lugares que o homem realiza seus intercâmbios, sua cultura e seus modos de vida. 4 Carlo Ginzburg, em seu artigo O alto e o baixo – o tema do conhecimento proibido nos séculos XVI e XVII (1990), discute a questão do conhecimento e recupera a advertência contra a pretensão de se conhecer as coisas do “alto”. Ginzburg refere-se a níveis diversos da realidade, mas ligados entre si: A realidade cósmica: é proibido olhar os céus, em geral os segredos da natureza (arcana naturae). A realidade religiosa: é proibido conhecer os segredos de Deus (arcana Dei). A realidade política: é proibido conhecer os segredos do poder (arcana imperii).

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Segundo Lewis Morgan (apud VILHENA, 1995), um antropólogo evolucionista do século XIX, era possível hierarquizar três níveis evolutivos pelos quais todas as sociedades necessariamente atravessariam, e que ele demonstrava, respectivamente, de selvageria, barbárie e civilização. A essa hierarquização ele articulava um esquema complexo em que a passagem de cada nível – ou de cada um dos níveis em que ele dividiu as duas etapas iniciais, era assinalada com precisão e nas formas nos meios de subsistência, na mentalidade e nas formas de organização social. É sintomático que a principal transformação pela qual ele identificava a passagem da fase final de barbárie para a civilização seja a emergência da escrita, mais especificamente da escrita alfabética, ocorrida plenamente na civilização grega clássica (1995, p.68). Anteriormente, já nas primeiras décadas do século XX, um importante antropólogo, chamado Lévy-Strauss, em seu livro Tristes Trópicos 5 (1981, p.295) desenvolveu uma reflexão sobre a maneira pela qual se articulavam, na história da humanidade, a invenção da escrita e a emergência da dominação política e a desigualdade social, sugerindo que: (...) Depois de terem sido eliminados todos os critérios propostos para fazer a distinção entre a barbárie e a civilização, retinha-se pelo menos esse: povo com ou sem escrita.

Outro antropólogo, Jack Goody, mais recentemente, em seu livro A domesticação do pensamento selvagem (1988), irá criticar o próprio Lévy-Strauss que, apesar de suas especulações em torno das funções da escrita, em outros momentos de sua obra, comparou a mentalidade das sociedades primitivas à da sociedade moderna, sem levar em conta essa variável. Em contrapartida, para Goody (1988), parece evidente o grande impacto que uma invenção como a escrita deve provocar nos sistemas cognitivos de um grupo social (apud VILHENA, p. 70). A escrita é um produto cultural por excelência. Historicamente, pode se dizer que a cultura escrita é uma invenção recente da humanidade. Segundo Walter Ong (1998, p.10) estudioso da oralidade e da escrita: A sociedade humana primeiramente se formou com a ajuda do discurso oral, tornandose letrada muito mais tarde em sua história, e inicialmente apenas em certos grupos. O Homo sapiens existe há cerca de 30.000 - 50.000 anos. O mais antigo registro escrito data de apenas 6.000 anos atrás. Na história humana, o predomínio da linguagem oral sobre a linguagem escrita justificase pela primazia do discurso oral que dá sustentação a toda comunicação verbal (ONG, 1998). Os seres humanos, muito antes de inventarem a escrita já se comunicavam de inúmeras maneiras, fazendo uso de todos os seus sentidos: tato, paladar, olfato, visão, assim como a 5

Neste livro, Strauss relata sua estadia entre os nambikwara, no Mato Grosso. No capítulo intitulado Lições de escrita, o antropólogo discute a relação do chefe nambikwara com a escrita, afirmando que ele foi, dentre todos da tribo, provavelmente o único que compreendeu a função da escrita (1981:292).

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audição. Algumas comunicações não-orais são extremamente ricas, como a gestual, por exemplo. Contudo, “num sentido mais complexo, a linguagem, o som articulado tem importância vital e não apenas a comunicação, mas o próprio pensamento está relacionado de forma absolutamente especial ao som” (ONG, idem, p. 15).

No Ocidente, a escrita alfabética — sistema ortográfico, no qual os sinais gráficos representam os sons da fala, foi introduzida na Grécia e na Jônia por volta do século VIII a.C. Inicialmente, não ocorreram mudanças na cultura de tradição oral daquela sociedade (visto que o processo de difusão de um sistema escrito é demorado, levando muitas vezes séculos para que a difusão ocorra). Por esse motivo é que somente nos séculos V e VI a. C. foi possível reconhecer a sociedade grega como generalizadamente escritural. E todo mundo sabe do apogeu artístico-intelectual e da expressão cultural vivida pela sociedade grega nesse período, influenciada pela difusão da escrita fonética em suas práticas culturais. Segundo autores como Goody e Havelock, um certo tipo de pensamento racional ou crítico só pôde desenvolver-se ao se relacionar com a escrita. O alfabeto fonético grego teria desempenhado um papel fundamental quanto a isto, ao fazer com que os textos “falassem” realmente, enquanto que os primeiros sistemas de escrita envolviam apenas signos mnemotécnicos fáceis de decifrar (LÉVY, 1993). (...) As formas ou os heróis da oralidade primária, projetos de aventuras marítimas, são traduzidos pela cultura alfabética grega nascente em idéias ou princípios abstratos imutáveis. Ao devir das sociedades sem escrita, que era como um rio sem bordas, um movimento sem velocidade definível, sucedese a nova problemática do ser. Novamente, a história pode ser constituída, fruto da dialética do ser e do devir. Mas trata-se, agora, de um devir secundário, relativo ao ser, capaz de desenhar uma progressão ou um declínio. Um devir que traça uma linha aberta (Lévy, 1993, p. 95).

Na história da humanidade, a escrita, alfabética ou não, sempre significou poder, autoridade e controle. O mito grego da invenção do alfabeto é emblemático do poder da escrita: Segundo a lenda, o rei Cadmo foi quem introduziu as letras do alfabeto na Grécia, pois, ao matar um terrível dragão, semeou seus dentes e posteriormente deles germinaram homens armados, cada um representando uma letra do alfabeto (MC LUHAN, 1964, p.101). Elias Canetti, em seu livro “As multidões e o poder”, nos recorda que os dentes constituem um agente óbvio de força no homem, e, especialmente, em muitos animais. Assim, as letras são como dentes — força. Significam, segundo Canetti, agentes da ordem e precisão agressiva no processo de conquista humana no mundo ocidental (idem, p. 102). No diálogo com Vygotsky (1987, p.85) aprendo que a linguagem escrita exige um alto grau de abstração. Primeiro, porque é a fala em pensamento e imagens, carecendo de qualidades musicais, expressivas e de entonação. Ao escrever, o sujeito tem que substituir as palavras por imagens de palavras, ou seja, deve simbolizar a imagem sonora da palavra em signos escritos. Segundo, porque ela é uma fala sem interlocutor direto, dirigida a uma pessoa ausente ou imaginária. Terceiro, porque, de modo geral, a criança, ao começar a aprender a

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escrever na escola, não é desafiada e/ou estimulada a escrever as suas palavras, a sua leitura de mundo. Hegemonicamente, a cultura escrituralística escolar fundamenta-se na repetição, na reprodução da palavra alheia, sendo os exercícios cartilhados ainda uma grande expressão dessa cultura. Quarto, porque a escrita exige um trabalho consciente em relação às palavras e à sua sequência, implicando uma tradução da fala interior, que é condensada, abreviada e compacta, para a fala oral, que é extremamente detalhada. Ainda para Vygotsky (idem), o desenvolvimento humano é o resultado da interação entre as condições históricas e sociais e a base biológica do comportamento humano. Partindo de estruturas orgânicas elementares, formam-se novas e mais complexas funções mentais, a depender da natureza das experiências sociais a que os indivíduos se acham expostos. Para este autor, pensamento e linguagem são indissociáveis. O “pensamento não é expresso em palavras, mas é através delas que passa a existir. Não é só expressão que encontra na fala; encontra a sua realidade e a sua forma” (idem, p.108). As palavras dão forma ao pensamento,

passando a estruturá-lo, e este, por sua vez, precisa das palavras para se expressar, para efetivar um determinado processo de comunicação. A linguagem sistematiza a experiência e serve para orientar o comportamento. Portanto, a aquisição de um sistema lingüístico, parece reorganizar todos os processos mentais. Por isto, a forma como as diferentes linguagens são utilizadas na interação social desempenha um papel importante na formação e organização do pensamento complexo e abstrato. Deste modo, as diferenças no processo de construção e elaboração do conhecimento devem-se, em grande parte, à diversidade de condições oferecidas pelos contextos sócio-culturais e esta heterogeneidade promove aprendizagens diversas, que passam a ativar diferenciados processos de desenvolvimento. Adquirir a linguagem escrita implica poder fazer usos de novas ações de pensamento; porém, é importante ressaltar que a escrita não é a única responsável por estas formas de pensar do sujeito. Luria (1990) e Oliveira (1995) observaram que a inserção no mundo do trabalho e nas práticas sociais é incisiva na diferenciação das modalidades de ação cognitiva do sujeito. O trabalho urbano no mundo letrado, regulado por ações coletivas, e o engajamento em organizações e atividades políticas propiciam transformações cognitivas altamente diferenciadas em relação ao trabalho mecânico que, em estruturas tradicionais, está centrado em processos isolados. Sendo assim, a apropriação da linguagem escrita, por si só, pode não "criar" novas estruturas, mas certamente propicia mudanças em qualidades cognitivas e maximização do uso de recursos mais complexos e abstratos. Nesse sentido, todo ato de observação que nos permite reconhecer um significado pode ser considerado como um ato de leitura. Há aqueles que sabem "ler a mão", há os que lêem o céu e identificam se vai chover ou não, outros lêem as estrelas e o movimento dos astros, relacionando suas leituras com o comportamento e o destino das pessoas, muitos lêem o corpo, sendo o comportamento uma sintaxe produzida por uma certa gramática corporal; outros lêem os olhos do/a outro/a, identificando a sua personalidade. Outros lêem pautas musicais, identificando o tipo de som ali registrado, outros lêem mapas, outros, gráficos, tabelas, com alegria e facilidade.

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A escrita, em contrapartida, também implica dominar um amplo conjunto de habilidades aparentemente diferentes entre si. O ato de escrever difere do ler porque exige do/a escritor/a o domínio de códigos gráficos que lhe permita transformar “uma idéia em um desenho” (OLSON, 1997).

Para entendermos essa afirmação, faz-se necessária a compreensão culturalmente construída de que a representação de um objeto, tanto por meio de traços que nos permitam reconhecê-lo imediatamente (o desenho de um sol, por exemplo), quanto por meio do registro do nome do objeto no caso, escrever a palavra sol), são formas de registrar, de escrever. No primeiro caso, representamos o objeto pela sua forma, no segundo, o fazemos pela representação gráfica da sonoridade de seu nome, isto é, escrevendo as letras que representam sons, os quais, agrupados, identificam o nome do objeto representado (idem, 1997). De qualquer forma, o fundamental é compreendermos que uma mesma experiência humana pode ser representada de diversas maneiras e cada uma delas se caracterizaria por realçar aspectos diferenciados de um mesmo processo. Assim, se observamos a cidade de São Gonçalo e, a partir dessa observação, escrevermos um poema, pintarmos um quadro, desenharmos o mapa da cidade, escrevermos um relatório, coletarmos um abaixo-assinado sobre as precárias condições de um bairro, ou simplesmente falarmos sobre a cidade de São Gonçalo, podemos propiciar infinitas formas de reflexão (e significados) e, para expressá-las, poderemos usar a fala, a escrita, a pintura, o desenho, a música, a fotografia, os mapas e relatórios etc. Neste sentido, a concepção de alfabetização cidadã que defendemos implica considerar que ensinar a ler e a escrever não deveria se restringir ao domínio da língua materna, mas sim ao acesso a todos os tipos de linguagens presentes em nossa cultura, isto é, a musical, a gestual, a pictórica, a cinematográfica, a teatral, a fotográfica, a cartográfica, a matemática, a não-verbal e tantas outras linguagens que nos possibilitam ler e escrever o mundo em que vivemos. Por uma alfabetização cidadã Vimos conceituando alfabetização em seu sentido ampliado, ressignificando uma compreensão stricto sensu do conceito, isto é, o entendimento da alfabetização para além de habilidades mínimas, instrumentais, que possibilitam a transcrição e a codificação da linguagem escrita. Nessa possibilidade de ressignificação, o conceito (e a prática) se ampliam, transcendendo o seu conteúdo etimológico — de lidar com as letras e palavras mecanicamente, instrumentalmente, passando também a traduzir as relações das crianças das classes populares com o entorno, com a cidade, com o mundo, mediadas pela semiótica urbana (BARTHES, 1985), pelo meio técnico-científico-informacional. Assim, a alfabetização cidadã que defendemos implica um tipo de aprendizagem relacionada à aquisição de habilidades culturais, sociais, políticas, técnicas, estéticas e não apenas aquelas relacionadas à aprendizagem da leitura e da escrita de um código alfabético. Uma alfabetização cidadã, mais do que a aprendizagem da leitura e da escrita como

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habilidades técnicas de apropriação de um código, resultaria de processos político-culturais, coletivos, preocupados em complexificar os modos hegemônicos de pensar/de olhar, de significar a realidade social, sobretudo a cidade, expereciando-a em outro paradigma estético (Guattari, 1993). Para Guattari este outro paradigma, denominado por ele de ecosófico 6 (1990), ao articular ético-político e esteticamente os três registros da existência humana (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) nos mobiliza a aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de referências sociais e individuais. Continuando o diálogo com Guattari, este nos mostra (1993) que a organização material das cidades, os personagens do espaço urbano são máquinas enunciadoras. Geram um discurso que nos atravessa, manipulam em nós impulsos cognitivos e afetivos, produzindo, portanto, subjetividades. Os processos de subjetivação numa cidade são complexos, remetem-se não apenas à morfologia da cidade, à sua materialidade, mas especialmente, pela habitabilidade (FERRARA, 1998) que gera (ou não) em seu espaço praticado cotidiano. Em nossa concepção, a escola pública, por ser um espaço estruturante do bairro e da cidade, ao assumir seu caráter educativo ampliado, pode comprometer diferentes instâncias societárias com práticas ecosóficas relacionadas a uma outra cultura urbana, que, agenciada por uma alfabetização cidadã, não abdique de ensinar a ler a cidade, de problematizá-la com um texto aberto, complexo cuja leitura é fundamental de ser realizada com os/as sujeitos escolares. Os espaços escolares já vêm transbordando da necessidade de interagir na imensa texturologia que a cidade estende diante dos olhos dos atores escolares; texturologia que realça os múltiplos signos da cidade, que dá relevo aos sentidos da metrópole e que , inúmeras vezes, nos seduz com suas linguagens, cantos de sereia que atraem para labirintos. A cidade, enquanto texto ou texturologia, é feita de “escritas múltiplas saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação” (BARTHES, 1985, p.59).

A texturologia da cidade não é a imagem de um organismo que cresce por expansão vital, por "desenvolvimento", mas a de uma rede, que, paradoxalmente, apreende "os instantâneos culturais que focalizam a cidade como organismo vivo, mutante e ágil para agasalhar as relações sociais que a caracterizam" (FERRARA, 1988, p. 4). A texturologia da cidade engloba a

cidade concreta e simbólica, que hibridiza lugar e metáfora, produzindo uma cartografia dinâmica, tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas (GOMES, 1994). 6

Em seu livro As três ecologias (1990), Guattari define a ecosofia como a articulação dos três registros ecológicos da existência humana (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade). A ecosofia não tem a pretensão de englobar todos esses aspectos ecológicos heterogêneos, numa mesma ideologia totalizante, mas para indicar, ao contrário, a perspectiva dessa escolha ético-política de diversidade, do dissenso criador, da responsabilidade frente à diferença e à alteridade.

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Em nosso longo e cuidadoso trabalho de pesquisa, vimos compreendendo que a texturologia da cidade gonçalense se revela em labirintos de ruas, de espaços encharcados de textos, uma rede de significados móveis, que dificulta sua legibilidade e exige aprendizagem. Uma texturologia que nos exige a ampliação do campo perceptivo (BARTHES, 1985) para ser enxergada, para poder ser reparada e lida. Apesar de a cidade contemporânea ser o reino da abundância de fluxos, da proliferação de signos; espaço da experiência social e intelectual, de sua texturologia estar disponível aos citadinos, enxergar sua legibilidade não é uma habilidade natural, inerente à condição humana. O fato de o contexto urbano apresentar-se como um aglomerado de signos — formas, traços, cores, texturas, sons, cheiros, ao mesmo tempo e paradoxalmente, juntos e dispersos, visto que não há convenção que os organize (FERRARA, 1988) — exige toda uma aprendizagem que nos faça repará-lo, e, ao repará-lo, lê-lo, interrogando-o. O hábito da habitabilidade (FERRARA, 1988) da cidade reforça a sua unidade e igualdade de sua imagem, condenada a uma inexorável mudez. Este signo sem linguagem (idem) parece trazer a impossibilidade de sua percepção imediata, visto que nada o faz perceptível. Quando falamos em percepção da cidade estamos paradoxalmente nos referindo a algo que não se faz perceber em virtude da baixa definição da linguagem que envolve seus signos. Um sistema sígnico é tão mais complexo quanto mais difusa a definição de sua estrutura. Assim sendo, o contexto urbano é global e unitário, uma fala sem voz, porque marcada pela ausência de destinação dos elementos que a caracterizam. Entretanto, e apesar disso, a percepção urbana é condição indispensável para que a cidade atue enquanto fonte de informação permanente. No contexto urbano, a poesia de Bertold Brecht (1996) poderia ser usada como uma moldura: Sob o familiar, descubram o insólito. Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável. Que tudo que é considerado habitual provoque inquietação.

Assim, é necessário aprender a ler a cidade, dilatar sua legibilidade através da complexificação dos modos de olhar, através da educação de um olhar que ao compreender possa enxergar, e ver. E Essa nova atitude epistemológica não poderia prescindir da escola, pois embora possa ser aprendida e ensinada em outros espaços/tempos, onde se materializam as práticas sociais, considero a escola (ainda) um lócus privilegiado para a aprendizagem e o partilhamento de significados culturais vinculados à complexificação do conhecimento, dos processos sociais, dos valores societários agenciados com uma vida democrática. Considerações finais Em nossos trabalhos de Ensino, Pesquisa e Extensão, vimos pensando a escola enquanto espaço/tempo tensionado pela multiplicidade das crises (paradigmática, política, axiológica, ecosófica, num sentido mais amplo e interdependente), que não deveria abrir mão de uma reflexão coletiva sobre a atitude epistemológica necessária para interrogar, compreender,

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transformar e, sobretudo, viver nesse "admirável mundo novo", cujos sinais de sua edificação já produzem tanto estranhamento e desassossego na vida cotidiana. Nessa concepção, a escola, mesmo premida pelas urgências contemporâneas e tensionada pelos diferentes interesses em seu interior, poderia tomar para o seu coletivo o trabalho e o risco de pensar sobre o pensamento hegemônico, problematizando a questão do olhar como pretexto para essa outra atitude epistemológica, que não somente pudesse decifrar a texturologia da cidade, mas que, principalmente, interrogasse essa texturologia, desnaturalizando-a, estabelecendo conexões entre os diferentes textos presentes na cidade, construindo mapas cognitivos, estilos de pensamento, que, mais complexos pudessem combater as simplificações, as disjunções, os fracionamentos e hierarquizações clássicas herdadas do pensamento cartesiano ainda hegemônicos no mundo da vida e da escola. Ressaltamos que a escola, ao tomar intencionalmente para si o desafio da construção de uma outra atitude epistemológica, poderia, ao problematizar a questão do olhar, deflagrar um processo intenso de discussão sobre a própria natureza do conhecimento e da escola, sobre a própria natureza da cultura e da sociedade, reaproximando a tradição humanista, que coloca a questão da vida, e da tradição científica, colocando a questão do mundo em diálogo. Uma outra atitude epistemológica que, ao problematizar o nosso olhar sobre o mundo, problematizaria ciência e senso comum, reaproximando-os (SANTOS, 1995), apostando no movimento de constituição de um novo senso comum, “ético porque solidário, estético porque reencantado, político porque participativo” (SANTOS, 1995).

A rede escolar pública em São Gonçalo, atravessada pelos devires de tempos e espaços complexos, tal como se apresenta o mundo no cenário contemporâneo, especialmente nas metrópoles densamente povoadas desse início de milênio, já busca reconhecer e interagir com as outras instituições e práticas sócio-educativas em curso na cidade. Assistimos hoje, pelo menos no discurso pedagógico oficial, que o conceito stricto sensu de educação escolar está se redefinindo para uma concepção de educação ampliada, que não só incorpora, mas transcende os espaços e os tempos de uma cultura estritamente escolar (TAVARES, 2003). A constatação de que a escola é cada vez mais uma das inúmeras agências de socialização e transmissão de conhecimentos, e que problemas como o fracasso escolar, e a violência na escola, por exemplo, não podem ser nem entendidos, nem superados, apenas levando-se em conta as chamadas “variáveis intra-escolares”, apesar de já unânime nos discursos pedagógicos brasileiros, nos territórios da escola ainda é um grande desafio, uma aprendizagem coletiva a ser materializada em seu cotidiano. Apesar de sabermos que o processo educativo não acontece apenas nos bancos escolares, e que a dinâmica urbana como um todo é sempre educativa, formadora ou não de novos padrões de sociabilidade, a realidade social e política da cidade de São Gonçalo em seu viés privatista e pouco democratizante ainda dificulta em muito a discussão e à própria identificação de uma cultura urbana compromissada com valores de integração, de responsabilidade política, pela ampliação da esfera pública e construção de uma cultura política de direitos, face à histórica cultura de favor (ou de privilégios) residual na cidade.

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Assim, a complexa realidade escolar de São Gonçalo vem inspirando e justificando o desafio de nossa trajetória de mais de uma década de pesquisa, na qual a expectativa de contribuir para a produção de outras ferramentas teórico-conceituais que possam potencializar práticas alfabetizadoras, aliadas à cidadania, anima e atualiza o meu compromisso investigativo. Compromisso que me impele a dar corpo e sentido à busca cotidiana de ultrapassagem às naturalizações positivistas que teimosamente ainda me atravessam, e que dificultam o trabalho com a tríade escola/cidade/alfabetização. Nessa perspectiva, o “ambiente alfabetizador” que a cidade oferece, e que, apesar de invadir a sala de aula, é, de modo geral, ainda interditado ou esvaziado de potência, deveria ser um pretexto indiciário para a construção de alfabetização cidadã que, ao compreender a centralidade da cidade na humanização dos sujeitos contemporâneos, apostasse nos seus conteúdos alfabetizadores, tornando-os também matéria-prima das práticas de leitura e escrita instituídas no cotidiano escolar. Em nosso longo trabalho de pesquisa, ler a cidade com “os pequenos” implica estabelecer sentido(s), buscando para além e aquém do significado latente, emergente, possível. Implica (re)conhecer nos espaços praticados, vividos pelas crianças, a multiplicidade de redes que engendram as cidades (in)visíveis nas quais nos alfabetizamos. Ancorada no "dilema de Hermes" (CANEVACCI, 1993), que busca numa inversão metodológica tornar familiar o que é estranho e estranho o que é familiar, é que venho pesquisando as possibilidades epistemológicas da cidade e suas repercussões no mundo da escola, entendendo que é justamente na cidade polifônica, transitando na vasta paisagem urbana das letras, se esquivando da/na texturologia da cidade, que os sujeitos escolares contemporâneos poderão (re)criar experiências alfabetizadoras emancipatórias. Emancipatórias porque vinculadas ao desejo e à própria vida. Portanto, para a rede escolar não é suficiente ensinar na cidade; é preciso ensinar a cidade, aprender coletivamente a lê-la como um texto, uma obra em aberto que se oferece - decifra-me e/ou devoro-te 7 aos seus habitantes — escribas/leitores. Referências ALMEIDA, M. J. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994. BARTHES, Roland A aventura semiológica. Lisboa: Edições 70, 1985. BENJAMIN, W. Rua de mão única.(Obras escolhidas III). São Paulo: Brasiliense, 1993.

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O Decifra-me ou devoro-te pode ser identificado na tensão do imaginário urbano já presente nas antigas mitologias humanas. O mito grego da esfinge (figura mitológica que ficava à porta das muralhas de Tebas) como uma guardiã da cidade, controladora do acesso de estrangeiros à mesma, a partir da resolução de um enigma, é emblemático do mito devorador das metrópoles no imaginário humano.

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DAR A ESCREVER: REAPRENDENDO A LER AS ESCRITAS DOCENTES Inês Barbosa de Oliveira 1 Introdução O desafio de refletir sobre o “dar a escrever” e seus possíveis significados nas pesquisas em currículo nosdoscom os cotidianos das escolas remete a reflexão a respeito do papel social da escrita no mundo moderno e contemporâneo e do quanto ela, mais do que um direito ou uma forma de expressão de si, foi sendo percebida e considerada como privilégio de alguns, supostamente mais capazes, cuja palavra escrita passou a valer por si só, independente da propriedade e validade do que expressava, dos objetivos que possuía ou da justeza dos processos que geraram o referido privilégio. Na sociedade da economia escriturística, como ensinou-nos Certeau (1994), as narrativas orais perderam valor e legitimidade. Como no “jogo do bicho” 2, o que passou a valer foi o escrito. Tradições foram negadas, histórias ancestrais ignoradas, culturas ignoradas. Imensas populações tiveram sua palavra silenciada, por não poder escrevê-la ou por pretender fazê-lo de modo incompatível com os modelos escriturísticos de uma sociedade que, ao mesmo tempo em que valorizava a escrita, cerceavaa por meio da criação de modelos e modos “corretos” de escrever, anulando, também, a validade de inúmeros outros. A denúncia deste sistema por Karl Marx é pungente: A lei permite-me escrever, mas na condição de escrever noutro estilo que não seja o meu! Tenho o direito de mostrar o rosto do meu espírito, desde que lhe confira as rugas prescritas (…) Todos admiram a variedade encantadora, a riqueza inesgotável da natureza. Ninguém exige que a rosa tenha o perfume da violeta, mas o que há de mais rico, o espírito, só deve ter a faculdade de existir de uma única maneira? Sou um humorista, mas a lei ordena-me que escreva sisudamente. Sou audacioso, mas a lei ordena que o meu estilo seja modesto. Cinzento em fundo de cinzento, eis a cor única, a cor autorizada da liberdade. A menor gota de orvalho em que se reflecte o sol, cintila com um inesgotável jogo de cores, mas o sol do espírito, qualquer que seja o número dos indivíduos e a natureza dos objectos em que incide, só pode mostrar uma cor, a cor oficial! (…)”. (MARX, 1974 apud NUNES, 2010, p. 72)

Num contramovimento em relação a esta lógica escriturística que obriga “humoristas a escreverem sisudamente”, “audaciosos a escreverem modestamente”, faz do cinzento sobre 1

Doutora em Educação, pós-doutora pela Universidade de Coimbra. Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação da UERJ, Rio de Janeiro, e-mail: [email protected]. 2 O Jogo do bicho é uma loteria privada, criada pelo Barão de Drummond para assegurar a manutenção do seu jardim zoológico. Ilegal desde a década de 1960, o jogo continua popular e a máxima “vale o escrito” atesta o compromisso do “bicheiro” (a banca), com o pagamento dos prêmios aos apostadores de acordo com o que está escrito no volante da aposta.

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cinzento a única cor possível do texto escrito válido, negando a validade de escritas que não conseguem, ou não se contentam em, serem modestas, sisudas ou cinzentas, como prevê a norma social de “como deve ser” um texto escrito, vimos trabalhando em nossas pesquisas em torno das narrativas docentes, com narrativas orais e escritas que transbordam as margens dessas normas e umedecem as vidas dos leitores com humor e ousadia, com coloridos múltiplos em fascinantes textos transgressores, cujo conteúdo se faz acompanhar de modos criativos de narrar, por escrito, as experiências vivenciadas, os estudos e pesquisas realizados, os cotidianos das salas de aula e seus significados possíveis. Assim, ao longo dos últimos anos de nossas pesquisas, a escrita não autorizada vem crescendo, enfrentando os obstáculos interpostos por um poder que, ainda hegemônico, se permite dizer, e escrever, que o que fazemos não existe, que o que escrevemos não tem valor, que nossa ousadia será punida. Assim, enfrentamos no meio acadêmico as críticas de quem, autorizado a nos avaliar por escrito, diz: “isto não é um artigo científico”. O motivo: cores demais e falta de cinza, talvez, para nos mantermos na metáfora do velho Marx. Vivemos academicamente hoje um embate político, linguístico e epistemológico no qual modos de narrar, por escrito, pesquisas e seus resultados produzidos com base em outras perspectivas de compreensão do ato de conhecer vêm emergindo. São modos diferentes do formato clássico e, para alguns, único, da fórmula: introdução, hipótese inicial e justificativa, objetivos, metodologia, resultados e discussão, acompanhado ou não de revisão bibliográfica e fundamentação teórica. Arriscando-nos a escrever diferentemente, enfrentamos, quando recusamos o modelo, rejeições, resistências e ataques de toda sorte, incompreensões incompreensíveis e questionamentos infundados. Nossos textos são compreensíveis e estruturados de modo a permitir ao leitor acompanhar o que fizemos, porque, como e para que, mas isso não basta 3. Quais seriam as bases sobre as quais tais ataques e críticas se apoiam? Onde estariam os limites epistemológicos e políticos da questão? Essas interrogações nos remetem não só às pesquisas com os cotidianos, mas também aos modos como podem e precisam ser escritas para que a riqueza de seus sentidos possíveis não se perca. Por que nos mantermos dentro das margens oficiais que separam as formas aceitáveis e não aceitáveis de expressão, limitadas por uma linguagem desprovida de sujeitos, de emoções e de tudo aquilo que não se pode expressar “objetivamente”? Seria necessário tratar as constrições das ‘disciplinas’, no sentido que lhes dá Foucault (2009), como denúncias de um caminho já tão percorrido que acabou por esconder o labirinto da vida, com seus sussurros desejantes que não cabem nos caminhos super trilhados que escondem, sob a hiperlucidez de suas razões, segredos a serem desvendados. (OLIVEIRA; GERALDI, 2010, p. 12)

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A defesa que faço aqui é de textos com qualidade acadêmica, que trazem o necessário apontado nessa passagem. Problemas efetivos de falta de qualidade investigativa, de incompreensibilidade técnica e/ou estilística e de mau uso da norma culta da língua não estão em questão aqui. Podem ocorrer em qualquer estruturação, metodologia, objetivos ou...

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Sem nos imaginarmos em nenhum ato inaugural 4, visto que este debate é antigo e conta com contribuições de muitos autores – das ciências, da literatura, da filosofia, entre outros – vimos, em nossas pesquisas, buscando tecer escritos em que outros conhecimentos e formas de expressá-los se mostrem mais do que pertinentes, necessários. Tentando produzir escrituras em que a ciência apareça literaturizada, como sugerido por nossa amiga Nilda (ALVES, 2008 5) há quase dez anos, buscando narrar a vida. Na ocasião, perguntava-se a autora: é possível transmitir o que for sendo apreendido/aprendido, nesses processos e movimentos, da mesma maneira como transmitia o que acumulava/via/observava em uma pesquisa dentro do paradigma dominante? (ALVES, 2008, p. 30)

E ponderava: Ao colocar a pergunta, do jeito que a fiz, significa que entendo que é preciso uma outra escrita para além da já aprendida. Há assim, uma outra escritura a aprender: aquela que talvez se expresse com múltiplas linguagens (de sons, de imagens, de toques, de cheiros etc.) e que, talvez, não possa ser chamada mais de “escrita”; que não obedeça à linearidade de exposição, mas que teça, ao ser feita, uma rede de múltiplos, diferentes e diversos fios; que pergunte muito além de dar respostas; que duvide no próprio ato de afirmar, que diga e desdiga, que construa uma outra rede de comunicação, que indique, talvez, uma escrita/fala, uma fala/escrita ou uma fala/escrita/fala (ALVES, 2008, p. 30-31).

É nesse espírito que trazemos, para esta discussão, exemplos desses transbordamentos, experienciados a partir da necessidade de respeitar e de contar a riqueza dos conhecimentos presentes nas escolas, exigindo-nos formas múltiplas e criativas de expressão escrita do conhecimento, desinvisibilizando palavras silenciadas por meio de modos, também silenciados, de dizer a palavra. Entendemos este processo de desinvisibilizações como contribuição, também, para a instauração de relações sociais em que haja mais justiça cognitiva e social, ao buscar superar epistemicídios (também de linguagens) praticados em nome da superioridade de alguns conhecimentos e de formas de narrá-los sobre outros. É, também, pensarpraticar a cidadania horizontal que pressupõe a solidariedade entre iguais como prática social necessária a uma sociedade democrática, plural nos seus modos de falar, ler e escrever o mundo.

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Só para lembrar duas teses aqui defendidas: Assis Brasil já escreveu uma tese sobre Qorpo Santo na forma de romance - “Os cães da província”; e Nilma Lacerda apresentou como tese seu romance “Vinha d’Alhos” acompanhado do diário da jornada de produção deste romance ainda inédito. 5 Referimos com esta data à segunda edição do texto em questão, publicado originalmente em 2001.

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Outros modos de escrever: pela ampliação da cidadania horizontal e da justiça cognitiva e social Fundada no contratualismo rousseauniano, a noção de cidadania horizontal é entendida como a relação solidária entre os indivíduos, no pacto entre eles presente no compromisso de uns com os outros em nome do bem-estar de todos, comprometendo-os independentemente ou para além do Estado e das obrigações e direitos que os cidadãos tenham em relação a ele. É uma solidariedade movida pela consciência de humanidade e de alteridade. Não olha apenas interesse das partes em relação ao todo, mas também os interesses das partes entre si. O despertar da consciência de cidadania além de levar à exigência de status civitas por parte do indivíduo, conduz à descoberta do compromisso de colaboração para que todos possam alcançar tal status. (SILVA NETO, 2006, p. 118).

Nessa perspectiva, o exercício da cidadania horizontal está indissociavelmente atrelado à tessitura da justiça social. Isso porque, ao reconhecermos a legitimidade da alteridade e associarmos a ela práticas sociais de solidariedade como meio de tessitura de uma sociedade mais igualitária, contribuímos para a redução das desigualdades que caracterizam nossa sociedade. Por outro lado, entre os modos mais significativos de prática social solidária estão a ajuda a quem necessita dela e a ação coletiva na solução de problemas comuns. Muitos movimentos sociais se constroem e atuam com base em uma dessas duas perspectivas que podem ser consideradas complementares, pois no primeiro caso, quando há desigualdade, aqueles que podem ajudam os que necessitam e no segundo, todos atuam em prol do bem comum. Cabe ressaltar que essa ajuda dispensada por quem pode a quem dela precisa diferencia-se da caridade porque, ao contrário desta, não se caracteriza pela bondade de alguém superior em atenção a um seu inferior. É reconhecimento do direito daquele que precisa a receber ajuda, numa perspectiva de busca de equalização, é uma ajuda politicamente situada, que faz com que a cidadania horizontal seja, em si, uma cidadania de forte conteúdo político na medida em que colabora para a superação das exclusões, das situações de ausência de cidadania. Pressupõe olhar para as injustiças cotidianas e combatê-las, compromete o cidadão com a tessitura da justiça social, única possibilidade de uma sociedade assegurar a todos os seus membros a condição cidadã em sua integralidade. Considerando a cidadania como a condição sem a qual não há democracia, conclui-se que ela é ativa e responsável atividade dos sujeitos que buscam a sociedade em que as leis se preocupam com o império da justiça. [...] o povo de qual emana o poder não é uma massa de indivíduos desarticulados, mas a coletividade da cidadania que supõe engajamento social e político. (SILVA NETO, 2006, p. 120).

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Assim, o desenvolvimento cotidiano de práticas participativas e solidárias em todos os espaçostempos em que atuamos, inclusive nas escolas e na academia, bem como a busca de ampliação de sua institucionalidade, assumem importância capital na tessitura da emancipação social. Os estudos dos currículos criados cotidianamente, nos quais essa perspectiva esteja presente, pela importância que possuem na formação daqueles que deles participam, aparecem, portanto, como fundamentais. Assim, a tessitura de formas “marginais” de escrever as pesquisas desinvisibilizando as artes de fazer esses currículos pensadospraticados torna-se necessária como meio de combate às formas de expressão escolares, linguísticas e acadêmicas da dominação e da desigualdade sociais no sentido de sua transformação democratizante. Considerar a pluralidade, heterogeneidade e impossível aprisionamento desses currículos e dos modos de narrá-los por escrito em modelos do que deveriam ser as práticas emancipatórias também. Deste modo, reconhecer e valorizar os estudos desses múltiplos currículos pensadospraticados e das práticas de solidariedade que os habitam, permite, também, caminhar no sentido da superação da ideia moderna e individualista de emancipação, que a percebe como uma conquista individual e definitiva, um “lugar” a se chegar, no futuro, uma “terra prometida” à qual cada um chegará, ou não, em função de suas próprias virtudes, aprendizagens e esforços (OLIVEIRA, 2012). Desloca a noção de emancipação dos sujeitos para a sociedade, responsabilizando-os individual e coletivamente pela tessitura cotidiana e permanente de relações sociais igualitárias e solidárias, de reconhecimento mútuo. Ao contribuir para a tessitura desta emancipação fundada na responsabilidade de cada um com todos, no respeito às diferentes contribuições e necessidades e na igualdade de direitos dos diferentes sujeitos, pratica-se, também, justiça cognitiva, pois cada conhecimento aparece como contribuição possível ao processo social, sem ser discriminado nem desconsiderado a priori. A validade deles será definida em função da sua possível contribuição à solução de problemas coletivos na interação com outros, numa perspectiva de complementaridade e interdependência, e não com base em nenhuma hierarquia essencialista que atribui a determinados conhecimento uma superioridade universal sobre outros. Com isso, instala-se uma relação mais igualitária entre os sujeitos desses diferentes conhecimentos, característica da justiça social. Diz Boaventura de Sousa Santos (2010): A injustiça social global está intimamente ligada à injustiça cognitiva global. Daí que A luta pela justiça social global deve ser também uma luta pela justiça cognitiva global. (p.40). Práticas que busquem a justiça cognitiva pela construção de uma ecologia entre saberes são desenvolvidas nas escolas e se fazem presentes nas narrativas que a respeito delas produzimos, muitas vezes, permitem trazê-las ao centro das discussões, desinvisibilizando-as como meio de contribuir para a ruptura com as hierarquias já referidas e com as relações de poder nelas baseadas. Sendo sempre processual e dependente do modo como, em cada momento, os desafios da solidariedade e do reconhecimento mútuo são enfrentados, ou de que forma os diferentes conhecimentos dialogam nas múltiplas narrativas que produzimos a respeito das situações cotidianas, essa perspectiva de emancipação coloca-nos diante de uma necessária investigação dos processos cotidianos de tessitura de relações sociais, de redes de conhecimentos e valores,

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incluindo-se aí a questão que envolve os modos de escrever os conhecimentos. E é isso que vimos fazendo em parceria com os mestrandos e doutorandos que pesquisam com os cotidianos a criação de currículos com potencial emancipatório, que contribuem com a tessitura da emancipação social e que buscamos escrever de modo a não suprimir a riqueza destes processos. Reafirmando escritas negadas, reaprendendo a ler os cotidianos Uma dissertação cuja primeira parte é um romance (TKOTZ, 2006), entendido pela autora como a melhor forma de narrar os conflitos vivenciados ao longo dos processos de mudança institucional ocorridos na escola na qual trabalhava e que era seu objeto de estudo foi talvez nossa primeira grande ousadia. A complexidade daqueles processos, os embates políticos e epistemológicos que o habitaram, as dificuldades vivenciadas exigiam uma narrativa não formal. Era preciso recorrer a modos não científicos de escrever, de modo a recuperar o humano presente naquele processo, para além do institucional, do pedagógico, e mesmo do político. Eram tantos sentimentos e sensações que o modo científico de escrever não captaria, muitas redes de saberes e de poderes a considerar, que só o romance parecia apropriado. As relações entre os conhecimentos dos autores consagrados – cujas obras escritas foram consultadas – também não deveriam aparecer como superiores a esses tantos conhecimentos dos sujeitos da escola, não escritos, ou ainda não escritos. Assim, na mesma dissertação, a presença dos autores e a dos interlocutores da escola se faz do mesmo modo, sem hierarquias, numa clara prática de justiça cognitiva pensadapraticada por meio da escrita, também daqueles que não escreveram antes, pois suas palavras agora escrita, estão lá. Depois outras vieram. Sempre buscando subverter os limites cientificistas e o que eles representam de negação dos conhecimentos dos sujeitos da escola e de seus modos de dizêlos, buscam uma escrita que contribua para a justiça cognitiva desinvisibilizando as redes de conhecimentos presentes nas escolas, horizontalizando as relações entre eles e seus sujeitos numa perspectiva de solidariedade cidadã e cognitiva. Artigos e dissertações passaram a ser produzidos de modos múltiplos, trazendo conhecimentos, modos diversos de torná-los presentes reconhecendo-lhes o valor, enredandoos uns aos outros e àqueles cuja validade não está em jogo. Buscando escrever de modo a assegurar a compreensão da horizontalidade que reconhecemos na relação entre os sujeitos de nossas pesquisas – sejam eles professores doutores das Universidades, autores consagrados ou professores e alunos das nossas escolas – muitos dos trabalhos que vêm sendo produzidos por nossas pesquisas nosdoscom os cotidianos das escolas expressam, em suas próprias estruturas, a subversão de valores que preconizam. A escola de samba “Escolas de dificílimo acesso” pede passagem O sumário da dissertação de Patrícia Baroni expressa, inequivocamente, a abordagem do trabalho, associando-o às alas, momentos e quesitos de um desfile de escolas de samba.

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O DESFILE ........................................................................................................12 1 ENREDO ........................................................................................................21 2 EVOLUÇÃO ..................................................................................................36 3 COMPOSIÇÃO DO SAMBA ........................................................................46 4 CONCENTRAÇÃO .......................................................................................50 4.1 Abre-alas: Escola Municipal Presidente Costa e Silva ................................50 4.2 Porta-bandeira: Escola Municipal Brasil-Itália ...........................................55 4.3 Mestre-sala: Escola Municipal Santo Izidro ................................................60 4.4 Destaque de chão: Escola Municipal Bairro Tabuleiro ...............................64 4.5 Alegoria: a visita do prefeito .......................................................................70 4.6 Ala coreografada: Escola Municipal Sargento João Délio dos Santos ........ 83 4.7 Passistas: Escola Municipal Coração de Jesus ............................................87 4.8 Bateria: Escola Municipal Santa Rita ..........................................................91 4.9 Ala das baianas: Escola Municipal Leny Fernandes do Nascimento ...........98 4.10 Ala das crianças: Escola Municipal Professor Raul de Oliveira ..............100 4.11 Ala da comunidade: Escola Municipal Barão do Amapá .........................103 4.12 Velha guarda : Escola Municipal Presidente Vargas................................106 5 CONJUNTO .................................................................................................111 REFERÊNCIAS ...............................................................................................115 (BARONI, 2010, Sumário)

Ela esclarece os motivos da escolha confessando-se apaixonada pelas escolas de samba, as pequenas, desde menina. Associa as invisibilidades delas e dos sujeitos que as compõem, criam e habitam, às das escolas municipais de dificílimo acesso que pesquisou. Patrícia oferece uma belíssima e potente metáfora das escolas ao falar dos desfiles e dos sujeitos que os habitam. Gente que vem de longe, carrega fantasias pesadas, se arruma com todo cuidado e desfila com um sorriso nos lábios para oferecer à escola de samba o melhor de si. Gente que muitas vezes, no interior de comunidades carentes, passa a noite inteira costurando roupas para ritmistas e esplendores para baianas. Gente que passa pela avenida com as mais diversas trajetórias, que compõem, com a invisibilidade de suas histórias de vida, uma harmonia perfeita. Aliás, com exceção dos quesitos “mestre-sala e porta-bandeira” e “bateria”, os quesitos que avaliam a apresentação de cada agremiação tratam de aspectos mais gerais dos desfiles: evolução, harmonia, enredo, conjunto... No entanto, é exatamente o empenho de cada componente com as dificuldades no deslocamento até a Avenida, com as preocupações nos ajustes das fantasias, com o dia seguinte que para muitos será dia de trabalho, enfim, com tudo aquilo que não é visto, que trazem tanto brilho às agremiações. Apesar do relato acima, a presente pesquisa não trata de desfiles de escolas de samba. Pretendo com este relato, entretanto, chamar a atenção para as muitas invisibilidades presentes numa dinâmica de harmonia. Assim como nos desfiles, cotidianamente, incontáveis práticas produzidas como inexistentes (SANTOS, 2010) compõem o enredo daquilo que é visível, aceito, discutido em outros espaçostempos.

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Nos espaços educacionais não é diferente. A lógica das práticas (CERTEAU, 1994) é tecida por muitos praticantes com suas trajetórias de vida, soluções coletivas, dinâmicas emancipatórias, entre outros. Tessituras cotidianas que asseguram o funcionamento daqueles espaços. Pensando em uma rede de escolas públicas, é possível afirmar que cada uma das unidades dispõe de uma história própria, de praticantes singulares, de táticas únicas, cabíveis exclusivamente naqueles espaços. Porém, em uma rede de escolas, mesmo com os caminhos e histórias particulares de cada uma delas, há unidades visíveis, seja pela proximidade da área mais urbanizada, seja pelo tamanho de suas estruturas, seja pelos muitos problemas levados às secretarias de educação ou a outros órgãos de gestão das redes. Há também unidades invisibilizadas, distantes de áreas centrais, com pequenas estruturas, cujos problemas cotidianos, muitas vezes são resolvidos no seu interior, e que, assim como os desfiles das escolas de samba no subúrbio carioca, “desfilam” para uma pequena platéia, em geral formada pelos próprios componentes ou os de outras escolas também invisibilizadas (BARONI, 2010, p. 1)

Trabalho fascinante de busca de desinvisibilização dos conhecimentos produzidos nessas escolas, por essas gentes invisíveis atuando em espaços também invisíveis, Patrícia entendeu que escrever sobre essas escolas e as tantas invisibilizações que a vitimam, exigia associá-las aos seus membros, às “gentes humildes” que as frequentam e a tudo que lhes é negado. Evidentemente nada disso poderia ser feito por meio de uma narrativa “científica” e ela optou por trazer as vidas bonitas (Victorio Filho, 2006) que essas pessoas e grupos sociais são capazes de produzir, dentro e fora das escolas, esses sujeitos de conhecimentos e direitos negados a partir de suas próprias experiências de encantamento com o mundo desses conhecimentos, o das pequenas escolas de samba. Era preciso criar uma alternativa mais adequada ao público pesquisado, aos conhecimentos que possuem e criam, ao mundo que habitam. Fazendo de cada escola uma ala de um desfile fictício, respeitando-lhe os conhecimentos e modos de fazersaber, Patrícia pretendeu, e conseguiu, mostrar, como anunciava Certeau (1994, p.45) que: No espaço tecnocraticamente construído, escrito e funcionalizado onde circulam, as suas trajetórias (dessas escolas e de seus sujeitos) formam frases imprevisíveis, “trilhas” em parte ilegíveis. Embora sejam compostas com os vocábulos de línguas recebidas e continuem submissas a sintaxes prescritas, elas desenham as astúcias de interesses outros e desejos que não são nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem.

E fez isso buscando “alguns modos de compreensão das redes de saberesfazeres e dos valores próprios das realidades pesquisadas nos diversos espaçostempos de prática social com a finalidade de elencar alternativas sociais emancipatórias” (BARONI, 2011, p.1) neles presentes. Ações e reflexões que favorecem a tessitura de redes de conhecimentos em que a horizontalidade se faz presente, em que o diálogo igualitário supera as hierarquias instituídas

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significam práticas de caráter emancipatório. Sua desinvisibilização se impõe como modo de promoção da justiça cognitiva, e a solidariedade presente nessas tessituras coletivas de redes de múltiplos conhecimentos evidencia a presença de uma cidadania horizontal praticada nesses espaçostempos. Aderindo ao trecho de Certeau que esclarece a opção metodológica da apresentação da dissertação, Patrícia se serve dos “vocábulos de línguas recebidas” para, subvertendo os usos que deles se pode fazer, produzir a expressão de “interesses outros e desejos que não são captados pelos sistemas onde se desenvolvem”. Abeje Dayo: um ensaio teatral com os cotidianos da escola O trabalho de Fábio é, de certo modo, ainda mais ousado, pois a explicação da escolha por narrar em uma peça de teatro os conhecimentos com os quais conviveu e que teceu em sua pesquisa e dissertação não é tão clara. Já na escolha dos autores para dialogar Fábio subverte os desígnios da ciência moderna e dos seus modos reconhecidos de expressar conhecimentos ao buscar apoio em Augusto Boal e em seu Teatro do Oprimido. Fábio (PEREIRA, 2011) inicia a dissertação explicando-nos que: O transcorrido versa, por sua vez, sobre as experiências com o uso das linguagens artísticas como fundamento da busca por uma epistemologia democrática, capaz contrapor-se às autoritárias relações de ensino/ aprendizagem, dominantes no âmbito da escola pública estadual (PEREIRA, 2011, p. 1).

Depois continua, esclarecendo os motivos que o levaram a optar pelo ensaio, na forma de uma peça teatral, para apresentar sua pesquisa e aquilo que com ela aprendeu. Para preservar a relação do tema da pesquisa com a dissertação, escolhi a forma do ensaio. Leandro Konder nos lembra que “em seu uso cotidiano, a palavra ensaio significa prova ou teste, momento final da preparação de um espetáculo ou da encenação de uma peça. Ensaio é tentativa, é experiência” (KONDER, 2005, p.42). (...) decidi levar adiante a escolha de fazer da escrita da dissertação mais uma etapa do processo de investigação e experimentação realizado. Elenco as três razões que me conduziram a essa escolha. A primeira, no âmbito da consciência, decorre de um sentimento de dever e de gratidão aos meus alunos. Sem jamais obrigá-los, estimulei-os insistentemente, ao longo do processo de pesquisa, para que experimentassem as linguagens artísticas como forma de expressão e construção do conhecimento. Portanto, concluí que nada seria mais justo que me submeter também à semelhante desafio e experiência (PEREIRA, 2011, p. 2).

A terceira razão, que Fábio explica ser de ordem científica – seja lá o que isso significava, para ele, naquele momento – é expressa com o apoio em fragmentos de textos de

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Valter Filé (2010) e, novamente, de Leandro Konder (2005), nos esclarecimentos que faz a respeito dos ensaios e dos ensaístas. No mundo dos ensaístas há sempre alguns que lembram aos outros que o terreno que lhes cabe explorar não é o da poesia nem o do romance. Não é o da ficção nem o do primado da imaginação criadora. De fato, o ensaio assimila algo da liberdade de expressão aprendida na arte, porém não é, a rigor, um gênero artístico. Por mais apreço que o ensaísta mostre pelas artes, por mais impressionantes que sejam seus talentos artísticos, seu programa é de natureza científica. (KONDER, 2005, p. 44 apud PEREIRA, 2011, p. 2)

Juntando-se, em seu texto, às preocupações que Fábio expressa com o respeito aos seus alunos sujeitos de sua pesquisa, Filé (2010) esclarece, em texto produzido e publicado em livro a respeito das narrativas entendidas como outros modos de dizer outros conhecimentos (OLIVEIRA, 2010), que: A invenção de um modelo de pesquisa, de escritura, de comunicação corre paralela com as invenções de praticantes que o pesquisador (a) anda atrás e que é tema de sua pesquisa. Ou melhor, são indissociáveis, creio eu. (...) Nesse sentido, os relatos, as narrativas, as artes de dizer têm sido importantíssimos para mediar nossas relações de estudo e de pesquisa. Se as narrativas envolvem as relações dos sujeitos da pesquisa, sua escrita, a criação do discurso dos acontecimentos da empreitada, não deve ser mera formalidade. Deve ser parte da problematização. (FILÉ, 2010, p.126)

Fábio ainda reafirma a relação que percebe entre a escolha que fez e o campo das pesquisas com os cotidianos, no qual se situa e à sua pesquisa. Confessando-se um adepto convicto e encantado por esses estudos, reconhece seus modos não-dogmáticos de compromisso com a “ciência”, notadamente no âmbito do Proped, onde diz ter encontrado, “combustível para potencializar a pouca ousadia de que dispunha e providenciar o ânimo necessário” (p. 1). Sem ter tido o prazer de orientá-la, a dissertação, hoje já publicada em livro, de Rafael Marques Gonçalves (GONÇALVES, 2013), foi um colírio para meus olhos cansados de cientificismo, de escritas sem sabor. Convidada a prefaciar a obra, escrevi: Ao ousar apresentar seu trabalho reinventando o espaço do papel em branco metafórico sobre o qual trabalhava ao digitar suas ideias, resultados de pesquisa, leituras e interlocuções diversas, Rafael não inovou somente sua escrita. Ele teceu um trabalho que fala para além do conteúdo das palavras, porque fala pela forma, fala de diálogos ao se apresentar dialogicamente, de descanonização do já sabido ao equiparar autores de referência e professores atuando nas escolas e seus alunos, fala, ainda, por meio de imagens, que não precisam de legendas ou explicações, porque são narrativas de pesquisa,

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como aprendemos com Manguel (2001), que nos alerta para o fato de que imagens remetem a narrativas e vice-versa, permanentemente. É assim que, nessa dissertação sobre “Práticas cotidianas na educação integral: alternativas e potencialidades emancipatórias”, Rafael produz no leitor, com sua ousadia, um encantamento quase físico, derivado do contato visual com o texto. Um encantamento que, segundo o Manoel de Barros citado logo na epígrafe, atesta a importância daquilo diante do que estamos, a dissertação de Rafael. Encantamento que não se desfaz ao longo da leitura das quase 150 páginas do texto, pela forma sim, como já afirmei, e também pelo conteúdo, pela postura que assume perante os desafios da escola e da academia, pela consistência com que foi realizado e que emana do texto (OLIVEIRA, 2013, p. 9-10).

Considerações Finais Esse brevíssimo inventário de expressões ousadas e encantadoras de pesquisas com os cotidianos das escolas, de escritas desafiadoras do status quo de um poder escriturístico que valoriza apenas a palavra “cinzenta”, pretende demonstrar, como já dissemos anteriormente (OLIVEIRA; GERALDI, 2010) 6, que: O trabalho com essas formas narrativas – e aqui incluo as imagens – contribui para a preservação da amplitude e complexidade do meio social e de sua história, uma vez que as diferentes formas de “contar” o mundo (ALVES, 2001) expressam coisas, fatos, sentimentos, etc... que a maioria dos textos em linguagem científica não consegue. O que potencializa a contribuição dessas narrativas – musicais, imagéticas, românticas, contistas, etc... – são as múltiplas realidades constitutivas da sociedade em que vivemos que elas expressam, possibilidades de subversão daquilo que a modernidade nos ensinou. Precisamos de narrativas que contribuam para a compreensão ampliada do que é e do que pode ser a realidade social na qual estamos vivendo, escamoteada e tornada invisível “a olho nu” pelas normas e regulamentos da cientificidade moderna, da hierarquia que esta estabelece entre teoria e prática e dos textos produzidos segundo estes ditames (OLIVEIRA; GERALDI, 2010, p. 23)

Fazendo emergir realidades epistemológicas e expressivas diferenciadas a partir do estudo “dos universos caóticos” encontrados nas práticas sociais, nas situações da vida cotidiana, nas narrativas românticas, imagéticas, musicais, etc..., dos quais emergem

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Muito daquilo que está nestas considerações já foi escrito e publicado no livro “Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de expressão”, publicado em 2010. A pertinência e propriedade da reutilização daquele texto o traz para este.

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realidades “auto-organizadas” 7 (PRIGOGINE, 1996), tecidas a partir das possibilidades de intervenção dos sujeitos sobre as prescrições normativas e sobre o mundo social concreto, apostar nessas outras escritas permite-nos contribuir para a revalorização das vozes/conhecimentos/práticas sociais daquelas populações historicamente excluídas enquanto sujeitos de culturas e de saberes, ampliando as possibilidades sociais de superação das monoculturas que caracterizam a sociedade contemporânea em benefício de relações mais ecológicas entre os diferentes conhecimentos, culturas e formas de expressão (SANTOS, 2004; 2010). Trazer para a produção/expressão científica formas mais ricas e encarnadas de divulgação é um modo de contribuir tanto com a ampliação do campo de possibilidades expressivas dos conhecimentos quanto com os próprios processos de sua produção e de reconhecimento de sua pluralidade e das possibilidades humanas de estar no mundo e expressar isso. Estou defendendo aqui a ideia de que, embora invisibilizados, discursos e práticas de conhecimento e escriturísticos não conformes aos ditames do cientificismo moderno são produzidos e apresentados em diferentes espaçostempos acadêmicos, mesmo que marginalmente e sem o reconhecimento que lhes seria devido, ou sem a identificação que assumimos neste livro. Isso porque, apesar de toda normatização que cerca a produção científica, vozes dissonantes sempre se fizeram presentes, em autores/pesquisadores que a utilizaram e utilizam de modo próprio, ‘fabricando’ outros conhecimentos e discursos a partir de usos diferenciados das normas que, supostamente, seguiam/seguem, consumiam/consomem (CERTEAU, 1994).

Utilizar de modo não autorizado as regras do jogo acadêmico, produzindo lances não previstos, embora não explicitamente interditados, expressando conhecimentos por meio de escritas não científicas é um meio de transpor a barreira da dogmatização das normas e da sua legitimação apriorística, é aceitar o desafio de uma efetiva produção de conhecimentos e de prática científica crítica, suspeitando do já sabido e buscando desaprendê-lo para dele fazer emergirem outras possibilidades incabíveis na formatação anterior, e, quem sabe, mais apropriadas àquilo que desejamos pensar, conhecer, tecer, e porque não, contar.

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Uma definição simples, porém precisa, da auto-organização encontra-se disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Auto-organiza%C3%A7%C3%A3o. “A auto-organização é a propriedade de alguns sistemas físicos com muitos constituintes, de exibirem comportamentos que não são facilmente previsíveis tendo conhecimento apenas das interações entre os constituintes desse sistema. Podemos dizer então que a auto-organização é a capacidade apresentada por alguns sistemas de criar padrões de comportamentos não previsiveis, descentralizados. Em alguns casos de crescente adaptalidade. Os sistemas auto-organizativos são caracterizados por apresentar descentralidade na organização dos padrões de comportamento que são formados pelas interações locais de seus constituintes.”

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Referências ALVES, N. Sobre movimentos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos das escolas. In: OLIVEIRA, I.B.; ALVES, N. (Orgs.). Pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas: sobre redes de saberes. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2008. BARONI, P. R. Um desfile de invisibilidades: táticas de praticantes nas escolas de dificílimo acesso. Dissertação de mestrado. PROPEd, Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. CERTEAU, M. A Invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. FILÉ, V. Tentativas e tentações: batidas no território da linguagem. In: OLIVEIRA, I. B. (Org.). Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de expressão. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2010, p. 123-134. FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2009. GONÇALVES, R. M. Práticas cotidianas na/da educação integral. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2013. NUNES, R. S. Boaventura de Sousa Santos, o tempo, o modo. In: OLIVEIRA, I. B. (Org.). Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de expressão. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2010, p. 71 – 78. OLIVEIRA, I. B. (Org.). Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de expressão. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2010. OLIVEIRA, I. B. O Currículo como criação cotidiana. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2012. OLIVEIRA, I. B. Prefácio. In: GONÇALVES, R. M. Práticas cotidianas na/da educação integral. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2013, p. 9 – 13. OLIVEIRA, I. B.; GERALDI, W. Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de expressão. In: OLIVEIRA, I. B. (Org.) Narrativas: outros conhecimentos, outras formas de expressão. Petrópolis, RJ: DP et Alii, 2010, p. 13 – 28. PEREIRA. F. B. Abeje Dayo: um ensaio epistemológico-político sobre a democracia na escola pública estadual. Dissertação de mestrado. PROPEd, Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011.

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PRIGOGINE, I. O Fim das Certezas - tempo, caos e as leis da natureza (com Isabelle Stengers). São Paulo: UNESP, 1996. SANTOS, B. S. Por uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. In: SANTOS, B. S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p. 777-823. SANTOS, B. S.. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83. SILVA NETO, J. L. Cidadania vertical e horizontal: ensaio para um conceito. Sociedade e direito em revista. n. 1, vol 1, 2006, p. 105 – 121. TKOTZ, S. B. De Canarinhos a Bom Jesus: tecendo histórias em conversas. Dissertação de mestrado. PROPEd, Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006. VICTORIO FILHO, A. A Arte na/da Educação: a invenção cotidiana da escola. Tese de Doutorado. PROPEd, Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005.

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DAR A LER AS PESQUISAS SOBRE CURRÍCULO COM OS COTIDIANOS DAS ESCOLAS Carlos Eduardo Ferraço 1 Introdução No texto "Dar a ler... talvez", Jorge Larrosa (2004, p.15) pondera sobre a necessidade de darmos as palavras que recebemos. Assim, a partir do autor, temos que para que as palavras durem dizendo cada vez mais coisas distintas, para que uma eternidade sem consolo abra o intervalo entre cada um de seus passos, para que o devir do que é o mesmo seja, em sua volta ao começo, de uma riqueza infinita, para que o porvir seja lido como o que nunca foi escrito... há que se dar as palavras que recebemos. Partindo, então, em um primeiro momento, dessa ideia, pensamos que "dar a ler nas pesquisas sobre currículo com os cotidianos das escolas" implica dar aquilo que não nos pertence, ou nos pertence em nossas singularidades. Implica passar adiante algo que, certo modo, recebemos e que temos que dar continuidade, como em uma rede cujos fios vão sendo tecidos pelos diferentes sujeitos praticantes dos currículos nos cotidianos das escolas. Assim como há que se dar os sentidos das palavras que produzimos em nossas leituras, também há que se dar os sentidos de currículo que são produzidos nas escolas pelos praticantes cotidianos, não para que os mesmos sejam fixados e/ou tomados como verdade mas, para que, ao darmos-partilharmos esses diferentes sentidos, possamos inventar outros tantos sentidos para os mesmos. Ou seja, nosso interesse em dar a ler-partilhar os múltiplos sentidos de currículo tecidos em redes nos cotidianos das escolas vai na direção contrária dos discursos que insistem em fixar, sobretudo em documentos escritos, sentidos últimos para o currículo e, com isso, estabelecem princípios e objetivos a priori para os mesmos. É Larrosa (2004, p.16), mais uma vez, quem nos ajuda a pensar quando nos dá a ler que: O que acontece é que 'dar a ler' é uma expressão demasiado legível. Quando lemos 'dar a ler', em seguida cremos ter entendido porque já sabemos de antemão o que significa 'ler' e o que significa 'dar'. Como fazer para que a leitura vá além dessa compreensão problemática, demasiado tranquila, na qual só lemos o que sabemos ler? Com um fazer que tenha a forma de uma interrupção: se não interrompemos, na mesma língua, o uso normal da língua, somente entendemos o que já se adapta a nossos esquemas prévios de compreensão. Interromper o que já sabemos ler, quer dizer, dar a ler a expressão 'dar a ler' como se ainda não soubéssemos lê-la. Por isso dar a ler exige devolver às palavras essa ilegibilidade que lhes é própria e que perderam, ao se inserirem demasiado comodamente em nosso sentido comum. Para dar a ler é preciso esse gesto às vezes violento de 1

Pós-Doutorado em Educação; UFES; Vitória, ES. E-mail: [email protected]

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problematizar o evidente, de converter em desconhecido o demasiado conhecido, de devolver certa obscuridade ao que parece claro, de abrir uma certa ilegibilidade no que é demasiado legível.

Assim, diferentemente de se pensar o texto governamental anterior (ou qualquer outro texto, inclusive o que está sendo escrito) como referência de um dado modo pré-estabelecidocoerente de currículo, importa entender essas escritas como (com)posições de palavras, que vão dando sentido aos textos que, ao serem lidos, produzem outros-novos textos que, mesmo que tentemos controlar por momentos seu entendimento a partir de nossas explicações, não guardam necessariamente nenhuma relação de causa-efeito com o texto anterior. Importa, então, (en)volver suas palavras em mares revoltos, em oceanos turbulentos, navegados por embarcações piratas que fazem, todo o tempo, contrabando de sentidos, nos destituindo da posse que imaginamos ter sobre elas, as palavras. Nessas piratarias sempre acontecerão traduções, negociações, hibridizações, deslocamentos de sentidos. Não há, em todos esses casos, nenhuma possibilidade de (com)preender, nem de descrever. Não há nenhum sentido único a ser preservado. Em todas essas situações de “dar a ler” textos curriculares, sejam eles escritos ou não, o que há são traições, roubos, que nos forçam a ir além do pensamento ortopédico, que nos lançam para fora de nossa zona de conforto interpretativo. Dar a ler, problematizar os clichês Temos que pôr picardia no idioma para que não morra de clichês... Nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam seus delírios aos homens. Há que se encontrar pala primeira vez uma frase para ser poeta nela . (Manoel de Barros, 1990)

Larrosa (2004) força-nos a pensar sobre a necessidade de dar a ler o que ainda não sabemos ler. Incita-nos a renovar as palavras comuns, escrevê-las como se fosse a primeira vez, destituindo-as de seus sentidos naturalizados e adormecidos, fazendo-as soar de um modo inaudito, dá-las a ler como nunca antes haviam sido lidas. Dar a ler as palavras-textocurrículo de um modo que possamos aguçar nosso paladar de ler que, como nos fala Manoel de Barros, anda com tédio. Tédio que contamina nosso paladar de viver e de pensar. Dar a pensar no currículo o que ainda não ousamos ou não tivemos condições de pensar, pois como nos diz Jankèlèvitch (In: LARROSA, 2004), as palavras que servem de suporte ao pensamento devem ser empregadas em todas as posições possíveis, nas locuções mais variadas; há que fazê-las girar, torcê-las sobre todas suas faces, na esperança de um brilho; apalpar e auscultar sua sonoridade para perceber o segredo de seu sentido.

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Mas, que estamos pensando quando nos referimos a ler? Como pensar em dar a ler os currículos tecidos em redes nos cotidianos das escolas escapando dos modelos de leitura enraizados-formatados em nossos pensamentos e que habita cada palavra-texto? Como furar nossas palavras-clichê, rompendo com aquilo que já se tornou lugar comum em nossas leituras, porque já sabemos, de antemão, o que ler. Dar a ler, nas pesquisas com os cotidianos escolares diz respeito a uma atitude de pensar o que ainda não pensamos, de nos tornar estrangeiro em nossa própria língua, isto é, de interromper o que já “sabemos ler”, para que outras leituras possam ser vividas e passadas adiante. Dar a ler sobre currículo e clichê não tem a ver com interpretar, mas com experienciar, com problematizar, com a invenção de outros mundos-leitura-currículo. Dar a ler sobre currículo e clichê pressupõe problematizar, permanentemente, os múltiplos textos tecidos nas redes de saberesfazeres dos sujeitos praticantes dos cotidianos das escolas com as quais realizamos nossas pesquisas, sobretudo aqueles que afirmam lugares-comuns, buscam consensos, forjam estereótipos, enfim, produzem teoriaspráticas que têm por principal objetivo domesticar, conformar, docilizar, enquadrar, harmonizar a diferença, a complexidade e as condições de indeterminação, abertura e incompletude que se manifestam nas redes discursivas. Quando falamos problematização, vamos ao encontro da noção desenvolvida por Foucault e que, como observa Revel (apud GROS, 2004, p. 67), mostra forte interesse do autor pelos processos de subjetivação e pela redefinição de um modelo ético no quadro que ele nomeia de uma “ontologia crítica da realidade”, definindo seu trabalho como “jornalismo” filosófico ou problematização histórica do presente. Ao tentar, então, entender a noção de problematização na obra de Foucault, Revel (apud GROS, 2004, p.81) conclui que os temas da descontinuidade e da diferença geram no autor um último tipo de análise, que só é tematizado nos últimos anos de sua pesquisa. Como analisa Judith Revel (2004, p 84), a problematização é, portanto, a prática da filosofia que corresponde a uma ontologia da diferença, ou seja, o reconhecimento da descontinuidade como fundamento do ser. Por outro lado, esse esforço de problematização não é, em absoluto, um anti-reformismo ou um pessimismo relativista [...]. Todos os que dizem que para mim a verdade não existe são espíritos simplistas. Descontinuidade, diferença, multitude, problematização definem um novo vocabulário da filosofia como pensamento da verdade, como coragem da verdade.

Dar a ler a coragem da verdade! É interessante perceber como a noção de diferença aparece com força tanto na discussão de Foucault sobre problematização, quanto na de Larrosa sobre dar a ler, o que nos leva a reiterar que dar a ler pressupõe problematizar, ou seja, implica um exercício crítico do pensamento, opondo-se a uma busca metódica do entendimento consensual, a uma solução interpretativa comum a todos. Importa, pelo contrário, fazer valer o afastamento e a diferença de sentidos.

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O uso por nós feito, a partir de Foucault, da noção de problematização e a partir de Larrosa, da noção de dar a ler, defende, então, a necessidade de se tentar superar, na pesquisa com os cotidianos (FERRAÇO, 2003, 2007), toda e qualquer pretensão de classificação, julgamento ou explicação definitiva para as imagensnarrativas produzidas pelos educadores e pelos alunos as quais, a nosso ver, vão se constituindo também como formas de clichês que, sistematicamente, vão sendo fixados nas escolas. De fato, mesmo que saibamos dos limites e implicações de toda e qualquer análise que pretenda atribuir sentidos de valor, julgamentos morais às práticasteóricas dos sujeitos que praticam as escolas, não é possível negar que essas teoriaspráticas produzem efeitos de realidade, regimes de verdade sobre esses mesmos sujeitos e, com isso, vão instituindo modos acordados/engessados de se entender a escola e o que se passa dentro dela. Por isso, a importância de dar a ler outros possíveis do currículo! De fato, com a pesquisa, nossa intenção é tentar instaurar uma distância para que a crítica possa ser feita, assumir os problemas em sua complexidade reconhecendo as descontinuidades e as diferenças para, com isso, fazer mover o pensamento e dar a ler outros possíveis do currículo. Ou seja, como defende o próprio Foucault, reconhecer, a partir de uma ontologia da diferença, a descontinuidade como fundamento do ser. Assim, interessa-nos problematizar, dar a ler as imagensnarrativas que têm como efeito tentar anular a diferença por meio dos clichês que assolam os cotidianos das escolas. Dar a ler, problematizar os currículos-clichê Corazza e Aquino (2012, p.9) nos ajudam a argumentar sobre a importância de não nos submetermos passivamente aos clichês que povoam os discursos curriculares, sob pena de nossas almas perderem a possibilidade de vibrar e, com isso, tornarem-se acomodadas. Nesse sentido, eles perguntam: Você já percebeu que Nossas Almas estão se tornando serenas e benevolentes? Será o peso dos tempos? A essas rolinhas, antes tão aflitas não é dada nenhuma liberdade de escolha?’. Para levar Nossas Almas a vibrarem novamente, como as cordas de uma harpa ressoam as oitavas, numa seivosa insurgência contra a insidiosa inatividade e feiura de suas rugas, fazemo-las laborarem não na Divina (Dante Alighieri), nem na Humana (Honoré de Balzac), tampouco na Intelectual (Paul Valéry), mas na descredenciada Comédia Educacional. Entretanto, ao mesmo tempo em que se coloca a necessidade de fazermos vibrar nossas almas, também nos damos conta de que isso não é tarefa fácil, uma vez que nos obriga a sair dos lugares que nos possibilitam a comodidade do pensamento óbvio, do pensamento ortopédico e a razão indolente que lhe subjaz. Como ensina Santos (2000, p.42), bloqueada pela impotência auto-inflingida e pela displicência, a experiência da razão indolente é uma experiência limitada, tão limitada quanto a experiência do mundo que ela procura fundar. É por isso que a crítica da razão indolente é também uma denúncia do desperdício da experiência.

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Assim, faz-se necessário que possamos buscar alternativas para (des)naturalizar, para (des)normalizar os diferentes modos como as verdades prontas se alojam/se criam nos cotidianos das escolas e que, como falam Corazza e Aquino (2012), tornam nossas almas complacentes e serenas, limitando nossas possibilidades de escolhas. Entretanto, ao mesmo tempo em que se coloca a necessidade de fazermos vibrar nossas almas, também nos damos conta de que isso não é tarefa fácil, uma vez que nos obriga a sair dos lugares que nos possibilitam a comodidade do pensamento óbvio, do pensamento ortopédico e a razão indolente que lhe subjaz. Ideias convencionais, que são escritas e transmitidas bocalmente. Ideias que, pela força, de uma repetição despudorada de seus temas, perderam a origem, não se sabendo quem as inspirou, nem de quem se aprendeu. Ideias, que ninguém pergunta ou ensina a ninguém; e no entanto, enchem nossos ouvidos e se cristalizam, riscando sulcos indeléveis na memória, para impor símbolos, valores, emoções, juízos, álibis, que estratificam, restringem ou generalizam. Ideias simplificadas, transformadas em vulgaridades, truísmos, palavras-chave, fórmulas rígidas, terminologias dogmáticas, que são transmitidas, apropriadas e consagradas como Verdades, por quem pensa pouco ou não pensa absolutamente nada. [...] Incrível catálogo de ideias – tão repetidas que já perderam as brasas, embora não o poder do cozimento. (CORAZZA; AQUINO, 2012, p. 9-13).

No livro “O que é a filosofia?”, Deleuze e Guattari (1992) defendem a filosofia como algo que poderia nos levar a colocar em análise “nossas verdades” e, quem sabe, suspender as certezas e os dogmatismos das opiniões que buscam consensos. Como nos fala Ferraz (2011, p.1), encontramos na obra do filósofo Gilles Deleuze uma das abordagens filosóficas mais vigorosas acerca do tema da imagem, em contraste com o clichê. [...] A rigor, o próprio conceito deleuziano de imagem, expresso nos livros sobre cinema e intimamente ligado à filosofia bergsoniana, é produzido em contraposição ao clichê. Em ‘O que é a filosofia?’ Deleuze aproxima arte, filosofia e ciência, todas elas lutando, cada uma à sua maneira, contra o caos, mas nele buscando e temperando suas armas. Com efeito, uma luta maior une arte, filosofia e ciência, uma luta travada já não contra o caos, mas, deixando passar fulgurações de seus lampejos, contra a opinião, a informação e a comunicação. A análise feita por Deleuze e Guattari (1992) entre, por um lado, o clichê e, por outro, a opinião, a informação e a comunicação, levou-nos a retomar a discussão feita por Larrosa (2004, p. 154-159) para o que ele considerou como sendo a destruição da experiência. Como pondera o autor, a experiência é o que nos passa, ou que nos acontece, ou que nos toca. Não o que passa, o que acontece, ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos acontece ou nos toca. A cada dia passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dirse-ia que tudo o que passa está organizado para que nada nos passe [...]. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.

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Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência [...]. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa o tempo buscando informações, o que mais lhe preocupa é não ter bastante informação, cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas no sentido de estar informado), o que consegue é que nada lhe aconteça [...]. Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara pelo excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que além disso opina. Para nós, a opinião, como a informação, converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogância, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre a qual nos sentimos informados [...]. Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo. Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E, com isso, reduz-se a um estímulo fugaz e instantâneo que é imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. [...] O sujeito moderno é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado é já é incapaz do silêncio. Por isso a velocidade e o que ela acarreta, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência [...]. Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente [...]. Por isso estou especialmente interessado em distinguir entre experiência e trabalho e, além disso, em criticar qualquer contagem de créditos para a experiência, qualquer conversão da experiência em mercadoria, em valor de troca [...]. O sujeito moderno, além de ser um sujeito informado que opina, além de estar permanentemente agitado e em movimento, é um ser que trabalha, quer dizer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo ‘natural’ quanto o mundo ‘social’ e ‘humano’, tanto a ‘natureza externa’ quanto a ‘natureza externa’, segundo seu saber, seu poder e sua vontade. Buscando estabelecer algumas relações entre, de um lado, as discussões de Larrosa (2004) sobre a falta de tempo e os excessos de informação, de opinião e de trabalho como práticas inibidoras da experiência e, por outro, as discussões de Deleuze e Guattari (1992) em termos dos desdobramentos da opinião, da informação, da comunicação na criação e fortalecimento dos clichês, nos damos conta, em um primeiro momento, da possibilidade de se pensar a experiência de dar a ler (LARROSA, 2004), como uma alternativa para se colocar sob suspeita os clichês presentes nos textos curriculares dos sujeitos que praticam os cotidianos das escolas. Mas, que significaria usar a experiência de dar a ler como potência para furar os clichês cotidianos? Seguindo os vestígios deixados por Larrosa (2004, p.161) em seu texto, temos que o sujeito da experiência se define não tanto por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de

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padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pôr-nos), nem a o-posição (nossa maneira de opor-nos), nem a im-posição (nossa maneira de impor-nos), nem a pro-posição (nossa maneira de propor-nos), mas a exposição, nossa maneira de ex-por-nos, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada lhe toca, nada lhe chega, nada lhe afeta, a quem nada lhe ameaça, a quem nada lhe fere. Então, furar os clichês por meio da experiência de dar a ler significaria, antes de tudo, exercitar um dado modo de nos constituir como sujeitos da experiência, que não seria o sujeito da informação, da opinião ou do trabalho, que não seria o sujeito do saber ou do julgar, ou do fazer, ou do poder, ou do querer, um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido pelo seu saber, por seu poder e por sua vontade, mas um sujeito que se transforma, sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido, que perde seus poderes precisamente porque aquilo do qual faz experiência se apodera dele (LARROSA, 2004). Então, minar as violências vividas nos cotidianos das escolas por meio da experiência de dar a ler e, com isso, quem sabe furar os clichês significaria entender, como nos fala Larrosa (2004, p.163-164), que se a experiência é o que nos acontece e o sujeito da experiência é um território de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência valendo-se de uma lógica da ação, valendo-se de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo como agente, valendo-se de uma teoria das condições de possibilidade da ação, mas com base numa lógica da paixão, de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo como sujeito passional. E a palavra paixão pode referir-se a várias coisas. Primeiro, a um sofrimento ou a um padecimento. No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simplesmente passivo. O sujeito passional não é agente, senão paciente, mas há na paixão um assumir padecimentos, como viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar ou assumir o padecer que não tem nada a ver com mera passividade. Como se o sujeito passional fizesse algo com o assumir de sua paixão [...]. Paixão pode referir-se também a certa heteronomia, ou a certa responsabilidade em relação com o outro que, no entanto, não é incompatível com a liberdade ou coma autonomia [...]. A paixão funda, mais bem, uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obrigada inclusive, fundada não nela mesma, mas numa aceitação primeira de algo que está fora de mim, de algo que não sou eu e que por isso justamente é capaz de me apaixonar. E ‘paixão’ pode referir-se, por fim, à experiência do amor, ao amor-paixão ocidental, cortesão, cavalheiro, cristão, pensado como possessão e feito de um desejo e que quere permanecer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é possuído por ele. Por isso o sujeito passional não está em si, no próprio, na possessão de si mesmo, mas está fora de si, dominado pelo outro cativado pelo alheio, alienado, transtornado.

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Entendendo, então, que a experiência de dar a ler pode potencializar sentidos de vida que nos levem a problematizar os clichês que, sistematicamente, vão sendo perpetuados nas escolas por meio dos textos e dos sentidos de currículo inventados pelos alunos e pelos educadores nos cotidianos das escolas faz-se urgente, como sugere Larrosa (2004, p.160), que possamos nos dar tempo de dar a ler para que a experiência possa acontecer, pois, para ele, a experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. Retomando nossa tentativa de aproximação entre as discussões de Larrosa sobre a experiência de dar a ler e a defesa de Deleuze e Guattari de uma atitude filosófica que poderia nos levar a colocar em análise nossas verdades, ambas as discussões assumidas por nós como possibilidades potentes para se lutar contra a força dos clichês na produção das violências cotidianas, voltamos às discussões de Ferraz (2011), quando observa que, ultrapassando a velha dicotomia superfície/profundidade, Nietzsche assinala que o que nos é mais singular e próprio precisa criar superfícies expressivas avessas aos clichês para fazer passar algo das forças e afetos inominados e selvagens que nos atravessam. Tanto para Nietszche quanto para Deleuze, o embate com as forças ameaçadoras do caos e a produção de sentidos são necessários. O problema é que, nessa luta, a opinião constitui um céu de noções, um ‘domo’ de conceitos, ou ainda, como no spleen baudelairiano, uma tampa, que limita e encerra o horizonte do pensável, do que é passível de ser expresso e experimentado [...]. Quando Lawrence descreve o que a poesia faz, afirma que os homens não cessam de fabricar sombrinhas que os abrigam, traçando em seu interior um firmamento (desde o nome mais firme do que qualquer céu) e nele inscrevendo suas convenções e opiniões. O poeta, entretanto, produz um rasgão nessa sombrinha, uma fenda por onde irá passar ‘um pouco do caos livre e ventoso. (FERRAZ, 2011, p.3). Para Larrosa, Nietszche, Deleuze e Guatarri, a luta contra a opinião é importante como forma de potencializar uma atitude poética diante da vida e, com isso, produzir rasgos nas sombrinhas que nos protegem das ameaças da diferença e da complexidade da vida. Quando nossas sombrinhas são rasgadas pela força do vento ou da chuva que insistem na diferença como potência do vivido, nos apressamos a costurá-las na tentativa de nos proteger dessas ameaças. Surgem, porém, a seguir as multidões de imitadores e de comentadores que remendam grosseiramente esses rasgões poéticos, alinhavando-os com opiniões. Deleuze acrescenta: ‘comunicação’. Será sempre necessário que venham outros artistas retomar o gesto violentamente poético, restituindo a seus predecessores ‘a incomunicável novidade que já não se podia ver’. Por isso é que o artista luta menos contra o caos – que ele de alguma maneira convoca e ao qual se alia –, do que contra os clichês.

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Trata-se de uma tarefa a ser sempre recomeçada, relançada, que nunca está de uma vez por todas garantida. Por exemplo, assim como a tela do pintor nunca está em branco, mas já povoada de clichês de que é preciso se desvencilhar, o corpo do bailarino também está atravessado por milhares de hábitos (segundo Bergson, circuitos sensório-motores fixados e nele encravados) que é preciso desestabilizar para poder dançar. A força da arte não pode, portanto, ser nem imitada nem glosada: ou ela é recriada em um novo e violento gesto poético, ou se dilui em pastiche, neutralizando-se seu potencial disruptor. É um dos riscos, uma das ciladas que sempre rondam a criação artística: se tornar pastiche de si mesmo. Esse movimento poético de luta contra a ditadura dos sentidos e das convenções nunca pode estar definitivamente concluído ou assegurado, pois o rasgão apto a produzir ‘uma visão que ilumina um instante, uma sensação, uma vez pasteurizado pela imitação, já não cumpre sua função de propiciar uma brecha no guarda-chuva dos sentidos comuns partilhados [...] Criar contra o clichê, em aliança com as forças imparáveis do caos, é traçar linhas de fuga, caminhar e apenas deixar pequenas pegadas na neve. (FERRAZ, 2011, p. 4). Nossos embates nos cotidianos das escolas contra as opiniões que depõem contra as vidas que lá estão e, com isso, atestam e fortalecem consensos e clichês pressupõem, então, a potência das experiências poéticas de dar a ler (LARROSA, 2004) que se constituem no exercício da diferença nas redes tecidas nesses cotidianos. Ou seja, problematizar nossas “verdades”, que produzem efeitos de realidade e que se constituem em formas de pensamento cloroformizado, implica assumir uma atitude ético-estético-poética diante das falas e dos gestos que revigoram definições clichetizadas. Como nos fala Corazza e Aquino (2012, p.1011), facilitários que, por nossa comodidade, preconceito, medo do insólito, superstição ou ignorância, têm os seus sentidos e poder diferenciador esbatidos, são recebidos e repassados (como moeda de mercado), estabelecendo-se, facilmente, enquanto preceitos científicos, artísticos, filosóficos, psicológicos, pedagógicos que armam e fingem conhecimentos, resistem às tentativas de refutação, apoiam-se em fatos favoráveis, estão na origem de aplicações ou de situações que funcionam, e assim por diante. Referências BLANCHOT, M. El paso (no) más allá. Barcelona: Paidós, 1994. CORAZZA, S. M.; AQUINO, J. G. (Org.). Dicionário das ideias feitas em educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: ed. 34, 1992. FERRAÇO, C. E. Pesquisa com o cotidiano. Educação & Sociedade: Revista de Ciência da Educação, Centro de Estudos Educação e Sociedade, Campinas, v. 28, n. 98. p. 73-95, jan./abr. 2007.

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_____. Eu, caçador de mim. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 157-175. FERRAZ, M. C. F. Imagem e clichê: reflexões intempestivas. Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2010. GROS, F. (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. JANKÈLÈVITCH, V. Quelque part dans l'inachevé. Paris: Gallimard, 1978. LARROSA, J. Dar a ler... talvez. In: LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte; Autêntica, 2004. REVEL, J. O pensamento vertical: uma ética da problematização. In: GROS, F. (Org.). Foucault: a coragem da verdade. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. SANTOS, B. S. S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

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DAR A FALAR: REDES DE CONVERSAÇÕES NAS PESQUISAS EM CURRÍCULOS COM OS COTIDIANOS DAS ESCOLAS Janete Magalhães Carvalho 1 Era uma vez... Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas. As palavras continuam com os seus deslimites.

Manoel de Barros, 2001a Entendendo como currículo tudo aquilo que é vivido, sentido, praticado no âmbito escolar, e para além dele, e que está colocado na forma de documentos escritos, conversações, sentimentos e ações vividas/praticadas nos múltiplos contextos que envolvem a escola e seus sujeitos, iniciamos este texto questionando se, nesses espaços-tempos, costuma-se falar sobre ou com os alunos e professores (CARVALHO, 2012): Estaria o currículo dando a falar aos professores e aos alunos que praticam o cotidiano escolar? Seria a organização escolar capaz de ouvir a voz das crianças, dos adolescentes e dos professores que, concretamente e cotidianamente, nela habitam? Seria possível “dar voz” a alguém? Provavelmente qualquer integrante da organização escolar, ao ser questionado, argumentaria sobre a importância de o currículo estar voltado com e para os alunos e com e para os professores, o que não significa, necessariamente, que os alunos e professores sejam ouvidos e suas vozes consideradas. Nas práticas cotidianas curriculares, tende-se a não ouvir a voz das crianças e dos adolescentes, desconsiderando a sua palavra. Do mesmo modo, desconsiderando a voz e a intensidade da vivência dos professores e a importância tanto de os professores falarem com os alunos e não sobre eles, assim como de os professores não serem tratados como infantes a quem é negado o direito de fala e/ou de terem suas falas definidas “de fora” por outrem (CARVALHO, 2012). Como, então, supor a relação política entre professores e alunos e, destes com contextos mais amplos, como uma relação entre iguais? Se política é ação de quem possui a palavra, como considerar política uma ação que emudece os alunos e professores e coloca modelos discursivos de palavra na boca de alunos e professores?

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Doutora em Educação; professora associada IV do Departamento de Educação, Política e Sociedade (DEPS) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE-UFES), atuando na linha de pesquisa “Cultura, currículo e formação de educadores”; coordenadora e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Currículos, Culturas e Cotidianos (NUPEC).

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Necessário é, portanto, permitir que os praticantes do currículo tomem a palavra, mais do que dar a palavra. Desse modo, em nossas pesquisas procuramos abordar a produção do currículo escolar como busca da formação de zonas de comunidade entre os que o vivenciam, por meio da constituição de redes de conversações e ações que criam novas formas de comunidade e que, nesse sentido, podem potencializar o cotidiano escolar produzindo “bons encontros” (ESPINOSA, 1988, 2007). Assumindo a ideia de "potência de ação coletiva" (HARDT; NEGRI, 2006), tomamos como hipótese principal que essa "potência" depende fundamentalmente da capacidade de indivíduos e grupos colocarem-se em relação para produzirem e trocarem conhecimentos, agenciando, então, formas-forças comunitárias, com vistas a melhorar os processos de aprendizagem e criação nas coletividades locais, bem como no interior de redes cooperativas de todo tipo (CARVALHO, 2009). Desse modo, ao focarmos as práticas discursivas no cotidiano escolar, entendemos que elas estão inseridas em todo um esforço coletivo, envolvendo a participação de múltiplos agentes sociais que, direta ou indiretamente, contribuem para a melhoria das condições de vida de indivíduos e populações. Compreendemos, assim, também, que a dimensão política se efetiva pelos fluxos de conhecimentos, linguagens e afetos, enfim, em redes de trabalho informativo, linguístico e afetivo que ocorrem buscando a emergência de outra concepção de público, de coletivo e de currículo. Mesmo focando nosso trabalho no cotidiano escolar e nos currículos praticados (OLIVEIRA, 2003), ressaltamos que ele deve ser visualizado como um elemento integrado a todas as redes mais amplas de trabalho social que, de uma forma ou de outra, se enredam com os processos de produção de subjetividades na sociedade. Nesse sentido, trabalhamos com a perspectiva de produção de redes de conhecimentos, linguagens, afetos/afecções que se enredam no cotidiano escolar, reconhecendo e defendendo a natureza eminentemente micropolítica e conversacional do trabalho em educação na produção do currículo escolar como redes de conversações e ações complexas. Partimos do pressuposto de que a constituição de currículos compartilhados pode estar na origem de uma nova racionalidade, assim como do desejo de que essa constituição possa avançar à medida que, pela linguagem, pelo conhecimento, pelos afetos e afecções se introduzam experimentações e exercícios de solidariedade cada vez mais vastos (CARVALHO 2011). Tomamos como questões que atravessam essa problemática em nossas pesquisas: como se constitui o currículo escolar fundado na dimensão da conversação para a recriação de saberes e fazeres da escola de modo coletivo? Por onde deslizam as redes de conversações e ações no cotidiano escolar? Como dar visibilidade às forças e fluxos de afetos e afecções que, ao produzirem bons encontros, constituem dimensão política coletiva capaz de potencializar as vozes dos professores e alunos que vivenciam e realizam o currículo no cotidiano escolar?

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Da potência dos encontros Em nossas pesquisas, assumimos “cotidiano” como o plano de imanência no qual a micropolítica atua por meio da complexidade e multiplicidade dos encontros dos corpos em relações. O corpo humano, segundo Espinosa (2007), é extremamente complexo, sendo composto de vários corpos, cada um dos quais, também, muito composto. Graças a essa complexidade, ele é apto a afetar e ser afetado de diversas maneiras pelos corpos exteriores, sendo capaz de reter essas afecções, isto é, as modificações nele causadas por essas interações. A relação do indivíduo consigo, assim como com os corpos exteriores, jamais será simples, mas múltipla e diversificada. De acordo com Espinosa, definidos pelo conatus como esforço e/ou potência de perseverar e agir, os indivíduos se definem pela variação incessante de suas proporções internas de movimento e repouso, ou variação de suas forças internas para a conservação, de sorte que o esforço de autoconservação visa a manter a proporção interna no embate com as forças externas, pois são elas que podem destruí-los, como também são elas que os auxiliam a regenerarem-se e a crescerem. Pensando de acordo com os conceitos da filosofia de Espinosa, podemos considerar que desenvolvemos ao longo de nossas vidas cotidianas uma gama de interações com outros corpos. Tais eventos, mediante as circunstâncias pelas quais nos afetam, podem ampliar ou diminuir a nossa capacidade de agir, posto que uma interação, quando impressiona extensivamente o nosso próprio corpo, faz com que decorra desse evento um dado afeto. Nessas condições, se porventura essa interação for adequada, ou seja, pautada no desenvolvimento de afetos que ampliem a nossa capacidade de agir, adquirimos o saudável acréscimo de nossa força intrínseca, tal como ocorre no caso da alegria, definida por Espinosa como “[...] a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior” (ESPINOSA, 2007, p. 332). Numa situação diametralmente oposta, quando sofremos uma diminuição da intensidade de nossa potência intrínseca, (mais precisamente na ocorrência de vivências que motivam a formação de afetos tristes, tais como o ódio, o ciúme, o rancor, dentre outros), ocorre o enfraquecimento da nossa capacidade de agir, uma vez que tais afetos decorrem de uma ideia inadequada que fazemos da realidade. Enquanto constituídos pela potência intrínseca de perseverança qualitativa na existência, buscamos participar de interações que proporcionam a elaboração de afetos associados ao poder de afirmação dos valores pautados no amor e pela ampliação da vida enquanto inserida na convivência social, visto que, o aumento da nossa potência de agir se origina diretamente da ocorrência de um bom encontro. Os bons encontros aumentam a nossa potência de agir. Desse ponto de vista, a posse formal dessa potência de agir e igualmente de conhecer emerge como finalidade principal e, então, a razão, em vez de flutuar ao acaso dos encontros, deve procurar unir as coisas e os seres cuja relação se compõe diretamente com a nossa (ESPINOSA, 2007).

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Assim sendo, é imprescindível propormos o desenvolvimento de uma rede de interações para com os demais homens pretendendo o aproveitamento mútuo daquilo que exista de excelente no potencial criativo de ambas as partes que interagem entre si. Podemos considerar que, de tal circunstância, decorreria a tese espinosana da utilidade de ocorrer um relacionamento harmônico entre os indivíduos, em prol da realização de um objetivo comum que favoreça o aprimoramento e o benefício social da coletividade. È pela noção do desenvolvimento das redes de interações que se estabelecem possíveis “bons encontros”; e é por eles que, no plano da imanência de uma ontologia do presente, buscamos, em nossas pesquisas, ultrapassar o processo exacerbado na sociedade capitalista de individualização de referências e estabelecer o coletivo. Sendo assim, é a partir dessa perspectiva que pontuamos a aproximação entre o cotidiano e a micropolítica, considerando o cotidiano como o plano privilegiado da ocorrência das lutas micropolíticas (DELEUZE; GUATTARI, 1996) e microbianas (CERTEAU, 1994) e, portanto, da produção de subjetividades singulares. Em suma, tudo é político, mas toda política é, ao mesmo tempo, macropolítica e micropolítica. E, no cotidiano escolar, tais processos são enredados e concretizados, no plano de imanência da luta micropolítica, envolvendo diferentes e variados processos de conversações e ações, efetivando-se a dimensão político-ético-afetiva no entrecruzamento de redes de trabalho informativas, linguísticas e afetivas que ocorrem buscando a emergência de outra concepção de público, de coletivo e de currículo. Da potência dos signos O valor das conversações, no âmbito da micropolítica inscrita no plano de imanência do cotidiano escolar, está na vinculação que elas têm com a obra realizada, ou seja, as conversas e narrativas expressam as vivências e, sendo assim, têm como fonte a experiência. Depreendese daí que têm potência para organizar em torno de si uma pluralidade de pensamentos concorrendo para a constituição do projeto coletivo da escola. Contrariando o veto e a censura que a ciência dirige aos saberes narrativos, conforme fala Guimarães (2006), iremos buscar escutar o comum, tentar trabalhar de modo suficientemente aberto e flexível para descrever como as interações comunicativas cotidianas, as conversas situam os sujeitos no mundo, oferecendo-lhes laços de pertencimento e domínios de sociabilidade. O trabalho com conversações e narrativas tem se mostrado extremamente potente como possibilidade menos estruturada e formal de entendimento dos processos curriculares que acontecem nas escolas. Assim, mesmo considerando a força dos determinismos curriculares prescritivos que nos dias de hoje buscam conformar a vida das escolas, faz-se necessário investigar a multiplicidade de mundos que nelas coexistem, exigindo-se, para isso, a atitude de mergulhar nesses universos de pequenas falas, imagens e ruídos que nos dizem do movimento de uma sociedade que, ao falar, se constitui e se reinventa cotidianamente (FERRAÇO; CARVALHO, 2012).

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Mas por onde pretendemos que deslizem as redes de conversações na pesquisa? Pretende-se a constituição de encontros produtivos que fomentem a emergência do público e do coletivo. Tais encontros produtivos potencializados pelas redes de conversações estabelecidas, entretanto, se fundamentam em processos nos quais os fluxos intensivos de composições signos-sentidos são fundamentais. Para Deleuze (2006), tudo é signo, mas os signos são plurais e heterogêneos. Desse modo, os signos não são do mesmo tipo, do mesmo gênero: não têm a mesma relação com a matéria em que estão inscritos, não são emitidos do mesmo modo e não têm o mesmo efeito sobre o intérprete. Deleuze (2010) ao interpretar a obra de Proust, dispõe os signos em quatro grupos: signos mundanos, signos amorosos, signos sensíveis e signos artísticos. Os signos mundanos apareceriam nas relações sociais dos personagens em contextos sociais diferentes. Nos signos amorosos, o amado aparece ao amante como um signo, ou como uma pluralidade de signos, implicando uma multiplicidade de mundos inacessíveis e misteriosos. “Os signos amorosos exprimem um mundo secreto que exclui o amante e ao qual ele quer ter acesso. Daí o ciúme, daí o sofrimento dos que amam” (MACHADO, 2009, p. 196). Os signos sensíveis são formados pelas impressões ou qualidades sensíveis. O mais famoso se encontra na memória involuntária. O quarto tipo são os signos artísticos, dentre os quais Deleuze (2006) destaca três artes: a música, a pintura e a literatura. Para Deleuze na gênese do ato de pensar está a violência dos signos sobre o pensamento, pois a intensidade do signo é o que força o pensamento em seu exercício involuntário e inconsciente, isto é, transcendental. “Só se pensa sob pressão” (MACHADO, 2009, p. 197). O signo mundano surge como substituto de uma ação ou de um pensamento ocupando o seu lugar. São signos vazios. Já os signos amorosos são enganadores ou mentirosos, “[...] são signos mentirosos que só podem dirigir-se a nós escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido” (DELEUZE, 2006 apud MACHADO, 2009, p. 200-201). Já os signos sensíveis são superiores aos mundanos e aos amorosos, entretanto, os signos mundanos, amorosos e sensíveis são incapazes de nos revelar a essência, pois eles apenas nos aproximam do objeto, já que nos envolvem nas malhas da subjetividade. Para Deleuze, é apenas no nível da arte que as essências são reveladas. Isso porque, no caso da arte, a essência é revelada de modo singular, libertando de toda a contingência, constituindo a verdadeira adequação entre signo e sentido. Para Deleuze, signo e sentido estão sempre em relação com o tempo. A cada espécie de signo, Deleuze faz corresponder uma estrutura e/ou uma linha do tempo. Trata-se, portanto, de quatro estruturas temporais subordinadas a duas categorias mais gerais: o tempo perdido e o tempo redescoberto. Ao tempo perdido correspondem os signos mundanos, pois é o tempo perdido no sentido do tempo que passa; é o tempo que o narrador perde no vazio da vida social. Do mesmo modo também o amor faz perder tempo, mas a experiência do tempo perdido que ele possibilita é mais radical do que a que se tem na vida social. A terceira

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estrutura corresponde aos signos sensíveis, mas envolve tempo redescoberto no sentido de um tempo redescoberto no âmago do tempo perdido. São signos ambivalentes, pois, apesar de sua plenitude ou da alegria que podem proporcionar como antecipação de um “tempo redescoberto”, podem transformar-se em sensação de perda. Já os signos artísticos, pela reunião perfeita de signo e sentido, nos fazem descobrir o “tempo puro” ou o “estado complicado do tempo”. São os signos que fazem os corpos vibrarem em abertura para a inventividade, a criação. Nos encontros com professores e alunos praticantes do currículo no cotidiano escolar, diríamos que, como entre todos nós viventes e moventes, ora predomina a estrutura de tempo redescoberto ou a percepção de tempo perdido, ou seja, usualmente, ao falarem, tanto professores como alunos percebem tempos perdidos e buscam redescobrir outros tempos, cabendo, no processo de pesquisa, por meio de interferências intensivas, potencializar encontros nos quais vibrem problematizações e reinvenção, criação da escola como corpo político. Da potência dos signos artísticos para o “DAR A FALAR”: produzindo encontros No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio. Manoel de Barros, 2001b, p. 15, grifo nosso.

Em nossas pesquisas postulamos que a dimensão micropolítica da produção de currículos com os cotidianos escolares deve ser potencializada pelo encontro dos corpos em redes de conversações e que os signos artísticos, por fazerem irromper o estranhamento nos modelos discursivos dominantes, auxiliam nessa composição. Isso porque por meio dos signos artísticos é possível criar uma língua estrangeira em sua própria língua, falar em sua própria língua como se ela fosse uma espécie de língua estrangeira. Para Deleuze os usos dos signos sensíveis e artísticos devem buscar levar a linguagem a um limite, não no sentido de uma limitação da forma, de margem ou fronteira, mas de grau de potência. A criação de uma língua estrangeira na própria língua faz com que ela adquira um estado de tensão em direção a alguma coisa que não é sintática e nem mesmo diz respeito à linguagem: um de-fora da linguagem. O de-fora da linguagem aparece assim como vida e como saber, condição de um saber sobre a vida. “Não qualquer tipo de saber, mas um ‘saber

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esotérico’ que não é dado a qualquer um, que escapa do senso comum, do reconhecimento, criando novas possibilidades vitais, novas formas de existência e, sendo assim, de problematização e ação política.” (MACHADO, 2009, p. 211) Outro modo de criar uma língua estrangeira na linguagem poética e imagética diz respeito a uma “gagueira” da linguagem: não uma gagueira da fala, que atinge palavras preexistentes, mas uma gagueira da própria língua, que cria e relaciona novas palavras e novas imagens. O importante é que se estabeleça uma conversação instigada por signos artísticos que criem uma linguagem intensiva, vibrátil, característica de um sistema linguístico em contínuo desequilíbrio, em bifurcação, com seus termos em variação contínua, produzindo “coleções de sensações intensivas”, “blocos de sensações variáveis”. Todo um modo de individuação impessoal, de individuação sem sujeito, de singularidade definida por afetos, potências, intensidades. Deleuze (1997) pensa a arte em sua relação com o devir e, para ele, devir não é atingir uma forma: é escapar de uma forma dominante. Para o autor, os signos artísticos permitem redescobrir novos mundos, tornar-se outra coisa, tornar-se estrangeiro em relação a si mesmo e à sua própria língua. Assim, pensar o processo de minoração do currículo significa pensar a relação entre a arte “menor” e o “povo menor” ou o “povo que falta”, pois o minoritário é um devir potencial que se desvia do modelo. Línguas menores, existindo em função de línguas maiores, são agentes potenciais para fazer a língua maior entrar num devir minoritário, num devir revolucionário. Esse “povo que falta” é um povo que resista ao modelo imposto produzindo vida como reinvenção. E é esse “povo que falta” que interessa, em nossas pesquisas sobre currículo com os cotidianos escolares. Dar a falar nas pesquisas para reinventar os currículos nos cotidianos escolares Bastante úteis nas pesquisas sobre currículos com os cotidianos escolares são os conceitos de atualização (DELEUZE, 2006) e de desconstrução (DERRIDA, 2003). O conceito de atualização remete ao conceito de criação, visto que, ao atualizar um acontecimento, a diferença é produzida, e isso envolve um ato de criação. Já o conceito de desconstrução, em Derrida, não tem nada de negativo ou de destrutivo; assinala, antes, um pensamento afirmativo e, mais radicalmente, um processo de reinvenção, tomado em nossas pesquisas como necessidade de reinvenção dos modos de composição dos corpos em suas relações com os signos-sentidos nas redes de conversações estabelecidas nos cotidianos escolares. A estratégia da criação e da desconstrução visa a subverter a lógica das oposições, característica do pensamento ocidental, pois, com as hierarquizações logocêntricas (predomínio do logos, da razão, do inteligível sobre o sensível, da essência sobre a aparência, da verdade sobre o falso etc.), a metafísica ocidental não se limitou a estabelecer as diferenças entre os fenômenos, mas criou oposições entre eles. Ao analisar os pares conceituais binários, como conhecimento científico e conhecimento do senso-comum, presentes na metafísica

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ocidental, a desconstrução irá questionar exatamente a hegemonia de um dos termos com relação ao outro. Irá criticar a oposição hierárquica que privilegia a unidade e a identidade em detrimento da diversidade e da diferença. Essa crítica à hierarquia e à razão, entretanto, não pretende destruí-las, mas sim transformá-las (SOARES, 2010). Outro aspecto importante para a desconstrução refere-se à abertura para o outro. O tema da alteridade será uma das marcas da desconstrução, enquanto questionadora da lógica da identidade e da metafísica ocidental. Assim, indaga-se: como o outro tem sido tematizado e por quem? Partindo dessa questão, os processos curriculares nos cotidianos escolares ao desejarem chamar o outro para compor encontros que possibilitem a constituição política do coletivo escolar, buscam um perfil de hospitalidade capaz de minorar as violências que se desencadeiam no cenário educacional. Quem é o hóspede nas nossas pesquisas curriculares? Ao trabalharmos, com professores e alunos de escolas públicas de diferentes níveis de ensino em seus múltiplos cotidianos, devemos, ao falar da composição necessária entre corpos, signos-sentidos, conversações, estar atentos aos processos de negociação necessários para o respeito às credenciais de nossos professores e alunos. Isso porque os processos de pesquisa devem potencializar a constituição do “povo que falta” e a quem deve ser propiciado o “dar a falar” em redes de conversações compartilhadas. Professores e alunos todos os dias adentram as salas de aulas trazendo, entre seus cadernos, as perguntas e experiências de suas vivências. Seria interessante nos perguntar como lidamos com essas questões. Reconhecemos o que eles sabem? Ou apenas dizemos que eles não sabem? Aceitamos suas perguntas, outras questões, novas provoca-ações? Se pela potência dos signos artísticos, dos encontros e das conversações podemos trazer nas falas um “tempo redescoberto” ou a redescobrir e/ou “o estado complicado do tempo”, isto é, potência de criação, isso nos convoca a pensar nos modos de pesquisar que nos engessam. As inúmeras experiências trazidas pelos professores e alunos costumam ficar à margem de um conhecimento considerado legítimo. Como podemos estar à espreita, colocando-nos na relação com um corpo-composição, se a todo o momento somos “fixados”? Como potencializar o conhecimento gestado na experiência vivida, sentida, cuja imanência que está nos movimentos, na relação, na invenção? Quais agenciamentos são produzidos a partir dos desejos de alunos, alunas e demais praticantes do cotidiano escolar na constituição dos currículos escolares? Como as experiências desses praticantes têm participado nas redes de saberesfazeres das escolas? As possibilidades dessas conversas e de vivências com diferentes grupos de escolas têm nos apontado que dialogar nessas redes de constituição de currículos traz, para muitos, a inquietação de “abrir mão de certezas” e mergulhar no “desconhecido”. Ou seja, deixar falar e, principalmente, considerar tais falas para além da posição de um infante ou do lugar de não saber. Essa parece ser a grande questão ética, epistemológica e política do “dar a falar” aos professores e alunos nas pesquisas sobre currículo com os cotidianos das escolas de qualquer nível ou grau do sistema educacional.

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Uso a palavra para compor meus silêncios, Não gosto das palavras Fatigadas de informar. [...] Queria que minha voz tivesse um formato de canto. Porque não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios. Manoel de Barros, 2003, s/p

Referências BARROS, M. de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. BARROS, M. de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2001a. BARROS, M. de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2001b. CARVALHO, J. M. Potência do “olhar” e da “voz” não dogmáticos dos professores na produção dos territórios curriculares no cotidiano escolar do ensino fundamental. In: CARVALHO, Janete Magalhães (Org.). Infância em territórios curriculares. Petrópolis: DP et Alii, 2012. p. 15-48. CARVALHO, J. A razão e os afetos na potencialização de “bons encontros” no currículo escolar: experiências cotidianas. In: FERRAÇO, Carlos Eduardo (Org.). Currículo e educação básica: por entre redes de conhecimentos, imagens, narrativas, experiências e devires. Rio de Janeiro: Editora Rovelle, 2011. p. 103-121. CARVALHO, J. M. O cotidiano escolar como comunidade de afetos. Petrópolis, RJ: DP et Alii; Brasília/DF: CNPq, 2009. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. DELEUZE, G. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006. DELEUZE, G. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1996.

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DERRIDA, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Editora Escuta, 2003. ESPINOSA, B. de. Ética. Tradução de Tomás Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. FERRAÇO, C. E.; CARVALHO, J. M. Currículo, cotidiano e conversações. Revista Científica E-Curriculum, São Paulo, v. 8, n. 2, p.1-17, maio/ago. 2012. GUIMARÃES, C. O ordinário e o extraordinário das narrativas. In: GUIMARÃES, C.; FRANÇA, V. (Org.). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 8-17. HARDT, M.; NEGRI, A.. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2006. MACHADO, R.. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 193-205. PASSOS, E.; BARROS, R. B. de. Por uma política da narratividade. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Org.). Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 150-171. SOARES, V. D. M. Hospitalidade e democracia por vir a partir de Jacques Derrida. Ensaios Filosóficos, v. 2, p. 162-179, out. 2010.

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COMO LIDAR COM OS PENSAMENTOS PASSAGEIROS QUE NOS ATRAVESSAM Leandro Belinaso Guimarães 1 [Desejo] transfigurar a realidade para que outra, sonhadora e sonâmbula, crie-me. Elaine Schmidlin

Fiz deste exercício textual, um jogo. Tudo porque fui instigado por Elaine Schmidlin (2013) a escrever sobre/com os postais remetidos pela pesquisadora para mim através do correio convencional. Cartões que habitam, entrelaçados à escrita, sua tese de doutorado. Eles foram tecidos por artistas visuais, que compuseram paisagens questionadoras dos modos de ensinar sobre/com arte. Este texto transitou entre tornar-se um parecer à referida tese (visto que fui membro titular da banca de avaliação 2) e um ensaio para ser apresentado no 19o. Congresso de Leitura do Brasil (COLE). Considerei ser um feliz encontro este entre o parecer sobre/com a tese de Elaine e o texto a ser pensado para o referido evento. Um ensaio entre estes vastos mundos que me foram ofertados. Segui para esta composição escrita a sugestão de Milton José de Almeida (2009): “partir do caos aparente da imagem [do postal], encarar o mistério dos intervalos” (p. 36) entre os cortes, recortes, composições, montagens de um texto que está – neste presente momento em que você o está lendo – em edição. O ensaio transformou-se em uma espécie de colagem daquilo que rascunhei, como se fosse uma breve carta, no verso de três postais selecionados, entre os muitos recebidos de Elaine Schmidlin. E escrevi a partir dos desafios (lançados por mim) que estavam em jogo no tabuleiro da tela em branco à minha frente: tecer um parecer para uma tese e, ao mesmo tempo, escrever para um congresso sobre “leitura sem margens” (tema do evento). Conecto a estes dois propósitos (objetivos do jogo a que me enredei) o desejo de algo dizer em palavras sobre a visita que fiz, recentemente, à Assis, cidade do oeste paulista. Região de uma distância quase intransponível das megalópoles urbanas e dos oceanos que levam às terras das outras línguas. Foi lá que passei minha infância e certa espessura de uma juventude que parecia sem fim; repleta de trabalho, futebol, escola, bicicleta, rock, cinema, amizades que duraram ou que se apagaram, ruas, paqueras. Há mais de vinte anos não retornava à cidade que, em minha memória, tão densamente habitei. Lendo a tese de Elaine, pude me dar conta de que a ela não retornei (mesmo lá tendo estado recentemente). Neste (re)encontro esteve em jogo certo estado de “impermanência”, para usar um termo vital à pesquisadora, e me vi forçado a borrar as “nítidas” paisagens que habitavam minha memória. Pouco me pareceu permanecer – ainda mais que me vi estrangeiro, forasteiro – daquela cidade 1

Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina; Florianópolis/SC. E-mail: [email protected] 2 Faço deste ensaio minha despedida dos tempos de pós-doutorado, tão intensos, tanto os vividos em Amsterdã (de janeiro a junho), como em Campinas (de julho a dezembro). Ambos ao longo de 2013.

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que já havia sido tanto e tão demasiadamente minha e, também, daquele menino que perambulava, nos anos 1970 e 1980, com os olhos arregalados por suas ruas. “Tudo que me atravessa” 3, também me corta, me edita, me compõe, já neste instante, de outro modo. Estou agora sem saber se retornei à Assis. Talvez tenha sido este sonho de (re)encontro com a cidade que já foi tão minha, que me tenha feito desfiar algo costurado à minha pele neste instante presente em que escrevo. Dos mundos que me tecem, quanto de Assis há neles? o pó do tempo não pede passagem plantas por pouco paisagem Alice Ruiz (2008, p.137) Postal 1 4

Figura 01: Postal de Juliana Crispe recebido pelo correio de Elaine Schmidlin.

Querida Elaine, Compondo pela escrita a partir de um dos postais que habita sua tese, você, Elaine Schmidlin (2013), me diz que “na paisagem/margem do cartão postal, o eu desaparece, não se 3

Frase sutilmente grafada a mão em um canto do postal de Jô Willerding. Ele está cortado ao meio por uma incisão incapaz, por si só, de destruí-lo. Ver em Schmidlin (2013, p. 73). 4 Postal de Juliana Crispe. O texto no verso do cartão está citado logo adiante no ensaio.

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fixa a nada, nem a um tempo, nem a um sujeito, nem a um espaço exterior ou interior...” (p. 99). Neste passeio pela cidade que já foi tão minha, um outro estranho me acolheu, em mim mesmo. Exercitei o movimento proposto por você: ir para o fora, que não revela um eu ou uma verdade exterior, mas esgarça um errante a traçar ficções com os mundos que lhe atravessam. “Entre margens na literatura e na arte circulam palavras e imagens, não por querer designar coisas, mas por querer ressoar e habitar o fora de toda linguagem” (p. 94). Uma espécie de convite, inspirado em Maurice Blanchot, que nos remete a criar “um mundo onde não é mais possível se reconhecer”. (SCHMIDLIN, 2013, p. 95) Eis, a meu ver, o fora da linguagem: este desaparecimento de uma narrativa que diria o que foi mesmo um lugar, o que exatamente ele se tornou, como eu era quando lá vivia e o que sou neste instante em que o reencontro, sobretudo, pela escrita. Não se trata, você me diz, de querer se apartar do mundo, da vida, do cotidiano, de um lugar da infância, mas de esforçar-se para fazer restar a criação. Buscar menos respostas e inventar mais perguntas. Movimentar o corpo sedento pelo experimento. Para criar um lugar de encontro delicado com o mundo, talvez tenhamos que nos dar o direito de tatear, quase cegamente, os fragmentos ficcionais dos acontecimentos que nos tomam. No verso de um dos cartões postais (disposto na abertura desta seção) que compõe sua tese, Elaine, pude ler as palavras tecidas pela artista Juliana Crispe (autora do postal): para mim a criação está na vida, pela busca de respostas que só geram novas perguntas, e esse movimento é que impulsiona dar corpo a algo que queremos experimentar! Meu processo de criação é estar no mundo, buscando extrair algo do sensível, da delicadeza.

E ao me dar conta de que o que resta é uma paisagem, ainda, a ser inventada, parece quase impossível, agora, seguir escrevendo. Um vazio me suga, com toda a energia que só os buracos negros são capazes de impor. Elaine: como lidar – através da arte, da escrita, da educação – com os pensamentos passageiros que nos atravessam?

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Postal 2 5

Figura 02: Postal de Joana do Amarante recebido pelo correio de Elaine Schmidlin.

Querido lago que já não existe mais, Gostaria muito que pudesses me escutar, neste corpo frágil, quase imperceptível, em que tu agonizas. Tenho dúvidas se ainda ouves, se ainda vives. Lembro-te tão exuberante, forte, majestoso. Sempre tão visitado por crianças. Lembra-te delas? Não creio, pois imagino que se pudesse ver-te no espelho não te reconhecerias. Queria pensar-te, para poder deixar a ti uma existência presente, nem que seja através da escrita desta carta-postal. Permita-me fabular-te (se é que conseguirei). Certo dia li em Daniel Lins (2012): “o pensamento nos obriga (...) a abrir clareira para melhor enxergar afora as concreções do cotidiano e solidificações do hábito” (p. 68). Não quero me acostumar a te ver assim, sem existência, sem vida. Como “só é possível pensar por necessidade” (LINS, 2012, p. 68) e, como nos disse Elaine Schmidlin (2013), através de “encontros ocasionados por abalos, forças que movem certezas e colocam em dúvida o próprio pensamento” (p. 125), desejo rasgar as paisagens sustentáveis que te sufocaram, te asfixiaram, te aniquilaram, te deixaram por um fio, em uma quase eterna sobrevida angustiante. Acredito que foram elas que se impuseram a ti, por mais paradoxal que isso possa parecer, enterrando tua vitalidade. Sobre a paisagem em que esparramavas seu corpo delicado, grandioso, sombreado, banhando crianças, abrigando peixes, acolhendo aves, formigas, microalgas, protozoários, agora há inúmeras casas populares com tetos solares e captação de água da chuva. E há também homens, mulheres, cães domesticados, baratas, impressionantes formigas. Antes não eras tu, querido lago que já não existe mais, quem acolhia as gotas dos chuviscos e das 5

No verso do postal está escrito: “pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza da qual se aproximou. Para Rilke: às vezes preciso de ar.

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tempestades e, também, as brincadeiras das crianças? Será que por querer compor uma paisagem repleta de vidas sem responsabilidades aparentes, você tornou-se insustentável para – como nomearam Guimarães (2012) e Sampaio e Guimarães (2012) – um “dispositivo da sustentabilidade” que tudo deseja incluir em uma estética “verde” já de antemão conhecida? Agora, até o sol, a chuva, parecem precisar ser vigiados e ter a sua parcela de responsabilidade na gestão da vida a ser sobrevivida. As casas que hoje estão sobre o vasto lugar onde moravas parecem tão iguais, tão homogeneamente construídas, embora abriguem inúmeras histórias instigantes a serem (re)contadas e (re)inventadas 6. De onde vieram e como chegaram até ali tantas pessoas? Tu irias te espantar, se ainda pudestes ver. Uma paisagem repleta de muros e automóveis e telhados e antenas, distante do desejo de margens não permanentes que Elaine (queria te apresentar a ela) nos força pensar, inventar, querer. Tudo agora parece permanecer de um mesmo e tão demasiadamente sustentável modo. Porém, os “puxadinhos” das casas, suas variadas cores, seus minúsculos jardins nos mostram que outras paisagens vão sendo tecidas, silenciosamente. Acredito, querido lago, que a vida demanda ser reinventada, incessantemente. Estarias vivo se tivéssemos nos “afogado” em ti? Núpcias poderíamos ter firmado contigo. Encontros indeterminados em suas margens nos ofertariam a abertura ao sensível do mundo? Que outras paisagens construiríamos se te desejássemos? Criaríamos ficções contigo? Outras casas? Outros “pedaços” 7 mais nossos espraiados pelo tecido urbano? Não há mais os vazios que te avizinhavam (talvez nunca existiram, efetivamente). O erro foi, quem sabe, querer te preencher em demasia. Fazer de ti uma história já contada, sem mistérios, sem fábulas. Seria delicioso ver-te presente repleto de “lotes vagos”, inúteis e irresponsáveis, prenhes de vidas não-humanas e de crianças a brincar. Poderíamos ter nos articulado “espontaneamente sem pretensões de gerar um modelo de vida sustentável” (SILVA e GANZ, 2009, p. 08). Porém, querido lago que já não existe mais, a opção foi te aniquilar (antes você tivesse sido apenas abandonado) através da construção de uma paisagem pretensamente organizada, planejada e sustentável que te reduziu a pó.

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Sobre como histórias (re)contadas tecem, costuram, inventam, criam ambientes sem margens, ver Heloísa da Silva Karam (2013). 7 Sobre a noção de “pedaço” ver José Guilherme Magnani (2003) e Jane Petry da Rosa (2013).

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Figura 03: Postal de Glauco Ferreira recebido pelo correio de Elaine Schmidlin.

Querido leitor desta carta, Os textos resultantes de pesquisas costumam evidenciar pouco seus bastidores. Fico sedento por conhecer detalhes dos processos de montagem, de edição, de recorte de uma pesquisa. Saber dos riscos pelos quais um pesquisador passou. Até mesmo os chamados “relatos de experiência” pouco dizem sobre o processo de escolha do que se considerou importante contar. E também, daquilo que se descartou. Cada vez mais tenho estado interessado naquilo que se costuma esconder nos produtos finais de pesquisa: os tropeços, as ranhuras, as rasuras, os acasos, os pensamentos colocados no lixo, os momentos de desânimo e os de euforia. Leituras sem margens nos pedem textos silenciosos? O detalhamento dos bastidores do processo de pesquisa polui o texto, impondo à leitura as margens estabelecidas no processo de tessitura da escrita? Ou, pelo contrário, a exposição dos bastidores é que nos permite imaginar as cenas de escrita e as montagens dos cenários da pesquisa? Tais imaginações nos remeteriam às leituras que esgarçam margens?

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Postal de Glauco Ferreira. No verso do cartão está escrito: “tentar mapear os percursos seja na cidade, nos nossos trajetos e mapas artísticos ou nos nossos planos de aula...! É afeto? Provocação! Ser afetado no trajeto... uma ocasião para o convite”.

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Querido leitor, conto-lhe brevemente como fui tecendo minhas pesquisas sobre o “dispositivo da sustentabilidade”, que desejo, aqui, com esta última carta, encerrar sem ponto final algum. Fui, quase sempre, um leitor voraz de jornal impresso, desde os tempos de escola em que o caderno de “cultura” (com as notícias de televisão, cinema, horóscopo, música) era colecionado a partir do diário que meu pai assinava: “O Estado de São Paulo”. E em 2007, ano de conclusão do meu doutorado, retomei a assinatura do mesmo jornal que habitou por tantos anos minhas casas no decorrer da infância e da juventude. Teria sido para retomar um costume aprendido e compartilhado com meu pai? Ou simplesmente a ideia de colecionar recortes de jornal era algo que gostaria de voltar a experimentar, quem sabe apenas para usar notícias em aula? Uma prática cultural cada vez mais em desuso: esta de receber um jornal impresso na porta de casa e destinar uma hora do dia para sua leitura. Hoje, as reportagens são consumidas, majoritariamente acredito, como as músicas: avulsas, elegidas no ato de zapear o vasto mundo da Internet. Talvez, não ter acesso ao disco, nem ao conjunto dos editoriais de um jornal, nos faça esquecer os contextos, as escolhas políticas e poéticas, os linguajares eleitos, as seleções temáticas, as composições estéticas e culturais que perpassam a vida cotidiana e presente de um jornal e de uma banda de rock. Por outro lado, amplia-se com a Internet o acesso a fontes variadas, o que nos facilita escolher quem desejamos ler sobre determinado assunto (ou nos permite confrontar textos variados sobre um mesmo “fato jornalístico”). E mais, podemos escrever e divulgar, nós mesmos, notícias. Ao assinar o jornal que já foi do meu pai pude ver que a temática da sustentabilidade habitava semanalmente o caderno de Negócios (veiculado conjuntamente com o de Economia) do “Estadão”. Ali surgia um tema de pesquisa e uma pergunta perturbadora: por que a sustentabilidade ambiental ganha espaço na editoria de negócios e de economia e não no caderno sobre as “cidades” ou sobre as “culturas”? Esta questão sobre a agenda política e editorial das notícias sobre sustentabilidade no jornal em questão consumiu o primeiro triênio da minha pesquisa. Entretanto, o simples ato de colecionar nos abre inúmeras outras perguntas. Não é só o jornal que se move ao longo do tempo, mudando os modos de veicular notícias sobre sustentabilidade, criando e extinguindo cadernos específicos sobre o tema; nós também vamos alterando nossas vontades, aguçando outros olhares, nos movimentando a partir de outras atenções. E em 2010, na abertura de um novo triênio de pesquisa, as imagens publicadas no jornal, acompanhando as notícias sobre sustentabilidade, passaram a ser o foco do estudo. A coleção feita de 2007 a 2012 das notícias sobre sustentabilidade do jornal “O Estado de São Paulo” permitiu-me perceber constâncias nas imagens (como as inúmeras que focam em primeiro plano rostos de pessoas associadas ao mundo do mercado e dos negócios) e inúmeras variações nas formas de composição das textualidades imagéticas (fotografias, ilustrações, desenhos). Como lidar com a profusão de imagens da minha coleção (arquivadas em pastas, até então com o critério único de versarem sobre sustentabilidade)? Colecionar e ler tudo que se guardou foi tarefa fácil, já o movimento de agrupamento das imagens (e por consequência, das notícias) foi o mais difícil (mais do que escrever

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sobre/com elas). A escolha metodológica foi produzir séries de imagens e sobre/com elas escrever um ensaio. Uma questão movimentava a escrita e ela se derivava do nome que eu dava à série (cheguei a passar dias para eleger um nome à série criada). Sem dúvida um protocolo arbitrário e, quiçá, um pouco rígido, mas que me permitiu não só inventar séries de imagens, como escrever ensaios sobre/com elas. Não me interessei em mapear e/ou catalogar todas as imagens e escrever apenas sobre/com aquelas mais recorrentes, mais evidentes, mais estatisticamente visíveis. Meu critério foi perguntar a mim mesmo: esta série me convoca com vigor à escrita? Só o ato de criação das séries já supunha que aquelas eram as imagens (as que adentravam as sequências) importantes para mim. Você pode supor, querido leitor, que inúmeras imagens (todas que não foram postas em séries) foram descartadas, ou melhor, guardadas como objetos silenciosos de uma coleção particular. O ato de produzir séries se conectou, portanto, à vontade de escrita que elas produziam em mim. Assim, por vezes, o que desejava escrever acabou determinando a montagem de uma série, outras tantas vezes foram elas mesmas que me levaram a escrever. Deixei séries de lado (como, por exemplo, a que nomeei como “selo verde”) e também inúmeros pequenos rabiscos soltos. Ou, quem sabe, foram apenas rascunhos o que me foi possível escrever. Compus um ensaio a partir de apenas uma imagem, o que me fez parecer infiel à própria metodologia que havia inventado. De qualquer forma, trata-se de uma imagem de capa que inaugurou um caderno mensal sobre sustentabilidade: uma série portanto. Escrever sobre esta imagem, especificamente, foi como se abordasse todo um conjunto. Por isso, acredito que a ideia metodológica posta em jogo na pesquisa ainda estava viva. Apenas uma vez escrevi primeiramente e, depois, busquei traçar uma série que poderia se encaixar no texto. Todos os outros ensaios partiram de séries de imagens compostas preliminarmente. Sempre dei nome a elas. Um dos que mais gostei foi “a monetarização da vida”, uma série de duas imagens em que moedas e cédulas de dinheiro tecem corpos “vivos” de plantas. Ou a série “rostos”, a mais longa (com mais imagens), a primeira que montei e a última sobre/com a qual escrevi. Em cada ensaio experimentei um modo de escrita variado. Não foram tantos assim. Afinal, pensar exige esforço. Ter que lidar com as minhas limitações tanto teóricas como ensaísticas não foi nada simples. Mas através dos ensaios pude movimentar pensamentos a respeito da questão da sustentabilidade (palavra que já não consigo pronunciar sem enjôo) de um modo que não conseguiria sem aventura alguma, sem infidelidades a uma ideia maior que nos seduz, sem antes experimentar – em meio à poeira da fábrica artesanal do ensaio, da pesquisa, da criação metodológica, da aula – leituras, palavras, séries, imagens, conceitos, encontros tecidos no cotidiano da vida. As paisagens cansei-me das paisagens cegá-las com palavras rasurá-las As paisagens são frutos descabidos agudos olhos farpas sons à noite.

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espaço livre para o erro regiões recompostas por desejo Paisagens bruscas decercadas as subidas não poupam meu silêncio: renominá-las aqui neste abandono ou aprendê-las diversas e desertas Ana Cristina Cesar (2013, p.207) Como lidar com os pensamentos passageiros que nos atravessam? Estes que viajam em nosso corpo, muitas vezes na velocidade da luz, outras em uma lentidão tamanha que parecem nunca nos abandonar. Algo me diz que eles têm relação com as paisagens que vemos. E se as conseguimos ver, já nelas estamos. Quiçá, pensamentos passageiros abram janelas em nós. E como fazer uma aula, uma pesquisa, pensar, se tornar passageira da nossa viagem pela criação? Elaine Schmidlin (2013) nos disse que “o aspecto poético e a potência da criação não são considerados na ação educacional” (p. 38). Ela luta para instalar um problema no ensino modelar da arte. E saliento que “receitas” também são buscadas em outras paragens disciplinares (inter ou transdisciplinares, inclusive). Sonho com uma educação sobre/com ciências, sobre/com o chamado meio ambiente, que esteja menos envolvida com práticas pedagógicas montadas como modelos das ações que transcorreriam limpidamente em um laboratório científico ou em uma “comunidade” tomada como sustentável ou em um artigo lido como mais “verdadeiro”. Desejo, tal como muitos, uma educação mais envolvida com as relações cotidianas inusitadas, as sujeiras, a experimentação criativa, a poesia, a arte. Este ensaio foi, timidamente, fruto deste sonho, ao mesmo tempo meu e de uma multidão. Referências ALMEIDA, Milton José de. Cinema: arte da memória. 2a. edição. Campinas: Autores Associados, 2009. CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. GUIMARÃES, Leandro Belinaso. Notas sobre o dispositivo da sustentabilidade e a produção de sujeitos “verdes”. In: SARAIVA, Karla; MARCELLO, Fabiana de Amorim (Org.). Estudos Culturais e Educação: desafios atuais. Canoas: Editora da ULBRA, 2012. KARAM, Heloísa da Silva. Histórias de infância e o que nos ensinam sobre modos de (re)viver e sentir um ambiente. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, UFSC, Florianópolis, 2013.

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LINS, Daniel. Estética como acontecimento: o corpo sem órgãos. São Paulo: Lumme Editor, 2012. MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 3a. edição. São Paulo: HUCITEC/UNESP, 2003. ROSA, Jane Petry da. Corridas de rua: aprendizagens no tempo presente. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação, UFSC, Florianópolis, 2013. RUIZ, Alice. [dois em um]. São Paulo: Iluminuras, 2008. SAMPAIO, Shaula; GUIMARÃES, Leandro Belinaso. O dispositivo da sustentabilidade: pedagogias no contemporâneo. Perspectiva (UFSC), v. 30, p. 395-409, 2012. SCHMIDLIN, Elaine. Paisagens – arte e educação na impermanência da margem. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação, UFSC, Florianópolis, 2013. SILVA, Breno; GANZ, Louise. Lotes vagos: ocupações experimentais. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2009.

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O QUE VEJO E O QUE DESEJO VER NAS FOTOGRAFIAS DE SEBASTIÃO SALGADO 1 Lucia Estevinho Guido 2 Comecei a pensar sobre a escrita deste texto a partir de uma visita à exposição de fotografias – Gênesis de Sebastião Salgado no Sesc-Belenzinho, cidade de São Paulo. O dia estava chuvoso e entrei no Sesc, acompanhada de um grupo de alunos, bolsistas do Programa de Incentivo à Docência – PIBID, do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. A exposição estava instalada em vários locais do Sesc e o visitante é convidado a olhar, logo no pátio de entrada, as fotografias expostas em grandes painéis a céu aberto. O cinza do céu emoldurava as fotografias, pingos de chuva e um vento frio atravessavam nossos corpos e direcionavam o olhar para as fotografias registradas no Polo Norte. Como foi fotografar em condições extremas de frio? O que os olhos, tão presentes nas fotografias desta exposição e de outras de Sebastião Salgado, tinham a nos mostrar? Que natureza estava representada nas fotografias da exposição visitada? Quais escolhas o fotógrafo havia feito para compor o projeto Gênesis? Que elementos traziam dos outros projetos? Estas foram as perguntas iniciais que me intrigaram a olhar a exposição e rabiscar um caderno de anotações que utilizei enquanto passeava pelas fotografias. Após a visita à exposição, comecei a olhar outros projetos de Sebastião Salgado, destaco as produções: Retratos de Crianças no Êxodo e Terra. Além do olhar atento às fotografias, busquei compreender a produção textual das mesmas: o texto das legendas, da abertura dos livros, da abertura das composições. As leituras para as produções do fotógrafo foram guiadas pelos questionamentos que realizei durante a visita à exposição, um exercício que foi estimulado pela tentativa de responder qual era o fio condutor das fotografias que compunham Gênesis. Se havia um elo, uma marca que acompanhava as fotografias nos diferentes projetos empreendidos pelo fotógrafo. É importante deixar marcado que este trabalho não tem a pretensão de analisar a obra de Sebastião Salgado, um dos fotógrafos mais importante da atualidade, mas sim tentar entender algumas inquietações que suas fotografias do projeto Gênesis me proporcionaram. Enfatizo que sua obra é muito vasta e complexa. O que procurei nesse trabalho foi buscar um olhar atento ao que me impressionou, e que me capturou para o desejo de olhar sua obra. O desejo provoca pensamentos que culminam em questões que me encantam, me desestabilizam, enfim trazem inquietações sobre os modos como circulam as ideias e por que não conceitos trabalhados ou que deveriam ser desenvolvidos pela Educação Ambiental. O adjetivo, quase substantivo, ambiental está permeado por ideias que tem demandado esforços

1

Agradeço a CAPES / PIBID pelo financiamento da visita à exposição Gênesis no Sesc-Belenzinho na cidade de São Paulo. 2 Graduada em Ciências Biológicas e doutora em Educação. Universidade Federal de Uberlândia. UberlândiaMG. E-mail: [email protected]

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para se pensar a vinculação do ambiental com o natural, o cultural, o social, dentre outras palavras / conceitos que acabam por adjetivar a educação ambiental de crítica, integradora, socioambiental, culturalista. Na perspectiva culturalista da educação ambiental é necessário considerar os modos como estas ideias tem sido divulgadas nos mais diferentes artefatos culturais: livros didáticos, paradidáticos, universidades, músicas, teatro, museus, fotografias, cinema, televisão. Sendo que os quatro últimos tem me provocado e capturado meu olhar de pesquisadora. Impressionada pelas lembranças da visita à exposição, meus pensamentos transitavam entre o que é mostrado pelo fotógrafo e o como se configuram as imagens na fotografia estampada nos painéis da exposição e nas páginas dos livros. É possível articular estas fotografias ao discursos sobre ambiente, natureza e cultura? A fotografia mostra o que já está posto? Estão configuradas em obras que expressam a si mesmas? Que “crenças” trazem? Nesta perspectiva busquei referenciar esta discussão na leitura do filósofo Georges DidiHuberman na obra intitulada O que vemos, o que nos olha. Nas palavras do autor: “E eis que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo um em, um dentro? (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 30). As reflexões também foram amparadas na obra Mil Platôs dos filósofos Giles Deleuze e Félix Guattari (1997). A questão central que me inquietou durante a visita à exposição Gênesis foi entender o que Sebastião Salgado queria mostrar com fotografias de lugares de natureza praticamente “intocável”? Por conhecer as obras anteriores do fotógrafo que registrou pessoas, seu cotidiano, denunciando problemas sociais extremos, mostrando também a luta dessas pessoas pela vida, me questionava: Que vida estava sendo mostrada na exposição? Que elementos articulavam as fotografias? Qual era o fio condutor do fotógrafo na exposição? Comecei a olhar, perceber em cada local (pátio, saguão e salas por onde as fotos se esparramavam) não apenas as fotografias, outros elementos: as cores das paredes das diferentes salas que caracterizavam as composições, a saber: “África”, o vermelho; “Santuários”, o tom azulado escuro; “Sul do Planeta”, azul; “Terras do Norte”, cinza e Amazônia e Pantanal, verde. Anotações foram sendo rabiscadas e depois traduzidas em leituras que conduzem o meu olhar de pesquisadora com imagens e também leituras das outras obras de Sebastião Salgado e a própria exposição Gênesis. Comecei a vasculhar reportagens em revistas e televisão sobre a exposição que está sendo divulgada não apenas no Brasil, mas em outros países. As fotografias – o olhar “Como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo talvez perfurado, feito de vazios” (Didi-Huberman, 1998, p. 31). O obstáculo erguido diante de nós [ao transitar pela exposição Gênesis] seria a natureza? Consegue o fotógrafo colocar diante de nós o obstáculo? O vazio? “Obstáculo perfurado”. Algumas fotografias da obra intitulada Gênesis são observadas: Uma delas abre o livro (precisamente a segunda) e mostra focos de luzes que iluminam um iceberg que ocupa praticamente duas páginas do livro. As

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diferentes tonalidades de cinza 3 mesclam os contornos do iceberg com as nuvens cinzas do céu. A grandiosidade do Iceberg evidenciado pelo seu tamanho e por um contorno que lembra as muralhas de um castelo se impõem e chama a atenção do espectador. No canto esquerdo aparece uma grande perfuração quase no formato de uma chave que transpõem nosso olhar para a parte de trás do iceberg, não há nada, o mar reluz o sol, que “dissolve” o iceberg? A impressão é de vazio. O castelo que desmorona, a natureza que se perde. O gelo que derrete. O sol cada dia mais forte. Um obstáculo que se apresenta. No encarte com as legendas das fotografias que acompanha a obra, a legenda desta foto diz: Iceberg entre a ilha Pauler e as ilhas Shetland do Sul no mar Weddell. Os níveis de flutuação anteriores são claramente visíveis onde o gelo foi polido pelo constante movimento do oceano. Na parte de cima, no alto, uma forma semelhante à torre de um castelo foi esculpida pela erosão do vento e desprendeu pedaços de gelo. Península Antártica. Janeiro e fevereiro de 2005. (SALGADO, 2013 – encarte com legendas).

A grandiosidade, o grito, o silêncio, a “matilha” 4 nos acompanha nas fotografias que se apresentam e mostram um lugar: Antártica, o extremo sul do planeta. Concentrada nas fotografias da composição Sul do planeta, chama atenção a presença de animais (muitos), em algumas fotografias. Permaneço na frente de um dos registros que mostram muitos albatrozes. Em primeiro plano, vemos vários sentados no que parece ser a encosta de uma montanha, seus rostos e olhares parecem tão diversos, e ao mesmo tempo iguais, inertes, vazios, entediados? Alguns pinguins se misturam aos albatrozes. No meio da fotografia, ainda em primeiro plano um deles voando, o mesmo olhar. Ao fundo vários contornos de voos e, no chão, pontinhos, muitos, representam as aves que aparecem em primeiro plano. O fundo de cena da fotografia se assemelha a uma pintura. A possibilidade de criação em cima do real. Gênesis! Diz a legenda: As ilhas Jason são um grupo doze ilhas no ponto mais ocidental das ilhas Malvinas. Estas fotografias foram tiradas na ilha Steeple Jason, abrigo de mais de 5.000.000 casais de albatrozes-de-sobrancelha (Thalassarche 3

Segundo a jornalista Kênya Zanatta o fotógrafo é conhecido pelo “uso do preto e branco e o rigor na composição”. Na condução da entrevista com Sebastião Salgado para a revista Bravo, Zanatta mostra o trauma do fotógrafo ao “ambiente de assepsia dos aeroportos”, que “celebrado pelas proezas que realizou em película durante quase 40 anos, Sebastião Salgado foi levado a adotar a fotografia digital devido sobretudo ao aumento do nível de segurança nas viagens internacionais após os atentados de 11 de setembro de 2001”. A cada aeroporto era uma luta para evitar que os filmes passassem pelos aparelhos de raio x, enfatiza o fotógrafo: “Uma vez tudo bem. Mas depois de três ou quatro há uma perda da estrutura do grão, da gama de cinzas” (ZANATTA, 2013). 4 Várias fotografias de Gênesis são compostas pelos animais em grupos, matilhas e, guiada por Deluze e Guattri (1997, p. 20-24) vejo nestas composições o “devir-animal” do homem. “Fascinação do homem dos lobos diante dos vários lobos que olham para ele. O que seria um lobo sozinho? E uma baleia, um piolho, um rato, uma mosca? […] A matilha é ao mesmo tempo realidade animal, e realidade do devir–animal do homem […]”.

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melanophris), a maior colônia de albatrozes do mundo. Ilha Malvinas. Novembro e dezembro de 2009 (SALGADO, 2013, p.4).

Em uma fotografia desta mesma composição novamente a colônia, muitos pinguins aparecem no fundo de cena, em primeiro plano dois filhotes de elefante-marinho-do-sul (diz a legenda), um close no rosto de um deles, a boca aberta [o grito? 5] Os olhos revelam o fotógrafo 6. Estaria o animal olhando para o fotógrafo? Por que fotografar o olhar, deixando se revelar? Seria com a intenção de mostrar uma possível comunicação entre o fotógrafo e o animal? E entre este e nós, espectadores da exposição? Diz a legenda: “Filhotes de elefantemarinho-do-sul (Mirounga leonina) na baía de Saint Andrews, Geórgia do Sul. Novembro e dezembro de 2009”. (SALGADO, 2013, p. 4). Retomo a leitura de Didi-Huberman: [...] Por outro lado, há aquilo, direi novamente, que me olha: e o que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário de uma espécie de esvaziamento. Um esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim, diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus movimentos, esvaziados de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no entanto me olha num certo sentido – o sentido inelutável da perda posto aqui a trabalhar (DIDI-HUBERMAN, 1986, p. 37).

O que nos olha é o que vai além do olhar, é aquilo que nos evoca, nos capta ao olhar. Como sou capturada a olhar a fotografia de Sebastião Salgado? O grito de socorro ecoa pelo meu pensamento povoado pelos discursos de educação ambiental que insistem na preservação das espécies, dos biomas, das florestas. Um discurso esvaziado de significado? Chama a 5

“O que é um grito, independentemente da população que ele convoca como testemunha” (DELUZE; GUATTARI, 1997, p. 20). 6 Sebastião Salgado em entrevista concedida ao programa Roda viva exibido pela TV Cultura no dia 16/09/2013 conta como conseguiu se aproximar dos animais para fotografa-los, diz o fotógrafo: para mim era complicado fotografar animais, até então eu havia fotografado um único animal: nós. Então, eu cheguei em frente a uma tartaruga […] uma tartaruga gigante, fui me aproximando, ela foi andando, ela foi embora. Ela não quis ficar perto de mim e eu precisava ver essa tartaruga de uma distância, de maneira que eu pudesse ver a personalidade, a dignidade dessa tartaruga e foi complicado. Aí eu falei: olha … eu passei horas pensando. Eu vou tentar chegar nessa tartaruga no nível dessa tartaruga. Então, eu me coloquei de joelhos e, quando eu me coloquei de joelhos, ela parou e começou a olhar para trás, aí eu deitei e comecei caminhar em direção a ela com o meu cotovelo. Nesse momento ela veio a mim. Ela começou a caminhar na minha direção e quando ela começou a caminhar pra mim, eu comecei a andar para trás para dar a entender a ela que eu tava respeitando o território. Olha, ela veio a mim, ela veio me ver com a mesma curiosidade que eu tinha ido vê-la. E aí, a partir desse momento, nós éramos dois animais, que não era predador um do outro, que respeitava o território um do outro e eu pude fotografar esta tartaruga. Programa Roda viva, disponível em www.youtube.com/watch?v=IL3Ou7Khl3A. Acesso em 14/11/2103.

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atenção na fotografia descrita acima uma ave pequena, ela destoa não pelo seu tamanho, mas pela sua cor: branca dentre os demais, escuros. O jogo do claro e do escuro. Do que vejo e do que desejo ver. Vejamos outra fotografia, agora da composição Amazônia e Pantanal. Lembro que esta composição está exposta no Sesc – Belenzinho em uma sala de paredes de cor verde. No livro Gênesis na abertura das fotografias desta composição, Sebastião Salgado diz: Visto do espaço, o rio Amazonas e seus afluentes parecem uma gigante árvore da vida. De fato, a bacia do Amazonas representa vida numa miríade de formas: como pulmão do mundo, fonte de 20% da água doce do planeta, abrigo de inúmeras espécies da flora e da fauna e refugio de muitas tribos indígenas [...] (SALGADO, 2013, p.419).

Outra fotografia da mesma composição retrata varias mulheres da povoação Zo’é Towari Ypy dispostas no interior de uma “habitação”, percebemos esta pela rede que está pendurada em uma espécie de parede de folha de palmeira, o chão também está repleto de folhas da mesma palmeira e as mulheres nuas, com adereços, feitos de plumagem, na cabeça no formato de uma tiara estão tocando com as mãos partes do seu corpo e do corpo de outras mulheres, sendo que algumas estão em pé, outras sentadas no chão e duas deitadas em uma rede de palha. Seus semblantes mostram serenidade e concentração naquilo que estão fazendo, como se estivessem se preparando. Outros adereços aparecem nos seus corpos. Sabemos pela leitura da legenda que estão colorindo seus corpos com urucum, uma planta típica da região que a legenda faz questão de evidenciar. Incluindo seus diferentes usos pela tribo, diz a legenda: Tipicamente, as mulheres da povoação Zo’é Towari Ypy usam o urucum (Bixa orellana), o fruto vermelho do urucueiro, para colorir seus corpos. Também usam para cozinhar. O urucueiro é um arbusto ou pequena árvore originária das zonas tropicais das Américas. É há muito utilizado pelos ameríndios para fazer pinturas no corpo, sobretudo para os lábios, daí o nome por que também é conhecida de “árvore-batom”. Pará, Brasil. Março e abril de 2009 (SALGADO, 2013, p. 28).

Na fotografia em questão descobrimos o que a cena retrata lendo a legenda, que neste caso complementa a foto, além de trazer uma ideia de uso de recursos naturais de maneira equilibrada, já que o produto – urucum, é usado sem nenhum tipo de industrialização. A fotografia diz que há tranquilidade, mulheres jovens e mais velhas, a beleza dos corpos e uma simplicidade que nos invade ao ver, especialmente os materiais naturais (corpos nus, paredes e chão de palmeira, redes trançadas na palha), que a cena retrata. A presença da palmeira é tão forte que mesmo que a fotografia seja branco e preto, sentimos o verde da palmeira invadir nossa percepção.

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No livro impresso intitulado Gênesis na abertura da sequência Amazonas e Pantanal, Sebastião Salgado insere informações a respeito da tribo retratada, diz o texto: A floresta Amazônica é habitada há mais de 10 000 anos, embora muitas tribos tenham desaparecido no rastro dos construtores de estradas, lenhadores, missionários e doenças transmitidas pelos exploradores. Uma exceção são os Zo’é “contatados” pela primeira vez há apenas duas décadas. [...] Esses afáveis caçadores-coletores vivem em pequenas comunidades e não usam roupas. [...] Segui-os pelo interior da selva quando foram caçar macacos e peixe com arcos e flechas e os observei na moagem de mandioca para fazerem farinha (SALGADO, 2013, p. 420).

Chama a atenção nesta escrita o desaparecimento de alguns povos que viveram no local há muito tempo; a caracterização da tribo mostrada, especialmente o adjetivo “afáveis” e o fato de não usarem roupa. Palavras que guiam nossos pensamentos para a caracterização de um povo que protege a mata, que vive de maneira muito simples. Ao evocar estas características estaríamos sendo capturados pela ideia de que esta tribo é um exemplo? É possível usar o exemplo? Ainda em Gênesis, uma fotografia da composição Santuários é aberta por uma narrativa, explicação de Sebastião Salgado que inicia a composição dizendo: As ilhas isoladas oferecem as condições ideais para o desenvolvimento e a sobrevivência de flora e fauna endêmicas. Como resultado, espécies vegetais e animais únicas concentram-se frequentemente em pequenas áreas geográficas. Sua principal ameaça é a invasão de colonizações humanas. Algumas tribos primitivas ainda vivem ‘no seio’ da natureza, muitos como os seus antepassados, mas essa harmonia é muitas vezes perturbada pelo ser humano moderno (SALGADO, 2013, p. 117).

Esta abertura mostra como Sebastião Salgado buscou fotografar a natureza, regido por um olhar que se pretendia integrado à mesma, um olhar de “amor” como ele mesmo diz na entrevista do Programa de televisão Roda Viva. Ele diz: Eu compreendi no projeto Gênesis que você tem que respeitar tudo. Para fotografar a paisagem você tem que respeitar a paisagem, você tem que tentar compreender a dignidade da paisagem. Eu, no Alasca, […] Eu chegava lá em cima lá pelas noves horas, a gente subia uns mil metros. Eu sentava sozinho e eu tentava compreender aquela luz, tentava compreender aquele mundo mineral, tentava compreender aquelas marcas, aquelas erosões provocadas pelas avalanches no inverno e a partir daquele momento eu me sentia uma unidade total, eu me sentia totalmente natureza, o planeta me dava […] eu passava ter um amor tão grande e eu espero que aquelas fotografias transmitam aquele estado de espírito.

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Esta fala evoca um pensamento ao mesmo tempo de uma visão romantizada da natureza, mas que implode, ultrapassa o olhar científico que de alguma maneira também está presente nas fotografias. Mesmo que o científico tenha sido buscado para preparar a viagem, para compor as legendas, ainda é possível pensar que há o olhar estético, o olhar da arte. Por ser um fotógrafo e não um cientista sua aproximação com os animais (ver nota 6 nas páginas 3-4 ), com a natureza para fotografá-los está repleto de poesia de arte, e neste sentido busco entender o olhar a partir de Deleuze e Guattari em Mil Platôs, de como as relações entre os animais a partir da Ciência podem ser levadas, conduzidas para outras Ciências, para “servir ao estudo dos sonhos e das organizações”. Vale destacar como estes autores trazem as relações estabelecidas entre os animais: [...] as relações dos animais entre si não são, por um lado, apenas objeto de ciência, mas também objeto de sonho, objeto de simbolismo, objeto de arte ou de poesia, objeto de prática e de utilização prática. Por outro lado, as relações dos animais entre si são tomadas em relações do homem com o animal, do homem com a mulher, do homem com a criança, do homem com os elementos, do homem com o universo físico e microfísico. [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 14).

Ressalto o olhar a fotografia guiada pelo pensamento do fotógrafo. Retomando o projeto Gênesis e a composição Santuário, uma das fotografias mostra um habitante de uma tribo, com adereços no corpo e que encontra-se enquadrado do peito para cima como se estivesse em “primeiro plano”, utilizando uma linguagem cinematográfica e televisa. O que se destaca na imagem é uma imensa cabeleira que se mistura e se assemelha com o cabelo e a barba “pixain”. O olhar fixo revela que o personagem está olhando para a câmera. No pescoço um colar de sementes, várias vezes enrolado e caído no peito arrematado com dois chifres de animal. Em cada braço um cordão em formato de um bracelete e o corpo todo coberto com barro. A legenda esclarece que o personagem é um artista do “festival sinsing de Mount Hagen: Artista do festival singsing de Mount Hagen. Planalto Ocidental. Papua-Nova Guiné. Julho e agosto de 2008” (SALGADO, 2013, p. 12). A legenda das fotos das páginas subsequentes esclarece que a peruca é feita de cabelo natural que os homens da tribo deixam crescer e antes de casar cortam-na para a confecção das perucas e que cada homem costuma ter mais de uma peruca. Por que Sebastião Salgado faz questão de mostrar fotografias e escrever legendas sobre práticas tradicionais? A natureza que nos olha é a natureza engendrada na / pela sociedade contemporânea que insistentemente busca um passado naturalizado e em perfeita harmonia? Chama a atenção em algumas fotografias do projeto Gênesis o enquadramento dos humanos que estão com seus corpos despregados de seu cotidiano, parecem fotografias de estúdio. Fotografias semelhantes aos registro de projetos anteriores do fotógrafo. Qual o sentido destas fotografias? Na leitura que realizo, elas são elos de ligação como os projetos anteriores. Um jeito de fotografar característico da estética utilizada pelo fotógrafo.

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Antes de passar para as fotografias de outros projetos de Sebastião Salgado, saliento que as legendas e as aberturas dos livros e composições são importantes para a análise da obra e que nos próximos projetos limitarei a análise a estes elementos da escrita e as fotografias serão analisadas no seu conjunto. Fotografias dos projetos Retratos de crianças do êxodo e Terra Na abertura do livro Retratos de crianças do êxodo, o texto de apresentação assinado por Sebastião Salgado anuncia as fotografias apresentadas e explica o motivo dos registros das crianças em êxodo, nas palavras de Salgado: Em toda situação de crise, seja guerra, miséria ou desastre natural, as crianças são as maiores vítimas. Mais fracas fisicamente, são sempre as primeiras a sucumbir à fome ou à doença. Emocionalmente vulneráveis, não tem condições de compreender por que estão sendo expulsas de suas casas, por que os vizinhos passaram a ataca-las, por que foram viver numa favela cercada de detritos ou num campo de refugiados cercado de dor. [...] Ao ver uma câmara, dão pulos de entusiasmo, riem, acenam, empurram-se umas às outras na esperança de ser fotografadas. Às vezes sua alegria de viver chega a interceptar o registro fotográfico do que está acontecendo com elas. Como é possível uma criança sorridente representar o infortúnio mais profundo? Esse paradoxo foi o ponto de partida deste livro. Este livro de fotografias não pretende fazer esse tipo de análise [da situação das crianças no mundo]. Simplesmente mostra noventa crianças de diferentes regiões da Terra num determinado dia de suas vidas. Elas aparecem lindas, felizes, orgulhosas, pensativas ou tristes. Por um breve instante, tiveram condições de dizer ‘Eu sou’. Em seguida, depressa demais, ficarão adultas e outras crianças tomarão seu lugar. (SALGADO, 1999, p. 7-9).

Estes trechos da abertura do livro nos dão a dimensão do trabalho realizado pelo fotógrafo e já orienta o nosso olhar para as fotografias que serão apresentadas. São 109 fotografias de crianças que posaram na frente do fotógrafo com fundos de cena variados, a maioria mostra: muros, paredes, quadro negro, tecidos, algumas foram flagradas com o fundo de uma fabrica ou outro ambiente natural (terra, rios, vales, montanhas). Mas o fundo de cena passa desapercebido. O que marca é o olhar [na grande maioria dirigido ao fotógrafo, e assim, ao espectador], algumas vezes um sorriso, uma expressão alegre, um jeito diferente de olhar, de posar literalmente para a fotografia. Se revelar. Analisa-las exigiria um aporte teórico da estética, da sociologia que não cabe neste artigo. Fico com as impressões do que elas evocam e trago algumas legendas para, a partir delas, pensar nos questionamentos realizados ao olhar as fotografias de Gênesis. Seguem algumas legendas: “Acampamento de sem-terra em Rosa do Prado, em Itamaraju. Bahia, Brasil, 1996”; “Família curda deslocada vivendo na antiga prisão do forte de Nizarke, em Sohuk. Curdistão iraquiano, 1997”; “Centro para revitalização cultural dos índios Macuxi em Maturuca. Roraima, Brasil, 1998”; “Campo de Cazombo 2, em

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Lucena, para angolanos deslocados. Província do Alto Zambeze, Angola, 1997”; “Campo de Nasir Bagh, em Peshawar, para refugiados afeganes. Paquistão, 1996” (SALGADO, 2000, p. 110-111). No livro que divulga o projeto intitulado Terra, a abertura é escrita por José Saramago, escritor, poeta, teatrólogo e romancista português. Suas palavras poéticas oferecem dados sobre o Movimento de Luta pela terra no Brasil. Da mesma forma que em Retratos – de crianças do êxodo, Salgado, utilizando as palavras de Saramago, prepara o leitor / espectador para as imagens que irá encontrar e conduz o olhar. Os retratos apresentados centram, na sua maioria, em cenas do cotidiano das pessoas que “lutam pela vida”, mas também encontramos retratos quase que “posados” para o fotógrafo e que nos “olha”, como espectadores das lutas sociais, do sofrimento, das marcas no corpo e na “natureza” que emoldura a maioria das fotografias. A partir destas fotografias é possível alargar o significado de natureza? O que seria a natureza divulgada nos diferentes projetos do fotógrafo? É possível defini-la em uma única perspectiva? Centro novamente nas legenda de algumas fotografias deste projeto: “Boias-frias nas plantações da Usina de São Martinho, em Pradópolis. Esta fazenda de cana-de-açúcar tem uma área superior a 70 mil hectares. São Paulo, 1987”; “Minas de ouro de Serra Pelada. Pará, 1986.” (SALGADO, 1997, p. 139). “Crianças em um acampamento da fazenda Cuiabá. Sergipe, 1996.” (SALGADO, 1997, p. 142). Ainda centrada nas legendas: Em Parambu, nos confins do sertão do Ceará, próximo da serra Grande, a dignidade e a pobreza são companheiras inseparáveis da população do campo. Ali, a luta pela sobrevivência se revela das mais difíceis. E este bicho humano, endurecido, calejado, enfrenta a vida desde o nascimento até a morte com a mesma resolução, batendo-se contra a aridez da terra, as secas prolongadas e a exploração do seu trabalho, consumida dentro de uma estrutura agrária ainda feudal. Ceará, 1983.” (SALGADO, 1997, p. 138). O cacau é colhido por um grande número de trabalhadores de todas as idades. Com uma lâmina fixada na extremidade de uma longa vara, os frutos são cortados das árvores. As crianças os apanham no solo e os levam para serem abertos. Depois, os grãos são transportados por mulas às casa de fermentação. Bahia, 1990. (SALGADO, 1997, p. 139). Um grande acampamento com 2800 famílias foi formado na entrada da Fazenda Cuiabá no sertão do Xingó, às margens do Rio São Francisco. Durante vários meses esta gente viveu penosamente na esperança do decreto de desapropriação, que foi, afinal adotado no dia 6 de maio de 1996. Manifestação dos camponeses em comemoração ao que consideraram uma vitória, mas que, na realidade, foi só um ato de justiça. Sergipe, 1996.” (SALGADO, 1997, p. 143).

A maioria das fotografias mostram cenas do cotidiano de pessoas, elas convidam o espectador a entrar no cotidiano mostrado. Imagens fortes. As legendas, neste projeto trazem

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informações sobre o que está sendo retratado. São poucas as legendas que se referem apenas ao local e aos retratos das pessoas que olham para a câmera. Foi possível observar que nas legendas, a Ciência presente na escrita faz regredir a arte a dados estatísticos: tantos homens, tantas terras, tantas adversidades. Deleuze e Guattari (1997, p. 20) orientam o olhar que foge à regra da Ciência: A sociedade e o Estado precisam das características animais para classificar os homens; a história natural e a ciência precisam de características para classificar os próprios animais. O serialismo e o estruturalismo ora graduam características segundo sua semelhanças, ora as ordenam segundo suas diferenças. Mas não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento.

Palavras finais Para finalizar este trabalho, retorno ao projeto Gênesis, na escrita da abertura do livro. Nela Sebastião Salgado comenta como os projetos anteriores o conduziram ao projeto atual, justifica a passagem dos projetos de cunho mais social para retratar a grandiosidade da natureza. Nas palavras do fotógrafo: Testemunhei muito sofrimento e grande coragem, porém mais do que tudo vi violência e brutalidade como nunca tinha imaginado. Quando o projeto terminou, a minha esperança no futuro da humanidade tinha se perdido. [...] Este trabalho [Gênesis] é o registro da minha viagem, um hino visual à grandeza e à fragilidade da Terra. Mas é também um aviso, espero, acerca de tudo o que nos arriscamos a perder (SALGADO, 2013, p. 5-7).

O que vi nas fotografias foi um espaço de legitimação de determinados discursos, baseados, sobretudo no saber científico, confirmados pelas legendas das fotografias. Elas trazem dados técnicos que nos permitem entender questões ligadas à problemas sociais, questão agrária, êxodo, refugiados, migrações e também as questões ambientais, especialmente no seu ultimo projeto: Gênesis. Somos levados não apenas pelas fotografias, mas pelo discurso de abertura das obras e pelas legendas a pensar e a agir para alcançar determinados resultados preestabelecidos pelo discurso ambiental, como diminuir a devastação das florestas, ter um modo de vida mais próximo das comunidades que ainda não se entregaram ao paraíso do consumo, criar unidades de conservação. Estas questões aparecem pois meu trabalho, olhar as fotografias, vem acompanhado das leituras que realizo como foi exposto anteriormente. A contradição das metanarrativas, os discursos de poder engendrados pela racionalidade instrumental seja da Ciência, seja da Educação. Mas, o que me chamou a atenção foram as legendas, também conformadas em um discurso científico, nas fotografias dos projetos Terra e Retratos – de crianças do êxodo. Percebo que, embora os

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dados da legenda sejam comoventes, trazem dados estatísticos de terras que são subaproveitadas, o tamanho das grandes fazendas do interior do Estado de São Paulo que utilizam a monocultura da cana-de-açúcar, o número de famílias dos assentamentos do Movimento de Luta pela terra de alguns Estados brasileiros. O retrato realizado pelo fotógrafo me parecia diferente nos diferentes projetos. O que as exposições trazem de diferente? O que é semelhante, talvez seja mais fácil perceber: humanos e não humanos são retratados, todas as fotografias denunciam: maus tratos, problemas sociais, problemas ambientais. O que difere nos retratos das diferentes exposições? Nos projetos Retratos de crianças no êxodo e Terra, de cunho mais social vemos através das fotografias o sofrimento, a luta, as dificuldades. Já nas fotografias do projeto Gênesis, o sofrimento não aparece, embora as vestimentas dos humanos e o modo de vida retratado sejam simples, não aparecem marcas de sofrimento e sim de valentia, o mundo incrível dos selvagens, a alegria do convívio humano com o não humano, a grandiosidade da Terra, o ancião, o exótico. A natureza e a cultura estão atreladas de tal maneira que não é possível ver uma separada da outra. Esperança? Foi o que me ocorreu depois de me debruçar sobre as fotografias com mais tempo, olhar as fotografias dos diferentes projetos, ler as legendas, reportagens, especialmente sobre a ultima exposição. Esperança de um mundo melhor. Esperança de um meio ambiente melhor. Esperança na educação para o meio ambiente melhor. Mas, a esperança pode vir do passado? Existe esperança na vida dos humanos e seus agrupamentos exóticos retratados pelo fotógrafo? Chama atenção a maneira como nos “diferentes” projetos apresentados, o fotógrafo comenta que pode ser a ultima vez que fotografias como as que expõem possam ser vistas. No projeto Retratos de crianças do êxodo comenta sobre as crianças que logo deixaram de ser crianças e no projeto Gênesis comenta que os grupos retratados perderão sua identidade assim que entrarem em contato com a sociedade moderna. Assim fui capturada para ver o corpo que se esvazia, que desaparecerá como diz DidiHuberman a respeito do “olhar o túmulo, o que nos olha é esse corpo que um dia desaparecerá”, será esta natureza, que desaparecerá que Sebastião Salgado quis retratar? Ao olhar as fotografias somos capturados por este “esvaziamento”? A natureza se oferece ao vazio? “O que vem a ser o meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir?” (Didi-Heberman, 1986, p. 38). Os projetos trazem informações de muita importância, embora no Gênesis Sebastião Salgado faz questão de salientar: “Minha abordagem não foi a de um jornalista, cientista ou antropólogo. No Gênesis, persegui um sonho romântico, de encontrar – e partilhar – um mundo primitivo invisível e inalcançável do que deveria ser” (SALGADO, 2013, p. 7). A beleza está na fotografia de Sebastião Salgado, seja na comoção para os problemas sociais ou nos grandes feitos da natureza e do selvagem. Para finalizar fica uma citação dos filósofos franceses Giles Deleuze e Félix Guattari (1997, p. 21). O afeto faz pensar não mais no eu, no eu cartesiano – penso, raciocínio: isso é verdade, isso é mentira, o afeto rompe e nos remete ao coletivo. “Pois o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de

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matilha, que subleva e faz vacilar o eu”. Assim também fui contaminada pelas fotografias de Sebastião Salgado: revela o coletivo, nos retratos que comovem. Referências DELUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia. Tradução Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997. DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. SALGADO, S. Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ______. Retratos de crianças do êxodo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ______. Gênesis. Alemanha: Taschen, 2013. ZANATTA, K. Viagens ao fim do mundo. Bravo. São Paulo: Editora Abril. n.188, abril de 2013.

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UM OLHAR (MAIS OU MENOS DISTRAÍDO) PARA AS AMAZÔNIAS INVENTADAS NO TEMPO PRESENTE Shaula Maíra Vicentini de Sampaio 1 Neste artigo, pretendo escrever mais algumas coisas sobre a floresta amazônica, tema da minha tese de doutorado (SAMPAIO, 2012). Mas dessa vez movida por uma vontade de me voltar para algumas indagações que deixei pulsando no fim do trabalho de escritura. Perguntas que não foram respondidas porque não estavam no horizonte daquele estudo, mas que se tornaram importantes ao terminar o percurso. Por que o interesse em estudar/ler/pensar/imaginar a Amazônia? Por que tomar a Amazônia como tema de um estudo realizado em uma universidade do sul do país? Por que a Amazônia, essa tão polissêmica região, atrai os olhares de pessoas como eu, que são particularmente sensíveis às questões ambientais, preocupadas com a continuidade de modos de existência distintos do ocidental/urbano/industrial? As possibilidades de respostas para tais perguntas perpassam o argumento principal deste texto, na medida em que houve e há formas ativas e intensas de produção discursiva desta região para que ela deixasse de ser algo incompreensível e incontrolável, como já foi um dia, tornando-se inteligível e passível de ser gerenciada. Podemos dizer que – desde a chegada dos europeus no continente americano – a Amazônia vem sendo inventada, ganhando significados distintos e sendo imaginada de múltiplos modos. Cada significação atribuída à Amazônia em diferentes períodos históricos configurou essa região a partir de determinadas especificidades, demarcando maneiras variadas de pensar e intervir nela conforme os interesses vigentes nestes períodos. Além disso, não podemos considerar que cada invenção da Amazônia substitui a outra, eliminando os vestígios das significações anteriores, visto que, ainda hoje, observamos alguns discursos que emergiram em épocas remotas imiscuídos nesse processo constante de inventar, “desinventar” e reinventar essa região. Como destaca Guimarães (2006), entender as significações sobre essa floresta como configurações tecidas na história e na cultura possibilita desnaturalizar significados “colados” à Amazônia, que podem até ser pensados como inerentes a ela de tanto que foram enunciados e repetidos. Essas significações se espalham nas mais diversas instâncias da cultura: na literatura, nas políticas públicas, nas fotografias e ilustrações, nos estudos científicos. No presente, a mídia de massa certamente desempenha um papel de destaque no que concerne a colocar em circulação significados sobre essa região, sobre a floresta e seus moradores, atuando como um dispositivo pedagógico extremamente eficiente. Se no passado a literatura e os relatos dos viajantes se encarregavam de construir uma armação de sentidos atribuídos àquela floresta, nos nossos tempos a televisão, jornais e revista e, mais recentemente, a internet atuam de 1

Possui graduação em Ciências Biológica e mestrado e doutorado em Educação. Professora da Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ. Email: [email protected]

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maneira decisiva na reverberação e produção dos modos como as pessoas imaginam a Amazônia. Sendo assim, as imagens da floresta amazônica se atualizam por meio de uma miríade de invenções que se processam (ou se processaram) nas mais diversas instâncias. Mas não podemos esquecer que algumas invenções são vistas como mais “verdadeiras” que outras, a partir de uma legitimação que se dá social e culturalmente. Albuquerque Junior (2007) diz que as evidências históricas são o resultado de uma visibilidade e de uma dizibilidade social e historicamente localizadas, ou seja, no mesmo ato em que determinados eventos são colocados em evidência, outros tantos acontecimentos são “esquecidos” ou jogados para os bastidores. Portanto, não podemos pensar em um evento histórico “que não seja produto de dadas relações sociais, de tensões, conflitos e alianças, de dada forma de organização da sociedade, produto de práticas e atitudes humanas, individuais e coletivas” (p.27). Por isso, considero importante salientar que há muitas narrativas sobre a Amazônia que são menos investidas de poder e, portanto, não participam (ou melhor: participam menos) da instituição dos “fatos”. Os fatos tomados como verdadeiros são sempre produto de seleções, negociações, construções e, também, de silenciamentos. O exercício que pretendo fazer nesse texto tem o intuito de se mover entre esses extremos, entre as zonas mais claras ou expostas e as mais escuras ou silenciadas, tentando entrever que Amazônias se inventam nesses nossos tempos. Para isso, vou percorrer alguns discursos mais socialmente legitimados, valendo-me especialmente das análises que fiz de textos publicados em jornais brasileiros de grande circulação. Esses discursos ecoam com intensidade em outros meios, em outros artefatos da nossa cultura. São discursos que podemos reconhecer com facilidade, pois lidam com significações que nos são, de certo modo, familiares. Eles inventam uma Amazônia que nos acostumamos a ver na televisão, nos livros didáticos, nos jornais, em comerciais, em noticiários. Por outro lado, me interessa também vasculhar um pouco outras invenções da Amazônia, mais desestabilizadoras, menos evidentes e que possam provocar alguns estranhamentos. Nesse ponto, me aproximo da definição de invenção delineada por Lazzarato (2006). Ele pensa a invenção como algo que visa suspender dentro do indivíduo ou da sociedade aquilo que já está constituído, que se tornou habitual, promovendo “o encontro de forças que carregam em si mesmas uma nova potência, uma nova composição, fazendo emergir – e, portanto, atualizando – forças que eram apenas virtuais” (ibid., p.44). Invenção assume, então, um sentido de algo que irrompe, que inaugura e, por isso mesmo, escapa das narrativas hegemônicas e consensuais. Buscando entrever estas forças virtuais, na última seção do texto faço um despretensioso passeio por vídeos, textos acadêmicos e literários que possam acionar discursos outros sobre a Amazônia. Invenções de uma floresta sustentável nas páginas dos jornais Dentre tantos enunciados que concorrem pela invenção da floresta na contemporaneidade, busquei olhar mais cuidadosamente para aqueles que promovem uma

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articulação entre a floresta e as populações “tradicionais” 2 - como povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros, entre outros -, pois identifico em muitos discursos ambientalistas uma exaltação do modo de vida dessas populações. Isso porque, diante das considerações sobre o baixo impacto ambiental das atividades de subsistência de populações indígenas e tradicionais, alguns discursos começaram a caracterizá-las como naturalmente conservacionistas. Ou seja, propagou-se a visão de que estes povos viviam em harmonia com a natureza e, consequentemente, deveriam ser considerados automaticamente aliados na causa ecológica. Não tive a intenção de refutar tais asserções, mas refletir sobre os efeitos subjetivadores produzidos pelos discursos que convocam determinados indivíduos a ocuparem a posição de “nativos ecológicos”. Além disso, a sedução exercida pela noção de população tradicional vincula-se ao desejo de que estas possam materializar uma forma sustentável de habitar o mundo, constituindo uma alternativa ao modelo hegemônico de desenvolvimento. E aqui podemos realçar como a sustentabilidade funciona estrategicamente como um poderoso dispositivo que modula os nossos modos de ser e estar no mundo, configurando discursivamente não apenas as formas que poderiam ser consideradas “corretas” de se habitar a floresta, mas também implicando a todos nós, mais ou menos “tradicionais”, na idealização de um modo de viver e nos relacionarmos com a natureza (SAMPAIO; GUIMARÃES, 2012). Ao garimpar enunciações sobre a Amazônia nos jornais brasileiros, pude perceber uma certa aversão a posicionamentos extremados relativos às formas de conduzir as atividades nessa região, especialmente aqueles expressos na conhecida dicotomia entre desenvolvimento e preservação. Pareceu-me, então, que uma das lições sobre a floresta amazônica presente nos jornais analisados 3 pode ser expressa na asserção de que a floresta deve ser mantida em pé, mas não como um santuário – ou seja, como um lugar sagrado que estaria fora do alcance dos seres humanos. Assim, muitos textos sublinhavam reiteradamente que o melhor caminho para o desenvolvimento da Amazônia seria conseguir produzir e lucrar mantendo a floresta em pé.

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Uso aspas a fim de mostrar que não tomo essa categoria como dada ou natural. A definição de população tradicional também não é algo simples. Como evidencia a renomada antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (2009), definir estas populações pela mera adesão a uma suposta tradição seria contraditório frente aos conhecimentos antropológicos atuais. Ao mesmo tempo, a autora reconhece que defini-las pelo seu reduzido impacto ambiental, para depois afirmar que são ecologicamente sustentáveis, não passaria de tautologia, pois, se elas forem definidas como populações que estão fora das relações de mercado, elas praticamente não existirão no presente. A solução provisória apresentada por Carneiro da Cunha é definir essas populações de maneira “extensional”, enumerando integrantes (ou aspirantes a integrantes), o que resulta na ênfase da criação e da apropriação desta categoria identitária. 3 Faço a ressalva de que, devido ao tamanho máximo do texto e à necessidade de conseguir abordar os assuntos prometidos, não irei apresentar excertos dos jornais ou citar todas as reportagens em que observei tal ou qual argumento. Esse cuidado foi bastante presente na apresentação das análises da tese. Sendo assim, nessa seção irei apresentar, de forma bastante resumida e pouco aprofundada, algumas das principais “lições” sobre a Amazônia que pude verificar com estarem sendo “ensinadas” pelos jornais estudados (O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Valor Econômico).

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Os jornais examinados costumavam noticiar uma série de iniciativas tidas como bemsucedidas por congregarem a realização de atividades econômicas consideradas sustentáveis já que não acarretavam a supressão da floresta. Pude perceber, então, que a noção de desenvolvimento sustentável vem se constituindo como uma ferramenta estratégica para que se proponha a formulação de um desenvolvimento que seja adequado às especificidades da região amazônica. A palavra sustentabilidade (ou sustentável) estava presente em grande parte dos textos analisados. Como indica Lima (2003), sustentabilidade tornou-se uma “palavra mágica”, usada pelos mais diferentes sujeitos, nos mais variados contextos e com as mais diversas finalidades. Com base nestes aspectos, não é de surpreender o fato de que representantes dos setores produtivos (mesmo aqueles mais desenvolvimentistas) estejam valendo-se, cada vez mais, de tal noção. Em outras palavras, pode-se dizer que o discurso da sustentabilidade não é enunciado apenas por aqueles sujeitos que assumem posições críticas ao modelo econômico vigente, mas se amplifica por toda a sociedade. A floresta amazônica vem sendo, então, cada vez mais enredada por este discurso, como se ele garantisse, por si só, uma resposta para todas as dificuldades que sempre rondaram a gestão deste espaço. Mesmo as populações tradicionais são cada vez mais instadas a se valerem de tal discurso ecológico-econômico. A esse respeito, Saraiva e Veiga-Neto (2009) assinalam que na governamentalidade neoliberal é necessário intervir para que todos entrem no jogo econômico e, no caso, no jogo de uma economia agora descrita como sustentável. Logo, nada nem ninguém pode estar de fora deste jogo, nem os índios da Amazônia, nem mesmo a própria floresta amazônica, que passa a ser balizada pelos valores de mercado. A floresta frágil e ameaçada só pode ser “salva” mediante sua conversão em uma “floresta produtiva” (e lucrativa). Assim, o que se diz atualmente sobre a Amazônia nas páginas dos jornais estudados é modulado, de modo predominante, pelos discursos econômicos agora repaginados pelos apelos relacionados ao desenvolvimento sustentável, associando-se ao imperativo de “esverdear” o capitalismo. E na construção de uma Amazônia sustentável as populações indígenas e tradicionais são instituídas como atores fundamentais, tendo em vista o seu baixo impacto ambiental. Muitos textos analisados fazem alusão à função ecológica que as terras indígenas desempenham, mencionando pesquisas, levantamentos, dados de imagens obtidas por satélites para comprovar os baixos índices de desmatamento nestas áreas. Sendo assim, estes dados são utilizados para aferir uma maior legitimidade à argumentação sobre a relevância destes espaços (e destes sujeitos) para a manutenção da diversidade biológica. Como aponta Carneiro da Cunha (2009, p.272),“a Floresta Amazônica e a biodiversidade interessam ao mundo e o mundo está disposto a pagar por elas”. Foi interessante constatar como essa questão se articula nos jornais que foram pesquisados, visto que um dos aspectos que recebia uma atenção destacada na cobertura jornalística sobre a Amazônia era a repercussão dos debates sobre as mudanças climáticas globais nas matérias dos jornais (lidei com textos publicados entre 2007 e 2011). Muitos textos ressaltavam a importância das populações tradicionais para a conservação da floresta e

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indicavam a necessidade de se pensar em como estas poderiam ser beneficiadas por cumprirem o papel de conservar o carbono estocado nas árvores da floresta amazônica. Isso se conecta a um longo debate acerca das possibilidades de negociação em termos de créditos de carbono pelo “desmatamento evitado”. Ou seja, de forma bem simplificada, poder-se-ia dizer que uma empresa interessada em “neutralizar” suas emissões de gases estufa viria a negociar como de fato algumas vêm fazendo – diretamente com populações tradicionais. Claro que o processo é bem mais complexo e, na maior parte das vezes, essas negociações possuem vários “mediadores”, mas o que interessa destacar são as consequências destes enunciados para a constituição de uma forma de pensar a floresta amazônica e as populações tradicionais. A intensificação dos debates sobre as mudanças climáticas propicia o surgimento de um “novo mercado”, que agora negocia em termos de créditos de carbono, o que agrega novos elementos aos debates sobre as compensações a serem destinadas às populações tradicionais. Dessa forma, além de guardiãs da floresta, estas populações passam a ser vistas, cada vez mais, como guardiãs do carbono, que se espera que continue armazenado na floresta. Junto a tais reconfigurações das relações sociais, econômicas e culturais que se processam na contemporaneidade, caberia, ainda, ressaltar que os enunciados sobre as mudanças climáticas promovem e intensificam a articulação entre as populações tradicionais, a floresta amazônica e os mecanismos de mercado. Com base nestes aspectos, uma das conclusões possíveis acerca da atuação dos discursos contemporâneos sobre a Amazônia refere-se ao papel destacado que o mercado vem assumindo no jogo de forças relativo ao que deve ser feito com a floresta e com suas populações tradicionais. Isso permite ressaltar que os enunciados sobre as mudanças climáticas atualizam e reforçam o dispositivo da sustentabilidade, uma vez que fazem emergir novas formas de ver e enunciar a floresta amazônica, as quais entrelaçam mais fortemente as populações tradicionais aos discursos sobre o desenvolvimento sustentável, produzindo renovadas táticas de subjetivação e de regulação dos indivíduos que aderem a tal categoria identitária. Em suma, podemos considerar que essas são algumas das lições que podemos aprender sobre a Amazônia e seus habitantes “tradicionais” ao folhearmos as páginas de um jornal – mas que, certamente, perpassam outras instâncias de produção e veiculação de discursos nestes nossos tempos. Pistas de outras invenções No final da pesquisa, depois de me deter longa e detidamente nas enunciações que têm construído a Amazônia enquanto um espaço particularmente propício ao desenvolvimento sustentável, questionava-me sobre o que não cabe nessa forma de narrar a floresta e as populações tradicionais: o que sobra, o que silencia, o que foge, o que não se encaixa. Perguntava: Que outras coisas se pode falar sobre os povos amazônicos e sua relação com a floresta? Que outras tradições se pode inventar? Que outras relações com a “natureza” escapam do vocabulário da sustentabilidade? Que outras vozes podem ser escutadas e que estórias elas contam sobre as relações entre humanos e não-humanos? Ainda que, neste

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estudo, não tenha me dedicado a pensar de modo sistemático acerca de tais questões, a própria imersão neste tema me levou a estar mais atenta aos diferentes textos culturais sobre esta região. Então, na medida em que eu me aproximava dos enunciados que inventavam a Amazônia como uma “floresta sustentável”, eu também ansiava por estar em contato com outros textos e imagens que me ajudavam a refletir inclusive sobre as visibilidades diferenciais destes diferentes discursos sobre tal espaço. É por esse motivo que chamo de pistas de outros modos de inventar a Amazônia. Não houve um esforço investigativo nessa direção, mas um olhar distraído e, ao mesmo tempo, interessado por estes outros significados que podem se vincular à floresta e suas formas de ser habitada. Exercitar outros olhares, em busca de outros sentidos para o ambiente em nossa relação com ele, é uma espécie de desafio de alguns pesquisadores-educadores que têm buscado articular educação ambiental e estudos culturais. A proposta seria incentivar os trânsitos pela cultura, pelas práticas que criam sentidos a serem compartilhados, recriados e reinventados como uma perspectiva teórico-prática em educação ambiental, como realça Guimarães (2012). Ao mesmo tempo, se busca combater narrativas muito sedimentadas em torno das questões socioambientais, como as que apresentei sobre a floresta amazônica e as populações tradicionais. Se, como diz Massey (2009), o espaço pode ser entendido como uma simultaneidade de estórias-até-agora, indago por outras estórias que têm sido contadas sobre a Amazônia e seus habitantes. Uma das estórias que gostaria de colocar em destaque provém justamente do meio acadêmico. Embora este exercício de fazer proliferar significados sobre ambiente tenha muito a ganhar ao nos aproximar de práticas e discursos menos conformados pelos rigores acadêmicos, foi no campo da antropologia que encontrei uma das maiores inspirações para tentar pensar em outras invenções sobre a floresta amazônica e seus moradores. Refiro-me especialmente à obra de Eduardo Viveiros de Castro 4, devido aos grandes deslocamentos que seus escritos (que possuem um tom deliciosamente literário) podem proporcionar nos discursos ambientalistas, especialmente aqueles que tematizam as relações entre povos tradicionais - principalmente indígenas – e a natureza. Trazendo profusões de referências de origens diversas em seu texto, como Deleuze e Guattari, Guimarães Rosa, Bruno Latour, Oswald de Andrade, o antropólogo traça outras conexões para falar das relações entre os povos indígenas da América e o meio em que vivem, em uma armação conceitual mundialmente conhecida como Perspectivismo Ameríndio. Em termos bastante resumidos e possivelmente insuficientes para mostrar a riqueza dessa teorização, pode-se dizer que o perspectivismo indígena delineado por Viveiros de Castro tem a potência de fornecer explicações que embaralham as certezas sobre nossas diferenças e semelhanças diante de outros seres vivos. Não que o antropólogo proponha 4

Professor e pesquisador do Museu Nacional da UFRJ. Sua obra pode ser acessada em livros, artigos acadêmicos, sites, entrevistas disponíveis no youtube, programas televisivos. Enfim, este antropólogo brasileiro é incontestavelmente reconhecido - inclusive internacionalmente – tendo chegado até a estampar a matéria de capa da revista mensal Piauí (n. 88, jan/2014).

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algum viés pedagógico ou aplicável de sua teoria; o perspectivismo seria um modelo de pensamento que aparentemente é comum a muitos povos indígenas americanos e contrasta com nossa epistemologia naturalista ocidental, que pressupõe uma polarização entre natureza e cultura. Segundo ele (2005, p.126): “se pudéssemos caracterizar em poucas palavras uma atitude básica das culturas indígenas, diríamos que as relações entre uma sociedade e os componentes de seu ambiente são pensadas e vividas como relações sociais, isto é, relações entre pessoas”. Os exemplos apresentados pelo autor são extremamente fascinantes, mas não haveria como abordar neste momento. Em uma entrevista, Viveiros de Castro dá ênfase para o potencial político de sua teoria e isso é especialmente pertinente para o propósito deste texto. Ele diz que: Quanto à possibilidade de utilizar o conceito de perspectivismo ameríndio para borrar ou fractalizar as fronteiras entre as ciências sociais (e naturais, não esqueçamos da biologia e da ecologia, das teorias do vivente) e a arte, isto é algo que me interessa muito de perto (...). Começo por lembrar que a literatura brasileira (e latino-americana, e mundial) atinge um de seus pontos culminantes no espantoso exercício perspectivista que é “Meu tio, o Iauretê”, de Guimarães Rosa, a descrição minuciosa, clínica, microscópica, do deviranimal de um índio, que é antes, e também, o devir-índio de um mestiço , sua retransfiguração étnica por via de uma metamorfose, uma alteração que promove ao mesmo tempo a desalienação metafísica e a abolição física do personagem (...). Chamo a esse duplo e sombrio movimento, essa alteração divergente, de diferOnça, fazendo assim uma homenagem antropofágica ao célebre conceito de Derrida (2005, p. 128, grifos do autor).

A partir disso, gostaria de destacar o quão instigantes podem ser os desdobramentos dessa narrativa antropológica para se promover algumas fissuras neste ideário da Amazônia descrita sob o discurso da sustentabilidade, em seu tom afinado com as narrativas do capital, do olhar pragmatista para as populações tradicionais como “guardiãs” da biodiversidade, do carbono ou do que mais for considerado valioso pelas forças econômicas, políticas e tecnocientíficas vigentes em cada momento. Trilhar e se aprofundar nessas discussões pode auxiliar, sem dúvidas, a pensar em outras relações com a natureza para além da gramática da sustentabilidade. Outras estórias sobre os povos amazônicos e sua relação com a floresta podem ser encontradas em textos literários, que não têm o compromisso de se enquadrar nos limites do política e ambientalmente “correto”, permitindo a construção de narrativas inventivas e transgressoras. Na busca por me deixar contaminar por narrativas diferentes daquelas lidas nos textos jornalísticos, li todos os livros de Milton Hatoum, os quais me ajudaram a imaginar uma Amazônia bem diferente, mais nuançada, cotidiana e híbrida. Uma Amazônia descrita pelas narrativas épicas familiares, repletas de detalhes sobre os costumes e o cotidiano; a decadência de Manaus; a mescla e o conflito entre culturas que ali convivem e se confrontam; uma região em que o encontro entre o tradicional e o moderno produzem situações inusitadas,

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acontecimentos trágicos; a floresta quase oculta na trama, mas que, ao mesmo tempo, é de fundamental importância para tudo que se passa nos romances, atuando como um personagem silencioso e onipresente. Impactou-me a proeza do autor em nos apresentar uma Amazônia absolutamente distinta daquela que estamos acostumados a ver na mídia e em outros textos culturais, que frequentemente frisam o exotismo, a diferença, a natureza selvagem. A Amazônia de Hatoum, por outro lado, nos parece estranhamente familiar: lá acontecem situações que poderiam ocorrer em qualquer outro lugar do mundo, apesar de o contexto ser absolutamente fundamental para o tecer das histórias. Os discursos ambientalistas quase não têm vez nos romances deste escritor, com exceção do livro Cinzas do Norte (HATOUM, 2010), que apresenta algumas questões intrigantes acerca da degradação socioambiental de Manaus em função de estratégias agressivas de desenvolvimento e urbanização ocorridas no período militar. Além disso, nesse livro há uma clara crítica aos clichês sobre a Amazônia, a partir da apresentação de um personagem que é artista plástico e se vale de narrativas visuais hegemônicas sobre a região – por exemplo, a floresta majestosa, a fauna exuberante, estereótipos da cultura local folclorizada – para obter sucesso e enriquecimento rápidos. De certa forma, esse personagem pode ser pensado como a antítese do escritor, que recusa essas narrativas fáceis e idealizadas sobre a região. Apesar disso, essas “narrativas-clichê” correspondem ao que, usualmente, se costuma ver e ouvir sobre a floresta amazônica, seus “marcadores culturais” naturalizados: um pastiche destinado a promover o turismo e produzir um assombro calculado no espectador/turista/leitor. Outra estratégia politicamente interessante que pode contribuir com a multiplicação de formas de imaginarmos a Amazônia para além do dispositivo da sustentabilidade consiste em dar visibilidade às estórias contadas pelas pessoas que moram na floresta amazônica. Ouvir/ver narrativas de indígenas, ribeirinhos, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu... Mas como fazer essas narrativas ultrapassarem o âmbito do local onde são criadas e se misturarem aos repertórios discursivos nacionais e globais sobre a Amazônia? Como o movimento indígena apresenta uma trajetória mais consolidada (e antiga), além de uma força maior – em termos de direitos adquiridos e de organizações internacionais que os apoiam – do que outros povos tradicionais, as ações protagonizadas pelos mesmos têm uma maior visibilidade e, com isso, acabam se tornando mais conhecidas. Dentre essas ações, gostaria de mencionar uma em especial: o projeto Vídeo nas Aldeias 5. Com quase 30 anos de existência e cerca de 70 filmes produzidos, a proposta é criar um acervo de imagens dos 5

De acordo com informações obtidas no site do projeto, ele existe desde 1986, foi criado pelo cineasta Vincent Carelli, e busca incentivar a produção audiovisual de comunidades indígenas, por meio da disponibilização de equipamentos e de oficinas de produção audiovisual. “O VNA [Vídeo nas Aldeias] foi se tornando cada vez mais um centro de produção de vídeos e uma escola de formação audiovisual para povos indígenas. Desde o “Programa de Índio” para televisão em 1995, até a atual Coleção Cineastas Indígenas, passando por todas as oficinas de filmagem e de edição do VNA, em parceria com ONGs e Associações Indígenas, o projeto coloca a produção audiovisual compartilhada ao centro das suas preocupações.” Informações obtidas em http://www.videonasaldeias.org.br/2009/index.php.

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povos indígenas do Brasil e fomentar a produção de audiovisuais pelos próprios indígenas. Os vídeos são disponibilizados gratuitamente na homepage do projeto. Além disso, também é possível fazer o download do livro-vídeo intitulado “Cineastas indígenas para jovens e crianças”, que traz um guia didático que aborda uma seleção de 6 filmes com temáticas mais voltadas para o público infanto-juvenil 6. O cuidado na elaboração deste material didático é notável e a maneira de abordar as temáticas trabalhadas não recaem em estereótipos nem numa excessiva didatização. Dentre os seis vídeos abordados na publicação, gostaria de colocar em relevo um que considero muito especial, que se trata de um dos vídeos mais conhecidos de todo o projeto e se chama “Das crianças ikpeng para o mundo”. Ele tem o formato de uma vídeo-carta em que crianças da etnia (que vive no Parque Indígena do Xingu) contam como é o seu dia-a-dia, o que eles fazem, onde vivem, do que brincam, do que gostam, como é a aldeia deles. Ao final do vídeo, eles pedem uma resposta: solicitam que o espectador conte como é a sua vida. Dessa maneira, o vídeo – além de oportunizar que os próprios jovens e crianças ikpeng descrevam sua vida – se abre para o diálogo com outros modos de existir, de se relacionar com a natureza, de se divertir, de ser jovem/criança. O formato postal funciona, portanto, como um dispositivo que potencializa que outras narrativas sejam engendradas, inventadas, construídas. E, inclusive, que outros povos que vivem na Amazônia possam criar as suas próprias. Por ser uma carta e também por terminar com uma pergunta, o vídeo pode nos ajudar a entender que a narrativa das crianças ikpeng sobre a vida delas na Amazônia descreve uma das formas possíveis de se habitar a floresta, não a única. Por ter crianças como protagonistas, mostrando o seu olhar sobre o lugar em que vivem, o filme se constrói com uma certa leveza, pois quem narra a estória não é uma liderança, um adulto, um representante dos moradores da aldeia, mas as crianças que vivem lá. Assim, as crianças vão mostrando as coisas e os lugares, dando risadas, conversando com as pessoas que encontram, sem a pretensão de dizer como realmente se vive naquela aldeia, sem a intenção de construir uma identidade para elas mesmas, nem uma versão definitiva sobre sua relação com aquele espaço. Essas características do vídeo me fazem considerá-lo um artefato extremamente produtivo para inspirar práticas em educação ambiental, além de contribuir para a invenção de novas formas de imaginar a Amazônia justamente por permitir que ouçamos outras vozes, além dos discursos tecnocientíficos, ambientalistas ou econômicos. As narrativas engendradas a partir deste filme podem nos auxiliar também a pensarmos na invenção de outras tradições mediadas e recriadas por aparatos tecnológicos, como os envolvidos na produção de um filme. Caberia ainda perguntar: quantas outras estórias podem ser contadas sobre a Amazônia? Quantas Amazônias ainda podem ser inventadas? Embora não tenha sido possível convidar uma quantidade maior de narrativas para compor este texto, nem ao menos olhar mais analiticamente para as estórias que escolhi, penso ter contemplado o propósito de mostrar 6

Mais informações podem ser obtidas no site http://videonasaldeias.org.br/2009/noticias.php?c=64

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outras leituras da relação entre a floresta e as populações tradicionais que não se limitam aos enunciados que inventam a Amazônia sob o regime discursivo e imagético da sustentabilidade. Haveria muitas outras possibilidades de invenção que sequer mencionei e que poderiam mobilizar significados potentes e transgressores sobre a floresta. Porém, o que importa mesmo é reforçar e defender a pluralidade de modos de construir discursivamente a floresta amazônica. Não há, nem pode haver, uma narrativa uniforme sobre a Amazônia (ou sobre qualquer outro lugar), porque não há apenas uma Amazônia: há diversas maneiras de narrar e inventar esse espaço. Por fim, gostaria de dizer que esse posicionamento se conecta com uma forma de pensar e fazer educação ambiental (talvez não tão consensual nem popular como outras) que a entende como catalisadora de narrativas sobre a natureza que não se enquadram ou encaixam em um fluxo único, ou que desemboquem em uma narrativa considerada a mais correta. Ao invés disso, a partir dessa perspectiva, engajo-me na busca por uma educação ambiental que deseja a proliferação de estórias sobre as nossas relações com a natureza, que entende a produção (e a “contação”) dessas estórias como um ato educativo interessante, expansivo, produtivo. Referências ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. História: a arte de inventar o passado. Bauru: EDUSC, 2007. CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. GUIMARÃES, L. B. Apresentação. Perspectiva (UFSC), v. 30, p. 395-409, 2012. _______. Um olhar nacional sobre a Amazônia: apreendendo a floresta em textos de Euclides da Cunha. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2006. HATOUM, M. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. LAZZARATO, M. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. LIMA, G. C. O discurso da sustentabilidade e suas implicações para a educação. Ambiente & Sociedade, v. VI, n. 2, p.99-119, jul./dez. 2003. MASSEY, D. B. Pelo espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

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SAMPAIO, S. M.V. Uma floresta tocada apenas por homens puros... Ou do que aprendemos com os discursos contemporâneos sobre a Amazônia. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2012. __________.; GUIMARÃES, L. B. O dispositivo da sustentabilidade: pedagogias no contemporâneo. Perspectiva (UFSC), v. 30, p. 395-409, 2012. SARAIVA, K; VEIGA-NETO, A. Modernidade Líquida, Capitalismo Cognitivo e Educação Contemporânea. Educação & Realidade, Porto Alegre, vol.34, n.2, p. 187-201, mai/ago 2009. VIVEIROS DE CASTRO, E. Eduardo Viveiros de Castro. Coleção Encontros, SZTUTMAN, Renato (org.). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. __________. O perspectivismo ameríndio ou a natureza em pessoa. Ciência & Ambiente, Santa Maria, n.31, jul/dez, 2005. p.122-132.

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LA RABIA: GRITOS E SENSAÇÕES Pamela Zacharias Sanches Oda 1 “(...) A raiva me tem salvo a vida. Sem ela o que seria de mim? Como suportaria eu a manchete que um dia saiu no jornal dizendo que cem crianças morrem no Brasil diariamente de fome? A raiva é a minha revolta mais profunda de ser gente? Ser gente me cansa (...)” Clarice Lispector

Clarice, em sua crônica, faz algumas reflexões sobre o sentimento de raiva que podem apontar caminhos para o encontro com o filme “La Rabia” de Albertina Carri. No filme argentino, a raiva parece, ao mesmo tempo, destruir as personagens, mas também ajudá-las a suportar a existência. Destruir, pois tal qual a doença contagiosa dos bichos, a raiva é transmitida de um a outro, de geração a geração, perpetuando formas de submissão e subjugação, em um ciclo do qual não parece ser possível escapar. Contudo, é também através da raiva que Nati, personagem central do filme, consegue extravasar e romper minimamente com o contexto opressor e sufocante em que vive. Poderíamos dizer que, talvez, a raiva de Nati, assim como a de Clarice, seja a sua “revolta mais profunda de ser gente”. Ser gente cansa. No filme de Albertina Carri, ser gente se confunde com não ser gente. As personagens habitam uma zona de indiscernibilidade, da realidade de um devir-animal (Deleuze, 2007, p 32). No contexto rural, em que há poucas pessoas e no qual as personagens interagem mais com a natureza e com os bichos do que entre si, os seres humanos têm um comportamento bastante animalizado, agindo hora por instintos, hora por convenções. A obra, repleta de características naturalistas, apresenta uma natureza que também expira raiva, que é violenta e que, em alguns momentos, lembra o cenário de um filme de terror. A história se passa no campo e traz como núcleo duas pequenas famílias: a de Nati, composta por ela e seus pais: Alejandra e Poldo; e a dos vizinhos: Ladeado e seu pai Pichòn. Ladeado é um garoto com cerca de doze anos de idade que vive com seu pai e é explorado por ele. Ladeado trabalha do amanhecer ao anoitecer cuidando das plantas e das criações do sítio e é sempre duramente punido por seu pai quando qualquer coisa de errado ocorre. A dureza lhe é imposta e cobrada. Quando Ladeado aparece na tela, logo no início do filme, já protagoniza uma cena impactante por sua violência. O garoto carrega um saco que bate com toda a força contra uma árvore. Depois de algumas batidas, ele espia dentro do saco e, aparentemente insatisfeito, sai caminhando. Na cena seguinte, ele está à beira de um lago e atira o saco lá dentro. Neste momento, descobrimos algo do qual já desconfiávamos: há um animal dentro saco, que debate-se e luta para respirar e sobreviver. O que ocorre? Estaria

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Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Campinas – SP. Email: [email protected]

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Ladeado fazendo aquilo por prazer? No decorrer do filme, vemos que não, ele apenas precisa matar as doninhas que atacam o galinheiro à noite. Ele cumpre uma obrigação imposta pelo pai e pela vida no campo. Ladeado aprende a violência, que, apesar de banalizada e corriqueira não lhe é menos nociva. O menino manco, que sempre veste trapos e que caça para se alimentar odeia o pai. Em uma cena ele desabafa num murmúrio: “nãos serve nem para ser pai”. Depois deste comentário, o pai lhe proíbe de encontrar-se com Nati e, quando Ladeado o desobedece, é violentamente punido. A raiva nele cresce. A raiva que aparece de forma seca e violenta nos homens daquele lugar lhe é ensinada e lhe vai tomando conta, feito doença, cada vez que suas relações afetivas são castradas. Sua amizade com Nati, em dado momento, é proibida, e a relação com seus cães, que vão com ele a todos os lugares, também sofre danos: Ladeado é obrigado a ver o próprio cachorro ser morto pelo pai de Nati, porque ele atacava suas ovelhas. O menino enterra o animal e, à medida que o faz, vai enterrando também a sensibilidade que ainda resiste. O endurecimento pelo qual Ladeado passa é uma espécie de processo para se tornar adulto. Percebemos que é provavelmente uma trajetória próxima a que teve seu pai, uma trajetória rumo ao esgotamento da sensibilidade, ao desumanizar-se, ao viver em função de necessidades e não de sentimentos. Além disso, é nítida a diferença de criação e comportamento que há entre os gêneros e as idades. Mulheres e crianças são submissas e vivem com medo; não podem responder aos homens, quando o fazem, apanham. Isso ocorre com Alejandra em uma cena em que Poldo lhe bate porque ela o contraria para defender Pichón; e com Ladeado, que, ao desobedecer ao pai que lhe havia proibido de encontrar-se com Nati, leva uma surra dele, sendo este um dos momentos mais violentos do filme. Nati é criança e mulher e, como veremos adiante, não aceita o comportamento que tentam lhe imprimir. Contudo, voltando aos homens, vemos que Pichón, pai de Ladeado, vive de forma bruta e insensível e é uma das personagens mais animalizadas do filme. Ele é violento e age como um bicho dominador, em função de seus instintos, principalmente, sexual. Pichòn tem um caso com Alejandra, mãe de Nati e, na maioria das cenas em que aparece, está transando com ela. O sexo é violento, machuca e subjuga Alejandra – a fêmea à mercê dos machos. O sexo dos bichos; o sexo com os bichos. Em uma cena, Poldo comenta que Pichòn vive tendo relações sexuais com os animais da fazenda. Homem e bicho se misturam e se confundem: Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio. Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles; parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós. (...) Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa – há de respeitar-lhes a natura – eu é que me animalizo (LISPECTOR, 1999, p. 334)

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Percebemos que, de fato, a relação com os animais é muito intensa, afetiva e carnal, em uma mistura que pode nos remeter à discussão que Deleuze faz sobre o devir-animal acerca da obra de Bacon (Deleuze, 2007). Há, em especial, uma cena do filme que se assemelha muito aos quadros de Bacon e é muito impactante (pelo menos para quem não está acostumado a visualizá-la), trata-se de o abate de um porco. O animal grita visceralmente prevendo seu fim. Nós acompanhamos cada etapa de seu preparo: da morte à mesa. O tronco do bicho pendurado talvez pareça um corpo humano 2.

A vianda não é uma carne morta, ela guarda todos os sofrimentos e toma sobre si as cores da carne viva. Um tanto de cor convulsiva e de vulnerabilidade, mas também de invenção sedutora, de cor e de acrobacia. Bacon não pede “piedade aos bichos”, mas sim que todo homem que sofre é a vianda. A vianda é a zona comum do homem e do bicho, sua zona de indicernibilidade, ela é este “fato”, este estado mesmo em que a pintura se identifica aos objetos de seu horror ou de sua compaixão (...) O romancista Moritz, no final do século XVIII, descreve um personagem de “sentimentos bizarros”: uma sensação extrema de isolamento, de insignificância quase igual à negação; horror de um suplício, ao assistir à execução de quatro homens, “exterminados e esquartejados”; os pedaços destes homens “jogados na rua” ou sobre a balaustrada; a certeza de que somos singularmente implicados, que somos toda esta vianda atirada, que o espectador já é o espetáculo, “massa de carne ambulante”; daí a ideia de que os animais mesmos são o homem, e de que nós somos tanto o criminoso quanto o gado; e ainda este fascínio pelo animal que morre (...). (DELEUZE, 2007, p. 12s)

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Três estudos para uma crucificação – 3. 1962, óleo e areia sobre tela, 198.1 x 144.8 cm, Museu Solomon R. Guggenheim, Nova Iorque. As demais imagens são capturas do filme La Rabia.

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Podemos, então, interpretar que a relação com os animais é um dos eixos do filme de Albertina Carri. Com eles, dão-se as relações de afeto de Ladeado e com eles, também, Ladeado aprende a endurecer-se. Ele mata as doninhas, mas guarda uma para si em uma gaiola para que possa cuidar dela, amá-la. “Você será como meu cãozinho”, diz Ladeado em uma tentativa de domesticar o animal selvagem que, arrepiado, ruge e lhe mostra os dentes. Essas relações podem suscitar alguns questionamentos sobre aquelas pessoas: O que são os humanos? O que é ser gente? Essas personagens tão naturalistas, animalizadas e que agem por instintos tornam-se mais gente à medida que se desumanizam? Talvez haja ali uma zona de indiscernibilidade; um devir-animal. Não é um arranjo de homem e bicho, não é uma semelhança, é uma identificação de fundo, uma zona de indiscernibilidade mais profunda que toda identificação sentimental: o homem que sofre é um bicho, o bicho que sofre é um homem. É a realidade do devir. Que homem revolucionário, na arte, na política, na religião ou não importa onde, nunca sentiu este momento extremo em que ele próprio não passava de um bicho, e responsável, não pelos vitelos que morrem, mas frente aos vitelos que morrem? (DELEUZE, 2007, p. 13)

Entre os humanos e os animais do filme há muitas semelhanças. Todos têm um fim certo, predefinido: porcos, galinhas, cães, ovelhas, homens e mulheres. Não há saída, há uma sina a ser cumprida, seja o abate, as obrigações de um homem, as obrigações de uma mulher. Formas de ser bem definidas e das quais não se pode escapar. Os selvagens e incontroláveis, os indomesticáveis serão mortos, enterrados, amarrados em um saco e afogados. Mas não sem antes resistirem, os bichos não se entregam à morte sem se debater, há o rugido, os dentes, o grito ensurdecedor. Será com os bichos que Nati aprende formas de resistir? Nati é uma menina com cerca de sete anos que não fala. Ela é a primeira personagem a aparecer na tela: em meio ao campo que amanhece deserto e assustador, surge Nati, com sua pele pálida e seu vestido vermelho. Ela nos encara séria, com uma postura e um olhar de quem parece pronto a atacar caso precise. Parece um animal, um ser à espreita: “Se me perguntassem o que é um animal, eu responderia: é o ser à espreita, um ser, fundamentalmente à espreita. (...) é terrível essa existência à espreita.” (DELEUZE, 1994) 3 Nati caminha pelo campo e, em dado momento tira roupa. Tira a roupa como quem quer se libertar ou dizer algo. A menina muda sabe que sua mãe tem um caso com Pichòn, ela os espia. Há uma cena em que Nati entra na casa em que eles estão e os vê em meio à relação sexual. Alejandra está com uma peça de roupa no rosto, que o envolve como um saco, dificultando sua respiração. Sobre ela, Pichòn descarrega um furor sexual, que se potencializa quando ele percebe que a menina os observa. Ele parece um bicho sobre a presa, 3

Abecedário de Deleuze. Filme mostra série de entrevistas, feitas por Claire Parnet, foi filmada nos anos 19881989 e apresentado entre novembro de 1994 e maio de 1995, no canal (franco-alemão) de TV Arte. Disponível in: http://www.youtube.com/watch?v=JagcUtuyd4o Acesso em: 03/03/2014

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descontrolado e raivoso. Ladeado segue Nati e tampa seus olhos quando visualiza a cena que a garota presencia. Mas não é possível fechar seus olhos; a menina enxerga a tudo e a todos de forma crua. A atitude de Ladeado reflete outras que os demais personagens também têm em relação à garota. Estão sempre tentando fechar seus olhos. Querem moldá-la, domesticá-la, assim como Ladeado tentou fazer com a doninha selvagem. Seu pai lhe conta uma história assustadora sobre um fantasma que vive no campo e devora meninas que tiram a roupa. Alejandra lhe pergunta por que fica contando mentiras à garota. Ele responde: “alguém precisa ensiná-la”. Alejandra também a ensina, dizendo a Nati qual é seu papel de mulher e de criança, ela diz: “nós, grandes, brigamos, mas você é criança. Você tem que se comportar bem. Das crianças que se comportam bem, todos gostam” Quando Poldo é morto, ela diz à filha enquanto limpa a casa dos donos da fazenda: “não se preocupe, conosco isso não vai acontecer; ficamos aqui, deixamos tudo limpinho como gostam os patrões”. Em relação aos desenhos que Nati faz, Alejandra diz: “meninas desenham coisas bonitas, como flores e bichinhos”. Não Nati. Seus desenhos refletem o horror e a potência do mundo que seus olhos observam e que seu corpo, constantemente castrado, amarrado, sufocado, vivencia. Seus desenhos seriam a própria sensação. A sensação é o contrário do fácil ou do já feito, do clichê, mas também o contrário do “sensacional”, do espontâneo… etc. A sensação tem uma face voltada para o sujeito (o sistema nervoso, o movimento vital, o “instinto”, o “temperamento”, todo um vocabulário comum ao naturalista e a Cézanne), e a outra face voltada para o objeto (o “fato”, o lugar, o acontecimento). Ela pode também não ter face nenhuma, ser as duas coisas indissoluvelmente, ser o estar-no-mundo como dizem os fenomenologistas: por sua vez eu me torno na sensação e alguma coisa me acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro. (DELEUZE, 2007, p. 19)

A sensação emana dos desenhos que viram animações no filme e que, muito além de ilustrar o imaginário da menina, nos afetam através de signos-sensíveis, de traços-borrões que se fragmentam, explodem negros e desfazem-se vermelhos. O verde manchando-se de rubro, como que predizendo o sangue que manchará a terra, os corpos, e as almas, espalhando-se feito raízes, desdobrando-se em uma teia sem fim. Os desenhos de Nati mostram que, apesar de muda, ela é a única personagem do filme que se expressa, é a única que parece perceber o que ocorre a sua volta: toda repressão, violência, falta de ar. Ela vê as amarras e tenta se libertar. Ela diz, com seus desenhos, o indizível: “Pela arte, não se traduz o intraduzível da dor – a dor na terceira pessoa é uma ficção – mas cria-se o espaço de manifestação possível ao toque, através da disseminação do sofrimento vivido por quem sofreu desde dentro.” (VILELA, 2000, p. 50)

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Os desenhos de Nati 4 fazem parte do caminho que Albertina Carri encontra para criar este espaço de manifestação do sofrimento, do horror, da afecção: do Acontecimento, que, de tamanha violência, não pode ser expresso por palavras. Traços e manchas detonadores da tragédia e condenação, que agem como catalisadores do final. Esses desenhos-animações ajudam a tecer a atmosfera e o ritmo do filme, quando ocorrem, são os únicos momentos em que o som ambiente da trilha sonora é substituído por uma música, um rock pesado que se aproxima da natureza, nada bucólica, apresentada na obra. Porém, o desenho não é a única linha de fuga que Nati encontra. Há outra muito mais visceral: o grito. O grito que quebra com seu silêncio, que faz com que todos a ouçam. O grito perturbador, tão desesperado quanto o do porco às vésperas da morte. Gritos de resistência. A materialidade sensível manifesta, novamente, em situações de violência extrema em que palavras não conseguem habitar. As palavras são pura significação, que é o oposto do sensível. O grito de Nati não responde à significação, é sentido puro. Nati é a esquizofrênica, a habitante da fronteira, a que não é uma coisa nem outra. Representante das minorias silenciadas ou caladas pelo ruído incessante da linguagem e da comunicação. Aquela que faz ouvir o inaudível. Que traz à tona o devir minoritário de um povo por vir, de um povo sem linguagem. A menina, como a doninha presa, quer rasgar o saco, quer sobreviver. Romper com o ciclo que lhe mostra seu trágico destino: o de ser como a mãe, o de usar as roupas que lhe vestem à força, para seu controle e adestramento. O filme 4

Capturas do filme La Rabia.

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de Carri nos faz pensar formas de resistência, nos coloca à frente de um contexto de repressão que se dá no âmbito familiar e que reflete uma repressão muito maior, impregnada em tantos espaços que moldam a vida e que a sufocam. Mas por que controlar, prever, se depois o mundo não se deixará reter? Perder de vista o real é imprescindível em uma condição de dissolução do mundo, melancólica e para a qual a realidade é incompreensível. (...) Os encontros possíveis estão no intervalo entre imagens, no vazio e no silêncio. O cinema experimental, e as imagens-forças que cria, é um exemplo do possível encontro frustrado: sinto, mas não vejo. (AMORIM, 2008, p.16)

La Rabia é exemplo de um cinema que nos leva a esse encontro, muitas vezes, “frustrado”, o encontro da sensação provocada pela violência da câmera que revela o sexo, a natureza, o silêncio, o grito, a morte. Em um tempo lento que explode em raiva que vaza e extravasa. Referências AMORIM, A. C. Gritos sem voz. In: MACEDO, Elizabeth, MACEDO, Roberto Sidnei, AMORIM, Antonio Carlos (Orgs). Como nossas pesquisas concebem a prática e com ela dialogam? Campinas, São Paulo: FE/UNICAMP, 2008, p. 14-22. DELEUZE, G. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. LA RABIA. Direção de Albertina Carri. Local: Argentina/Holanda. Distribuidora: Bavaria Film International, 2008. 85 min. son. cor. LISPECTOR, C. Bichos (I). In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. VILELA, E. Silêncios Tangíveis. Corpo, resistência e testemunho nos espaços contemporâneos de abandono. Afrontamento: Porto, 2010.

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A POÉTICA DO (IN)VISÍVEL DA FRONTERIA BRASIL/URUGUAI NA OBRA DE FABIÁN SEVERO Moacir Lopes de Camargos Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem. Bertold Brecht

Enquanto tema, a extensa fronteira do Brasil com os países latino-americanos tem sido foco de discussão em diversas áreas do conhecimento. Podemos encontrar vários trabalhos de pesquisa no campo das ciências humanas cujo assunto é a fronteira brasileira. Esta serve como área de investigação para a linguística, a linguística aplicada, a sociologia, a antropologia etc. Mas, em se tratando da fronteira com os sete países vizinhos hispano falantes, sempre está em destaque na mídia o tráfico de drogas, uma vez que isso gera bastante violência. A região da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina é um exemplo de uma região de conflitos e violência gerada pelo tráfico de drogas e também pelo intenso comércio ilegal de mercadorias diversas como roupas, eletrônicos, armas etc. Quando a fronteira surge como tema de interesse na área da língua(gem), a atenção volta-se para um fato bastante conhecido pelos brasileiros: o uso do portunhol. Embora a linguística não considere o erro como negativo em se tratando de língua, e as pessoas fronteiriças interajam usando o portunhol, esse modo de falar das pessoas que vivem em zonas 1 de fronteira, na maioria das vezes, é visto com desprestígio, uma língua à margem que causa o riso, uma língua catada da boca do povo, pois não tem o status de língua como o português ou o espanhol que são sérias e possuem suas gramáticas. No que se refere à literatura e fronteira, embora haja muitas obras ou estudos que privilegiem as produções literárias surgidas em zonas de fronteira, sobretudo aquelas que elegem o portunhol como língua (?), estas não são foco de muito interesse. Um exemplo é o caso de Fabián Severo, poeta fronteiriço que nos oferece obras singulares sobre a fronteira Brasil/Uruguai, um espaço que nos convoca a pensar sobre os diálogos culturais e sociais que constituem esses locais longínquos dos grandes centros urbanos. Vale ressaltar que este poeta escreve em portunhol suas duas obras: Noite nu norte (2011) e Viento de nadie (2013). Como podemos ver, o poeta, em seu primeiro livro, no poema intitulado Des, anuncia sua língua (in)terdita que vira poesia e mostra outras possibilidades de vozes poéticas:

1

Faixa de fronteira, de acordo com o que dispõe o PAR-2 do art-20 da Constituição Federal (CF-88), é a faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, considerada fundamental para a defesa do território nacional. A ocupação e utilização desta área serão reguladas em lei. A zona de fronteira é a porção do território nacional que, por sua especial proximidade com a fronteira, merece uma atenção especial do poder Público, no sentido de promover seu povoamento e estimular seu progresso.

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Miña língua le saca la lengua al disionario baila um pagode ensima dos mapa i fas com a túnica i a moña uma cometa pra voar, livre i solta pelo seu. O poeta cria sua língua, pois ela o deixa livre para descrever seu espaço fronteiriço. Ele cria imagens poéticas da fronteira, espaço desconhecido de muitos. Assim, este poeta se torna diferente, singular, pelo fato de sua poesia não ser escrita em português brasileiro, tampouco em espanhol uruguaio. O pesquisador uruguaio Javier Etchemendi, ao escrever o prefácio de seu primeiro livro Noite nu Norte, começa com as seguintes observações: Este libro es un atrevimiento y por eso no lo perdono. No está escrito ni en el español de España, al que tanto imitamos, ni en el portugués de Brasil, al que ya quisiéramos poder imitar. Es un libro concebido en portuñol. Displicentemente leí este texto. Extrañamente amé este texto.

Na conclusão do prefácio o pesquisador finaliza com as seguintes palavras: Noite nu Norte es un libro incómodo que no se olvida, como una buena película o una estruendosa cachetada. Sim, Fabián corre o risco em ousar a trazer um dizer cotidiano com palavras tortas, mas que são vivas e correm fronteira afora, provocando nossas imaginações. E esse risco vale uma leitura, pois temos que dar o direito da palavra ao poeta. Em nosso primeiro contato com as obras de Severo e, mais especificamente, com a linguagem em que são criadas/escritas, podem surgir perguntas bastante instigadoras como, por exemplo: isso é literatura? Existe uma literatura de fronteira? Se essa literatura é produzida na língua da fronteira, seria literatura binacional? Para quem tem o medo de arriscar-se, não se entrega à leitura. Para ler as poesias de Severo, temos que nos deixar levar pelo mundo de imagens que suas palavras nos levam a construir, para compor cores e tons de um outro mundo que talvez poucos conhecem, mas que se revela na linguagem poética por meio de uma leitura sem medo de olhar as margens, do outro lado. A literatura em questão Há diversos pesquisadores que discutem sobre o que podemos definir como literatura. Para o investigador francês Rancière (1995) a noção de literatura sofreu um deslizamento histórico de sentido, ou seja, ela passa de um saber para uma arte. No século XVIII, considerava-se literatura as belas-letras – obras clássicas como Virgílio, Homero – que eram bem definidas, a poesia e a eloquência. Esses gêneros eram construídos de acordo com saberes submetidos a três regras específicas: inventio, que determinava os assuntos, como produzir belos discursos; dispositio, que organizava as partes do poema ou do discurso, como abri-lo; elocutio, que dava especificidade ao assunto, como o ornava, por exemplo, o uso de metáforas.

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Já no século XIX, acontece de fato o deslizamento. Literatura agora não é mais um saber que permite apreciar um conjunto de textos (greco-latinos) e sim, um objeto. Ela passa a ser a atividade daquele que se dedica ao trabalho de escrever. O enfoque passa a ser as obras da literatura, o que assegura, a princípio, a continuidade das belas-letras, uma vez que não houve um abandono dos clássicos. Porém, essa ruptura que deixa o manual de escrever com regras determinadas, na ilusão de continuidade, leva também a uma ideia de absoluto. Então, perguntamos: abandonaram as regras das belas-letras com a delimitação da literatura? Na verdade a literatura, ao abandonar as regras específicas, não se reduziu. Ao contrário, o conceito não é fechado e, mesmo não havendo regras para escrever, a leitura dos clássicos continuou/continua integrando/influenciando a literatura. Atualmente, parece haver um interesse pelo retorno do estudo das humanidades em geral. Pode-se encontrar várias teses e traduções 2 de clássicos, como Catulo e Marcial dentre outros, feitas por autores jovens. E por que não dizer o surgimento de tantos novos jovens leitores de obras como Odisseia, Banquete etc que buscam atualizá-las (principalmente no teatro), por exemplo, situando essas obras dentro do cenário político brasileiro atual, provocando outras emoções (Veríssimo). Acrescento ainda a condição que a literatura tem de atravessar o curso do tempo, dialogar com culturas diferentes, renovar e retornar com mais dinamismo, mais força, abrindo novos espaços e guardando a memória viva da sua arte que permanece. Penso na amplitude a que o conceito literatura nos leva, quando há tentativas de fechálo e atribuir-lhe uma significação correta, exata, perfeita. Mas, a literatura nos escapa e vemos que ela tem muito mais a dizer do que imaginamos. Qual seria então, a utilidade de tamanha discussão para não se ter uma resposta? A literatura não se define com uma simples resposta cabal, pois, tendo em vista que faz um meticuloso trabalho com a linguagem e, consequentemente, com os signos, podemos entender que estes não são neutros, pois possuem uma carga ideológica e em todo signo ideológico se confrontam índices de valor contraditório. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço de maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenera em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. (Bakhtin/Volochinov, 1986:46)

No século XIX, justamente quando o português se fixa como língua nacional no território brasileiro, a literatura, sobretudo com Gonçalves Dias e José de Alencar, está bem 2

Há de se considerar também um grande número de traduções bem naives, como a de Alex Marins que na tradução de Fedro de Platão, refere ao texto que trata dos “escabrosos vícios entre os gregos”.

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próxima do ideal de homogeneidade e identidade por meio da linguagem. Conforme nos explica Winner (2007:144) Ainda em conformidade com as ideologias do século XIX, a cumplicidade entre língua, literatura, cultura e nação estava estreitamente relacionada à ordem geopolítica e às fronteiras geográficas. Língua e Literatura integravam, assim, uma ideologia de Estado como, por exemplo, ocorreu com o nacionalismo do projeto romântico brasileiro. Neste sentido uma determinada variante da língua portuguesa considerada padrão, no Brasil, deveria caracterizar toda a produção literária e os aportes regionalistas trazidos por diversos escritores românticos e realista-naturalistas, ou ainda aqueles registrados pelos modernistas representariam, principalmente, desvios mais ou menos exóticos, marginalizantes ou inovadores.

Já no século XX, escritores latino-americanos como Mário de Andrade (Macunaíma), Miguel Ángel Astúrias (Leyendas de Guatemala), José Maria Arguedas (Ríos profundos) e o paraguaio Augusto Roa Bastos (Antología de cuentos), mostram que a ideia de homogeneização entre língua, cultura e identidade deve-se romper. Suas obras trazem à tona o diálogo intercultural enfatizando uma linguagem plural com as vozes indígenas, africanas e crioulas dos povos latino-americanos. Enfim, essas diferentes obras nos contam as outras histórias daqueles das margens: índios, pobres, mestiços, negros, fronteiriços. Dessa forma, podemos considerar a fronteira e suas linguagens como não mais excluídas, em detrimento de uma língua nacional, mas como parte de um processo complexo de transformações, revelando pluralidades e heterogeneidades, identidades em processo. Nesse contexto podemos situar a escrita poética de Fabián Severo que nos traz imagens em forma de mensagens, de palavras. A poesia de Fabián Severo A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo. Manuel Bandeira

Os títulos das obras (Noite nu norte – 10 livro e Viento de nadie, 20 livro) são bastante significativos e nos remetem à região da fronteira (Quaraí, cidade brasileira e Artigas, cidade Uruguaia) referida nos poemas de Severo. Separadas por apenas uma rua, a cidade uruguaia está situada ao norte do país, o que nos remete ao título da primeira obra; já a cidade brasileira Quaraí, se localiza na metade sul do Rio Grande do Sul. Se os pontos cardeais as opõem e parecem distanciá-las, a verdade é que elas apresentam mais aspectos em comuns do que oposições. O título da segunda obra, podemos lê-lo como elemento de aproximação entre essas cidades da fronteira, pois, nesse local, o frio é muito intenso, com invernos bastante

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prolongados nessa região. O conhecido vento minuano de inverno sempre castiga a região e são comum temperaturas próximas a zero grau e fortes geadas. O reflexo do inverno, podemos perceber na natureza, mas os habitantes dessas cidades, a maioria sem muitos recursos, também sentem dramaticamente as consequências desse frio prolongado, como se pode notar no seguinte poema do livro Viento de nadie: Na frontera ranyos de basura i niños de tierra perderoum la palavra nu invierno da yente asvés alguien se enamora. De ves incuando nase una flor entre us fierro ensusiando la primavera. Intonse como un resto de pan la jente sindurece. E quando o frio dá uma trégua na região, as secas também acontecem com frequência e traz consequências nefastas, sobretudo para os habitantes que dependem da agropecuária para sobreviver. Ou ainda, há fortes enchentes no verão que, assim como as secas, deixam suas profundas marcas nas cidades e nas pessoas, pois as inundações, talvez pior que as secas, destroem até as moradias e causam a morte de habitantes. Assim como o vento minuano que tudo varre, o rio tudo arrasta. Creo que mi casa no aguanta otra inundación las paredes están cansadas, solo ladrillos flojos. La que no aguantó más fue la renga Elena murió cuando el agua había llegado a lo del Carlitos. La Mama también está cansada pero yo quiero que ella aguante. Noite nu norte O portunhol dos poemas mostra a importância da subjetividade presente na linguagem, como no poema Tresi: Antes eu quiría ser uruguaio. Agora quiero ser daqui. Além disso, a linguagem de Severo é repleta de lembranças de sua terra fronteiriça, recuperações de fatos de sua memoria para recompor um quadro de diferentes imagens com pessoas e fatos que marcaram sua vida na fronteira, seu espaço identitário de diferença, algo que identifica o poeta. Essa linguagem também serve como uma forma de denúncia do descaso das

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autoridades governamentais para com esses locais distantes, para com os sujeitos que habitam essas periferias, que assim como favelas, por exemplo, nos negamos a ver, pois são lugares marginais. Ainda com o portunhol, vemos como o poeta traz suas palavras para resistir a um assujeitamento, a uma ideologia dominante, pois deseja revelar uma voz outra, de outros sujeitos silenciados que resistem ao vento, ao isolamento, ao rio. Com o portunhol reinventado e atrevido (que seguramente é diferente de outras cidades da fronteira Brasil/Uruguai), o hibridismo da fronteira é revelado, por meio das cores e imagens ainda que cinzas, da poesia de Severo. Assim, desnuda-se um espaço de sofrimento, de esquecimento, de escuro da fronteira, do (in)visível, do que está à margem. Essa fronteira, assim como o portunhol, não tem dono, não é de ninguém e corre como o rio que é também não é de ninguém: El río no es de nadies. Nase ayá pru lado dus serro boiando entre barro i piedra pra renasé nas agua du mar. Viento de Nadie Esse río segue, explica o poeta: arrastrando us día da yente. Esses dias de silencio que buscam (re)inventar o cotidiano e renascer a cada estação que se transforma em novas vidas, ainda que estas, assim como a fronteira, sejam também sem cor: Tapete marrón lavando la frontera. En época de inferno, el se toma toda la agua. La jente busca un charquito onde moiá las tarde mas so da con las pedra locas de se. Nu inverno, frío que ase blanquiar los campo, Ele se infla de yuvia i se yeva todo que se encuentra. Deya uns pes sin color i un puñado de areia. Nas palavras de Luis Behares 3, Fabián translitera, (re)inventa uma linguagem para descrever a fronteira que é esquecida e distante da cidade letrada (Rama), como podemos perceber nos pequenos poemas iniciais do livro Noite nu Norte: Artigas ta feyado con 3

Transliteraciones fronterizas. IN: SEVERO, Fabián. Viento de nadie. Montevideo: Rumbo Editorial, 2013.

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candado. / Artigas e dumingo. Archigas no tiene presidente. / Archigas fala i baila con aqueles mas trabaja i come con estos. / Artigas teim uma língua sin dueño. / Artigas e uma tierra perdida nu Norte qui noum sai nus mapa. Estes poemas trazem perguntas do tipo: alguém conhece Artigas? Sabe que existem pessoas que vivem lá? Enfim, se ao ler as poesias de Severo, alguém pensar que ele propõe acabar com a literatura, seria algo naive, pois assim como a grande literatura, a poesia de Severo pode nos dar: ampliação do imaginário, encontro com o outro e auto-conhecimento, capacidade de impressão e de expressão, visão crítica do real, emoção estética, felicidade da palavra que nos faltava e nos é dada (Perrone-Moisés, 1998-214-215). Referências BAJTÍN, M. Estética de la creación verbal. (tradução de Tatiana Bubnova). 2 ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008. ____ (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 3 ed. (tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira). São Paulo: Hucitec, 1986. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. (Tradução de Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro). Rio de Janeiro: DP&A, 1997. PERRONE-MOISÉS, L. Atlas Literatura: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. RAMA, Á. La ciudad letrada. Hanover, U.S.A: Ediciones del Norte, 2004. RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. (tradução de Raquel Ramalhete et al.). Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. SEVERO, F. Noite nu norte, noche en el norte: poesia de la frontera. Montevideo: Rumbo Editorial, 2011. SEVERO, F. Viento de nadie. Montevideo: Rumbo Editorial, 2013. VERISSIMO, J. Que é literatura. São Paulo: Editora Landy, 2003. WIMMER, N. Um texto de fronteira: Meu Tio Roseno, a cavalo. Raído - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), MT, v. 1, n. 2 p. 143-147, 2007.

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(DES)LOCANDO (I)MA(R)GENS: BREVE ICONOGRAFIA DA TRINCHEIRA Monica Vasconcellos Cruvinel 1

Figura 1 – Margot Liendo Gil, Ala donde anduvimos un dia (2007). Óleo sobre lienzo. 50 X 60 cm Taller de Arte y Artesanía Nueva Semilla

Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. (João Guimarães Rosa, 1962) [...] se ele não pode e não deve ter outra prisão que o próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente. [...] Fechado no navio, de onde não se escapa, é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. (Michel Foucault, 1972) Não posso dizer que o isolamento, o confinamento, não foi difícil. Sim, foi! E nos afetou física e psicologicamente, mas nós o enfrentamos e aprendemos a manejar a situação, de tal maneira, que o dano pôde ser superado. Temos demonstrado isso com nossa inteireza, pois, apesar dos anos de prisão (mínimo de 18 anos até cadeia perpétua), nós continuamos lutando para que se solucionem os problemas politicamente. (Prisioneira política do Peru, 2012) 1

Mestre em Linguística e doutoranda em Linguística pela UNICAMP. Membro do Grupo de Pesquisa CNPQ Mulheres em Discurso. Email: [email protected]

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Nas mais diferentes culturas e sociedades, ao longo do tempo “longo” da história, muitos são os sujeitos localizados às margens. E se pensarmos apenas na sociedade ocidental, em todas as épocas, determinados sujeitos foram colocados, calculadamente, em muitas margens, por sofisticados mecanismos de poder. Estar nas margens é estar em um lugar na sociedade. Não apenas um lugar simbólico ou imaginário, mas um lugar inscrito no real, um lugar possível de ser localizado concretamente, ainda que este lugar seja um “lugar de passagem”, “invizibilizado”, cujos sujeitos que o habitam devam ser disciplinadamente docilizados, silenciados, geridos e incluídos em uma ordem pela exclusão. No livro a História da Loucura (2000), Foucault nos mostra como desde a Idade Média a sociedade ocidental exclui violentamente seus sujeitos indesejados. A princípio, eram criados locais em terra firme, que margeavam as cidades para circunscrever, isolar, prender e exterminar leprosos, portadores de doenças venéreas, pobres, criminosos, transgressores e vagabundos, entre outros sujeitos. Na Renascença, a ideia de margem se expande. E de maneira perversa, a água que envolve o continente, passa a ser utilizada como margem do próprio continente também. Assim, sobre as águas de rios e mares, estranhas barcas deslizam entre as cidades, carregando a massa de sujeitos indesejados, que foram expulsos da sociedade sob a chancela da loucura. É a Nau dos Loucos, revelando que há um interior no exterior (FOUCAULT, 2000:12), e este é o lugar da margem, este é o lugar da exceção. Se girarmos no tempo e no espaço e chegarmos nas sociedades capitalistas contemporâneas, em que os processos econômicos e os poderes que os sustentam atuam e operam através da segregação e da hierarquização social, criando efeitos de dominação e hegemonia; poderemos observar que muitas são as margens construídas no interior de continentes, ilhas, mares e rios, constituindo-se em lugares “exteriores” e marginais aos lugares que ocupam os sujeitos que dominam os poderes. Poderes que são exercidos através dos aparelhos do Estado, que garantem, segundo Foucault (2007:153): a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de biopolítica, inventados no século XVIII, como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades).

Os sujeitos que habitam os lugares de margens são diferentes de acordo com os interesses políticos de cada sociedade, em cada momento histórico. Mulheres, homossexuais, negros, índios, latinos, camponeses, operários, nordestinos, transexuais, judeus, pobres, loucos, colonizados, palestinos, favelados, muitos são os sujeitos indesejáveis, mas “nomináveis”, que precisam ser docilizados, disciplinados, controlados, excluídos e silenciados em uma sociedade “governada” pelo poder sobre a vida - o bio-poder (FOUCAULT, 2007:153). E ainda que os tentáculos da biopolítica estejam atuando violentamente nos Estados Modernos, simulacros de Estados de Direito, definindo quais são os sujeitos que devem ser incluídos na norma, pela exceção/exclusão (AGAMBEM, 2010), definindo que sujeitos devem habitar as margens, há sempre espaço para a resistência.

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Resistência do sujeito em relação ao poder que o atinge diretamente e também a resistência dos sujeitos que se organizam em grupos, com seus pares e fundam na frátria (KEHL, 2000) as possibilidades de resistirem, estrategicamente, aos poderes estabelecidos e navegarem por entre as margens para ocuparem novos/outros/muitos espaços “visíveis” e legítimos na sociedade. Neste trabalho, pretendo discutir como a arte é utilizada como potente prática de resistência de prisioneiras políticas, que foram acusadas por crime de terrorismo, torturadas e presas durante um dos processos revolucionários mais importantes da América Latina: a Guerra Popular do Peru (1980 – 1992). Uma breve contextualização histórica Antes de visitar o Peru, eu sabia da existência de Sendero Luminoso mas, por ignorância, eu não sabia que, na verdade, Sendero Luminoso era a designação que as forças contrarrevolucionárias haviam dado para a fração maoísta do Partido Comunista do Peru, que havia dirigido, entre os anos de 1980 e 1992, a Revolução naquele país. Em meu imaginário, Sendero era constituído por um pequeno grupo de insurgentes (homens!), os quais haviam se organizado em guerrilhas, que utilizavam a violência e o terror indiscriminados para lutar contra os poderes do Estado peruano. Não sabia da duração do conflito, nem de suas dimensões de guerra interna. Não tinha a menor ideia de que, conforme esclarece o documentário de Judith Veléz (2011), dois terços do país haviam sido ocupados e decretados por Sendero como zonas liberadas e que, o Partido Comunista do Peru, ficou muito próximo de conquistar o poder, até que, em 1992, com ajuda direta da Inteligência dos Estados Unidos, o Estado Peruano captura quase todos os dirigentes do Partido. Também foi uma surpresa tomar conhecimento de que a incorporação feminina no processo revolucionário, foi uma das maiores da América Latina. Segundo a própria Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru, 40% dos insurgentes eram mulheres. Se compararmos com a participação feminina nos grupos armados de esquerda, no Brasil, na época da ditadura militar, podemos verificar como este número é significativo. Segundo Joffily (2011:221), em nosso país, a incorporação feminina na luta armada contra a ditadura, está estimada entre 15% e 18% do total de militantes. Embora a Guerra Popular, com armas, tenha terminado oficialmente em 1992, com a captura dos membros do Comitê Central do Partido Comunista do Peru e com a assinatura de acordos de paz entre o Estado e os membros dirigentes do partido - no Peru, ao contrário de outros países da América Latina, não houve anistia. As prisioneiras e os prisioneiros políticos continuam presos e, segundo relatório final da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru (2003, Tomo VI, p. 275-314), doravante CVR, eles foram sentenciados por crime de terrorismo e traição à pátria, no período entre 1983 e 2000, geralmente quando o país se encontrava em Estado de Emergência, ou seja, com a suspensão do Estado de Direito. Deste modo, muitos deles foram sentenciados em tribunais militares “sem rosto” (secretos), sem a presença de seus advogados e, muitas vezes, assumiram “culpas” sob tortura. Receberam

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penas superiores a 25 anos, ou perpétua (no caso de se serem dirigentes do partido) e estão condenados a pagarem reparações civis que ultrapassam a casa dos milhares de soles. Além disso, segundo a CVR morreram por volta de 70.000 pessoas durante a guerra e há no país em torno de centenas de requisitórias, que afetam por volta de 17.000 pessoas, ou seja, estas pessoas estão sob ordem de detenção, com seus direitos civis e políticos suspensos e podem receber voz de prisão ainda hoje. A guerra não acabou! Apesar da Comissão da Verdade e Reconciliação (2003) ter recebido este nome, não houve, entre os seus membros, nenhum representante da fração do Partido Comunista do Peru, conhecida como Sendero Luminoso, tampouco de outras organizações que na época da guerra, também tenham se levantado em armas contra o Estado. Fica bastante difícil entender como a sociedade peruana pôde negociar esta “verdade” e esta “(re)conciliação” tão necessária sem a participação de representantes de todos os atores envolvidos. Os próprios argumentos numéricos de vítimas, mortos, assassinados, torturados e desaparecidos apresentados pela CVR são controversos ou, ao menos, contestados pelos presos políticos. Não pretendo aqui esgotar as discussões sobre a Guerra Popular do Peru e seus desdobramentos. O fato é que esta é uma história de um tempo presente, que, apesar dos mortos e desaparecidos, da violência cruel e sangrenta de ambas as partes, dos impactos que o país ainda sofre pelos mais de vinte anos de conflito interno armado, o Partido Comunista do Peru, Sendero Luminoso, foi derrotado. E sabemos que a história oficial é sempre contada pelos vencedores. O objetivo do presente trabalho é mostrar como mulheres, atuais prisioneiras políticas no Peru, acusadas por crime de terrorismo pelo Estado, conseguem fazer memória e história, a partir de práticas coletivas de resistência, que (re)significam e (des)locam a margem que habitam. Estas mulheres operam, de maneira estratégica, rupturas e deslocamentos nas interpretações e nos sentidos que circulam sobre a guerra, através de uma vigorosa produção artística, que o Estado não consegue silenciar, tampouco invisibilizar. Encontramos tanto na história do Peru, quanto na história do Brasil fatos, documentos, registros, fotografias, vídeos, monumentos e alguns escombros que comprovam que é prática de nossos Estados modernos, ditos democráticos, explodir seus presídios, com ou sem seres humanos dentro deles, para exterminar com qualquer vestígio de que ali, naquela margem, existia um aparato (in)visível do Estado, que isolava, controlava, vigiava, disciplinava, torturava e assassinava os sujeitos indesejáveis que ali habitavam. Desse modo, justifico este trabalho pensando nele como uma possibilidade de deixar registrado nestas margens da Academia, uma pequena amostra da produção artística de mulheres que, até maio de 2014, momento em que submeto este texto para publicação, encontram-se presas em Lima (Peru), no Estabelecimento Penitenciário – Anexo Chorrillos. Um presídio de segurança máxima, concreto, visível, localizado em uma margem da sociedade, em que presas políticas resistem contra a lógica dos Estados Modernos, de serem incluídas na norma pela exceção/exclusão, através de práticas incansáveis de resistência.

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Em trincheira! Ainda que nem todas as prisioneiras e ex-prisioneiras políticas do Peru tenham, de fato, participado de alguma maneira deste importante processo revolucionário da América Latina, TODAS foram acusadas pelo Estado por crime de terrorismo e traição à pátria. É bastante interessante observar que, em muitos dos discursos destas mulheres (discursos que circulam na mídia, em documentos do partido, em cartas abertas e testemunhos), elas costumam se referir à “prisão”, utilizando o termo “trincheira”. Verificamos aí um importante e significativo deslocamento de sentidos. No Dicionário Aurélio On Line, encontramos as seguintes definições: Trincheira: s.f. Escavação aberta no solo no sentido longitudinal: abrir uma trincheira./ Fosso que permite, durante o combate, a movimentação da tropa e tiro coberto do inimigo. Prisão: s.f. Ação de prender alguém, de o privar da liberdade. A palavra também é usada para referir-se ao local onde as pessoas ficam presas.

Este gesto de disputa de sentidos para designar o local marginal em que estas mulheres se encontram circunscritas, evidencia a batalha que elas travam, enquanto sujeitos, com o Estado e com toda a parte da sociedade que junto com ele, condena, segrega e estigmatiza estas mulheres como “terroristas”. Para o Estado, elas estão “presas”, “privadas de liberdade”, isoladas, excluídas, banidas do grupo social. Condenadas ao silêncio e à invisibilidade. Expropriadas do direito à memória, apagadas da história. Para as prisioneiras políticas, elas estão em um espaço de “combate com o inimigo”. Um espaço que embora seja limitado, permite que elas se “movimentem” e se “desloquem” através da resistência. E para além da disputa de sentidos, estas mulheres se estabelecem, de fato, em uma “trincheira de combate”, na qual (re)afirmam suas vidas, suas práticas, suas lutas e suas posições ideológicas, através de uma arte resistente. Aproveitam as brechas que escapam de todo o aparato Repressivo do Estado, que as mantém à margem, na lógica da biopolítica e, de forma organizada, planejada, estratégica e sistemática, vão deixando marcas na história, pequenas evidências que permitem que fiquem registradas suas existências e suas lutas, para que Outros sujeitos, destas e de outras gerações tenham também o direito a interpretar. Em outubro de 2010, as prisioneiras políticas “localizadas” no Estabelecimento Penal Anexo de Chorrillos, comemoram o X aniversário de funcionamento do Taller de Arte y Artesia Nueva Semilla. Nesta ocasião, promoveram a primeira exposição pictórica do Projeto Mural “Mujer en La Historia”. De acordo com a publicação “Primera Exposición Pictórica” (2010), produzida e distribuída pelas próprias prisioneiras durante a exposição, o projeto tinha como objetivo realizar três conjuntos de murais, que abarcassem os períodos históricos do Peru: 1) a pré-história, as culturas pré-incaicas e o Império Incaico; 2) a Conquista espanhola, a Colônia e a Emancipação; 3) a Independência, a República e o século XX. O Projeto também era uma resposta ao Estado, à mídia hegemônica e a uma parte da sociedade peruana

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que promovem, sistematicamente, campanhas contra a liberdade dos prisioneiros e prisioneiras políticas. Era também uma resposta à perseguição, repressão e prisões arbitrárias que sofrem sujeitos peruanos, que se manifestam publicamente pelos Direitos Fundamentais e pela Anistia de prisioneiros políticos. Assim, depois de estudarem com afinco um pouco da história peruana, buscaram encontrar aí, o papel da mulher. Com a ajuda de voluntários, especialistas, professores e professoras, estudantes de arte, empreenderam o projeto do primeiro conjunto dos murais. Segundo a publicação acima mencionada (2010:4): Concebimos la idea de pintar un mural porque siendo todas las que pintamos sencillamente aficionadas, creímos que en un trabajo colectivo podríamos rendir lo que no rendimos individualmente, complementando las deficiencias de cada una, aprendiendo todas de todas; más aún, siendo parte de las sin voz en el Perú, por años y por rejas contenidas, sentimos muchas ganas de hablar a muchos. Y, como el mural es colectivo, llega a mucho y cuenta historias, quisimos contar con él nuestra historia de mujer.

Mulheres (I)ma(r)gens

Figura 2 – Taller de Arte y Artesanía, I PANEL: MUJER EN LA PREHISTORIA (2010). Óleo sobre tela, 2 X 3 m

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Figura 3 – Taller de Arte y Artesanía, II PANEL: MUJER EN LAS CULTURAS PREINCAICAS (2010). Óleo sobre tela, 2X3 m

Figura 4 – Taller de Arte y Artesanía, III PANEL: MUJER EN EL IMPERIO DE LOS INCAS (2010). Óleo sobre tela, 2X3 m

Breves considerações Neste trabalho, optei por tentar criar um espaço outro de escuta e olhar para estas mulheres com as quais trabalho, que são sujeitos de minha pesquisa de doutorado e que, não sem dor, alegria, medo, valor, coragem, ternura e generosidade, ousaram e ainda ousam tomar a palavra, o corpo e as artes para fazerem história, memória e resistência. Segundo Endo (2012:505):

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Aquele que testemunha, como poeta épico, que assume para si o risco psíquico, social e político por sua palavra, não raro, é aquele que, tendo sido subjugado pelo tirano, pelo ditador ou pelo caudilho, não é mais do que aquele que reivindica uma nova origem, um novo começo.

Também optei por não deixar registrado uma única interpretação (minha, datada e situada) das obras de arte que selecionei para este diálogo. Judith Butler (2010:26-27), referindo-se aos prisioneiros de Guantánamo, afirma que a arte que prisioneiros de guerra produzem em confinamento, quando conseguem “evadir” as grades e muros da prisão, embora não consigam libertar ninguém, permitem que os fatos sejam (re)contextualizados e (re)interpretados pela sociedade, provocando “llamamientos a la justicia y al fin de la violencia”. Depois de circular por alguns espaços no Peru, a exposição dos murais, aqui apresentada, foi censurada, interditada e fechada pelo Estado peruano, com a justificativa que era uma exposição que fazia apologia ao “terrorismo”. Não tenho informações se as obras foram confiscadas e/ou preservadas. Assim, espero que, ainda que margeadas por minhas palavras, as palavras destas mulheres, que estão “plasmadas” nestas obras de arte, possam se deslocar por infinitas margens.

Figura 5 – Relación de Autoras del Proyecto Mural – “La Mujer en La Historia Peruana”

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Referências AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. (Tradução de Henrique Burigo). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. BUTLER, J. Marcos de Guerra: Las vidas lloradas. (Tradução de Bernardo Moreno Carillo). Buenos Aires, Barcelona, México: Editora Paidós, 2010. Comisión de la Verdad y Reconciliación de Perú. Informe final. Peru, 2003. Disponível em: http://www.cverdad.org.pe/ifinal/index.php. Acesso em: 22/3/2014. ENDO, P. Ruínas da palavra: vida nua, estado de exceção e testemunho. In: ARAUJO, N. V.; MILÁN-RAMOS, J. G.; MORAES, M. R. S. (Org.). De um discurso sem palavras. Campinas: Mercado de Letras, 2012. FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. (Tradução de José T. Coelho Netto). São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. ___________ Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). (Tradução de Maria E. Galvão). São Paulo: Martins Fontes, 2005. ___________ História da Sexualidade – a vontade de saber 1. (Tradução de Maria. T. C. Albuquerque). São Paulo: Edições Graal Ltda, 2007. ___________ Microfísica do Poder. (Tradução de Roberto Machado). São Paulo: Edições Graal Ltda, 2009. JOFFILY, M. Os nunca más no cone sul: gênero e repressão política (1984-1991). In: PEDRO, J. M.; WOLFF, C. S.; VEIGA, A. M. (Org.). Resistências, gênero e feminismos contra as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2011. KEHL, M. R. (2000). Existe a função fraterna? In: KEHL, M. R. (Org.). Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ROSA, G. A terceira margem do rio. Disponível http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp. Acesso em: 20/3/2014.

em:

Revista del Movimiento Hijas del Pueblo. Rimariyña Warmi – Habla Mujer. Año 2. N. 3, IV Etapa, 2010.

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Taller de Arte y Artesanía “Nueva Semilla”. Primera Exposición Pictórica. Proyecto Mural: “La Mujer en la Historia”. Chorrillos, Lima, Perú. Publicação distribuída pelas prisioneiras durante exposição dos murais, 2010. Taller de Arte y Artesanía “Nueva Semilla”. Disponível http://tallerdearteyartesanianuevasemilla.netau.net/index.html. Acesso em: 3/3/2014.

em:

VÉLEZ, J. 1509 Operación Victória. Documentário peruano sobre a captura do líder do PCP, Abímael Guzmán. Ano de Produção: 2011. Direção: Judith Vélez.. Disponível em: . Acesso em: 14/7/ 2012.

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O TRABALHO PEDAGÓGICO EM UMA PERSPECTIVA FREIREANA Adriana Alves Fernandes Vicentini 1 Introdução O presente texto tem como objetivo abordar a organização do trabalho pedagógico com Adultos. Para isso, tomo como referencial de análise a minha prática educativa, como docente, com o objetivo de discutir suas reconfigurações no cotidiano educacional juntos aos alunos. Desse modo, a tessitura desta escrita se organiza da seguinte forma: primeiramente abordo a Educação de Jovens e Adultos -EJA- como conceito e como direito humano, em seguida discuto a organização do trabalho pedagógico desenvolvido na ação educativa como professora e posteriormente, realizo breves considerações em defesa da sistematização do trabalho pedagógico em uma perspectiva freireana. A modalidade educativa A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade educativa existente em muitas redes de ensino, no Brasil. Para Rivero (1998, apud Soares 2001, p. 202): A EJA é uma modalidade educativa que deve expressar de forma clara sua opção por setores vulneráveis em condições de marginalidade socioeconômica e de desigualdade de oportunidades educativas.

Assim, modalidade educativa se refere a uma singularidade, a um modo de ser. Porém, para além de um segmento educacional, é uma forma de busca pela igualdade social. Rummert (2007) afirma que a EJA “regulamentada como modalidade de ensino, é, sem dúvida, uma educação de classe” (p. 63), sendo uma educação voltada à classe trabalhadora, população esta que não possui maiores e incisivos investimentos por parte do Estado. Nas palavras da autora: Insistir no uso da classe trabalhadora aos nos referirmos àqueles que não têm assegurado o direito à educação constitui uma opção teórico-metodológica que não abdica de sublinhar o fato, hoje negado, de que a distribuição desigual de oportunidades educacionais continua a ser uma questão derivada da origem socioeconômica e das assimetrias de poder daí advindas. Trata-se, portanto, de uma questão de classe (p.80).

1

Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. Atuou como docente na Educação de Adultos durante dez anos. Atualmente é professora de Graduação, Pós-graduação e Coordenadora de um curso de Pedagogia. [email protected]

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Sendo uma educação de classe de trabalhadores, a EJA está, sem dúvida, ligada à uma história de luta de reconhecimento enquanto segmento educacional e deve ser considerada tão relevante quanto as demais modalidades educativas. Soares (2001) aponta outras duas considerações importantes em relação à EJA: a primeira refere-se ao pragmatismo que se configura quando nos referimos a ela, considerando unicamente a dimensão do mercado de trabalho. A segunda diz respeito à pouca importância atribuída a tal segmento educacional, isso pode ser visto, por exemplo, de acordo com o autor em questão, quando há o recrutamento de profissionais não habilitados para alfabetizar os jovens e adultos que frequentam as salas de aula ou mesmo as verbas insuficientes que lhe são destinadas. A fim de evitarmos uma perspectiva miseralista é fundamental olharmos para tais sujeitos e considerarmos que muitos deles elaboram estratégias de sobrevivência quando necessitam da leitura e da escrita, desenvolvem um conjunto de resolução de problemas no cotidiano. Não é difícil encontrar líderes de movimentos sociais diversos, com uma riqueza de experiências nesse âmbito, bem como trabalhadores providos de uma visão crítica da realidade. Essa consideração se faz essencial para não estigmatizarmos tais pessoas, mas entendermos as diversas dimensões que envolvem essa problemática, enfatizando o fato de que é um efeito produzido socialmente: A alfabetização e educação de base de adultos têm um carácter2 eminentemente político e a construção científica do problema deve considerar que a ineficácia das políticas e práticas neste domínio foram, na maioria das vezes, decorrentes de constrangimentos diversos e não somente técnicos(...) Assumir a ligação entre a Educação de Adultos e o modelo de desenvolvimento econômico implica admitir a sua importância no controle social e na gestão das relações de poder (CAVACO, 2009, p. 47).

Portanto, ao discutir a Educação de Adultos se faz importante considerar as dimensões sócio político culturais diversas que ocasionaram o pouco ou o inexistente acesso a escolaridade para uma parte significativa da população brasileira, ao longo da história. Nesse sentido, é fundamental entender a EJA como um segmento que ainda necessita de ações sistemáticas pensadas e projetadas de acordo com sua singularidade. Para Fernández (2006), o modelo de Educação de Jovens e Adultos herda “a cultura de mínimos: Na educação de adultos há uma constante que repete de maneira periódica: alfabetizar adultos é ensinar o mínimo e alfabetizar é sobretudo pensar a soletrar textos acadêmicos ou escrever listas e assinar. Nem se considera ensinar a pensar, lendo, nem ensinar a codificar a experiência ou o próprio pensamento, escrevendo. Essas são tarefas complexas e superiores que os 2

Escrito em Português de Portugal.

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processos de aprendizagem de pessoas adultas raramente tomaram em consideração. Alfabetizar os adultos tem um tecto que costuma ser a educação primária(...), mas raramente se considerou alcançar níveis superiores (p. 29)

Assim podemos entender que, ao longo do tempo, não houve um projeto ou mesmo uma intenção declarada e sistematizada, com metas e mecanismos de ação por parte das políticas públicas, ao tratar da educação de adultos para além da alfabetização. De modo geral, ao se pensar em EJA, a meu ver, visualiza-se, atualmente, ainda, no Brasil, um modelo de ensino noturno supletivo, apesar dos inúmeros esforços realizados por diversos segmentos existentes na sociedade civil: movimentos sociais, universidades, docentes, etc. Sem dúvida se faz necessário elevar o nível de escolaridade quando pensamos em EJA, contudo são fundamentais oportunidades que transcendam o modelo alfabetizador que privilegia a decodificação das letras. E assim, é essencial não confundir educação de adultos com escolarização de adultos, esse equívoco se deve certamente (mas, não unicamente) à instituição escolar que, ao alfabetizar indivíduos que não tiveram a oportunidade de estudo na infância, acabou por contribuir com ofertas educacionais voltadas à alfabetização, à escolarização de jovens e pessoas adultas (Fernández, 2006). Assim, compreendo a EJA como um direito humano à Educação. Para além de se garantir um direito ao acesso: “a questão não está apenas no ato de aprender, mas no que se aprende. Trata-se de garantir uma “aprendizagem transformadora” (GADOTTI, 2013, p. 07). Ainda no diálogo com Gadotti (2013) ressalto as proposições do conteúdo e da forma de como se aprende. Uma defesa a aprendizagem: Quando falamos de centralidade da questão da aprendizagem, queremos realçar a importância da aprendizagem, sobretudo num país como o Brasil, que se preocupou pouco com o direito do aluno aprender na escola. O direito à educação não se limita ao acesso (...) Não se trata de deslocar a tônica da educação para a aprendizagem. Trata-se de garantir, por meio de uma educação com qualidade social, a aprendizagem de todos os cidadãos e cidadãs. (GADOTTI, 2013, p. 07)

Desse modo, se faz primordial a organização do trabalho pedagógico, pois assim, potencializamos diversas as dimensões da intencionalidade do ato educativo. A organização do Trabalho Pedagógico O trabalho pedagógico demanda um planejamento situado em um referencial teórico metodológico norteador. No que se refere a EJA, o aporte produzido por Freire, bem como, os estudos advindos de seus princípios indicam a necessidade do educador apoiar-se em uma concepção e prática emanciapadora quanto a atividade educativa.

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A rotina do cotidiano educativo desenvolve-se em uma gama dinâmica de ações e diálogos produzidos com os educandos e nesse sentido, se faz importante uma organização do trabalho pedagógico. Para isso, se faz necessário pensar que cada atividade desenvolvida possui uma natureza, isto é, um objetivo ajustado a uma determinada necessidade de aprendizagem. Assim, abordo, aqui, formas de organização de atividades que utilizei em salas de aulas no trabalho com a educação de Adultos durante dez anos em uma rede municipal de ensino do estado de São Paulo 3, sendo: atividades permanentes como aquelas desenvolvidas todos os dias, consideradas constantes; já as sequenciadas se destinavam aos grupos de alunos em diferentes etapas de aprendizagens; e por fim as atividades relacionadas a situações independentes e projetos coletivos. Ao pensarmos especificamente o universo da alfabetização de adultos, podemos pensar da seguinte forma: As atividades permanentes são aquelas desenvolvidas diariamente com os educandos; caracterizam-se como situações de reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita alfabética, no caso de um trabalho voltado para a alfabetização. As atividades sequenciadas acontecem com regularidade diversificada, a depender do desenvolvimento da aprendizagem dos alunos: são situações didáticas, pensadas a partir do nível de complexidade adequado a cada grupo de adultos. As situações independentes são subdividas em: ocasionais e de sistematização. A primeira, refere-se a uma atividade envolvendo um conteúdo que não foi planejado a priori, mas que o educador ou os educandos julgam como sendo importante. Trata-se de temas emergentes, em sua maioria, assuntos da atualidade ou de necessidade do cotidiano. A segunda configura-se com o objetivo de sistematizar as aprendizagens dos alunos, mas tendo como referência os conhecimentos pensados para aquele ano, por isso não possuíam um objetivo imediato. Assim, tal objetivo é construído diariamente, mas há um referencial que indica as aprendizagens que se deseja alcançar a longo prazo. Os projetos caracterizam-se como formas de trabalho articulado a um tema principal e que tinham um produto final: uma exposição, a construção de um livro, uma apresentação à comunidade, etc. Tal forma de articular o trabalho pedagógico pressupõe pensar em uma ação educativa intencional, planejada e fundamentada no compromisso com o processo de aprendizagem dos educandos. Nesse sentido, a responsabilidade docente se revela como um dispositivo intimamente ligado aos ideiais freireanos: uma amorosidade que se tece junto ao fazer pedagógico projetado a partir de princípios que se entrelaçam com a aprendizagem e criticidade. Um trabalho assim não se faz desarticulado do movimento aprendiz do educando, bem como, não se configura distante de uma sistematização construída e responsivamente ativa da ação docente. 3

Aprendi a organizar o trabalho pedagógico a partir da experiência vivida como formadora do PROFA: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores.

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É relevante salientar que tal modo de organizar o trabalho pedagógico nunca se articulou de maneira rígida, distante do dialogismo, da amorosidade e da busca pelo desenvolvimento da consciência critica – temas tão relevantes nos escritos freireanos. Muito pelo contrário, sempre se configurou como uma forma norteadora de organização do fazer educacional. Considerações Finais A Educação de Jovens e Adultos se constitui, um modo de intervenção social, no sentido de articulá-la com um projeto de sociedade mais justo e igualitário, é desta forma, uma posição política, que não se revelou, ainda, como marco, como projeto realizado por parte de toda sociedade civil. A amorosidade do trabalho com a EJA reside na crença de que os estudantes são capazes de aprender, apesar de todas as adversidades sociais. Tal crença não é dada, se faz necessário construí-la considerando todo o conhecimento que circunscreve a modalidade educativa aqui abordada. Falamos, portanto, sobre o sentido de comunhão enquanto sentido de parceria e amorosidade. Um ato de compartilhar, isto, uma partilha que não se faz solitária, mas que se constrói através de uma responsabilidade com a própria formação e que se assume coresponsável, inclusive, pelo outro. É ainda um desafio neste século olhar a EJA como um campo educacional de caráter público e universal, com atendimento a todos, ajustado às reais necessidades dos educandos, ao invés de associá-la unicamente às políticas de combate a pobreza. É um desafio, assim, compreendê-la como um campo educacional que merece a devida relevância, assim como dos demais segmentos educacionais. Aprendi com os jovens e adultos da EJA que a luta cotidiana em aprender é muito mais do que responder às necessidades do mercado de trabalho ou qualquer outra finalidade, porque qualquer que seja ela, no fundo é também uma forma de se re existir no mundo, de se ver, projetar como outra pessoa. Para finalizar, ainda que provisoriamente, compartilho com Senna (2010, p.47) sobre a convicção de que entre teorias de alfabetização e práticas de alfabetização, existe um profundo distanciamento (...) E vimos, recorrentemente, investigando novas teorias de alfabetização, ou criticando as já disponíveis, em razão da sua flagrante incapacidade de dar sustentação ao processo de alfabetização, quando em face deste tipo de aluno – na escola pública regular, ou nos centros de EJA – cuja aproximação à escrita não se consolida, mesmo em presença de motivação, desejo e máximo empenho dos professores.

Minha explanação reside no fato de que faltam pesquisas que tratam sobre boas situações de aprendizagem com relação aos estudantes da EJA. Se faz importante, inclusive,

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pensar e investigar possíveis formas de educação para além do processo de alfabetização e/ou elevação da escolaridade. Referências CAVACO, Carmem. Adultos poucos escolarizados: políticas e práticas de formação. Lisboa: Educa, 2009, 834 p. FERNÁNDEZ, Florentino Sanz. As raízes históricas dos modelos atuais de educação de pessoas adultas. Lisboa: Educa/Unidade de I&D de Ciências da Educação, Cadernos Sísifo: 2, 2006, 88 p. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, 245 p. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996, 146 p. GADOTTI, Moacir. Educação de Adultos como Direito Humano. Revista EJA em Debate. Florianópolis, Ano 2, n.2. Jul.2013. SENNA, Luiz Antonio Gomes. Onde está o meu aluno nas teorias sobre alfabetização? Reflexões sobre as ausências no caminho entre a teoria e a prática de letramento em EJA. In: COSTA, Renato Pontes; CALHAÚ, Socorro (Orgs) “...e uma Educação pro povo tem?” Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2010. p. 47-64. SOARES, Leôncio José Gomes. As políticas de EJA e as necessidades de aprendizagem dos jovens e adultos. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org) Educação de Jovens e Adultos: novos leitores, novas leituras. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil – ALB; São Paulo: Ação Educativa, 2001. p. RUMMERT, Sonia Maria. Gramsci, Trabalho e Educação: Jovens poucos escolarizados no Brasil actual. Lisboa: Educa/Unidade de I&D de Ciências da Educação, Cadernos Sísifo:4, 2007, 86 p.

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A MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA INSPIRADA EM PAULO FREIRE E SUA REPERCUSSÃO PARA ALUNOS ADULTOS Daniela Gobbo Donadon Gazoli 1 O presente texto é parte constituinte de mesa proposta ao 19º COLE com o objetivo de discutir uma prática pedagógica inspirada em Paulo Freire. O primeiro artigo propôs-se a discutir a proposta educacional freiriana à luz de novas pesquisas sobre a dimensão afetiva envolvendo adultos em processo de escolarização. Enquanto o segundo artigo foca-se na descrição e análise da professora pesquisada, voltando-se para o planejamento e o desenvolvimento do trabalho pedagógico inspirado em Freire. Portanto, buscando enriquecer a discussão, este artigo pretende contribuir com uma análise de dados sobre os impactos das práticas observadas nos alunos adultos. Os dados trabalhados originam-se em pesquisa 2 que estudou os impactos afetivos produzidos pelas práticas pedagógicas do professor e vivenciados por alunos adultos no processo de alfabetização. Buscou identificar a repercussão dessas práticas na construção dos sentidos e significados decorrentes do processo de alfabetização. Também procurou compreender como tais experiências afetivas impactam na construção da subjetividade humana. Baseando-se nas ideias de Wallon (1979) e Vygotsky (1998), pressupõe-se que os aspectos cognitivos e afetivos, inter-relacionados, são fatores determinantes do pleno desenvolvimento do sujeito. Diversos autores têm observado que nos dois autores citados existe a ideia de uma reciprocidade e inter-relação entre a afetividade e a inteligência (ALMEIDA, 1997; OLIVEIRA, 1997; COLOMBO, 2007). Tal conclusão firma-se na compreensão de que ambas as funções – afetiva e cognitiva – dependem da relação do indivíduo com o meio social, sendo influenciadas e constituídas nas interações entre os sujeitos, o que permite o entendimento do homem nas duas dimensões, simultaneamente. É importante salientar que esta pesquisa insere-se entre as produções desenvolvidas por membros do Grupo do Afeto, subgrupo do ALLE (Alfabetização, Leitura e Escrita), grupo de pesquisa da faculdade de Educação da UNICAMP, que vem produzindo pesquisas na perspectiva da questão da afetividade, pautadas na concepção monista de homem. No tocante a tal questão, admite-se que a cada nova experiência – motora, cognitiva ou afetiva – internalizamos novos sentidos e significados. Cada novo sentido modifica nossa 1

Pedagoga. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected] 2 As falas exploradas no artigo foram extraídas de Pesquisa de Mestrado realizada na Faculdade de Educação da UNICAMP, no período de 2011 a 2013, com financiamento FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Os dados foram construídos a partir do procedimento de autoscopia, que consiste na gravação áudio visual de sala de aula. Posteriormente, os sujeitos são confrontados com suas imagens videogravadas, sendo incentivados, pelo pesquisador, a verbalizar sobre os seus sentimentos vivenciados na situação em tela.

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forma de ser e estar no mundo. Porém, algumas experiências são extremamente marcantes, tornando-se momento privilegiado para observação e estudo. Entende-se que a aquisição da escrita, em nossa sociedade letrada, caracteriza-se como um momento marcante de nossa construção subjetiva. Para indivíduos adultos, vivenciar o processo de alfabetização e letramento fora da idade convencional constitui momento privilegiado para observar, estudar e analisar as marcas afetivas no processo de formação psicológica do sujeito. Ao compreenderem-se como integrantes das práticas sociais de leitura e escrita, esses adultos internalizam novos sentidos e significados, novas formas de perceber o mundo e, principalmente, de se perceberem nele. A autoimagem e sua percepção das próprias possibilidades de atuação no meio em que vive ganham novas perspectivas. Busca-se compreender as representações sociais de si e do outro que se constroem durante o processo de letramento, bem como os sentidos e significados que eles atribuem à experiência. Metodologia da pesquisa: coleta de dados Dentro da metodologia qualitativa, tendo como objetivo observar o impacto das práticas nos alunos adultos, a coleta de dados baseou-se no procedimento conhecido como autoscopia, que, segundo Leite e Colombo (2006), consiste na gravação audiovisual do contexto de sala de aula a ser estudado, para posterior edição e exibição, em sessões individuais, nas quais a pesquisadora instiga os sujeitos a narrarem e descreverem como se sentiram durante a atividade filmada, enquanto assistem à própria referida atividade e se confrontam consigo mesmos nas imagens videogravadas. De acordo com Leite e Colombo (2006), na autoscopia: [...] o sujeito tem seu comportamento videogravado em um determinado ambiente e, posteriormente, é colocado em uma situação para observar esse material gravado, editado ou não, para que emita comentários sobre o mesmo, por solicitação do pesquisador e em função dos objetivos da pesquisa. (p.2)

Para os autores, o recurso da autoscopia representou um aprimoramento da pesquisa qualitativa. Tal fato se deve à possibilidade de o sujeito adquirir posição ativa na coleta de dados. O papel do pesquisador, na sua condição ativa no procedimento, segue no sentido de estabelecer relações de interação e condições dialógicas com o sujeito, a “habilidade de intervenção do pesquisador, na hora certa e de forma adequada, sem que isso seja percebido pelo sujeito como um entrave para o seu processo de expressão, parece ser essencial nos procedimentos” (LEITE e COLOMBO, 2006, p. 7). Após encontrar uma sala de aula que se encaixava no perfil procurado, a pesquisadora utilizou-se de uma câmera para gravar as práticas pedagógicas observadas. Finalizadas as gravações, o material produzido passou por edições. Em seguida, foram realizados encontros com os sujeitos onde a pesquisadora expôs o vídeo editado, realizando a sessão de autoscopia, suscitando que eles verbalizassem sobre o que vivenciaram nas diferentes situações observadas.

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Após o término da coleta e transcrição de dados, foi iniciada a fase de análise. Esta etapa constituiu-se como uma organização sistematizada dos materiais acumulados durante a investigação e objetivou apresentar os dados de forma clara, no intuito de facilitar a interpretação dos mesmos. Estes núcleos foram baseados em agrupamentos de temas, conteúdos e questões centrais, considerando os objetivos da pesquisa. Assim, na etapa final, a interpretação dos dados analisados à luz do referencial teórico assumido, buscou responder o problema proposto pelo projeto. Aqui não cabe discutir todos os núcleos, pois foca-se a atenção em um deles: o impacto das práticas observadas nos educandos adultos. Antes, vale uma breve incursão para uma ideia de que práticas se tratam. As práticas pedagógicas que marcaram os educandos No quadro nacional, a valorização dos alunos adultos, bem como a preocupação com a busca por formar indivíduos capacitados na luta pela transformação da realidade social injusta, surge com maior expressão a partir de Freire (1975). O famoso educador, no decorrer da sua militância pela alfabetização de adultos, produziu contribuições significativas para pensar uma proposta pedagógica crítico reflexiva para a EJA, na busca de uma pedagogia que valoriza o individuo como ser histórico, sociocultural, produtor de conhecimento, e, por conseguinte, transformador da sua própria realidade. Dessa forma, constrói-se a ideia de uma educação que possa contribuir para a emancipação, humanização e socialização do individuo nos espaços sociais. Durante a coleta de dados da pesquisa, foi possível observar que a professora Ana 3 demonstra pensar o ensino no sentido para o qual Freire (1996) chama a atenção: “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (p.25). Assim sendo, a professora atuava buscando criar meios para que os seus alunos construíssem a sua aprendizagem. São inúmeros os exemplos que demonstram as marcas do pensamento de Freire (1996) nas práticas da professora Ana: o trabalho com temas geradores, as rodas de discussão, o diálogo, dentre outros. Assim, os dados permitem observar formas como esta docente prioriza conteúdos e procedimentos de ensino, pautando suas ações nas concepções teóricas que inspiram sua atuação. O ensino, nessa concepção, torna-se, fundamentalmente, diálogo: o importante para o professor é o dialogo com o aluno, estabelecendo uma troca legítima. Em tal relação, a dimensão afetiva faz-se de suma importância na construção de um vínculo que permita relacionar-se de forma positiva com o outro. A professora Ana lança mão do diálogo enquanto prática educativa em todas as suas atividades de ensino. E avança, estabelecendo o diálogo como processo de negociação das

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Nome fictício.

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próprias práticas pedagógicas, negociação onde os sujeitos e a professora decidem, juntos, sobre as melhores práticas pedagógicas para o aprendizado do grupo. Acreditar no potencial do homem e criticar os interesses da sociedade capitalista foi a tônica de muitos textos de Freire (1975). Para o educador, nunca foi interesse da sociedade burguesa o resgate dos excluídos. Ao contrário, tal resgate é prática intencional e objetivo de muitas atividades de ensino desenvolvidas pela professora Ana. Para Freire (1996), cabe ao educador perceber-se como um sujeito ativo e atuante, agente transformador das práticas sociais de seu meio, criador e possibilitador de suas próprias utopias. Assim, o indivíduo assume-se como um sujeito que possui objetivos, metas e projetos de futuro para si, para seus pares e para seus alunos, expondo de forma coerente suas buscas e permitindo, com seu trabalho conscientizador, aos seus alunos lançarem-se na mesma busca. Esse modo de agir, segundo Freire (1996), possibilitaria mudanças expressivas, pois só se modifica uma sociedade que prioriza o pensamento dominante através da indignação exposta e, para que isso aconteça, é necessário o conhecimento de si mesmo e do outro, projeto sempre pensado nas propostas educativas da professora Ana. Toda essa prática observada inserida na lógica freriana e com uma proposta clara sobre a busca por impactos que transformem o adulto em sujeito ativo, crítico, consciente e participativo na sociedade surte uma repercussão nos educandos que vivenciam o processo. Aqui a proposta central é discutir tais impactos. A repercussão das práticas pedagógicas para os alunos adultos A partir dos dados construídos, é possível observar que os alunos são muito sensíveis em relação ao tipo de mediação feita pelo professor, revelando a forma como são afetados e os diferentes sentimentos que interferem no processo ensino-aprendizagem, na relação com os conteúdos e na visão que cada aluno tem de si mesmo. Segundo Almeida (2004), “o professor deve basear a sua ação fundamentada no pressuposto de que o que o aluno conquista no plano afetivo é um lastro para o desenvolvimento cognitivo e vice-versa” (p. 126). Segundo Leite e Tassoni (2002), o que se diz, como se diz, em que momento e por quê – da mesma forma que o que se faz, como se faz, em que momento e por quê – afetam profundamente as relações entre professor e aluno e, por consequência, acabam por interferir diretamente no processo de ensino-aprendizagem, ou seja, as próprias relações entre sujeito e objeto. A escola é um local onde o compromisso maior que se estabelece é com o processo de construção de conhecimento e, pode-se afirmar que, no ambiente escolar, "as relações afetivas se evidenciam, pois a construção do conhecimento implica, necessariamente, uma interação entre pessoas. Portanto, na relação professor-aluno, uma relação de pessoa para pessoa, o afeto está presente" (ALMEIDA, 1999, p. 107). O forte vínculo afetivo desenvolvido entre a professora e os alunos observados é latente e manifesta-se de diversas formas:

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“A A. pra mim, minha filha, é como se fosse minha filha, uma das minhas filhas. Eu quero muito bem ela, considero muito ela, ela é muito legal, eu trato ela muito bem, o que eu puder fazer por ela, eu faço.” (Sujeito 5)

Os alunos reconhecem nos gestos da professora a atenção, a paciência, o carinho, o empenho e a boa vontade com eles, reagindo positivamente a esses comportamentos, valorizando a relação com a professora e criando vínculos afetivos fortes; afirmam verem a professora como amiga muito querida, em clara demonstração de reconhecimento, valorização e carinho por tudo que a professora faz por eles. Uma das práticas mais apreciadas pelos alunos e, também, pela professora é dar voz ao aluno, antes e durante as atividades de ensino, como caminho para conhecer suas experiências e conhecimentos. Foi sempre presente a preocupação da professora em dar voz aos alunos, seja com perguntas durante as atividades, ou com questões sobre os conteúdos. Porém, não era apenas em momentos aleatórios, ou por um costume, que a professora chamava os alunos a expressarem-se. A participação dos alunos era planejada pela professora: suas opiniões, experiências e conhecimentos eram parte importante do desenvolvimento da atividade pedagógica. A escolha de textos, materiais e atividades foi intencionalmente relacionada com temas ligados à história de vida dos sujeitos, nas quais eles não apenas identificavam-se com o texto, mas eram levados a narrar suas experiências com o tema, de uma forma a sentirem-se valorizados e participantes na atividade. Nesse movimento de dar voz ao aluno, considerando que seus conhecimentos também são válidos, os alunos não valorizavam apenas o momento de sua fala, mas apreciavam e sentiam prazer em ouvir os companheiros de turma narrando suas experiências. A professora, invocando a narrativa dos alunos, tomava ciência de suas histórias de vida, suas experiências e seus conhecimentos. A partir dessa incursão ao mundo do aluno, ela programava atividades de ensino envolvendo conteúdos ligados aos conhecimentos dos educandos, tendo isso como estratégia para expandir os conhecimentos. De acordo com Freire (1983): O que tenho dito sem cansar, e redito, é que não podemos deixar de lado, desprezados como algo imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos ao centro de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, seu modo de contar, de calcular, de seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros (p. 72).

A professora Ana, tendo como ponto de partida a realidade de seus alunos, estabelecia objetivos claros, a partir dos quais recorria a técnicas e conhecimentos pedagógicos para planejar e organizar situações de ensino, acompanhando a progressão da aprendizagem dos seus alunos, tomando decisões de reorganização da ação, quando a aprendizagem não se efetivava.

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“Eu acho importante, Dani, ele verbalizar o pensamento dele. Eu acho que quando ele verbaliza do que ele tá pensando, o jeito que ele tá pensando, isso me ajuda a fazer uma intervenção. [...] Uma avaliação diagnóstica. [...] Assim eu posso valorizar o que ele tem como ponto de partida e usar isso pra conquistar outras coisas.” (Professora)

Os alunos, ao verem seus conhecimentos valorizados, envolviam-se na atividade e sentiam-se participantes ativos de um processo de crescimento. Em síntese, a professora atuava de forma a ampliar qualitativamente os conhecimentos dos alunos, tendo como ponto de partida o que já existe construído. “Ela sempre faz pergunta pra nós. Do texto, né? [...] Eu acho bom, eu acho mesmo, porque aí a gente fica sabendo que ela também gosta, né? De saber as coisas da gente. A gente aprende com os textos que ela trás. [...] Porque ela quer saber se a gente aprendeu, se quer aprender, né?[...] Consegue perceber se nós tá aprendendo.” (Sujeito 2)

Essa estratégia também foi usada pela professora para conhecer e diagnosticar o desenvolvimento, os avanços e as dificuldades dos alunos, servindo como base para tomada de decisões de ensino. Não apenas como diagnóstico para a professora, mas a prática de se expressar em sala serviu como diagnóstico para o próprio aluno que, através do seu desempenho e da reação da professora, percebia seus avanços. Lembrando que a forma como se dá a interação da professora tem implicações marcadamente afetivas para o aluno, que percebe a postura receptiva e interessada em levá-los a aprender, ensinando quantas vezes e de quantas diferentes formas forem necessárias. “Ela torna a explicar, torna a escrever na lousa, torna a fazer de novo até nós aprender direitinho. Pra nós escrever de novo, ler. Pra nós aprender.” (Sujeito 2)

Observa-se, pelos dados apresentados, que os alunos identificam o grau de disponibilidade da professora e reagem de forma muito positiva. Os dados revelaram, também, que à medida que os alunos sentiam que estavam aprendendo, estimulavam-se para continuar estudando, pois tal percepção aumentava sua expectativa de sucesso. Nas palavras de Leite (2006), autoestima e bom desempenho alimentam-se mutuamente. “Eu quero pedir pra A. ensinar contas de vezes e dividir pra mim. Que é as duas contas que eu tô menos sabendo, lembrando, é essas duas. É bom, o jeito dela (ensinar) é bom, viu. [...] É por causa que nós tamo aprendendo bem as de menos e de mais, que é as duas contas mais fácil pra fazer. Aí nós têm que passar pra outras mais pesadas. Aí ela ensina do mais fácil pro mais difícil. E isso ajuda.” (Sujeito 5)

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Ao planejar e proporcionar aos alunos atividades motivadoras que despertavam seu interesse, organizando o conhecimento de forma crescente, levando o aluno a perceber seus avanços, a professora garantiu que o seu desenvolvimento em sala de aula e o próprio processo de aprendizagem fossem prazerosos. “Ah, eu acho assim, que, que nem, conta de mais, ela dá todo dia conta de mais. E dá outras. Vai variando e vai sempre aumentando.” (Sujeito 4)

A este respeito, é importante destacar que a afetividade não se restringe apenas ao contato físico. Como salienta Dantas (1992), conforme a criança vai se desenvolvendo, as trocas afetivas vão ganhando complexidade. "As manifestações epidérmicas da ‘afetividade da lambida’ se fazem substituir por outras, de natureza cognitiva, tais como respeito e reciprocidade" (p. 75). Adequar a tarefa às possibilidades do aluno, fornecer meios para que realize a atividade confiando em sua capacidade, demonstrar atenção às suas dificuldades e problemas, são maneiras bastante refinadas de comunicação afetiva. Dantas (1992) refere-se a essas formas de interação como cognitivização da afetividade. Outro importante ponto de impacto afetivo observado nas práticas da professora Ana é relativo à aproximação dos conteúdos geradores escolhidos com a vida e as áreas de interesse dos alunos. Leite (2006) aponta que o ensino desvinculado da vida traz enormes prejuízos para o estabelecimento de uma relação positiva entre o aluno e o objeto de conhecimento: Grande parte do ensino tradicional é marcada por objetivos irrelevantes, do ponto de vista do aluno, o que colaborou com a construção de uma escola divorciada da realidade, principalmente no ensino público, caracterizada pelo fracasso em possibilitar a criação de vínculos entre os alunos e os diversos conteúdos desenvolvidos. (...) o conhecimento acumulado em determinada área deve estar disponível para que as pessoas melhorem as suas condições de exercício da cidadania e de inserção social. Uma escola voltada para a vida implica objetivos e conteúdos relevantes, tomando-se como referência o exercício da cidadania, o que aumenta a chance de se estabelecerem vínculos afetivos entre o sujeito e os objetos. (p. 35).

De acordo com os dados coletados, percebeu-se que a professora selecionou atividades de ensino de maneira a assegurar que as mesmas fossem apreciadas pelos adultos. “Então, primeiro porque é um gênero textual (receita) muito próximo da necessidade de vida deles, então tem muita dona de casa, e tem muitos homens que moram sozinhos e que cozinham em casa. Então, eu fui percebendo isso de acordo com a necessidade deles de vida mesmo. Então a minha preocupação é que se o que eu tô trabalhando vai ter algum impacto na melhoria da qualidade de vida deles.” (Professora)

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Em outras palavras, as atividades eram planejadas e realizadas a partir de fábulas, histórias, músicas, receitas culinárias, textos jornalísticos, entre muitos outros gêneros com os quais os alunos já mantinham contato em seu cotidiano e que despertavam neles atenção e interesse. “Se eu me lembro? (Da atividade). Eu lembro. Nós todos, cada um falava uma receita. Gosto, gosto muito (dessas aulas). Dá pra gente aprender bastante de leitura e de cozinha novidade, umas comida diferente. Eu gosto.” (Sujeito 2)

É fundamental observar que a escola é um espaço privilegiado de interação social, onde o trabalho com o conhecimento sistematiza-se, promovendo o contato com a cultura e suas ferramentas, possibilitando a apropriação de uma diversidade de recursos de aprendizagem. A escola é um espaço de aprendizagem do mundo, dos conteúdos, de si e do outro. Os dados demonstraram o quanto as ações mediadoras da professora propiciam situações que produzem diversos sentimentos e emoções que interferem no processo de ensino-aprendizagem, podendo torná-lo, ou não, mais efetivo e proveitoso. “Como não tem essa cobrança institucional (provas, notas) a gente pára, começa a bater papo, contar como foi nosso dia, que eu acho que é um momento, parece que é mais humano, de me aproximar. Eu não vejo eles mais como alunos. (...) Eu acho que são pessoas que estão estudando aqui junto comigo. Eu tô estudando pra ser melhor professora, eu tenho o compromisso de alfabetizar, de ajudá-los a aprender algumas coisas que eles não aprenderam e eu vou aprender outras coisas com eles. (...). Que não há uma docência se a gente não ouvir o aluno. Não há uma docência na sua completude. A discência compõe a docência. Eu acho que é isso, eu ajudo eles, a gente vai pensando junto, vai aprendendo junto e é assim. É a vida... Como diz o cara lá do filme ‘O auto da compadecida’: ‘só sei que foi assim...’ ” (Professora)

Considerações finais Os dados da pesquisa permitiram observar que os alunos adultos estão profundamente marcados por vivências negativas, de fracasso e de exclusão, sentidos que internalizam na sua identidade subjetiva. A vivência de nova mediação pedagógica qualitativamente diferente de suas experiências anteriores torna-se elemento capaz e fundamental na busca por modificar essas marcas negativas já construídas a respeito de si e de sua capacidade de atuação no mundo. Entende-se que a mediação realizada pelo professor, na relação entre o aluno e as atividades desenvolvidas em sala de aula, apresenta especificidades, ou seja, a educação formal é qualitativamente diferente por ter como finalidade propiciar a apropriação, pelo indivíduo, dos instrumentos culturais que permitem a elaboração de entendimento da realidade social e promoção do desenvolvimento individual. Ao possibilitar acesso a esses conhecimentos, a prática pedagógica estaria contribuindo para a apropriação de sistemas de referência que permitiriam ao

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sujeito ampliar as oportunidades de desenvolver-se em níveis superiores, não só satisfazendo necessidades já identificadas e postas pelo desenvolvimento efetivo, como produzindo novas necessidades, considerando o desenvolvimento potencial, ou seja, as ações pedagógicas estimulam e potencializam o processo de desenvolvimento do indivíduo. O sucesso desse processo exige o planejamento de práticas pedagógicas que produzam impactos afetivamente positivos, o que, a longo prazo, reverter-se-á no envolvimento do aluno com relação aos conteúdos e, consequentemente, com a própria escola. O processo certamente produzirá sensíveis mudanças na autoestima do aluno – os sentimentos de ser capaz de aprender e enfrentar novos desafios são derivados do sucesso no processo de aprendizagem. Ao chegar nas salas de EJA, esse adulto, que internaliza a culpa pela sua exclusão do sistema escolar, encontra práticas desinteressantes, conteúdos desconexos com sua realidade e jovens que possuem objetivos diferentes dos dele. Soma-se o fato de que, na maioria dos casos, encontra, também, uma professora despreparada, que não pôde vivenciar formação adequada para o trabalho com o aluno adulto, reforçando o ciclo vicioso que exclui milhares de um processo de escolarização que permita a construção de conhecimentos necessários para a conquista da consciência crítica, indispensável quando se pensa em termos de transformação social, como já ensinou Freire (1975), lição que o mundo parece ter valorizado mais do que o Brasil, seu próprio país. Referências Bibliográficas BOGDAN, R; BIKLEN, S. Investigação qualitativa em Educação. Uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1991. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. ___________. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. FREITAG, B. Escola, Estado e Sociedade. São Paulo: Moraes, 1980. GADOTTI, M. Educação de Jovens e Adultos: correntes e tendências. IN: GADOTTI, M; ROMÃO, J. E. Teoria, prática e proposta. São Paulo: Cortez, Instituto Paulo Freire, 2001. GONZÁLEZ REY, F. L. Sujeito e subjetividade. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003. LEITE, S. A. S.(org). Afetividade e Práticas Pedagógicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

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LEITE, S. A. S.; COLOMBO, F. A. A voz do sujeito como fonte primária na pesquisa qualitativa: a autoscopia e as entrevistas recorrentes. IN: PIMENTA, S. G., GHEDIN, E.; FRANCO M. A. S. (Orgs) Pesquisa em educação – Alternativas investigativas com objetos complexos. São Paulo: Edições Loyola, 2006. LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. OLIVEIRA, M. K. O problema da afetividade em Vygotsky. IN: LA TAILLE, Y.; DANTAS, H. ; OLIVEIRA, M. K. Piaget,Vygotsky, e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus Editorial Ltda, 1992. _______________. Cultura e Psicologia: questões sobre o desenvolvimento do adulto. São Paulo: Editora Hucitec, 2009. VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998. _______________. A construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _______________. El instrumento y el signo en el desarrollo del niño. San Sebastián de los Reyes Madrid: Fundación Infancia y aprendizaje, 2007. WALLON, H. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Edições 70, 1968. ____________ . Do acto ao pensamento. Lisboa: Moraes Editores, 1979.

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COMUNICAÇÕES PRISIONEIRO DAS “ILUSÕES JURISPRUDENCIAIS”: A IDEOLOGIA NO DISCURSO JURÍDICO BRASILEIRO Adreana Dulcina Platt Maria Carolina de Godoy Introdução A marca da tradição jurídica se encontra assentada no trânsito de um saber-fazer muito particular aos intitutos político-legislativos do Estado liberal. Ao conferir a independência dos três poderes no Estado de Direito, Montesquieu, na obra O Espírito das leis (1748), defendia a necessária garantia do estado da liberdade em oposição ao estado déspota, coator e arbitrário, personificado na figura do rei. A doutrina liberal tradicional vê a norma jurídica, a lei, como expressão da vontade geral institucionalizada. É ela o fundamento do Estado de Direito: ‘Governo de leis e não de homens’. A legalidade foi a superação do estágio do poder absoluto, autoritário, enfeixado nas mãos do monarca (BARROSO, 2002, p. 9)

Isso se efetivaria por meio da organização de um estado “legal”, orientado pela autonomia entre seus entes representativos (Executivo, Legislativo e Judiciário). Há de se considerar, porém, que nesse mesmo elemento libertário, progressista e provente à autodeterminação das nações, destila-se o “espírito da época”, consubstanciado em um expressivo volume de conteúdos que chancelam a oportunidade revolucionária em causa do declínio do Estado nobiliário: o nascimento do estado burguês. O ‘moderno’ Estado (no sentido burguês) surge no momento em que o grupo ou organização de classe da autoridade inclui, em suas fronteiras, uma suficientemente ampla relação mercantil. Deste modo, as trocas da cidade de Roma com seus estrangeiros, viajantes e outros exigiam o reconhecimento de capacidade jurídica civil para pessoas não pertencentes à mesma união de grupos familiares. Isto já supunha a diferenciação entre o Direito Público e Privado (PASHUKANIS, 1924, capítulo V).

Podemos afirmar, primeiramente, que a formação do Estado moderno conduzido por uma ordem burguesa, necessariamente se comprometeria em assentar a distribuição de atos reguladores pautados em um corpo legal. Estes atos blindariam os sujeitos da agenda “legiferante” e centralizadora do estado. Nesse raciocínio, a independência dos Poderes orientadores da rotina estatal (atos discricionários), em prol do “cidadão” que surge, sugeriria uma necessária dispersão do poder centralizador, além da possibilidade de reagir à ofensa.

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Na institucionalização de uma racionalidade estatal dividida entre os três entes independentes, acima citados, ao poder judiciário caberia a “entrega” da resposta jurisprudencial reconhecendo, pela normatividade, a proteção dos direitos individuais. Ao longo do tempo, os sujeitos outrora litigantes contra os arbítrios do rei-estado, constituirão uma natureza de ordem contratual pautada na racionalidade do capital, que urge nova consubstancialização das relações de produção e das relações sociais. O jurídico, respaldado no estado de legalidade, lê a codificação da vida social a partir dos novos árbitros que respondem pelas convenções escritas de tais relações (de produção e sociais): “O jurídico, isto é, a interpretação racional do fenômeno da autoridade, se tornou possível apenas com o desenvolvimento da troca e da economia do dinheiro” (PASHUKANIS, 1924, capítulo V). Na mesma esteira, o segundo elemento que justificaria a formação do Estado Moderno, enquanto veículo do ideário burguês, alargando as garantias civis e o Estado de Direito lei, seria o comércio e a produção industrial. A necessidade de um corpus iuris que assegurasse o estado de liberdade dos sujeitos, era o marco para a instalação do novo contrato social: mão de obra livre para ser contratada, assim com odefinido o que seria crime e gerando insegurança ao invés de justiça (TORRES, 2002, p. 120 e 119). Ao longo dos séculos, todo um arcabouço teórico e linguístico foi construído para sustentar esta perspectiva. Verificamos o arrefecimento desse conceito amalgamado no imaginário moral e nas práticas sociais, por exemplo, quando comportamentos são reprimidos por se deslocarem às margens do estado de legalidade. Para Saes (2001, p. 381) o próprio modelo de capital não pode ser “reproduzido” se não houver a institucionalização da “formasujeito de direito”: A forma-sujeito de direito concretiza-se portanto, em sua versão elementar, em liberdades civis, sem as quais o capitalismo não pode ser implantado. Esses direitos elementares não são ilusórios; eles representam prerrogativas reais (...). Eles adquirem porém, na sua formação estatal, uma aparência universalista e igualitária, que é ilusória (...).

Alertamos, no entanto, que não apenas esse aspecto pode (e deve) ser depreendido da lei: (...) a lei se torna um motivo a partir da consciência moral, que o sujeito racional toma ao contrastar sua condição com a pureza da lei. A partir daí, a lei efetiva no ânimo um sentimento de respeito que se torna o móbil subjetivo da ação e faz que a máxima possa ser elevada à universalidade (SOUZA, 2002, p. 10).

Nesse sentido, podemos auferir ao “cumprimento da lei” à aceitação da ordem prescrita (seja pelos Códigos Normativos, seja em forma de sentença), enquanto dispositivo de

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sujeição, mas também enquanto dispositivo que concentra uma aceitação popular epidérmica por meio da qual, “ilusoriamente”, vêem o “justo”. O Discurso e a ideologia jurídica “O discurso é fundamentalmente persuasivo”. (WARAT, Luiz A. As falácias jurídicas. Sequência. Florianópolis: UFSC, 1985, p. 123).

Para ilustrar o que anteriormente sustentamos, uma das importantes marcas do Direito nos usos da vida secular pode ser vista na operação de simples atos constituintes de um contrato, cuja lógica gravita na união de “vontades livres” para um determinado propósito. Assim, um pai ao comprar refrigerante na cantina da escola para seu filho constróe uma relação jurídica, cujo princípio se assenta em uma relação comercial (compra-venda) entre sujeitos livres e capazes. Donos de mercadorias em igualdade e liberdade encontrando-se no mercado são apenas iguais e livres neste relacionamento abstrato de compradorvendedor. No mundo real, eles são ligados por muitas relações de dependência (...). No entanto, para a teoria jurídica do Estado, é como se estas relações não existissem. No mais, a vida no Estado é baseada na luta entre as distintas forças políticas, i.e., entre classes, partidos e todos os agrupamentos possíveis; aqui se mascaram os verdadeiros vetores que motivam o maquinário estatal. Para a teoria jurídica estas forças motivadoras são igualmente inexistentes (PASHUKANIS, 1924, capítulo V).

Esta linguagem, tão particular ao Direito, pretensamente neutra e distante como acusa Pashukanis, tem um propósito e se fundamenta em uma saber-fazer que persegue o exercício da atividade jurídica em amplo aspecto: primeiramente, pela tradição teórico-científica que fornece legitimamente instrumentos especialíssimos à construção (e manutenção) do fosso existente entre os que detém e manipulam este veículo daqueles que ignoram, completamente, os atributos dessa racionalidade. E, em uma segunda forma, o instrumento “políticoideológico” do discurso jurídico que, trazido “à luz” do esclarecimento crítico, desnuda os motivos e os sujeitos que se beneficiam com a conformação acrítica de certos comportamentos. Ao trafegar pelo Direito (...) é preciso perceber o papel político-ideológico do Direito, questionar a quem ele serve e que interesses promove. Sem essa percepção crítica, o conhecimento se burocratiza e se amesquinha. Nesta linha crítica, o Direito, embora procure se apresentar de forma neutra e imparcial – tornando seu aplicador, o Estado, um árbitro dos conflitos sociais – é, na verdade, um sistema de dominação. (...).No fundo, o Direito se presta a um e outro papéis. É a positivação dos valores da ordem e da

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justiça, e é instrumento dos interesses da classe dominante. (BARROSO, 2002, p. 7 – grifos nossos).

Anteriormente, sustentamos que as relações estabelecidas pelos sujeitos, entre si e junto aos diferentes institutos existentes, segundo determinado tempo e espaço social, só seriam possíveis quando já estiverem contruídos canais de comunicação socialmente padronizados e orientados em torno de certas reincidências linguísticas. Tais falas privilegiadas aproximam os sujeitos e as instituições, entre si e com os demais falantes (SEVERO, 2007, p. 12). Conforme Silva (2005, p. 78) verificamos a condição de instabilidade da linguagem, “por se tratar de uma criação da cultura humana”. Esta condição denota os largos passos abertos para o trânsito de novas constituições ideológicas, segundo o percurso políticoeconômico e social escolhido. Os signos constituintes na linguagem padronizam um ramo de convenções estabelecidas, a partir de disputas político-econômicas muito conflitantes, e constituem-se em uma importante particularidade: “o signo não coincide com a coisa e o conceito”, e sim, como uma ilusão, um arbítrio de determinado contexto (no espaço e tempo). Assim, “carrega não apenas o que é, mas aquilo que não é” (idem, p. 79). Nesse plano complexo de interesses e elementos, observamos o objetivo jurídico que constitui os comportamentos desejados pela utilização dos atributos linguísticos (signos plenos de significados) orientado e sustentado nesse propósito. Aliança-se, nessa perspectiva, o reconhecimento da existência de um conteúdo ideológico no Direito. Esse elemento constitui-se, efetivamente, por uma disponibilidade ideológica latente na linguagem; dandolhe um sentido a partir de um interesse. Enfim, qual o sentido da ideologia no discurso jurídico? Segundo Edelman (apud TFOUNI, MONT-SERRAT, 2010, p. 2): “el discurso jurídico es una de esas formas linguísticas que expresan la ‘ideologia’, ocultando al sujeto enunciador, pero permitiendo, por eso mismo, que subsista y se conserve em su ideologia dominante”. Sobre a “qualidade” dessa ideologia, Bayram (2010, p. 24) compreende os elementos discursantes transitando em diferentes “frentes”: “(…) may range from very favourable to very unfavourable, and may be manifested in subjective judgments about correctness, worth and aesthetic qualities of varieties, as well as the personal qualities of their speakers” 1. Há um elemento velado e revelado nos discursos. Devemos observar, portanto, o sentido dessa afirmação. Conforme afirma Fischer (2001, p. 10 e ss.) “(a) conceituação de discurso como prática social (...) sublinha a ideia de que o discurso sempre se produziria em razão de relações de poder”. Esta perspectiva é encontrada em Foucault para quem o ato discursivo é o objetivo liame entre “palavras e coisas”: “(...) gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços 1

“(t)ais atitudes variam do favorável para o muito desfavorável, e pode ser manifestada em julgamentos subjetivos sobre a correção, valor estético e qualidades estéticas ou variedades, tais como as qualidades pessoais de seus falantes” (tradução livre).

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aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva” (FOUCAULT, 1986, apud FISCHER, 2001, p. 3). Em todas estas enunciações, verificamos que discursos se marcam pelo propósito de serem internalizados. Esta prática no contexto, na ordem social, é explicada pelo movimento ideológico que atravessa as práticas discursivas. Esse é o elemento a ser desnudado nos discursos porquanto orientam e/ou criam tendências (sociais, políticas, econômicas e culturais). A ideologia motiva a própria ação discursiva; dá-lhe materialidade. O sentido representativo da ideologia (...) é aquele causador do efeito de enublação, obnublante, ilusório, formador de uma consciência inerte ou desenvolvida a partir do erro, da simulação do auto-engano. (...)a ideologia não é tudo, há um lugar do qual se possa denunciá-la e tal lugar tem que permanecer vazio, não pode se desvirtuar por uma realidade determinada, pois a partir do momento em que se cede a essa tentação se volta à ideologia (CARNI, 2009, p. 97).

No Direito, a matéria ou ramo aplicável, é objeto da ação discursiva, portanto, a ideologia do Estado, ao qual serve, está inscrito em seus interstícios. O poder da ordem social é interpretada pelo denominado “operador” do Direito, segundo os elementos reguladores desta ordem. Assim, do advogado ao juiz, há uma interpretação sobre a norma que expressa os valores de determinado contexto societário, mas que não desarticulam em absoluto as possibilidades desta interpretação. Queremos dizer com isso que não é possível no contexto jurídico interagir com interpretações absolutamente extravagantes, permitindo, assim, a revisitação do próprio ordenamento social: “Para que uma teoria ou ensinamento consista numa ideologia é preciso que haja uma estrutura conceitual filosófica somada à representação de uma visão de mundo que tenha como base valores correspondentes” (XINGJIAN, 2011, p. 1). Parafraseando Marx, podemos afirmar que é a sociedade que faz o Direito e não o Direito que faz a sociedade 2. Na ordem social burguesa (a partir do séc. XVIII) instituiu-se o ideário liberal enquanto elemento principiológico, cuja racionalidade dirigiria as relações sociais e de produção. A revolução burguesa consiste, portanto, na destruição dos mecanismos de cobrança da renda feudal — nomeadamente dos privilégios jurídico-políticos das classes feudais, traduzidos, no plano da dogmática jurídica, pela ficção de um ãominium directum ou eminens sobre a terra — e, ao mesmo tempo, na instauração dos mecanismos capitalistas de apropriação da mais-valia (...) (HESPANHA, 1980, p. 3 – grifos no original).

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No título 4. “A essência da concepção materialista da história. Ser social e consciência social”, Marx (1982) afirma: “Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”.

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O Estado (portanto, seus entes) se ampararia nesse princípio e de sua “boca” (a lei) se dotariam as práticas de eficácia contratual guardadas neste ideário: “(...) a relação jurídica é representada por nós como uma relação organizada e ordenada (...) em fazendo isto, esqueceu-se que a ordem legal é, meramente, a tendência e o resultado final, mas não é, nunca, o ponto de partida (...) (PASHUKANIS, 1924, capítulo V). A máxima da liberdade objetiva será a cautela dos direitos do indivíduo. Ao sujeito se assegura o direito de contratar, de vender, de usufruir, de se desfazer, de doar, etc.; enfim, a interpretação se alarga na possibilidade elástica do conceito e segundo a totalidade do comportamento que se quer instituir, ou seja, “(...) a teoria jurídica presume que, em primeiro lugar, o Estado, não pessoas, dão as ordens e que tais ordens são subordinadas às normas gerais do Direito, que também são expressão da vontade deste Estado (PASHUKANIS, 1924, capítulo V). Na história social moderna, o ideário do indivíduo liberal é satisfeito na figura do proprietário. A propriedade, no sentido das liberdades conquistadas desde as revoluções que sangraram a Europa no século XVII e XVIII, é o bem maior a ser protegido na racionalidade e ações do Estado Moderno, assim como será a inspiração perseguida pelas nações em suas Cartas Constitucionais. Os direitos individuais se operam em caráter pétreo nas constituições modernas, ou seja, expressão imprescindível e cogente (COMPARATO, 1997, p. 3). As decisões dos diferentes tribunais, instituições públicas e privadas, além do próprio imaginário popular, ratificam a incorporação deste ideal liberal nas práticas sociais. Em todos os discursos presentes nas possíveis esferas de relações, verificamos elementos já arrefecidos e apropriados que se assentam neste princípio. O próprio ato discursivo é propriedade (enquanto expressão particular do sujeito) e apropriado. Essa lógica persegue as sociedades modernas, enquanto valor e expressão naturalizada no seu cotidiano: “O Rechtsstaat (Estado de Direito) é uma miragem, entretanto, uma quimera proveitosa à burguesia já que substitui a esfacelada ideologia religiosa. O Estado de Direito oculta a dominação burguesa das massas e, por isto, a ideologia do Rechtsstaat é ainda mais útil do que os credos religiosos” (PASHUKANIS, 1924, capítulo V). As instituições jurídicas, não serão diferentes. A proteção à propriedade será reiteradamente guardada, porquanto ser elemento imprescindível à manutenção da ordem burguesa e capitalista. Os tribunais sentenciam (discursam) protegendo esse princípio (ideologia), ainda que colidam com práticas consideradas aceitáveis pela tradição, pelo bom senso, pois promovem precedentes que revolucinariam a atual ordem burguesa e seus privilegiados. A interpretação do direito é constitutiva e não simplesmente declaratória. O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. (...). A norma jurídica é produzida para ser aplicada a um caso concreto. Essa aplicação se dá mediante a formulação de uma decisão judicial. Segundo Müller a interpretação e concretização se superpõem. Hoje inexiste interpretação do direito sem concretização (GRAU, 2006, p. 66 e ss.).

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Warat 3 (s/d) acusa o uso da norma jurídica por ter um caráter unicamente prescritivo, “impedindo o uso do discurso demonstrativo”. Esta característica não permite a sensibilidade da causa humana, única e encharcada de outros determinantes. As falácias do discurso jurídico, em distribuir o direito às partes litigantes, não o permite responder necessariamente pela justiça; exatamente pelas contradições que estruturam a sociedade do capital. Gostaríamos de discutir essas ideias a partir da análise ao caso concreto, como recomenda a tradição jurídica. Uma decisão retirada em última instância de apelação ao Superior Tribunal de Justiça, reiterando a decisão do juiz de primeira instãncia, sobre um caso que revela um valor protegido na sociedade burguesa: a propriedade. Antes, gostaríamos de discutir esse princípio no ideário burguês. A propriedade enquanto princípio na ordem burguesa Por meio de leis, reportadas umas às outras para justificar o direito de propriedade das partes em litígio, a peça de sentença jurídica cria os elementos viabilizadores para a concretização daquilo que se revela um princípio, um valor, a ser protegido. Para Warat (1985) “a ordem jurídica discursa persuadindo em favor de uma aprovação da instância superior”, ou seja, aquele lugar iminentemente político-legal que sustenta a ideologia burguesa na sociedade moderna. A marca do discurso jurídico persuasivo, necessariamente veicula um elemento político que retrata um“encontro de almas” seduzidas e a “aceitação” no seio da comunidade. O Direito pacifica esse discurso uma vez que, na sociedade do capital, a propriedade tem traços estruturais. Conforme sistematiza Hespanha (1980, p. 211-212 – grifos no original): a) A propriedade é um direito natural, anterior à ordem jurídica positiva, decorrente da própria natureza do homem, como ser que necessita de se projectar exteriormente nas coisas para se realizar; esta fundamentação antropológica da propriedade tem (...) sua origem na escolástica franciscana e remata-se na teoria kantiana do direito. b) A propriedade é um direito absoluto, no sentido (...) de que não está sujeito a limites externos, pelo que o seu exercício não depende de condicionamentos ou autorizações externas. No momento em que foi introduzida no Code Civil) esta referência ao carácter absoluto da propriedade representava uma consagração da abolição dos ônus feudais sobre a terra pela legislação revolucionária; mas, em seguida, ela pôde também justificar a antipatia da época por todas as formas de limitação ou condicionamento da propriedade (...). 3

Os textos sem identificação (no caso, sem a data e o n. de página) de autoria do prof. Dr. Luiz Alberto Warat, utilizados neste artigo, são retirados do blog em sua homenagem e que contem parte de sua obra, por isso não identificamos ano nem página aos comentários deste autor.

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c) A propriedade é um direito pleno, ou seja, contém em si todas as faculdades de acção que o seu titular pode desenvolver em relação ao bem objecto de propriedade, incluindo a sua destruição económica (consumo e alienação) ou física. d) A propriedade é um direito tendencialmente perpétuo, daí decorrendo a tendência para o desfavor das formas temporalmente limitadas de domínio (fideicomissos, enfiteuses em vidas, cláusulas de retroacção) e a promoção da propriedade perpétua. e) A propriedade é (...) um direito essencialmente privado, não devendo, portanto, coenvolver direitos de carácter público, como acontecera na constituição fundiária e política do antigo regime (que competiam) à jurisdictio, e não ao dominium, enquanto faculdades dos proprietários - são abusivos e devem ser abolidos, como de facto o foram sendo pielas revoluções burguesas. Segundo Hespanha (1980, p. 221) o conceito de propriedade agrega em si o exemplo mais pleno e celebrado dos princípios iluministas, perseguidos pela burguesia desde o século XVI. Aliançado no conceito de “individualismo moderno”, a elaboração do conceito de propriedade será, significativamente, o divisor paradigmático entre a ordem feudal e a ordem moderna. Sua maior ilustração está na dissolução do normativismo vigilante a uma ordem do “absoluto”, exterior ao sujeito. Nesta ordem burguesa: “Na raiz da construção dogmática da propriedade está a definição do homem como ser livre e senhor dos seus actos (...) que necessita (...) se projectar no mundo externo (...). Assim, o domínio sobre as coisas (propriedade) aparece como um prolongamento do domínio sobre os seus próprios actos (liberdade) (...) (HESPANHA, 1980, p. 221-222 – grifos nossos). A doutrina pátria (brasileira) encontra no instituto “propriedade” os antagonismos de duas perspectivas em conflito na sociedade: as teses liberais e sociais. O conceito moderno do princípio da individualidade e a liberdade de se tornar proprietário (no sentido de posses privadas), colide com os direitos de “igualdade”. Para não enfrentar a pauta e os elementos que suscita, o Direito moderno se instrumentaliza na formalidade e na materialidade. O Direito Formal se revela na forma dada para a aplicabilidade efetiva da ordem legal na rotina dos sujeitos. O Direito Material será o reconhecimento objetivo do direito dos sujeitos, desde que amparados pela lei. Assim, enquanto o aspecto material da lei opera no reconhecimento do Direito para as partes ou para os sujeitos em amplo aspecto, o aspecto formal orienta os movimentos para alcançar este direito diante das instituições judiciais, efetivamente no cotidiano. Não adianta apenas reconhecer um direito, deve-se seguir os procedimentos para conquistá-lo. Normas regulamentadoras também são exemplo desta formalidade. Os sujeitos para reconhecerem seu direito (neste caso, de propriedade) devem vislumbrá-lo na lei, mas não só isso: devem observar quais os procedimentos tornam efetivo esse direito. Em uma sociedade dividida em classes e com interesses amplamente antagônicos, esse aspecto, por si, denuncia tais diferenças. Somente a lei determina o que se

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entende e o que pode ser “propriedade”, assim como quem se torna proprietário. A marca de uma sociedade dirigida pelo modelo de capital e numa ordem burguesa será reconhecida também pelos que podem ser proprietários dos demais que não tem posses. Sobre essa questão, Matias e Rocha (2006) assertam importantes questões desse instituto (propriedade): 1) a propriedade é um conceito construído histórica e socialmente, portanto não pode ser considerado como um direito natural - como postulava Locke desde o séc. XVII -; 2) A evolução do conceito de propriedade significou a revisão das dimensões de seu usufruto por decisões vinculadas à natureza da economia capitalista, ou seja, cria-se uma “condicionalidade” ou restrições ao direito que as ciências econômicas postulam à sociedade do capital: “a eficiência e a alocação de recursos” (MATIAS; ROCHA, 2006, p. 11-13). Os autores nos permitem entender o movimento em prol de um ideário referente à “função social da propriedade” muito mais vinculado às questões que dicutem o esgotamento técnico de um princípio pela empiria econômica, do que por uma luta social com ganhos 4. Um outro importante aspecto é digesto por essa assertiva: devemos reter que os meios de produção são indelevelmente um dos exercícios mais preponderantes para a efetivação da lógica proprietária, que persegue o discurso jurídico desde idos do século XVI (HESPANHA, 1980, p. 221). O “caso concreto”5 “A decisão judicial é uma peça persuasiva, que persegue a aprovação da instância superior, da doutrina, da política e da comunidade e a satisfação das exigências valorativas do direito, de suas pautas axiológicas, que só relativamente podem ser alcançadas. A relatividade dos direitos é o que determina e impõe o caráter persuasivo do discurso jurídico”. (WARAT, Luiz A. As falácias jurídicas. Sequência. Florianópolis: UFSC, 1985, p. 123-128).

O acórdão (sentença proferida em instâncias superiores ao tribunal original) se refere ao caso apresentado por uma senhora que questiona a propriedade da casa onde morava com o falecido marido, pelos herdeiros. Lembramos que a análise se pautará na discussão dos valores burgueses que prescindem sobre qualquer outra possibilidade de acordo, principalmente quando são decisões de instâncias superiores. Da mesma forma, podemos antecipar, mesmo com temor, a existência 4

Não queremos com esse comentário simplesmente diminuir as conquistas atribuídas à inconformidade popular e luta social em prol do que se entende por Bem-Comum. Mas queremos tecer a crítica sobre a natureza dessas conquistas e verificar os agentes que se beneficiam nesses espaços. 5 Os nomes dos envolvidos na sentença foram omitidos.

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de uma identificação pessoal do leitor com a sentença que descreve o que é “justo” ou “direito” em conformidade à legislação (já descrita em favor de um ideário burguês) e, em favor da decisão, reiterar as bases do princípio de propriedade. É o momento de analisarmos o quanto os discursos são regidos pelos valores burgueses instalados no imaginário, nas crenças e aspirações; enfim, nas decisões privadas. “RECURSO ESPECIAL Nº 1.273.222 - SP (2011/0132921-5) RELATOR: MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO RECORRENTE: FULANA DE TAL ADVOGADO: FULANO DE TAL RECORRIDO: SICRANO DE TAL ADVOGADO: SICRANO DE TAL EMENTA RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. INVIABILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REVISÃO DO JULGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. ACLARATÓRIOS. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA DE CARÁTER PROTELATÓRIO. 1. A análise de suposta violação a dispositivos e princípios da Lei Maior é vedada em sede especial, sob pena de usurpação da competência atribuída pelo constituinte ao Supremo Tribunal Federal. 2. A revisão, em sede de recurso especial, do julgamento realizado pelo Tribunal de origem, com base no complexo fático-probatório, encontra óbice no teor da Súmula 7 desta Corte Superior. 3. Conforme a jurisprudência desta Corte, o cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o imóvel em que residia o casal, desde que seja o único dessa natureza e que integre o patrimônio comum ou particular do cônjuge falecido no momento da abertura da sucessão. 4. Peculiaridade do caso, pois o cônjuge falecido já não era mais proprietário do imóvel residencial, mas mero usufrutuário, tendo sido extinto o usufruto pela sua morte. 5. Figurando a viúva sobrevivente como mera comodatária, correta a decisão concessiva da reintegração de posse em favor dos herdeiros do falecido. 6. Os embargos de declaração que objetivam prequestionar as matérias a serem submetidas às instâncias extraordinárias não se revestem de caráter procrastinatório, devendo ser afastada a multa prevista no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil (súmula 98/STJ). 7. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO APENAS PARA AFASTAR A MULTA. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da TERCEIRA Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, João Otávio de Noronha e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Brasília (DF), 18 de junho de 2013(Data do Julgamento) Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Relator” O EXMO. SR. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por FULANA DE TAL com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que restou assim ementado (fl. 412): POSSESSÓRIA - Reintegração de posse Suspensão do processo - Inadmissibilidade - Concessão de efeito suspensivo a recurso especial tirado contra acórdão que manteve decisão interlocutória que se restringe a esta decisão - Desnecessidade, ademais, de reunião desta ação com outra dita anulatória por falta de previsão legal -Inexistência de conexão ou continência. POSSESSÓRIA - Reintegração de posse - Imóvel doado aos filhos com reserva de usufruto pelo pai - Casamento posterior do pai seguido de falecimento deste que não geram direito de habitação ao cônjuge sobrevivente - Ocupação do imóvel que se dá a título de comodato Rescindido o contrato de comodato, configura-se esbulho a permanência da viúva - Irrelevância de ser ela beneficiária em testamento, já que o bem não mais integrava o patrimônio do testador no momento daquele ato - Sentença de procedência mantida - Apelação improvida.

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Na origem, foi proposta pelos recorridos ação de reintegração de posse contra a recorrente, relatando que o imóvel a ser reintegrado adveio da sucessão da mãe dos recorridos (de cujus materno). Na oportunidade, o pai dos recorridos (de cujus paterno), efetuou a cessão de sua meação, permanecendo com o usufruto vitalício do imóvel em questão. Com o falecimento do pai dos recorridos, em 14/04/2008, extinguiu-se o usufruto, que foi devidamente cancelado. A recorrente foi notificada para desocupar o imóvel, sendo constituída em mora por notificação extrajudicial. Como não desocupou, foi proposta a presente demanda, com pedidos de reintegração de posse e aplicação de pena pecuniária de 1% sobre o valor do imóvel desde a constituição em mora. A liminar de reintegração de posse foi deferida, sendo mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, mas suspensa por decisão desta Corte (Medida Cautelar nº 15.603/SP - fl. 286 e-STJ). A ré contestou, alegando seu direito real de habitação sobre o imóvel, pois era casada com o pai dos autores, ora recorridos, desde 17 de março de 2001, tendo, inclusive, ajuizado ação anulatória da doação. Pediu a improcedência da demanda. Na sentença, o Magistrado julgou procedente o pedido de reintegração de posse. Foi interposta apelação pela demandada, tendo o Tribunal de Justiça de São Paulo negado provimento ao recurso, conforme ementa acima transcrita. Opostos embargos de declaração, estes forma rejeitados com aplicação de multa (fl. 480). No presente recurso especial, a recorrente sustentou violação dos arts 5º, inciso LV, da Constituição da República e 265, inciso IV, do Código de Processo Civil, sob o argumento de que necessária a suspensão do feito, em razão da conexão com a demanda anulatória proposta na origem. Asseverou, ainda, que o acórdão combatido violou os arts. 1.196; 1.198; 1.200 e 1.831, todos do Código Civil. Acenou pela ocorrência de dissídio jurisprudencial. Requereu o provimento do recurso especial. O recurso especial foi admitido na origem. Vieram-me os autos distribuídos por vinculação à Medida Cautelar n. 18.139-SP, da minha relatoria, que foi interposta para agregação de efeito suspensivo, mas que não foi deferido. É o relatório.

Análise preliminar O primeiro elemento disposto, no presente caso, será a linguagem jurídica. Segundo Martins e Moreno (1996, p. 72) o “juridiquês” é uma espécie de política, porquando responde apenas à um universo de restritos manipulantes. Nesses sujeitos se arrefece o reconhecimento e a discricionaridade de operá-la (linguagem jurídica). O emprego de palavras difíceis e rebuscadas (...) serve apenas para obscurecer ainda mais o texto, dificultando o entendimento (...). O que combatemos é o juridiquês, o uso de um vocábulo exótico ou arcaizante que constitui a verdadeira praga que assola a linguagem jurídica de hoje (MARTINS, MORENO, 1997, p. 72).

Warat (1985) desconcertou durante anos o universo jurídico ao denunciar as “falácias jurídicas” e o jogo de “persuasão” que envolve a prática do Direito. Para este autor, o sistema jurídico se apresenta desta forma, pois opera em sintonia com o sistema econômico-político vigente. Na falácia do discurso jurídico, a característica preponderante será o velado, ainda que se sustente em um estado de “legalidade”. Desta forma, este princípio se constitui em falácia (jurídica), pois “(...) obstaculariza a tendência natural de todo trabalho humano de estender a esfera de sua ação” (idem), ou seja, a interpretação se alarga conforme os sujeitos que a reitera, negando a criação de outras mediações combinatórias/acordos para a solução de conflitos e em diferentes instâncias. A relevância da interpretação desse autor está no fato de julgar que as decisões jurídicas se tornam (presumidamente) compreensíveis apenas ao seleto corpo jurídico a compreensão do ato socialmente repreensível.

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Ao submeter o litígio aos tribunais, a senhora questionadora demandou recursos em outras instâncias visando a alteração da decisão da primeira instância, ou seja, nova interpretação da lei. Esse fato denota que a interpretação da norma legal não é pacífica no meio jurídico. Há possibilidade de “reformas” nas sentenças e acórdãos. Essa perspectiva, por si, poderia “ofender” todo o feixe protetivo aos direitos burgueses, por reinterpretações que tornassem largadamente “sociais” o instituto da propriedade. Os liberais de plantão podem seguir tranquilos, pois esse modelo se articula em diferentes frentes tornando inócuas as interpretações desfavoráveis aos princípios, porquanto tendencialmente protetivos à ordem do Capital, do Liberalismo e do Estado de Direito – constituídos em entes com suficiente sobrefôlego para ultrapassar crises. Uma das interpretações reiterativamente figuradasa como discurso preponderantemente contraposto aos ideais liberais é o princípio da igualdade. Dworkin (apud DALL’AGNOL, 2005, p. 57) não atribui a este princípio uma completa oposição ao liberalismo, quando sustenta que “(...) a igualdade (é) o motor do liberalismo. (...) no fundo, tanto direitos individuais quanto o bem estar social estão fundados na igualdade” 6. Com isso o autor verifica que não há suficiente contradição na justaposição desses princípios, a ponto de colidirem. Ou seja, se esperamos que pela igualdade possamos nos contrapor ao princípio de liberdade do indivíduo, em Dworkin somos desafiados a verificar a subsunção de um princípio em outro, ou seja, não haverá conflitos nem a exigência de sopesamentos entre tais direitos uma vez que os conflitos, entre ambos, são apenas “aparentes e de superfície”. Para o jurista, a igualdade, em sua natureza conceitual significa “procurar o bem estar geral” concebendo, desta forma, “cada pessoa uma e não mais do que uma” (DALL’AGNOL, 2005, p. 59). Nessa perspectiva, a senhora do caso apresentado para análise se frustra em sua caminhada recursal, pois os bens protegidos legalmente se constituem em interpretações sempre favoráveis à ordem imperante, uma vez que a decisão não fere a proteção do bem comum e mantém a lógica de perpetulidade, plenitude e o não partilhamento tão característicos a esse instituto. Entendemos, no entanto, que não é simples “ler” essa questão na decisões jurisprudenciais. Há um elemento “escondido” na sentença/decisão jurídica, que ampara a racionalidade burguesa. Na verdade, este “amparo” é a própria manutenção da ordem principiológica que sustenta o estado burguês. E, como apontamos anteriormente, lutamos contra uma ideologia burguesa também instalada em nosso imaginário de aceitação a ponto de não pensarmos (ou aceitarmos sem ampla desconfiança) outras possibilidades de arranjos/

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Conforme Dall’Agnol (2005, p. 60) Dworkin “não nega que os indivíduos têm direitos a certas liberdade, por exemplo, o direito à tomada de decisões pessoais em questões morais. Todavia esses direitos são derivados”. O pensamento de Dworkin, no entanto, continua apregoando os valores liberais, porquanto concebe os direitos como “trunfos políticos possuídos por indivíduos. Disso também se segue que esses fins coletivos não podem servir de justificativas para impor algum tipo de dano ou prejuízo aos indivíduos” (idem, p. 63).

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decisões entre os sujeitos. Como afirma Warat, encolhemos a “mão” do trabalho que demandaria, negando, assim, aquela nossa condição tão humana. Outro aspecto para análise será o discurso jurídico articulando a tensão da decisão em um “jogo aparente entre o real e o irreal” (BORGES, 2013). Haveria uma ambiguidade entre a norma legal e o mundo da vida? A ideologia burguesa se disseminou amplamente entre as esferas institucionais exatamente para reduzir o conflito, as contradições (enfim, a dialética) entre os interesses existentes na sociedade de classes, pela coesão quanto pela repressão (ALTHUSSER, 1985). Nesse sentido, o que vemos e sobre o que decidimos no mundo da vida pode se figurar em “ilusões” que não se voltam em nosso favor, mas em favor da manutenção da ordem liberal instituída (NAVES, 2013). Há uma grave dificuldade em encontrar na lei argumentos que desarticulem a natureza burguesa da racionalidade capitalista. A cadeia de soluções/arranjos sustentada em decisões que se reconheçam contrárias aos princípios ventilados desde o séc. XVIII, com a Revolução Francesa, sofrerão suspeitas e fragilidades, pois vivemos num mundo que se orienta por uma ordem que concebe o “justo” a partir de uma racionalidade jurídica - aquiescida nos elementos velados que protegem os princípios liberais - e distribuída em meio a burocracia de Estado. Considerações Finais Ao final deste artigo podemos considerar no discurso jurídico o volume significativo da ideologia de Estado. A construção linguística, no âmbito da tradição jurídica postula os interesses marcadamente liberais, que devem ser defendidos, e nela pauta as normativas que organizam, reafirmam, culpabilizam e sentenciam os comportamentos sociais. Dentre as construções linguísticas do ente jurídico - a concentração determinante à materialização da perspectiva ideológica de Estado - temos a idealização das normas e leis que regem a vida social. A constituição do Estado de legalidade foi uma prerrogativa das revoluções liberais para disseminar seu ideário, acentuadamente, e perpetuar-se nas seguidas gerações. Nesse diapasão, encontramos pontualmente os princípios que sustentarão a nova ordem social burguesa regidos pelos estado de legalidade. Dentre eles a propriedade será o mais pulsante. As caracterísiticas da propriedade passam da lógica medieval para a modernidade agregando valores antes dispostos apenas a uma aristocracia falida. A tradição liberal cuidará desse princípio enquanto estatuto para a própria noção da liberdade propalada dentre os ideias revolucionários do séc. XVIII. Para exemplificarmos nossas afirmativas, verificamos como os tribunais julgam os conflitos de propriedade na atualidade, a partir de um estudo de caso. Dentre as análises possíveis, postuamos a existência de uma saga jurídica em defesa deste instituto. Constatamos uma maximização de cuidado a propriedade e ao direito do proprietário em detrimento de outros valores que, ao homem médio, possivelmente se resolveria por meio de rearranjos sociais amparados em outras perspectivas, como a solidariedade ou comunitarismo, mais voltados aos processos de desprendimentos e desapegos; tão caros ao “egoísmo” apregoado pelo modelo liberal. Da mesma forma, verificamos nos discursos pretensamente

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contrahegemônicos, como o princípio da igualdade, o arrefecimento de ajustes que deslocam a crítica ao instituto da propriedade apenas em uma análise reformista do princípio. Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. Semiótica do Direito. Capítulo “a linguagem do Direito”, p. 38-66. Disponível em. Acesso em 26 jun 2013. BORGES, Maria Isabel. Orientações do Módulo “Linguagem e seus usos” – Curso de Letras. Londrina, PR: Universidade Estadual de Londrina, 2013. CARNIO, Henrique G. Direito e ideologia: o direito como fenômeno ideológico. Revista Eletrônica Acadêmica de Direito, 2009, p. 95-107. Disponível em: http://www.panoptica.org/novfev2009pdf/05_2009_2_nov_fev_95_107pp.pdf. Acesso em 02 jul 2013. COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e Deveres Fundamentais em matéria de propriedade. Brasília, Revista CJF, n. 3, dez 1997. COUTINHO, Carlos Nelson. Cidadania e Modernidade. Perspectivas, n. 22. São Paulo: Unesp, 1999, p 41-59. DUTRA, Delamar J. V. A legalidade como forma de Estado de Direito. Kriterion, n. 109. Belo Horizonte, jun/2004, p. 54-80. EDELMAN, B. La Practica Ideologica del Derecho. In: TFOUNI, Leda Verdiani; MONTESERRAT, Dionéia Motta. Letramento e Discurso Jurídico. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Diálogos Interamericanos, n 40, p. 97-116, 2010. FISHER, Rosa M. B. Foucault e a análise do discurso em educação, p. 197-223. Cadernos de Pesquisa, n. 114, 2 nov de 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/n114/a09n114.pdf. Acesso em 26 jun 2013. FREITAS, Raquel Barradas de. Direito, linguagem e literatura: reflexões sobre o sentido e alcance das inter-relações. Disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/DireitoLinguagemLiteratura.pdf. Acesso em 21 jun. 2013.

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À MARGEM DA LEITURA E DA ESCRITA: QUANDO UM ADOLESCENTE É PROTAGONISTA DE UM CASO DE ENSINO Ádria Maria Ribeiro Rodrigues 1 Simone Albuquerque da Rocha 2 Maria da Graça Nicoletti Mizukami 3 Mas o garoto que tinha no rosto um sonho de ave extraviada Também tinha por sestro jogar pedrinhas no bom senso.[...] Disse que ainda hoje vira a nossa Tarde sentada sobre uma lata Ao modo que um bentevi sentado na telha. Logo entrou a Dona Lógica e bosteou: Mas a lata não aguenta uma Tarde em cima dela, e ademais a Lata não tem espaço para caber uma Tarde nela! Isso é Língua de brincar É coisa – nada. O menino sentenciou: Se o Nada desaparecer a poesia acaba. E se internou na própria casca ao jeito que o jabuti se interna Manoel de Barros

Os versos do poeta mato-grossense revelam o diálogo entre o menino sonhador e Dona Lógica, a professora, que num tom autoritário e castrador tenta proibir a criança do sonho e da imaginação. O menino ao dizer que vira a tarde sentada na lata é confrontado pela professora que se apropria de sua frase no sentido literal e desencantador. Essa lógica é para a criança destruidora do sonho e da fantasia e não cabe, portanto, no seu universo inventivo. Trazendo o texto de Barros para a escola brasileira poderíamos identificar a postura da professora com o paradigma tradicional que ainda nos dias de hoje se faz presente nas salas de aula. Temos testemunhado em muitas escolas essa lógica que desconsidera a riqueza da linguagem infantil e impõe uma leitura literal e estreita de textos que sugerem muitas leituras possíveis. Essa perspectiva de prática alfabetizadora vem na contra mão de um trabalho que visa a formação de leitores competentes e críticos. Temos convivido com um grande número de adolescentes que não consegue fazer o uso das habilidades da leitura e da escrita na sua vida, ou seja, não temos conseguido alfabetizar letrando. O presente trabalho consiste em um recorte de pesquisa de mestrado que objetivou adotar a narrativa de um adolescente do sexto ano do Ensino Fundamental, que estava à

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Professora Mestre em Educação pela UFMT e membro do Grupo de Pesquisa Investigação. [email protected]. Professora Doutora do PPGEdu/UFMT; Rondonópolis-MT. [email protected]. 3 Professora Doutora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. [email protected]. 2

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margem da leitura e da escrita devido ao insucesso na alfabetização/letramento e seu impacto enquanto ferramenta formativa no uso com professores. A pesquisa desenvolveu-se em uma escola pública de Mato Grosso com um adolescente do sexto ano do Ensino Fundamental (J) e a professora de Língua Portuguesa (PLP), adotando como metodologia a pesquisa-intervenção na busca de respostas às seguintes indagações: É possível que a narrativa de um adolescente que evidencia seu fracasso e narra episódios sobre ele, possa desencadear processos de reflexão-intervenção-ação nas pessoas que discutem e atuam na educação? A abordagem qualitativa permeou as investigações e o instrumento/ferramenta foi o Caso de Ensino ao submeter a narrativa elaborada pelo adolescente à leitura da professora seguida de indagações reflexivas constitutivas dos procedimentos com casos. Durante a investigação associou-se ao estudo de caso a intervenção no intuito de ajudar o sujeito na leitura e na escrita para a superação dos insucessos. Apresentamos a seguir o caso de ensino do adolescente que denominaremos de J. letra de seu primeiro nome a fim de preservarmos sua identidade. Minha História Meu nome é J. Quando eu era pequeno minha mãe e meu pai não eram separados. Quando nós três morávamos juntos eu me sentia mais alegre porque éramos felizes sem briga. Antes de minha mãe começar a beber, depois desse dia meu pai e minha mãe começaram a brigar, tanto que se separaram, meu pai arrumou as coisas e foi embora. Nessa época eu tinha 12 anos de idade. No primeiro dia de aula eu só ganhei um apelido que foi Pão de Queijo. Com esse apelido eu comecei a ter muitos amigos, indo nas ideias dos outros e acabei reprovando. No final do ano a professora falou: Nesta lista está o nome de quem passou e de quem ficou retido. Eu já estava nervoso e quando ela falou o meu nome. Eu fiquei sem graça porque os outros ficaram rindo de mim. Quando meu pai ficou sabendo ele também ficou triste, mas mesmo assim ele me deu um presente de natal, foi um celular, ele falou assim: Aqui está meu presente, mas o que queria você não me deu que foi passar de ano. Eu abaixei a cabeça e fiquei pensando: Por que isso só acontece comigo? Nesse ano de 2008 foi igual o ano passado a primeira coisa foi passar as regras. Conheci a professora de Português, ela viu a minha dificuldade e foi me ajudando quando certo dia ela chegou com a professora Ádria e falou que eu iria pegar duas pessoas para fazer entrevista. A primeira vez que ela me chamou eu fiquei com um frio na barriga e depois eu fui me acostumando. A primeira coisa que ela me deu foi um caderno, uma caneta e um lápis com borracha e pediu para que tudo que eu fazer era pra mim escrever no caderno, depois disso ela me chamou para fazer leitura. Eu expliquei que eu tinha vergonha de ler na sala porque tinha dificuldade e os colegas ficavam rindo de mim. Ela foi treinando minha leitura foi indo até que hoje eu sei ler bem melhor e hoje meus amigos não tiram mais sarro de mim, porque agora eu sei ler bem e escrever também. A Leitura com a professora Ádria era divertida, diferente. Não era leitura bobinha que nem nos outros anos. Depois que eu aprendi a ler meu pai pede para eu ler as coisas que ele não dá conta porque ele é cego de um olho. Quando eu leio pra ele, ele fica orgulhoso de mim. Eu fico feliz, alegre de poder dar este presente pra ele que é passar de ano esse esforço não seria válido se não fosse a professora Ádria.

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O caso de J evidencia o doloroso processo vivido por ele em sua trajetória marcada por insucessos na alfabetização, por meio de práticas e posicionamentos tradicionais, que desconsideravam a sua história de vida , a sua linguagem, o seu tempo de aprender e, portanto o reduzia a “coisa –nada” . J, como o menino de Barros, silenciava-se como o jabuti que se interna na própria casca. Evidenciou-se também no caso, a superação de J. a partir da intervenção de uma das pesquisadoras, que contribuiu no processo de alfabetização do menino usando gibis, obras literárias, textos jornalísticos, enfim, uma variedade de gêneros textuais, rompendo com a forma fragmentada de leitura de palavras e sílabas, vivenciadas pelo menino durante a sua trajetória escolar. Depois da leitura da narrativa de J ficamos pensando em quantas crianças são alfabetizadas com métodos tradicionais. O caso do menino nos fez compreender como a leitura e escrita devem ser trabalhadas com materiais variados, de forma mais prazerosa e não mecânica e sem sentido. Contribuem os casos para que professores, ao lerem, reflitam e assim, não provoquem mais em meninas e meninos, atitudes de tristeza e recolhimento, como o jabuti escondido na própria casca (Barros, 2007). Lido pela professora de J. o caso de ensino a fez passar por várias reflexões, que passamos a relatar: A partir da narrativa de J, percebi que ele fecha com chave de ouro a importância de o professor conhecer um pouco a historia de vida de cada aluno. Devemos ver o aluno como uma estrela que surge em nosso caminho somente para nos fazer crescer e brilhar.

O caso de ensino do menino serviu, também, para que PLP refletisse sobre os avanços nas aprendizagens da leitura e da escrita do menino, a partir do que expressou: [...] é só observar suas primeiras produções e compará-las com as atuais, como a escrita da narrativa, por exemplo, e logo se percebe o quanto ele escreveu em suas leituras e produções. [...]

Novamente a professora reflete sobre algumas mudanças que fará em sua prática: A partir do trabalho desenvolvido com o aluno J, acredito que muitas coisas mudaram como: colocar sempre em prática os verbos ver, sentir, refletir e a atuar; procurar trabalhar mais voltado para as necessidades e dificuldades de cada aluno; buscar humildade, respeito, afetividade para desenvolver um bom trabalho.

Os casos de ensino são possibilitadores de reflexões, pois trazem para a cena principal o panorama detalhado dos dilemas cotidianos enfrentados pelo menino. Sobre esse processo Schulman (1996) discorre:

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Nós não aprendemos a partir da experiência; nós aprendemos pensando sobre nossa experiência. Um caso toma material bruto de primeira ordem e coloca-a narrativamente em experiência de segunda ordem. Um caso é uma versão relembrada, recontada reexperenciada e refletida de uma experiência direta. O processo de relembrar, recontar, reviver e refletir é o processo de aprender pela experiência. (SCHULMAN, 1996 apud MIZUKAMI, 2006, p.156-157).

A superação de inúmeras dificuldades na leitura e escrita, evidenciada no caso de J, é de extrema contribuição para a compreensão do quanto as práticas de alfabetização centradas na repetição e memorização de pseudo-textos, que ainda hoje permeiam a escola são responsáveis pelo insucesso na alfabetização. Assim sendo, o caso inspira professores para o uso de práticas de leituras que não tolham mais em meninas e meninos o sonho de ave extraviada e o sestro de jogar pedrinhas no bom senso... (Barros, 2007). Referências ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Líber Livro, 2005. (Série Pesquisa, v. 13). BARROS, Manoel de. Poeminha em Língua de brincar. São Paulo: Editora Record, 2007. MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti et. al. Escola e aprendizagem da docência: processos de investigação e formação. 2.ed. São Carlos: EduFscar, 2006. RODRIGUES, Á. M. R. O Silêncio e a Transgressão: contribuições das narrativas de uma menina e de um menino com trajetórias marcadas pelo insucesso na leitura e na escrita. 2009. 196 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT. Cuiabá, 2009.

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OS SENTIDOS DO ENSINO DA LEITURA NA EJA: AS VOZES DAS PROFESSORAS SEM MARGENS E SEM RETOQUES Adriana Cavalcanti dos Santos 1 Antonio Francisco Ribeiro de Freitas 2 Marinaide Lima de Queiroz Freitas 3 Palavras iniciais Neste artigo fazemos um recorte da pesquisa denominada: A leitura e a formação de leitores no Estado de Alagoas: estudo e intervenção de alfabetização em educação de jovens e adultos (2010/2014), desenvolvida por meio do Observatório Alagoano de Leitura em Educação de Jovens e Adultos, e financiada pela Coordenação de Apoio ao Pessoal de Ensino Superior (CAPES). O corpus que fomenta nosso diálogo adveio das narrativas das professoras 4 por meio das entrevistas semiestruturadas, realizadas nos loci de 4 escolas públicas que compõem o referido Observatório, objetivou conhecer de que forma as professoras partícipes da investigação compreendem o seu trabalho docente em função da melhoria do ensino da leitura na escola. Partimos do pressuposto de que “não nascemos professoras, nem nos fizemos professoras de repente. O fazer-se professora foi-se configurando em momentos diferentes de nossas vidas” (FONTANA, 2000, p. 122). O que comentamos não foram e não são discussões "fechadas", mas se trata de inquietações "abertas" ao diálogo, que procuram mostrar outras possibilidades do ensino da leitura em EJA, tendo como foco a formação de leitores e, também, “novos” caminhos para se pensar a política de formação do professor dessa modalidade no lócus da escola, num processo de ação-reflexão-ação. Os sentidos construídos na docência: as margens do rio O corpus escolhido nos apontou categorias de análise dos sentidos construídos sobre leitura, pelas docentes, que comentamos a seguir: a) Trabalho docente como formação na ação-reflexão-ação Uma primeira aproximação parece não nos causar estranhamento, quando a professora Anita , revela que faz na sua prática pedagógica, uma comparação entre o processo de 5

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Professora Assistente da Universidade Federal de Alagoas – Campus Maceió, Alagoas - E-mail: [email protected]. Professor Associado da Universidade Federal de Aalgoas – Campus Maceió, Alagoas - E-mail: [email protected] 3 Professora Adjunta da Universidade Federal de Alagoas - Campus Maceió, Alagoas - E-mail: [email protected] 4 Fizemos a opção pelo uso do gênero feminino porque o grupo docente era constituído só por mulheres. 5 Denominamos as professoras com nomes fictícios, para garantir o anonimato. 2

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OS SENTIDOS DO ENSINO DA LEITURA NA EJA: AS VOZES DAS PROFESSORAS SEM MARGENS...

aprendizagem das crianças e o processo de aprendizagem dos seus alunos jovens, adultos e idosos, conforme enuncia: Às vezes, eu me pego refletindo sobre o processo de aprendizagem, e me pego comparando apesar da idade deles. [...] Eles passam pelo mesmo processo das crianças. Há diferença, lógico. Eles têm uma caminhada de vida, uma experiência muito grande. Mas, as fases, eu digo: Meu Deus! Ele passou pelo mesmo processo. [...] Mas, eles apresentam o mesmo processo. Eu acho que eu aprendo muito mais com eles do que ensino, eles têm me ensinado muito. (PROFESSORA ANITA)

A professora ao afirmar que seus alunos passam por fases de aquisição da escrita semelhante à das crianças (FERREIRO, 1983) 6, reconhece, também, que os sujeitos-alunos de EJA têm histórias de vida, fruto de suas leituras de mundo e de suas relações socais; e de que ela vivencia um processo de ensino-aprendizagem. A sua fala nos apontou para a categoria do trabalho docente como formação na açãoreflexão-ação, ainda que solitária, ou seja, sem a interlocução com o seus pares na escola, na medida em que o conflito demonstrado a levou a enfatizar que, mais aprende com os alunos do que ensina. Reconhece que todo educador é educando e todo educando é educador (FREIRE, 2005), mesmo não tendo uma formação continuada nessa direção, qual seja, o pensar a reflexão sobre a prática e o partir dela (GIOVANETTI, 2005). b) O trabalho docente da professora apresenta-se sob a forma de um “quebra- cabeças” Ainda sobre a aprendizagem da leitura pelos alunos, escutamos em uma das falas: Eu não sei nem lhe responder como eles aprendem, nem como deveria ensiná-los, porque eu fico constantemente ‘quebrando a cabeça’ em casa. Interrogando-me; O quê trabalhar com eles? Como fazer eles evoluírem nessa questão da leitura? [...] É muito difícil. Eu não sei lhe responder porque até para eu trabalhar com eles é complicado. (PROFESSORA DALILA)

Fica explícito neste fragmento, que a interlocutora reconhece que ser professora de jovens e adultos requer uma especificidade e que a EJA é uma modalidade complexa, exigindo dessa forma particularidades na formação inicial do professor. A construção do saber ensinar a ler na Educação de Jovens e Adultos (EJA) implica em um saber docente 6

Emília Ferreiro e sua equipe realizaram em 1983 uma investigação denominada. Los adultos no-alfabetizados y sus conceptualizaciones del sistema de escritura, com adultos, na cidade do México, para responder a seguinte questão: qual o conhecimento dos adultos pré-alfabetizados sobre o sistema da escrita?. Os dados mostraram semelhanças e diferenças entre a concepção de escrita em adultos e crianças não alfabetizadas.

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(TARDIF, 2005) construído, sobretudo, a partir das experiências vividas pelo(a)s professore(a)s e aluno(a)s na vida da sala de aula. c) O trabalho docente como despertar da curiosidade dos alunos recorrendo aos gêneros literários Nessa direção a professora Eliane afirmou: Eu vivo sempre despertando a curiosidade pelo material que eu vou trabalhar com meus alunos. Digamos assim: eu começo, seja uma poesia ou outro gênero, procurando despertar neles a curiosidade por aquele poeta ou por aquela poetiza. Exemplo: Cora Coralina, ‘Das pedras’. Eu vou ali começando a falar sobre Cora. Como é que ela vivia? O que é que ela fazia? [...]

O depoimento nos dá a pista de que a professora compreende que a linguagem realizase por meio de gêneros textuais (MARCUSCHI, 2008) e que a literatura é um excelente caminho. Ela opta pelo texto de Cora Coralina, por sua vida ter uma identidade com a vida dos alunos de EJA, apesar deles nunca terem tido acesso aos seus escritos. A escola termina sendo para os sujeitos da EJA a única oportunidade de terem contatos com livros que provoquem mudanças nos seus níveis de letramento. d) O trabalho docente com atividade planejada As narrativas que se seguem demonstram essa necessidade: [...] Para propor a leitura e a começar a seguir os passos que eu vou querer daquela atividade, toda vez eu fico pensando - O que é que eu vou levar? [...] Levar jornal de novo? Eu posso até levar jornal, mas assim baseado em uma parte só do jornal, não no todo. Eu quis trabalhar classificados. Pensei, qual o objetivo? [...] (PROFESSORA CLARA) Geralmente, eu planejo aula de leitura voltada para um texto. Não gosto de chegar aqui e ensinar um conteúdo para eles. [...] (PROFESSORA DALILA)

No entanto temos defendido que, levando em consideração o processo de formação inicial e continuada dos professores da EJA, esse planejamento deve ser subsidiado por um processo de diálogo com os saberes docentes (TARDIF, 2004). Nesse contexto, em se tratando de uma investigação colaborativa é necessário partir da prática para se pensar outras possibilidades de ensinar a ler na EJA.

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No extrato referente à professora Dalila, existe a revelação de um dado muito importante, que consiste em o texto ser objeto de estudo, seja nas/para as práticas de leitura, seja para o ensino de outros saberes que permeiam o ensino da Língua Materna. Destarte, a investigação colaborativa vem nos mostrando que é possível dialogar com as professoras sobre o seu trabalho docente, de modo que possamos ajudá-las a repensar os caminhos do ensino-aprendizagem da leitura na EJA. Do entrelaçamento dos sentidos atribuídos ao ensino da leitura na EJA às sínteses possíveis sem margens e sem retoques Os dados analisados demonstraram que pouco avançamos na compreensão do processo de ensino-aprendizagem de leitura de jovens, adultos e idosos. Observamos que por meio das categorias que foram comentadas, as professores têm sensibilidade para perceberem que trabalhar com EJA é uma tarefa difícil, o que requer planejamento dada à necessidade de se fazer uma ação-reflexão-ação das suas práticas; que já fazem no isolamento de seus pares e sem aprofundamento teórico, como por exemplo, que seus alunos têm saberes da experiência a partir da leitura de mundo (FREIRE; 1998). Fica evidenciada a necessidade se fomentar o diálogo no lócus da escola, considerando que “Os processos de formação dão-se a conhecer, do pondo de vista do aprendente, em interações com outras subjetividades” (JOSSO, 2004, p. 38), não no sentido de uma formação continuada compensatória. Referências FERREIRO, Emília. Los adultos no-alfabetizados y sus conceptualizaciones del sistema de escritura. In.: Cuadernos de Investigaciones Educativas, n 10. México, D. F., abril de 1983, mimeo. FONTANA, Roseli A. Cação. Como nos tornamos professoras? Belo Horizonte: Autêntica, 2000. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, 1998. GIOVANETTI, Maria Amélia. A formação de educadores de EJA: um legado da educação popular. In: SOARES, Leôncio et al (Orgs.). Diálogos da educação de jovens e adultos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. IBIAPINA, Ivana Maria Lopes de Melo. Pesquisa colaborativa: investigação, formação e produção de conhecimento. Brasília: Liber Livro Editora, 2008.

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JOSSO, Marie-Cristine. Experiência de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004. MARCUSCHI, Luis Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

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A LEITURA DE LITERATURA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POSSIBILIDADES QUE SE ENCAMINHAM PELAS TERCEIRAS MARGENS... Adriana Cavalcanti dos Santos 1 Edna Telma Fonseca e Silva Vilar 2 Marinaide Lima de Queiroz Freitas 3 Considerações iniciais: encaminhando pelas terceiras margens... São por meio de palavras, gestos e autorizados silêncios que os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) ousam ir ao encontro do texto literário. Navegando por outras margens das palavras ditas ou por dizer do/no texto, estes leitores em formação vão (de)marcando o seu percurso de leitor da palavra do outro (autor) para reler a(s) sua(s) história(s) de vida e do mundo. Nesse artigo, debruçamos o nosso olhar para a recepção da leitura do poema Cidadezinha qualquer (Drummond), dialogando com o corpus que integra o banco de dados do Observatório Alagoano de Leitura em Educação de Jovens e Adultos. Dialogamos, igualmente com Petit (2010, p. 26) quando afirma que “na realidade, os leitores apropriam-se dos textos, lhe dão outro significado, mudam o sentido, interpretam à sua maneira, introduzindo seus desejos entre as linhas [...]”; advertindo-nos, portanto, que “não se pode jamais controlar o modo como um texto será lido, compreendido e interpretado” (idem, ibidem). É com esse olhar que direcionamos as reflexões sobre a prática de leitura do referido poema. As análises empreendidas recaem sobre a recepção do texto literário, entendendo-a como “cada uma das atividades que se desencadeia no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a diversidade das reações por ela provocadas” (STIERLE, 2002, p. 135-6). Assim sendo, focalizamos as impressões, sentimentos e experiências compartilhadas pelos leitores (jovens, adultos e idosos), ao tempo que evidenciamos a relação que estabelecem com o texto literário, nesse contexto, um poema. Pelas margens de uma Cidadezinha qualquer... Na tessitura do referido poema, Drummond com sua arte literária demonstrou sua profundidade sensível em contraste com a simplicidade da apresentação do quadro cotidiano. É com base no olhar para a cidadezinha descrita pelo autor que a professora constrói com seus alunos um diálogo com/sobre e a partir da leitura do poema, indo ao encontro do eu-leitor.

1

Doutoranda do PPGED/UFAL e professora da mesma Universidade. E-mail: [email protected]. Professora do Centro de Educação da UFAL. E-mail: [email protected]. 3 Professora do Centro de Educação e do PPGED/UFAL. E-mail: [email protected]. 2

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A aula de leitura teve início com repetidas oralizações feitas pela professora, uma vez que os alunos não tiveram acesso ao texto escrito. O início do diálogo com os alunos deu-se após o encaminhamento de que conversassem sobre o texto 4:

Profª: Bora lá! E aí, vocês duas, o que foi que vocês conversaram a respeito dessa cidadezinha qualquer? Al. 3: É uma cidadezinha assim parada que não tem quase ninguém. Onde os bichinhos andam bem calmo. Profª: Que todo mundo anda calmo. Vocês já vivenciaram isso? Já viram alguma cidade assim? Al. 6: Jundiá [Município de Alagoas] Profª: Jundiá que é do interior? Al. 6: É Profª: Você Al. 3, já viu uma cidade assim pacata? Al. 3: [...] Em Joaquim Gomes tem um sitiozinho que é bem calmo.

Observamos o esforço dos alunos em recuperar na memória o sentido produzido por meio da escuta do poema. Como os alunos não estavam diante da materialidade linguística demonstraram ter compreendido que se tratava de uma “cidadezinha parada”, onde “os bichos andam bem calmos”. A mediação com o retorno ao texto para justificar que suas leituras seria uma possibilidade de inferir sentidos, além de não ter acontecido, foi prejudicada em função da situação referida. A professora restringiu-se a escuta das hipóteses dos educandos sobre outras cidades que conheciam e que se aproximavam de suas leituras acerca do poema. Inicialmente, os leitores associaram “cidadezinha” a lugares pacatos que reconheciam. Contudo, uma leitura que pondera a respeito do poeta e do poema foi enunciada: AL2: Eu acho que esse... Profª: Poema? Al. 2: Esse poeta deve ter ficado sem assunto. Profª: Ah, ele tava sem assunto? Al. 2: É. (risos) Um poema tão pequeno. Tem um lugar lá onde eu morava em Colônia, era um lugarzinho assim parado. Mas, ele devia tá mais inspirado pra fazer um poema. Al. 7: (risos) Profª: Ele poderia estar mais inspirado para fazer esse poema? Al. 2: Um poema mais bonito.

Nesse momento, Al. 2 fez uma crítica ao poema de Drummond, ao comentar: “esse poeta deve ter ficado sem assunto” - “um poema tão pequeno”. “Mas, ele devia tá mais 4

Utilizamos as abreviaturas Profª para indicar a fala da professora; Al. para a do aluno, seguida de um número atribuído a ordem dos sujeitos que participam do diálogo e Als. para um grupo de alunos.

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inspirado pra fazer um poema”. Destacamos que ele demonstrou saberes sobre o poema: pode ser pequeno ou grande; o poeta escreve sobre algo (assunto); “a produção literária é uma inspiração”. No prosseguimento do diálogo, o referido aluno estabelece comparações: Profª: [...] O que de ruim nesse poema? [...] Qual é a diferença desse poema pra Colônia de Leopoldina? Al. 2: Esse poema aí parece muito com lá. Profª: [...] O que é que tem lá e tem aqui nesse poema? Al. 2: O burrinho. Al. 7: (risos) Profª: O burrinho de lá andava devagar? Al.2: Devagarzinho. Bananeira tem um bocado arredor. Profª: Bananeira também tem. Al. 2: Cachorro faz raiva lá. [...]

A compreensão transborda o texto, aqui já não temos mais a “cidadezinha qualquer”, descrita por Drummond, mas a(s) cidadezinha(s) conhecidas pelos alunos, guardadas nas lembranças e reveladas na leitura. Poderíamos questionar: para os alunos da EJA a literatura trata, retrata e revela a vida? Dando continuidade, a professora estimulou a comparação: Profª: (risos) Oh, mas o homem devagar tem lá em Colônia?! Al. 2: Tem eu. Als. : (risos) Al. 2: Eu fui tão devagar que veja; eu tô com quarenta e dois anos que parei. Era pra eu tá ingressando na faculdade. Profª: Mas o senhor foi devagar por que não queria estudar? Ou, o senhor foi devagar realmente por que não teve oportunidade pra ir estudar? Al. 2: Não, eu fui devagar porque o coitado do burro andava devagar, aí não dava pra eu ir pra escola. [...]

Podemos perceber que a partir do momento que a professora questionou sobre a existência de homens devagar em Colônia Leopoldina, o aluno inclui-se “tem eu”. A partir desse momento o diálogo afasta-se do poema e constrói-se a partir da sua experiência, evidenciando que a recepção do texto literário se encaminha na relação entre o mundo do texto e o do leitor e que está vinculada aos seus contextos históricos. A aula continua: Profª: E o senhor seu Al. 5, o que acha? Al. 5: Esse poema conta um pouquinho da minha vida porque eu também tinha um burro. Profª: E o burrinho era devagar?

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Al. 5: Às vezes era ligeiro, só se apanhasse bem muito. Profª: Ah, credo! Que judiação! Bichinho! Isso é judiação, é crime! Al. 5: [...] Eu tenho muita pena do burro que eu trabalhava, ele andava bem devagarzinho. Aí, acho que até mim acostumei com ele, porque eu fiquei burro também. [...]

O aluno demonstrou que, em se tratando do texto literário, é o texto que lê o leitor ao afirmar: “esse poema conta um pouquinho da minha vida, porque eu também tinha um burro”. As comparações perpassam todo o diálogo como demonstrou o aluno: “ai, acho que até mim acostumei com ele, porque eu fiquei burro também”. Eles recordaram, fizeram críticas e comparações entre suas histórias de vida e os sentidos atribuídos ao texto. Isso porque “lemos nas beiradas, nas margens da vida” (PETIT, 2010, p. 27). Como as vozes estavam centradas no gênero masculino, a professora quis também saber do sentimento das mulheres sobre o poema: Profª: E vocês mocinhas conversaram sobre o que? Al. 4: Quando se fala em cidadezinha, eu acho que não só interior, Maceió é muito devagar né? Profª: Olha até em Maceió, ela disse que tem canto devagar. Al. 4: É porque tem lugares aí que nem colégio tem pras crianças estudarem. [...] Tem que sair pra longe e espera porque é um lugar devagar. Não se desenvolveu. Onde eu moro, na vila Emater, era pra tá mais avançado, nem calçamento tem. Al. 3: Quando chove fica ameaçado. [...]

Nesse momento, a aluna fez uma crítica social à cidade de Maceió, demonstrando que para ela “devagar” não se restringia apenas as afirmações de Drummond, para poder estabelecer relações com tantas outras realidades. Evidencia-se por meio dessa leitura que mesmo que o texto, aparentemente, não tematize o social, surge um leitor para partilhar e corroborar que a literatura “é engendrada de um chão histórico-social e revela as linhas de força fundamentais do solo cultural de onde foi gerada” (MENESES, 2011, p. 2). O percurso continua pela terceira margem do rio (conclusões) Os gêneros textuais emergem em diferentes domínios discursivos e se concretizam em textos que são singulares. A leitura desses textos, conforme demonstramos neste artigo, pode trazer à tona histórias particulares, brotadas do trinômio literatura-leitura-vida, não necessariamente nessa ordem, notadamente se considerarmos como Petit (2010) que é o texto que nos lê. Reafirmamos que o texto literário e a sua leitura se instituem na EJA como mobilizadores de reflexões e histórias de vida, provocando os sujeitos a enunciarem seu estar

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no mundo. Os leitores em formação (jovens, adultos e idosos) encaminharam-se pelas terceiras margens na recepção do poema “Cidadezinha qualquer”, evidenciando o potencial do qual se investe a leitura de literatura, fortalecendo entre eles a cultura da história e da memória, ao invés da do silêncio. Referências PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Editora 34, São Paulo, 2010. STIERLE, K. Que significa a recepção de textos ficcionais. In: A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. São Paulo: Paz e Terra, 2002. MENESES, A. B. O sentido formativo da literatura. (Conferência, 2011). IEA-USP/FE. Disponível em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/pedagogianovoa.pdf. Acesso em: 10 mar 2014.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E GÊNEROS TEXTUAIS NAS AULAS DE MATEMÁTICA EM UMA COMUNIDADE DE APRENDIZES DE 6º ANO Adriana Correia Almeida Batista 1 O trabalho coletivo na aula de matemática Este texto se refere a um excerto da metodologia de minha pesquisa de doutorado que teve como objetivo identificar, problematizar e compreender a aprendizagem que ocorre nas aulas de matemática de um 6º ano. Nessa pesquisa, tomei como objeto de estudo a minha própria prática pedagógica de professora de matemática e as interações com meus alunos de uma turma de 6º ano da escola pública municipal de Campinas, ao longo de um ano letivo (2009). O meu trabalho como professora de matemática na escola pública me ajudou a compreender que a diversidade de saberes que os alunos trazem para a sala de aula requer do professor práticas diferenciadas para inseri-los no processo de aprendizagem escolar. Nesse sentido, identifiquei que um dos caminhos que propiciam o compartilhamento de ideias e a construção de novos saberes é o trabalho em pares nas salas de aulas. Para Wenger (2001), a aprendizagem ocorre essencialmente em um contexto de participação social e isso somente é possível porque nós, seres humanos, somos seres sociais. Nesse sentido, compreendo que aprender não significa simplesmente assimilar conteúdos ou procedimentos. Envolve também uma dimensão mais complexa do sujeito, que inclui sua participação, identificação e prática em comunidades. Um sujeito passa a integrar uma comunidade por compartilhar um interesse comum com os demais integrantes. Entretanto, ao fazer isso, não abandona sua história de vida, sua prática social e nem seus conhecimentos prévios, os quais são parte constitutiva de sua identidade. Esses saberes identitários são compartilhados e, nesse processo de compartilhamento, são delineadas as práticas para que um empreendimento comum seja contemplado. Para Wenger (2001), essas práticas são as responsáveis pela busca de um empenho tanto individual quanto da comunidade de que o sujeito participa. A dinâmica das aulas de matemática daquele 6º ano, apoiada geralmente na realização de atividades com os alunos organizados em grupos de 4 ou 5 componentes, levou-me a perceber que estávamos inseridos num processo constante de compartilhamento de saberes e experiências, o que nos conduzia gradativamente, ao longo do ano, a constituição de uma comunidade de aprendizes. Foi vivenciando esse processo que senti a necessidade de buscar aportes teóricos para compreender melhor quais práticas e tarefas poderiam sustentar de maneira mais efetiva a constituição efetiva e a manutenção daquela comunidade. 1

Doutora em Educação pela FE-UNICAMP. Professora de matemática e formadora de professores na Rede Municipal de Campinas. E-mail: [email protected]

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E GÊNEROS TEXTUAIS NAS AULAS DE MATEMÁTICA...

A comunidade de aprendizes do 6º ano, suas práticas e gêneros textuais Em uma comunidade de aprendizes, conforme afirmam Eckert, Goldman e Wenger (1997, p. 04), as tarefas devem ser concebidas de tal maneira a incentivar a diversidade de formas de participação, contribuição e conhecimento, pois os alunos são valorizados por suas diferentes origens, experiências, habilidades, interesses, conhecimentos e realizações. Por concordar com as ideias desses autores e saber que aquele 6º ano continha alunos que possuíam saberes diversos, iniciei uma busca por pesquisadores que abordavam, em seus trabalhos, práticas pedagógicas diferenciadas. Ao longo dessa busca encontrei em Boavida (2005) alguns argumentos acerca a importância da argumentação em sala de aula. Esta autora defende que Tão importante como a tarefa, são os meios que o professor usa para fazer surgir contribuições dos alunos. É, também, o modo como lida com essas contribuições e a capacidade de improvisar intervenções que, enraizando-se no que ouve, incentivem a expressão de ideias e ajudem os alunos a avançar na compreensão da Matemática. É, ainda, importante a gestão do poder avaliativo e do controle do discurso da aula que, se não forem partilhados com os alunos, dificilmente esses se envolverão em actividades de argumentação (p. 895 e 896).

De um lado, embasada pelos estudos de autores como Boavida (2005) e, de outro, vivendo a realidade de sala de aula, fui percebendo que deveria envolver mais a minha turma em discussões coletivas, nas quais todos pudessem ter voz para opinar e expor seus modos de fazer matemática e deixá-los trabalhar mais em grupos. Percebi, ainda, que o trabalho com alguns materiais, como jogos e instrumentos de medidas, envolvia todos os alunos, inclusive aqueles que não dominavam o processo de leitura e escrita, ao longo de toda a atividade. Por fim, percebi que era preciso envolvê-los em tarefas nas quais os significados pudessem ser negociados e não impostos. Algumas práticas se tornaram próprias naquela comunidade e pelo menos uma delas era mobilizada pelos aprendizes em todas as tarefas que tinham que executar. Uma delas se referia ao trabalho em pequenos grupos. Ao longo do ano letivo, os alunos se acostumaram a trabalhar em pares e mesmo quando um conteúdo era trabalhado por mim, através de uma aula expositiva, aproveitavam o momento da resolução de exercícios para compartilhar com o colega. Outra prática se referiu ao que chamo de “correção coletiva das atividades”. Nesta prática, ao final de uma atividade, todos os alunos e eu comentávamos as diversas formas de resolução da tarefa, além de discutir alguma ideia ou dúvida em relação a ela. Além das duas práticas acima descritas, averiguei a importância de inserir outras que contemplassem a comunicação oral e a escrita matemática nas aulas. Verifiquei, então, que era preciso diversificar os gêneros textuais já mobilizados por mim, pois alguns deles - como aulas expositivas, provas, problemas e exercícios - nem sempre atendiam a minha proposta de constituição de uma comunidade de aprendizes na qual fosse prática comum a negociação de significados entre os sujeitos. Para definir gênero textual nessa pesquisa, recorri a Marcuschi

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(2010), o qual esclarece que é uma expressão usada para se referir aos textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica (p. 23). É importante esclarecer que essas percepções não produziram transformações imediatas em minha prática. Elas foram gradualmente percebidas e incrementadas, ao longo do ano, a partir de algumas situações de sala de aula. Percebia que nem sempre uma tarefa que eu acreditava como sendo a ideal era vista do mesmo modo pelos alunos, e esse fato era determinante para repensá-la e analisar sua pertinência para o trabalho pretendido. Imbuída do desejo de fazer o melhor possível (Boavida, 2005) e compreendendo, com a ajuda de Marocci e Nacarato (2013, p. 84), que cada gênero pressupõe um tipo de mediação do professor e de retorno do aluno, destaco que o meu trabalho com os alunos do 6ºB contou com os seguintes gêneros, além da aula expositiva: debates, rodas de conversa, seminários, dobraduras, plantas baixa, mapas, cartas, pequenos relatórios sobre a aula, filmes, episódios de desenho animado, desenhos, jogos, instrumentos de medidas, gibis, notícias de jornais. Esses gêneros demandavam a realização de práticas, tais como a leitura compartilhada, durante a qual os alunos liam a tarefa contando com a intermediação da professora ou de algum aluno, ao longo desse processo, interrompendo momentaneamente a leitura para explicações ou lançamento de questões, a fim de suscitar discussões acerca da significação da tarefa ou do conteúdo a ser contemplado; medição de grandezas e registro das medidas; oficinas de origami e de produção de mosaicos; produção de desenhos a partir da observação de objetos; preparação e realização de seminários; discussões coletivas e rodas de problemas intermediadas pela professora; leitura de gibis em duplas, em que um aluno poderia ler para o outro. A constituição de uma comunidade de aprendizes mobiliza, além do engajamento dos sujeitos, a formação do professor, pois é ele, a partir de sua intencionalidade pedagógica, que seleciona e elabora as tarefas que serão abordadas com os alunos. Cada tarefa, a partir do gênero textual contemplado, mobiliza uma prática pedagógica específica. Esclareço que naquela comunidade de aprendizes de 6º ano, os gêneros textuais que permearam o trabalho pedagógico não foram escolhidos ao acaso. Ao contrário, foram escolhidos por mim para contemplar os objetivos pedagógicos que tinha como professora, além daqueles que tinha como pesquisadora, para aquela comunidade. Acredito que se fosse outra comunidade, talvez esses gêneros não fossem os ideais, sendo necessário que o professor buscasse outros os quais contemplassem o trabalho naquele contexto. Por fim, esclareço que as interações entre os sujeitos, a forma como interagiram com os gêneros e os significados negociados a partir deles foram problematizados e analisados ao longo de minha tese. Referências BOAVIDA, A. M. R. A argumentação em matemática: Investigando o trabalho de duas professoras em contexto de colaboração. 2005. Tese de doutorado apresentada na Universidade de Lisboa. Lisboa, 2005.

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ECKERT, P., GOLDMAN, S. & WENGER, E. The school as a community of engaged learners. 1997. Disponível em: . Acesso em 12/11/2013. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: Definição e Funcionalidade. In DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (org.). Gêneros Textuais & Ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. MAROCCI, L. M.; NACARATO, A. M. Gêneros textuais nas aulas de matemática: ferramentas para a comunicação e elaboração conceitual. In NACARATO, A. M.; LOPES, C. E. (org.) Indagações, reflexões e práticas em leituras e escritas em educação matemática. 1ª edição. Campinas: Mercado de Letras, 2013. WENGER, E. Comunidades BARCELONA: PAIDÓS. 2001.

de

práctica.

Aprendizaje,

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significado

e

identidad.

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A INTERDISCIPLINARIDADE NA PRODUÇÃO DE UM LIVRO PARADIDÁTICO NO CURSO DE PEDAGOGIA Adriana M. L. de Campos Rodrigues 1 O presente artigo descreve as contribuições consequentes de um livro paradidático - “O diário de um menino que se sentia encalhado” – confeccionado por alunas 2 da graduação em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), durante o processo de formação, no ano de 2011. Elaborado a partir de uma proposta interdisciplinar, focada na formação consistente e reflexiva do futuro pedagogo, a obra, que tinha como temática a acessibilidade, objetivava ampliar os conhecimentos e experiências das crianças da Educação Infantil sobre esse conceito, especificamente a realidade de um cadeirante bem como subsidiar as futuras práticas pedagógicas na Educação Infantil e/ou nos anos iniciais do Ensino Fundamental, de forma lúdica e significativa. A interdisciplinaridade, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, é entendida “como uma abordagem teórico-metodológica em que a ênfase incide sobre o trabalho de integração de diferentes áreas do conhecimento, um real trabalho de cooperação e troca, aberto ao diálogo e ao planejamento”, pois se compreende que todas as formas de conhecimentos mantêm um diálogo permanente entre si (NOGUEIRA, 2001 apud BRASIL, 2013, p. 28). A partir dessa compreensão foram trabalhados de forma interdisciplinar no contexto do livro paradidático os conteúdos estudados nas disciplinas de Educação Arte e Movimento; Aquisição da Linguagem Escrita; Educação Espaço e Forma e Educação Natureza e Sociedade, ao longo da graduação. Essas disciplinas mediaram o processo de planejamento, produção e avaliação da obra, e seus referenciais teóricos embasaram a confecção do livro paradidático, corroborando com a formação docente contextualizada. A configuração interdisciplinar do livro O desenvolvimento do livro paradidático demandou a utilização de diversos recursos, tais como: fotos de acervo particular, desenhos feitos à mão livre, imagens retiradas da internet, figuras recortadas e esculturas confeccionadas pelas próprias autoras. Tais elementos retrataram fenômenos culturais, lugares, paisagens, objetos, aspectos da natureza e, principalmente, situações em que a acessibilidade é valorizada e respeitada socialmente. Focada em uma proposta interdisciplinar, como já mencionado, a produção os relacionou para articular os conteúdos das disciplinas do curso de Pedagogia.

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Graduada em Pedagogia pela PUC-Campinas. Educadora na rede municipal de ensino de Campinas/SP. Email: [email protected]. 2 Agradecimentos a Telma Augusta da Cunha que participou na elaboração da obra.

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A disciplina de Educação Espaço e Forma subsidiou a obra trazendo conceitos matemáticos a partir da exploração dos campos espaciais, das medidas, da sensação numérica e relações biunívocas, utilizando como referencial teórico os autores Ifrag (1998) e Lorenzato (2006). Buscou-se, por meio do livro, contribuir para o desenvolvimento e ampliação da capacidade de abstração da contagem por meio das quantidades de elementos contidos na obra e da adoção de composição/decomposição das operações matemáticas apontadas nos número das páginas. Situações de conflito cognitivo, promotoras da aprendizagem, são apresentadas no texto pela comparação de diversos tipos de objetos e formatos, possibilitando a ampliação das noções de medidas. A disciplina de Educação, Natureza e Sociedade permeia todo o contexto da história do livro. Os conceitos trabalhados partem da construção de um roteiro de viagem – perpassando pela Mata Atlântica na cidade de São Paulo; pelo mar no Espírito Santo e Bahia; e pela natureza em Manaus – em que o cadeirante, protagonista da história percorre por diversos locais conhecendo a organização dos grupos e seu modo ser, viver e trabalhar; os lugares e suas paisagens; objetos e processos de transformação e seres vivos (BRASIL, 1998). Em síntese, para trabalhar um determinado grupo social, a família, recorreu-se à árvore genealógica do protagonista em questão, objetivando também a construção das noções de espaço e tempo pela criança por meio das relações de ordem e sucessão. Trata-se da identificação das sequências temporais de acontecimentos, além da compreensão do caráter irreversível do tempo, como por exemplo, a noção de envelhecimento de pessoas, ressaltados pelo uso dos “pronomes (eu, ele), dos verbos auxiliares (ser, haver) e dos tempos (presente, passado e futuro)”, ao longo do texto, tornando possível “a aquisição da temporalidade, ao mesmo tempo em que a manifesta” (SCHAFFER; BRONETI, 2002). A respeito da disciplina Educação, Arte e Movimento o trabalho da confecção do livro paradidático procurou garantir a fruição dos alunos por meio do emprego de suportes apreendidos pelas acadêmicas, tais como as técnicas de modelagem, desenho, recorte e colagem e também a aplicação de imagens e fotografias. Além disso, tinha-se como objetivo fazer com que as crianças apreciem o fazer artístico por meio da utilização das Artes Visuais que “expressam, comunicam e atribuem sentido a sensações, sentimentos, pensamentos e realidade”. Tais fatores, articulados aos aspectos cognitivos, afetivos, intuitivos e estéticos definem as Artes Visuais como promotora da comunicação social (BRASIL, 1998, p.85). Quanto à disciplina de Aquisição da Linguagem Escrita, reflexões sobre os conceitos e práticas de letramento 3, embasaram a elaboração do conteúdo escrito do livro paradidático, a partir dos autores Lima e Nascimento (1998). Para a composição da obra optou-se pela escrita em forma de rima, pois esse gênero textual marcado pela repetição sonora se mostra atraente às crianças e promove reflexões sobre sons iguais que produzem palavras e sentidos diferentes, assim como o emprego de letras iguais para pronúncias de fonemas diferentes, possibilitando, assim, o trabalho com a 3

Letramento: produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia. Tais práticas necessitam da escrita para tornarem-se significativas (BRASIL, 1998).

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consciência fonológica 4, também contemplada na grafia dos nomes das respectivas imagens utilizadas no texto, a fim de que, os recursos visuais sirvam de apoio à linguagem escrita. A palavra, como unidade de sentido trabalhada no decorrer do livro, além de fornecer pistas para reflexão sobre os aspectos sonoros contidos no seu início, meio e fim, possibilita que esses sejam relacionados e comparados com a grafia e fonemas das demais palavras utilizadas no texto, pela exploração de grupos semânticos de nomes de meios de transportes, animais, pessoas e cidades. O emprego da palavra “acessibilidade”, por exemplo, demandou a utilização de diversas fotos e imagens dos símbolos que representam tal conceito na sociedade para relacionar a palavra com seu significado. O fenômeno da variação linguística também aparece na obra, exemplificado pelo uso da palavra “recreio”, cujo significado difere de uma região à outra. No sudeste brasileiro pode indicar o momento de lazer, para o lanche escolar; já no norte do país nomeia um barco que serve à população como meio de transporte. Os aprofundamentos sobre aquisição da lecto/escrita advindos das aulas de Aquisição da Linguagem Escrita além de subsidiar a construção do livro, permitiu a conclusão de que o processo da escrita não é transparente para a criança, como afirma (LEMOS, 1998). Portanto, requer a mediação do professor como intérprete das reflexões construídas, auxiliando-as na compreensão dessas práticas sociais tão valorizadas em uma sociedade letrada, isto é, a leitura e a escrita. O olhar reflexivo para os livros infantis paradidáticos Acredita-se que a boa formação deve se alicerçar em uma competência de interdisciplinariedade na execução da profissão docente, exercendo nesta uma visão de totalidade nas maneiras de planejar, executar, refletir e avaliar as práticas pedagógicas de ensino-aprendizagem. Desenvolver um projeto de caráter interdisciplinar como este da criação de um livro paradidático exige do futuro educador um olhar mais aprofundado e reflexivo que integre sua ação planejada com o aprendizado das diversas linguagens pelos alunos e, em especial, a oral e escrita. A intenção de elaborar um livro paradidático foi a de tornar o aprendizado dessas linguagens mais lúdica, significativa e contextualizada às crianças. Além disso, o olhar para os demais livros infantis se tornou mais reflexivo e capaz de explorar as possibilidades pedagógicas dos mesmos. A partir do livro paradidático, já acabado e explorado pelas acadêmicas é possível, inclusive reafirmar aos educadores e a seus alunos que a oralidade, escrita e leitura perpassam por todos os conteúdos escolares e mais, por toda a vida em sociedade.

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Consciência fonológica: associação do som à letra para o aprendizado da leitura (ZACCUR, 2008).

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Referências BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF-3 1998. BRASIL, Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica / Ministério da Educação. Brasília: MEC/ SEB, DICEI, 2013. IFRAH, G. Os números: a história de uma grane invenção. Rio de Janeiro: Globo, 1998. LEMOS C.T.G. Sobre a Aquisição da Escrita: algumas questões. ROJO. R. Alfabetização e Letramento: perspectivas linguísticas. Campinas: Mercado de Letras, 2009. LORENZATTO, S. Educação Infantil e percepção matemática. Campinas: Autores Associados, 2006. NASCIMENTO, M. A alfabetização como objeto de Estudo: Uma perspectiva Processual. Alfabetização e Letramento: perspectivas linguísticas. Campinas: Mercado de Letras, 2009. SCHAFFER, M., E BRONETI, R.V.F. Noção de espaço e tempo. CALLAI. H. C. O Ensino de estudos sociais. Ijui: Unijuí,2002. ZACCUR, E. Consciência fonológica: um retorno ao velho método? GARCIA (org.) Alfabetização: reflexões sobre saberes docentes e saberes discentes. São Paulo: Cortez, 2008.

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O ENSINO DA GRAFIA EM CAIXA DUPLA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Adriana Naomi Fukushima da Silva 1 A disposição gráfica da escrita é marcada por mudanças desde seu nascimento. Na antiga Roma, a escrita marcada por pausas era encontrada mais facilmente nos monumentos (DESBORDES, 1995). Na Alta Idade Média os espaçamentos e a pontuação eram utilizados constantemente para estabelecer conexões com o conceito de palavra escrita. Com a crescente mudança da leitura em voz alta para a leitura silenciosa, a necessidade de uma leitura mais clara fez-se necessária. Para isso contribuiu a utilização das letras minúsculas dentro de um texto, capaz de proporcionar uma melhor apreensão da escrita pelos olhos. A escrita com letras minúsculas pode ser encontrada em placas nas ruas, em filmes legendados, em anúncios de televisão, em grande parte dos livros, entre outros suportes. Porém essa escrita dificilmente é visualizada em livros ou contextos que envolvam a educação infantil. Diante dessa observação surgiram questionamentos: o trabalho com a grafia em caixa dupla não pode ocorrer na educação infantil? as crianças teriam dificuldade em se apropriar dos conceitos que a escrita com letras maiúsculas e minúsculas? Para tratar dessa temática Bajard (2012) inicialmente afirma sobre como deve se iniciar o contato da criança com a linguagem escrita. De acordo com ele, “[...] é importante que o primeiro passo dentro da escrita seja um ato de linguagem ligado à vida pessoal como é o caso do nome próprio.” (BAJARD, 2012, p. 54). Dessa forma, para que a linguagem possa ter melhor sentido à criança, deve-se iniciar com algo que registre a singularidade dela, portanto o nome. A partir disto, o autor afirma sobre a necessidade do ensino em maiúscula e minúscula porque as crianças devem ter acesso a escrita em caixa dupla para respeitar a grafia de seus nomes uma vez que a palavra MARGARIDA e Margarida não teriam o mesmo significado pois a primeira pode se referir a um tipo de flor e a segunda a um nome. Além disso, o autor questiona porque apresentar a escrita em letras maiúsculas deixando o mérito que o nome possui e outras palavras não. Assim o autor em seu livro faz uma proposta de como de ensino para ao reconhecimento do nome. Na proposta sugerida por Bajard (2012) o professor deve entregar crachás para as crianças com foto de cada criança. Em seguida, a foto seria trocada por uma imagem de escolha delas que posteriormente haveria uma nova troca por uma de escolha da professora. A última etapa seria retirar as imagens do crachá e manter apenas as letras que compõem o nome da criança. A fim de verificar se as crianças se apropriariam da grafia e das propriedades da grafia em caixa dupla, a autora deste trabalho propôs-se a aplicar as sugestões descritas no livro de Bajard em sua turma, adaptando-as de acordo com o contexto escolar vivenciado. O presente 1

Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências – campus de Marília. Marília/São Paulo. E-mail: dricanaomi @gmail.com

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texto se propõe a apresentar relatos de situações de reconhecimento e de atos escrita do nome em caixa dupla na educação infantil. Metodologia: as ações para o desenvolvimento da pesquisa Para o desenvolvimento da pesquisa inicialmente foi feita a leitura do livro A descoberta da língua escrita, escrito por Élie Bajard. Com a apropriação dos conceitos e das metodologias propostas para o ensino da grafia, a próxima etapa contou com a aplicação sugerida no livro para o ensino da grafia em caixa dupla. Antes da aplicação a professora conversou com a coordenadora da escola para discutir sobre o interesse em ensinar às crianças a escrita do nome de modo a não restringir apenas o contato com a letra em caixa alta. A coordenadora apoiou a ideia da professora apesar de nunca ter visto esse trabalho na educação infantil. A aplicação dessa proposta realizou-se em uma escola municipal da cidade de São Bernardo do Campo/SP com uma turma com alunos com faixa etária entre quatro e cinco anos de idade. A grafia em caixa dupla No inicio do ano letivo a professora entregou os crachás com a identificação do nome de cada criança e sua foto para que as crianças visualizassem e utilizassem desse material para conhecer o seu próprio nome e a dos demais colegas. De acordo com Bajard (2012, p. 53) O nome próprio é, muitas vezes, a primeira palavra da língua oral escutada e reconhecida pela criança nos primeiros meses de sua vida. Primeiro elemento da língua, o nome contribui para a constituição da personalidade. Pronunciado pelos pais – instância externa- o nome faz eco na consciência do filho, influenciando sua relação com o mundo. [...] É a partir deste primeiro “signo” sonoro que vão se aglutinar outros signos da língua materna remetendo a outros seres ou objetos do mundo.

Assim é importante iniciar o contato da criança com seu nome uma vez que se trata de um signo marcante desde seu nascimento, possuindo um forte significado a ela. Assim o trabalho de ensino da grafia partindo do nome é de extrema importância. Com a entrega dos crachás foi realizada uma conversa com a turma para informar que todos os dias eles deveriam pegar seu respectivo crachá e que nele estaria a identificação de cada um. Em todo o período em que foi utilizado o crachá, com o nome deles escrito em caixa dupla e com fotografia, as crianças não tiveram dificuldade para identificar qual era o seu. Com o decorrer do uso, foi proposto um novo desafio, a troca da imagem por uma figurinha de escolha de cada criança. Cada aluno pode fazer a escolha e visualizar a troca da foto pela figurinha. No dia seguinte alguns alunos tiveram dificuldade para identificar seu crachá havendo a necessidade de a professora fazer orientações com base nas letras do nome, informando que ali estava escrito o nome do aluno. Alguns alunos ainda permaneceram com dificuldade por alguns

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dias, mas depois conseguiram fazer a identificação sem auxilio. Nesse momento algumas crianças observavam as dos colegas e buscavam identificar o do outro e entregar o crachá a ele. Com a intenção de um novo desafio e com o objetivo de buscar que as crianças não se apoiassem tanto na imagem, mas na grafia do seu nome, a professora propôs a troca da figurinha por uma que ela fez a escolha. Nesse processo, os alunos observaram em todo o momento a troca da figurinha. Nessa troca algumas crianças precisaram do auxilio da professora, outras conseguiram identificar e, quando questionados pela professora como sabiam que aquele crachá era seu, informaram que era porque estava escrito o nome dela, apontando para as letras em caixa dupla. A última modificação do crachá ocorreu com a retirada da figurinha. Assim no crachá estaria apenas escrito o nome da criança. Novamente, porém em pouca quantidade, alguns alunos tiveram dificuldade no reconhecimento, mas elas a dificuldade foi menor para se adaptar e reconhecer o nome. Algumas crianças iniciaram o ano sabendo a escrita de seu respectivo nome apenas em caixa alta, o que se tornou um desafio à professora uma vez que, quando era solicitada para que escrevesse o nome com o apoio do crachá, muitas vezes o apoio não contribuía porque a criança insistia em escrever com base em seus conhecimentos. A fim de solucionar esse problema e ara que as crianças pudessem se apropriar dos conceitos da caixa dupla, a professora, inicialmente, propôs a manipulação de letras moveis em que havia letras em maiúscula escritas em vermelho e letras em minúscula com escrita em letra azul. As crianças questionaram a professora dos motivos que levavam umas letras terem determinada cor e outras não. A professora explicou que se tratavam de letras com o mesmo nome, porém que apresentavam formatos diferentes. Assim a letra A e a tinham o mesmo nome, porém eram utilizadas e tinham o formato da grafia de formas diferentes. No decorrer do ano, alguns pais persistiram em ensinar, em suas casas, a grafia em caixa dupla, o que muitas vezes dificultava a criança na sala de aula e no entendimento dos motivos que levavam a escrita de formas diferenciadas. A professora explicou que o nome, por exemplo, ISABEL poderia também ser escrito Isabel, mas a segunda opção possibilitaria uma melhor leitura e se o nome fosse escrito apenas com letras maiúsculas teria o sentido alterado, assim como a escrita de ROSA poderia significar duas coisas, o nome de uma pessoa ou de uma flor, o que prejudicaria em saber ao certo do que se tratava, diferente da escrita Rosa, que daria a entender que se tratava do nome de uma pessoa. A grafia se desenvolveu e, ao final do mês de outubro, a maioria das crianças já reconhecia o nome, fazia a escrita dele e sabia dizer quais eram as letras maiúsculas e as minúsculas. Na reunião de pais também foi possível verificar o desenvolvimento das crianças quando uns afirmaram que seus filhos diziam que a primeira era a letra maiúscula e as demais eram as minúsculas. Conclusão O ensino em apenas caixa alta é uma prática educativa tradicional. Porém com o desenvolvimento das ideias propostas neste trabalho foi possível constatar que a escrita de

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caixa dupla foi uma evolução na escrita e que as crianças da educação infantil não devem ser marginalizadas desse tipo de grafia. Ações e práticas desenvolvidas pela professora permitiram verificar que as crianças desta faixa etária conseguem se apropriar dos conceitos que a caixa dupla possui e também identificar e reconhecer seus respectivos nomes. Dessa forma, o trabalho em caixa dupla também pode ocorrer desde a educação infantil de modo que as crianças possam ter o contato e se apropriar de seus usos. Referências BAJARD, E. A descoberta da língua escrita. São Paulo: Cortez, 2012. DESBORDES, F. Concepções sobre a escrita na Roma Antiga. São Paulo: Ática, 1995.

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O ENSINO INTENCIONAL E NÃO INTENCIONAL DOS ATOS DE LEITURA NO ENSINO FUNDAMENTAL Adriana Naomi Fukushima da Silva 1 Existem duas concepções, grosso modo, que dizem respeito à leitura: a primeira defende, inicialmente, a decifração do código, acompanhada de outra etapa que seria a extração de sentido ao texto; a segunda toma a compreensão como princípio para a leitura, em vez de ser consequência da decifração. A decifração do código está mais ligada à área da fonoaudiologia ou de certas áreas da psicologia cognitiva que entendem que para ler a criança deve ter como requisito necessário o conhecimento de todas as letras e palavras do texto para que, por meio da oralidade, consiga entender o que o outro quer transmitir. No que se diz respeito à concepção de leitura, cujo princípio é a compreensão com o uso dos olhos em vez dos ouvidos, Bajard (2002, p. 81) afirma que “Ler é compreender, é, portanto, construir sentido. [...] Realmente, se não há compreensão, não pode haver leitura.”. Nas instituições de ensino a prática mais comum é a que se fundamenta na concepção segundo a qual a compreensão é resultado da leitura, uma vez que os professores partem para o texto sem acionar os conhecimentos prévios dominados pelos alunos. Os professores encontram dificuldades em avaliar a leitura dita silenciosa, o que justifica a sua ação em avaliar e ensinar os alunos pedindo que oralizem o escrito uma vez que “Por ser materializada, seria facilmente controlável e avaliável.” (ARENA, 2009, p. 2) Através dos estudos sobre linguagem com enfoque histórico-cultural (VIGOTSKI, 2001) pode-se considerar que o professor exerce papel fundamental na aprendizagem do aluno. Assim, nessa interação com o aluno, o professor exerce influência constante para o seu desenvolvimento. Desta forma, as práticas e ensino de leitura que o professor utiliza em sala de aula influenciam na formação de crianças que verbalizam o texto sem criar sentidos e apenas vocalizam as palavras diante dos olhos. Ao buscar compreender a relação e as interferências entre as práticas de leitura, no que se refere às atividades de atos e intenções, a pesquisa teve como objetivo geral analisar os procedimentos didáticos utilizados para desenvolver a aprendizagem do ato de ler por alunos, no 3º. ano do ensino fundamental, de uma escola municipal de Marília, Estado de São Paulo. Metodologia: as ações para o desenvolvimento da pesquisa Para o desenvolvimento da pesquisa foi escolhida a metodologia de pesquisa do tipo etnográfico e contou com duas etapas. A primeira consistiu no levantamento bibliográfico. A segunda etapa foi caracterizada pela leitura dos documentos Projeto Político Pedagógico e

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Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências – campus de Marília. Marília/São Paulo. E-mail: dricanaomi @gmail.com

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semanário. Além disso, contou com observação e entrevista com o professor da escola selecionada. Foram realizadas as observações no período da tarde, em um período de nove dias, em uma escola situada na zona oeste da cidade de Marília/SP. As observações eram feitas na sala do professor, indicado pela diretora da escola, do terceiro ano do ensino fundamental para compreender o que o professor realizava, dentro da sala de aula, para que todas as crianças dessa idade finalizassem o terceiro ano do ensino fundamental sabendo ler. A aplicação da entrevista buscou verificar o que o professor compreende por leitura e também para buscar informações mais específicas e subjetivas a respeito das atividades relacionadas aos atos de leitura. Os dados gerados e coletados foram transcritos e analisados dentro de três núcleos temáticos que foram elaborados com base nos dados coletados. Para este trabalho serão apresentados apenas os dados e analises de dois núcleos temáticos: Ensino intencional dos atos de leitura e a sua avaliação e Ensino não intencional do ato de ler. Ensino intencional dos atos de leitura e a sua avaliação Durante as observações foi possível verificar ações e propostas do professor para ensinar e avaliar intencionalmente a leitura aos alunos de sua turma. As propostas identificadas foram avaliação da disciplina de matemática, Momento Leitura, Roda da Leitura e leitura de poemas. No momento leitura, Roda da leitura e na leitura de poemas o professor apresentou às crianças autores como Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Florbela Espanca e Pablo Neruda, ensinou algumas estratégias de leitura, fez relação com outros conteúdos de conhecimento da turma e ensinou novas palavras. Porém também foi possível verificar situações em que a decodificação estava presente; Para a aplicação de uma avaliação de matemática, o professor explicou sobre ela, fazendo a locução, passando o dedo sobre as letras dos enunciados das questões. Nesta atividade, o objetivo do professor, além de resolver os exercícios, era a de ensinar as crianças a ler e, assim, compreender o enunciado presente na avaliação. Ao realizar a locução acompanhando o enunciado com o dedo, contribuiu para formar leitores que costumam permanecer presos a cada palavra ou letra do texto, pois, ao passar o dedo, controlam os olhos, direcionados para cada sílaba ou palavra, sem a preocupação de dar a eles a liberdade para oferecer ao cérebro os dados necessários para atribuir sentidos. Em vez disso, os olhos congestionam a mente com a visão restrita a informações técnicas. Esse ensino do professor está relacionado ao que ele compreende por leitura, porque, quando indagado se existem etapas para os alunos aprenderem os atos de leitura, respondeu: É gostoso você ver a criança, que ela começa a juntar as letras, começa decodificar as palavras. [...]. Acho que são essas as etapas, primeiro essa visualização do lago, começar a decodificar essas palavras, e se aprofundar nisso, usando, interpretando e por aí vai. (ENTREVISTA, 29 jun. 2012)

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Dessa forma, o professor compreende que a decodificação é uma etapa primeira e indispensável para que o aluno aprenda os atos de leitura, para, em seguida, compreender. Bajard (2002), ao comentar essa temática, afirma que a leitura é uma interação entre leitor e o texto em que há a construção de sentido e não a decodificação. Desta forma, para realizar a leitura, o leitor não deve ficar preso à decodificação, mas a um diálogo com o texto. Essa interação pode ser realizada por meio, por exemplo, de conexões com outros textos, aos conhecimentos das crianças, à visualização, entre outros procedimentos. O professor poderia utilizar dessas formas de interação com o texto para contribuir na formação de leitores que compreendem o que leem. Bajard dá a entender que o aluno pode aprender a decodificar, mas não aprenderá a ler, porque ler é uma operação distinta da de decodificar. Ensino não intencional do ato de ler. No que se refere ao ensino não intencional foi possível verificar que o professor desenvolveu as atividades com textos que tratavam sobre os índios, projeto Hoje é dia e atividades na sala de informática. Para este trabalho será descrito apenas a atividade do projeto Hoje é dia. O projeto Hoje é Dia objetivava apresentar informações sobre determinado conteúdo a ser comemorado no determinado dia. Na atividade do dia o enfoque estava em apresentar sobre William Shakespeare e, nesta apresentação, recitou um dos principais sonetos deste autor. Nesse momento ele utilizou de algumas estratégias para contribuir na compreensão do texto. O professor, nessa atividade, buscou trabalhar com alguns aspectos da compreensão, perguntando do que tratava o poema. A intenção do professor positiva, uma vez que é importante que ele ensine meios para que o aluno possa estar em uma situação estratégica de interesse em ler, resolver os problemas, formular hipóteses e aprender com a leitura porque “[...] ensinar a formular perguntas e a responder perguntas sobre um texto é uma estratégia essencial para uma leitura ativa.” (SOLÉ, 1998, p. 155). Com a leitura de um clássico como os poemas de Shakespeare, o professor cria possibilidades para expandir o acervo cultural das crianças. Nessa situação, as respostas não foram expressivas, porque foram poucas as manifestações. Por serem de uma região periférica da cidade, o contato que têm com a cultura mais elaborada é restrito, porque os familiares dificilmente motivam-nas à leitura de grandes nomes, como Shakespeare. O professor partiu de uma história conhecida, Romeu e Julieta, para apresentar outras histórias como Hamlet e o Soneto 17. Dessa forma, sendo o contato social da criança restrito, mapeou o universo cultural em que se encontram, expandindo-o. Conclusão Ao analisar o trabalho do professor em que foi realizada a observação, foi possível verificar que, embora tenha tido frequentemente a intenção de ensinar a ler e, algumas vezes,

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tenha utilizado estratégias como previsão, questionamentos, relações com outros conteúdos, ensino de palavras desconhecidas das crianças e ampliação do acervo cultural com poemas de bons escritores, ele não explorava muito essas situações e ensinava e avaliava intencionalmente por meio das técnicas centradas na fonologia. Quando o ensino de atos de leitura não era intencional, o professor ampliava de diversas maneiras o acervo cultural das crianças, inclusive partindo do conhecimento delas e apresentando, por exemplo, Hamlet de Shakespeare. Referências ARENA, D. B. Situações de leitura em classe de 3ª. Série. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 17.,2009. Campinas. Anais eletrônicos... Campinas: ALB. Disponível em: . Acesso em: 6 nov. 2011. BAJARD, E. Caminhos da escrita: espaços de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2002. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Tradução Claúdia Schilling. 6. ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998. VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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DISCURSO RELATADO EM TEXTOS JORNALÍSTICOS SOBRE AVALIAÇÕES EXTERNAS Adriana Santos Batista 1 Introdução Neste artigo, objetiva-se discutir a inserção de palavras de terceiros em textos jornalísticos sobre educação por meio do discurso relatado e suas implicações discursivas; de modo mais específico, procura-se observar quais categorias têm enunciados autorizados a integrar essas publicações. Para tanto, tomam-se como base textos que têm como foco os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) e da Prova Brasil, que compõe o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), publicados em 2010 pelo jornal Folha de São Paulo. Como aparato teórico, recorre-se a estudos discursivos e de teorias da enunciação, sobretudo as considerações de Authier-Revuz (1998), sobre o discurso relatado, e Paredes (2000) acerca da interdiscursividade nos textos jornalísticos. O interesse por esse corpus diz respeito à observação de que, na cobertura jornalística sobre educação, há pouca inserção de enunciados atribuídos aos agentes escolares em comparação àqueles provenientes de fontes oficiais; dessa forma, busca-se compreender como eles são articulados de modo a construir determinados discursos sobre avaliações externas e, por extensão, sobre a educação. Aspectos teóricos Para os objetivos desta pesquisa, fazem-se relevantes as observações de Paredes (2000), autora segundo a qual o apoio em palavras de terceiros para a construção do texto é característica intrínseca aos gêneros jornalísticos, principalmente os comumente denominados informativos. O já-dito, que atravessa qualquer produção discursiva, no caso dos textos jornalísticos, é o ponto de apoio necessário para uma pretensa transmissão de informações. Fala-se a partir de pontos de vista, cujas fontes podem ou não ser expressas. Para além das especificidades do jornalismo, os fenômenos de dupla enunciação, que incluem a inserção de palavras de terceiros em um enunciado, são uma temática bastante discutida, inclusive na educação básica, geralmente sob três possibilidades: discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. Nessa perspectiva tradicional, mais ligada à possibilidade de classificação, o que determina a maneira como as palavras do outro se inserem é sua separação ou não das do locutor e a manutenção ou não da forma original como algo foi dito (ou uma representação 1

Doutoranda e mestre em Letras: Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Valdir Heitor Barzotto; Profª assistente da Universidade do Estado da Bahia; Teixeira de Freitas, Bahia. E-mail: [email protected].

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disso). Para os estudos discursivos, entretanto, o exame das maneiras e implicações de introduzir discursos outros possui especificidades que ultrapassam a categorização e recaem sobre aspectos como as ideologias subjacentes à escolha da voz citada, as formas de introdução, os limites da paráfrase, etc. A insuficiência dessa tríade, discutida por Authier-Revuz (1998, p.133) também se coloca na conceituação da heterogeneidade mostrada, na medida em que ela não recobre todas as possibilidades pelas quais o discurso do outro pode se materializar de forma explícita, excluindo, por exemplo, o discurso direto livre e a modalização em discurso segundo. Para embasar essa crítica, Authier-Revuz (1998, p.135) fundamenta-se nos conceitos de dialogismo e interdiscurso, respectivamente de Bakhtin e Pêcheux. Nos textos jornalísticos, o discurso relatado pode, ao menos declaradamente, mostrar-se como uma estratégia para transmitir objetividade, pluralidade de pontos de vista e veracidade nas informações transmitidas. Em alguns casos, como na abordagem dos resultados de avaliações externas, a indicação das informações contidas nos relatórios divulgados pelas instituições organizadoras caracteriza-se como informação imprescindível para o desenvolvimento do texto. Análise dos dados Para a recolha do corpus, recorreu-se ao Acervo Folha, portal que reúne arquivos digitalizados do jornal desde 1921. As buscas foram feitas nas edições correspondentes a oito dias subsequentes à data de divulgação dos resultados: de 02 a 09 de julho de 2010, no caso do Ideb, e, de 08 a 15 de dezembro para o Pisa. Tal fato justifica-se pela tentativa de obter textos provenientes de todos os dias da semana, já que em cada dia publicam-se diferentes cadernos. Dado que se optou por concentrar as análises em notas e notícias, obtiveram-se treze sobre os resultados do Ideb e doze sobre o Pisa. A partir desses dados, efetuaram-se análises a fim de verificar quais eram as vozes inseridas por meio do discurso relatado mais presentes nesses textos. Para tanto, efetuou-se a junção das mesmas em categorias e observou-se a quantidade de enunciados atribuídos a cada uma e a representatividade das mesmas nos textos. Os resultados obtidos podem ser vistos a seguir: Total de enunciados atribuídos

Nº/percentual de textos em que está presente

Governo e representantes

11

8 – 61,5%

Terceiro setor

5

3 – 23%

Agentes escolares

7

2 – 15,4%

Academia

3

2 – 15,4%

Voz genérica (especialistas)

1

1 – 7,7%

Categoria

Tabela 1: Frequência das fontes sobre o Ideb, organizadas por categorias, em notas e notícias

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DISCURSO RELATADO EM TEXTOS JORNALÍSTICOS SOBRE AVALIAÇÕES EXTERNAS

Total de enunciados atribuídos

Nº/percentual de textos em que está presente

Governo e representantes

8

6 – 46,15

Organizações internacionais

8

6 – 46,15

Terceiro setor

11

5 – 38,4%

Academia

7

5 – 38,4%

Agentes escolares

6

2 – 15,4%

Voz genérica (especialistas)

1

1 – 7,7%

Categoria

Tabela 2: Frequência das fontes sobre o Pisa, organizadas por categorias, em notas e notícias

Em ambos os casos, constatou-se a predominância das fontes ligadas de alguma forma ao governo para discutir os resultados das avaliações. A esse respeito, vale retomar Paredes (2000) quando afirma que as palavras do outro em textos jornalísticos podem ser inseridas como fonte informativa para a notícia ou como a própria notícia. Posto que os textos, principalmente os sobre o Ideb, têm como origem a divulgação de dados oficiais efetuada por órgãos públicos, a premissa de se ouvir todos os lados envolvidos em um fato conduz necessariamente ao governo. No caso do Pisa, que não é organizado pelo governo brasileiro, vê-se com frequência a referência às organizações internacionais, nas quais se incluem a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou seu próprio relatório. O uso de fontes ligadas ao governo para abordar questões educacionais em textos jornalísticos já foi discutido em outras pesquisas. Em relatório divulgado pela Andi (2005), sobre textos publicados por jornais brasileiros em 2004 cujo tema central ou secundário era a educação, constata-se que “as fontes oficiais são as mais ouvidas pelos jornalistas. Juntos, o Executivo Federal e o Ministério da Educação correspondem a 22,7% das vozes consultadas na cobertura” (ANDI; MEC; UNESCO, 2005, p. 15). A publicação também aponta para uma predominância do governo como um dos atores mais inseridos nos textos, não necessariamente como fonte, mas como ponto de partida para críticas e comentários. Essa concentração é avaliada como negativa, pois: A concentração no governo tem como efeito o alijamento ou a desconsideração da importância de outros atores envolvidos no processo educacional. Os pais, por exemplo, que poderiam ser ouvidos quando está em questão a qualidade de ensino ou outros temas mais fundamentais da área, costumam ser consultados para tratarem de casos individuais, como situações de dificuldade [...] (ANDI; MEC; UNESCO , 2005, p.44).

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DISCURSO RELATADO EM TEXTOS JORNALÍSTICOS SOBRE AVALIAÇÕES EXTERNAS

Enquanto fonte de informações oficiais acerca das avaliações, governo e representantes, bem como organizações internacionais, desempenham papéis semelhantes na condição de disseminadores dos resultados. Logo em seguida, vêm as instituições de terceiro setor, organizações cuja inserção nos textos imprime-lhes um caráter não somente de credibilidade, mas de excelência profissional. Seus enunciados com frequência posicionam-se de forma crítica frente aos resultados apresentados pelos relatórios oficiais e apresentam sugestões para melhoria do quadro educacional brasileiro. Se, em número de textos em que estão presentes, o terceiro setor tem espaço reduzido em ralação ao governo e às organizações internacionais, há mais trechos de sua origem em discurso relatado. Essa constatação e o fato de, em comparação à abordagem do Ideb, sua presença ser numericamente mais significativa permite supor que, por ser uma avaliação internacional, há maior predisposição para inserção de locutores desvinculados das esferas públicas, como capazes de indicar caminhos de sucesso. Considerações finais A partir dos dados expostos, percebe-se que, nos textos analisados, a cobertura jornalística privilegia a presença de vozes em discurso relatado advindas das esferas governamentais e do terceiro setor, em detrimento de agentes escolares e academia. Tal disposição não significa necessariamente que os discursos propagados nos textos sejam mais próximos de determinadas categorias, mas oferecem indícios para pensar que, ao se discutir educação, determinadas esferas têm sua voz autorizada pelos jornais, ao passo que outras tendem a ser faladas. Referências ANDI; MEC; UNESCO. A educação na imprensa brasileira. Responsabilidade e Qualidade da Informação. Brasília: Agência de Notícias do Direito da Infância e Ministério da Educação, 2005. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. PAREDES, Elena Méndez Garía de. Análisis de las formas de introducir el discurso ajeno en los textos periodísticos: el contexto reproductor. Lengua, discurso, texto: I Simposio Internacional de Análisis del Discurso, volume II. Madrid, p 2081-2098. 2000. PROGRAMA INTERNACIONAL DE AVALIAÇÃO DE ESTUDANTES. Resultados nacionais Pisa 2009. Brasília: Inep/MEC, 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2013.

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PRÁTICAS DE LEITURA EM TEMPOS DIGITAIS: UM ESTUDO COM ALUNOS INGRESSANTES NO ENSINO SUPERIOR TECNOLÓGICO Adriane Belluci Belório de Castro 1 O mundo digital dá novos contornos às práticas sociais. Não seria, pois, diferente em relação às práticas de leitura. Os desafios impostos pelo texto eletrônico ao leitor são diversos e se caracterizam desde sua especificidade técnica até sua concepção. Novas possibilidades de publicação, organização, formatação, difusão e apropriação colocam em xeque os processos cognitivos tradicionalmente efetivados. Além disso, a comunicação digital instaura a superabundância de informações cuja oferta ultrapassa em muito a capacidade de apropriação e assimilação por parte dos leitores, incitando, assim, uma nova relação destes com os textos que se tornam, cada vez mais, mais sincréticos e “hipertextualizados”. Nesse sentido, nosso interesse no presente trabalho é apresentar alguns dados sobre leitura no atual contexto social do qual emerge um novo tipo de leitor, focalizando especificamente o âmbito do ensino superior tecnológico, a fim de analisar como se processam as práticas de leitura vivenciadas por alunos ingressantes em uma faculdade de tecnologia. Tipos de leitor: modos de leitura Chartier (2002, p.16) acredita que “o efeito que o texto é capaz de produzir em seus receptores não é independente das formas materiais que o texto suporta”. Isso significa que a materialidade do suporte oferecido pelo texto irá influenciar na construção de sentido desse texto, ou seja, o suporte está intimamente associado à legibilidade do texto. De acordo com Santaella (2004, p.20), ao longo da história da leitura, em razão das mudanças tecnológicas, podemos perceber o aparecimento sucessivo de três tipos de leitor. Um tipo de leitor, porém, não exclui o outro, há entre eles um princípio de convivência e reciprocidade. Para a autora, o leitor contemplativo é aquele que desponta na idade pré-industrial, é um leitor meditativo do livro impresso e da imagem expositiva fixa. Esse tipo de leitor é silencioso, seus gestos concentram-se nos olhos, tem tempo para considerar e reconsiderar palavras e sentidos, para concentrar o pensamento, para meditar individualmente. Um segundo tipo de leitor é descrito como sendo considerado o movente, o fragmentado. Aqui a leitura se faz com o mundo em movimento, dinâmico, híbrido, de misturas significativas. Esse leitor lê fatias da realidade extraídas dos vários meios com os quais ele está em contato – jornal; tv; cinema; fotografia. Há maior preocupação com a

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Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela UNESP-Araraquara/SP. Professora da Faculdade de Tecnologia de Botucatu, Botucatu, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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vivência do que com a memória, além disso, há a adaptação ao novo, ao diferente imposto pelo mercado. E, finalmente, há um terceiro tipo de leitor, a quem a autora se refere como o imersivo, o navegador ou o virtual. A novidade é fruto dos recursos tecnológicos envolvidos na apresentação dos textos, pois possibilita liberdade de busca de direções e rotas de sentido, liberdade e autonomia de escolha entre nexos, num universo de signos evanescentes e eternamente disponíveis. Essas considerações, bem como nossa experiência de quase vinte anos em sala de aula com ingressantes do ensino superior, levam-nos a perceber a reconfiguração por que passa a prática da leitura atualmente, pois reconhecemos também que o leitor da Internet lê de modo diferente do qual estávamos acostumados a fazer com o texto impresso. Ao compararmos a sociedade pautada pela escrita (impressa) e a sociedade digital, informatizada, verificaremos que a Internet suscita novas condições de produção do discurso, as quais repercutem em abruptas transformações sociais e linguísticas. Nessas novas condições de produção do discurso, destacam-se: uma relação diferenciada do leitor com o texto; mensagens intersemioticamente mais complexas; práticas complexas de letramento; especificidades da escrita e da leitura da linguagem virtual em relação à sua coerência e coesão, supondo-se o modo de se estruturar um texto e nele navegar. Essa metamorfose de grande complexidade gera nos leitores – os quais não dispõem de tempo para adaptação à mudança e para acomodação de inúmeras informações –, um desassossego, visto que estes deverão mudar seus hábitos e percepções. Sendo assim, o leitor iniciante no ensino superior enfrenta sérios problemas de adaptação, pois traz consigo um comportamento novo, típico da prática digital – rápida, efêmera, o qual dificulta a concentração em um ponto – e se depara com um ambiente em que atenção, pesquisa e processamento cognitivo analítico são requisitados. Embasado nesses pressupostos, o presente trabalho traz parte dos resultados de uma pesquisa mais ampla desenvolvida junto a 197 alunos ingressantes em uma faculdade de tecnologia do interior do Estado de São Paulo, matriculados, no primeiro semestre de 2011, em disciplina básica de Comunicação de cinco diferentes cursos. Práticas da leitura no ensino superior tecnológico Iniciamos o processo de pesquisa a partir da aplicação de um questionário com 15 questões de múltipla escolha para o levantamento de dados socioeconômicos, culturais e educacionais para traçar o perfil do ingressante no ensino superior tecnológico – especificamente nesta unidade de ensino. Outras questões sobre prática de leitura, produção de texto e uso da Internet também foram apresentadas neste questionário. Constatamos, por meio das respostas apresentadas, que o aluno ingressante na faculdade pesquisada é, em sua maioria, do sexo masculino (67%), jovem (81% possuem até 30 anos), trabalhador (66%), residente com familiares (87%), apresentando renda familiar até cinco salários mínimos (79%) e tendo cursado a Educação Básica totalmente em escola pública (70%). Observamos, ainda, certa sintonia entre o que é apresentado pela própria instituição

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como um dos atrativos para o aluno e o que este aponta como um dos motivos pela escolha do curso, ou seja, a rápida inserção no mercado de trabalho. Além disso, verificamos que o ingressante não tem domínio sobre outro idioma (88%), não dispõe de muito tempo para estudar (85%), tampouco para praticar esportes (52%). Uma vez questionados sobre a realização de atividade de lazer, 47% dos ingressantes responderam que se dedicam a esse tipo de atividade, no mínimo, uma vez por semana. Em relação ao hábito da leitura, verificamos que metade das respostas aponta para certa frequência em leitura. Entretanto, quando se refere à prática de produzir textos, a maioria afirma não fazer isso com frequência. No tocante ao uso da Internet, 84% dos entrevistados revelaram que utilizam com muita frequência esse recurso. Este número de uso frequente da Internet é bem mais representativo quando comparado à frequência de leitura. Foi solicitado, também, o preenchimento de outro formulário com oito questões discursivas sobre as habilidades de leitura e produção textual, além da redação de um breve texto sobre o tema “Quem sou?”. Tanto as questões, quanto o texto serviram como base para uma avaliação diagnóstica em Língua Portuguesa do aluno. Os dados obtidos revelaram que o estudante se qualifica como um leitor, até certo ponto, competente (77% afirmaram gostar de ler e 78% consideraram não apresentar dificuldade em leitura); entretanto, o que observamos, posteriormente durante as aulas e outras atividades aplicadas, não coincide com tais dados, pelo menos não na mesma proporção, pois constatamos que, em nível de compreensão, pelo menos metade dos alunos sente dificuldades tais como: identificação do assunto; reconhecimento do tema; descrição do raciocínio lógico utilizado na arquitetura do texto. Podemos considerar com isso que a percepção e consciência que o aluno tem sobre sua prática de leitura é diferente do que o outro percebe ou reconhece nele, principalmente se levarmos em conta situações formais como testes ou avaliações discursivas, tipicamente utilizadas em ambiente acadêmico. A partir do confronto entre os dados obtidos com os questionários e o acompanhamento semanal em sala de aula, verificamos que boa parte dos alunos não tem consciência da dificuldade que, muitas vezes, apresenta no processo de leitura. Em entrevistas com os ingressantes (o que confirma o dado de 78% alegarem que não sentem dificuldade em leitura), a maioria se referia com domínio sobre os textos lidos; entretanto, quando questionados, principalmente por escrito, sobre aspectos básicos de compreensão textual, como tema e ideias principais de um determinado texto, os mesmos alunos apresentaram noções distorcidas desses quesitos, ou começaram a fazer novos textos sobre algum ponto específico do texto, evidenciado a leitura fragmentada e sem profundidade (tanto do texto, quanto do que lhe foi solicitado); há casos ainda em que o aluno se limitou a copiar quase que integralmente o texto lido, não evidenciando, de modo sucinto, o tema abordado. Em entrevista, alguns alunos relataram também nunca terem sido corrigidos em seus exercícios de interpretação ou mesmo de produção textual. E não foram raros os casos em que, quando corrigidos ou orientados sobre os problemas de leitura ou de produção textual, os alunos sentiram-se surpresos e, até certo ponto, contrariados, insistindo na adequação da compreensão apresentada para o texto.

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Finalmente, gostaríamos de ressaltar que, em tempos digitais, coexistem diferentes tipos de leitor com vistas às diversas necessidades que emergem na sociedade atual. No entanto, precisamos garantir ao aluno (ainda que em nível de graduação) diferentes estratégias para a aprendizagem da diversidade nas habilidades leitoras da contemporaneidade, visando ao desenvolvimento global de sua competência linguística. Referências CHARTIER, R. Os desafios da escrita. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Editora da UNESP, 2002. SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004.

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FORMAÇÃO DE CORPO INTEIRO: A EXPERIÊNCIA DO CURSO DE EXTENSÃO DA UNIRIO “EDUCAÇÃO INFANTIL: ARTE, CORPO E NATUREZA” Adrianne Ogêda 1 – Unirio Nuelna Vieira 2 – Unirio/ CMA

[...] Hoje, mais importante do que anunciar o futuro, parece ser produzir cotidianamente o presente, para possibilitar o futuro. Se deslocarmos tal ideia para o campo da educação, não fica difícil falarmos num professor-profeta, que, do alto de sua sabedoria, diz aos outros o que deve ser feito. Mas, para além do professor-profeta, hoje deveríamos estar nos movendo como uma espécie de professor-militante, que, de seu próprio deserto, de seu próprio terceiro mundo, opera ações de transformação, por mínimas que sejam. Silvio Gallo

Hoje, na atualidade dos nossos dias repletos de novos e velhos problemas sociais, políticos e institucionais, nos perguntamos: em que tempo vivemos?! Qual corpo é fabricado nessa atualidade! Com quais corpos estamos convivendo diariamente em sala de aula?! Na realidade de nossa cidade, de nosso tempo, as rotinas apressadas, marcadas por um sem número de exigências e urgências, deslocamentos demorados, tarefas em excesso, como nossos corpos são marcados por tudo isso? E o corpo do professor em especial, que lida com um grande número de pessoas, com suas demandas, afetos, questões? Essas questões se fazem urgentes para pensar uma prática pedagógica que busca as transformações necessárias, e, ao mesmo tempo, reconhece na realidade de cada sala de aula, de cada escola, de todo e qualquer educador ou educando, novidades, diferenças, sobre as quais precisamos nos debruçar e cuidar. Escutando as professoras que somos e aquelas com as quais convivemos/ trabalhamos, em diferentes espaços de formação, é possível identificar um aspecto que “grita” por espaço de reconhecimento, que requer maior pesquisa, estudo e proposições práticas no terreno da formação docente: o corpo do professor no cotidiano escolar e as necessárias perspectivas de melhor compreendermos as dimensões teórico práticas que nele se imbricam.

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Doutora em Educação (UFF); Professora Adjunta Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Vice coordenadora do Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil; Rio de Janeiro, RJ. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Psicologia Social (UERJ); Professora Formadora do Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil; Rio de Janeiro, RJ. E-mail: [email protected]

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No caso especial do professor que atua no segmento da Educação Infantil, a dimensão corporal é muito presente. Compreender essa particularidade da expressão da criança é fundamental para pensar no lugar do professor. As crianças de 0 a 5 anos expressam fisicamente emoções, desejos, necessidades. Buscam o contato, o colo, o toque, a proximidade. Os estudos do campo da Psicologia do Desenvolvimento permitem compreender as relações entre corpo, cognição, afeto e cultura presentes no processo de constituição do humano. A criança tem uma maneira expressiva, gestual, simbólica e lúdica de estar no mundo. As diferentes linguagens expressivas permitem à criança interagir com seus pares, observar o seu entorno, expor planos, ideias, emoções. Nesse sentido, compreender a criança em sua totalidade, com suas linguagens requer colocar no mesmo plano as dimensões sociais, cognitivas, afetivas e motoras. O movimento é fundamental no processo de desenvolvimento da criança, influenciando não apenas no seu desenvolvimento psíquico, mas também nas suas relações com os outros. É pelo movimento que ela explora o mundo ao seu redor e com ele interage, conhecendo seus limites e possibilidades, aprendendo a utilizar diferentes objetos/ instrumentos, etc. De acordo Arroyo (2012), nos deparamos na atualidade, no campo escolar, com corpos precarizados, instituídos, violentados diariamente, tanto dos educadores quanto dos educandos. Por outro lado, sabemos também que os espaços escolares foram e continuam sendo pouco acolhedores para os corpos dos educandos e dos educadores. Disciplina, contenção, controle dos corpos e suas expressões são as formas mais presentes no cotidiano das escolas. Pensar criticamente essas condições e a própria história da instituição escolar com relação ao lugar do corpo requer considerar uma formação de professores que lhe dê atenção e leve em conta suas implicações com o cotidiano pedagógico. Uma formação que acontece, sobretudo, a partir de experiências práticas, na reflexão sobre as ações e interações vividas na escola. Aqui encontramos outros desafios que nos dispomos a enfrentar, a articulação entre a teoria e a prática na formação dos professores, dimensões que, embora indissociáveis, requerem um constante diálogo. Assim, construímos um curso de extensão 3 que nos proporcionasse viver desafios e inventar outros modos de encontrarmos o corpo, a teoria e a prática no campo da educação. Nos apoiávamos em uma concepção de formação que escapasse a alguns dos modelos acadêmicos mais tradicionais, indiferentes a realidade da escola, assim como os modelos profissionalizantes, indiferentes a vida na sala de aula e nas escolas. Almejávamos inventar um modo de articularmos, como bem nos provoca Clareto e Oliveira (2010), a teoria e a prática: A questão da relação teoria e prática articula-se, de maneira visceral, com o tema da formação de professor: qual o papel da teoria na formação do

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Nos referimos ao Curso de Extensão “Educação Infantil: arte, corpo e natureza”, voltado para professores em exercício da rede pública e oferecido em 2013 pela Unirio em parceria com o Ministério de Educação

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professor? Qual o papel das práticas profissionais na formação docente? (CLARETO e OLIVEIRA, 2010, p. 67)

Entendemos que essa articulação precisava encontrar modos de se fazer presente, escapando aos modelos hegemônicos com suas incansáveis propostas modeladoras, repletas de verdades únicas e uma hierarquização que impede a expansão dos pensamentos, das ideias e assim, das possibilidades de diferentes expressões. Assim, queríamos um modo de operacionalizar o curso que nos aproximasse da capacidade de afetarmos e sermos afetados, de estarmos mais familiarizados aos signos humanos, aos processos e as transformações. Tarefa árdua e complexa que nos instiga a criar meios de realizações. Interessadas na sala de aula, no que acontece hoje entre educadores e educandos e na proposição de experiências que mobilizassem corpos, emoções, afetos, criamos um curso de extensão que preconizasse uma formação de corpo inteiro, integrando arte, corpo, natureza. Tínhamos também a preocupação em manter um diálogo permanente com as experiências das professoras em suas escolas. Havia três campos de saberes (arte, corpo e natureza) que atuavam com afetos, sensações, percepções e transformações, proporcionando um mergulho nas produções subjetivas. Como poderíamos articular esses saberes na prática pedagógica? Como esses saberes dialogam com a Educação Infantil, território da infância? Na tentativa de explorarmos essas questões, tínhamos como desafio perceber essas articulações, ou melhor, criar modos de fazer o grupo de alunas-professoras perceberem as articulações entre os saberes e entre estes e as práticas pedagógicas de cada uma. Elaboramos assim uma metodologia em que cada encontro iniciava com propostas vivenciais no campo das artes visuais e das práticas corporais. Expressão plástica, Dança Contemporânea, Consciência Corporal, dentre outras, fizeram parte da proposta. Os professores convidados eram, em sua grande maioria, não apenas educadores, mas também artistas, muitos com trabalhos em cartaz nos teatros da cidade. As experiências mobilizavam as alunas-professoras, convidando-as a descobrirem e conhecerem mais e melhor a si próprias, suas possibilidades de expressão, seu corpo. (...) E a experiência é o que nos passa e o modo como nos colocamos em jogo, nós mesmos, no que se passa conosco. A experiência é um passo, uma passagem. Contém o ‘ex’ do exterior, do exílio, do estranho, do êxtase. Contém também o ‘per’de percurso, do passar através, da viagem, de uma viagem na qual o sujeito da experiência se prova e se ensaia a si mesmo. E não sem o risco: no experiri está o periri, o periculum, o perigo. Por isso a trama do relato de formação é uma aventura que não está normatizada por nenhum objetivo predeterminado, por nenhuma meta. E o grande inventorexperimentador de si mesmo é o sujeito sem identidade real nem ideal, o sujeito capaz de assumir a irrealidade de sua própria representação e de submetê-la a um movimento incessante ao mesmo tempo destrutivo e construtivo. (LARROSA, 2009, P. 57)

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Assim, buscamos experiências que convidassem ao grupo a viver, entrar no jogo da dança, da respiração, do olhar, do riso, da brincadeira, a partir de uma infinidade de propostas que reuniam os três saberes centrais: arte, corpo e natureza. Mas como fazer dessas experiências um espaço de chegar a si mesmo, como nos coloca Larrosa? Queríamos que o grupo percebesse o curso como um processo de estudo fundamentado em algumas concepções/ pontos de partida e estávamos interessadas em ver onde esses pontos as levariam. Assim criamos duas formas de abrir espaços-tempos para o registro e a reflexão sobre as experiências. Uma delas consistia em abrir uma roda de conversa ao final de cada encontro para que os participantes expusessem suas impressões e/ou as registrassem. A outra foi construir individualmente seu livro da vida, aonde as experiências vividas seriam registradas, utilizando para isso diferentes recursos plásticos. Nesses momentos de parar e refletir, perceber no que se viveu as conexões com a vida, com o trabalho, com as práticas cotidianas, aproximava cada um, um pouco mais, de si mesmo, bem como fortalecia o grupo como espaço de troca, compartilhamento e apoio mútuo. As imagens, os textos, as ideias produzidas em cada um, ao mesmo tempo, expunham o vivido, as conexões, as ideias, os sonhos, enfim as produções subjetivas de cada educador. Esse relato, ainda que breve, sobre alguns aspectos do Curso em foco, reforça para nós o sentido de uma formação que se estruture metodologicamente de modo a considerar as experiências estéticas como parte fundamental de seu escopo. A dança, as artes visuais, o conhecimento do próprio corpo, o diálogo com os saberes e práticas dos participantes, nos indicam férteis caminhos que podem alimentar propostas de formação e de pesquisa. Referências ARROYO, M; SILVA, M. R. (orgs). Corpo Infância, Exercícios tensos de ser criança, por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. CLARETO E OLIVEIRA. Experiência e dobra teoria e prática: a questão da formação de professores. IN: CLARETO, S.M. FERRARI, A. (orgs). Foucault, Deleuze e Educação. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2010. GALLO, Sílvio. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. LAROSSA, J. Nietzsche & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DELEITE NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR LEITOR Aida do Amaral Antunes 1 Moyra Ribeiro Marques 2 Suzana Lima Vargas 3 Introdução O Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) foi implementado no início do ano de 2013, com objetivo de alfabetizar todas as crianças até os 8 anos de idade, ao final do 3º ano do ensino fundamental. O compromisso formal se deu entre o Governo Federal, as Instituições de Ensino Superior (IES), os estados e municípios. A execução do PNAIC acontece a partir de um processo de formação entre pares, em um curso presencial com carga horária de 120 horas, com o objetivo de articular os diferentes componentes curriculares, sobretudo a Linguagem. A UFJF é uma das 38 IES que oferece formação continuada aos orientadores de estudos e professores alfabetizadores. Em 2013, atendeu 197 municípios de Minas Gerais, com 197 coordenadores locais, 275 orientadores de estudos (OEs) e 4571 professores alfabetizadores (PAs). Os OEs receberam uma formação específica na área de língua portuguesa, cabendo a eles repassar esse curso aos seus PAs, nos respectivos municípios de origem. O PNAIC desenvolveu ações integradas entre programas, materiais didáticos e referências curriculares e pedagógicas disponibilizadas pelo Ministério da Educação, contribuindo para a alfabetização e o letramento, sendo seu eixo principal a formação continuada dos professores alfabetizadores (BRASIL, 2012). Dentre os vários objetivos dessa formação continuada, no âmbito da leitura destacamos quatro pontos: i) conhecer os recursos didáticos distribuídos pelo MEC (livros didáticos e obras complementares do PNLD; livros do PNBE e PNBE Especial; jogos didáticos distribuídos pelo MEC); ii) planejar situações didáticas em que tais materiais sejam usados; iii) compreender a importância da literatura nos anos iniciais do Ensino Fundamental e; iv) planejar situações de uso de obras literárias em sala de aula. Em meio às ações desenvolvidas para o alcance desses objetivos, destacamos a leitura deleite como estratégia importante no processo de formação continuada, compreendida como momento de prazer e reflexão sobre o que é lido, sem a preocupação com a questão formal da leitura.

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Especializando em Educação no Ensino Fundamental pela UFJF, Professora da rede estadual de ensino de Minas Gerais, apoio técnico do Programa PNAIC – Polo UFJF ([email protected]). 2 Especializando em Educação no Ensino Fundamental pela UFJF, apoio técnico do Programa PNAIC – Polo UFJF ([email protected]). 3 Professora Adjunto 4 da UFJF, Coordenadora Adjunta do PNAIC – Polo UFJF ([email protected]).

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Assim, defendendo o papel do professor como mediador da leitura literária, a pesquisa teve como objetivos: i) discutir a importância da experiência pessoal do profissional da alfabetização com a leitura deleite; ii) investigar como os OEs compreendem a leitura deleite na alfabetização e, iii) como utilizam as obras literárias distribuídas pelo MEC no planejamento das situações didáticas. Métodos de coleta e análise dos dados O corpus que possibilitou a análise é um recorte transversal do banco de dados do PNAIC, Polo UFJF. O banco de dados foi constituído no decorrer do ano de 2013 e conta com aproximadamente 3940 relatórios produzidos pelos OEs e 1605 avaliações preenchidas ao término dos seminários de formação no Polo em Juiz de Fora/MG. Para a presente pesquisa, foram selecionadas 260 fichas de avaliação produzidas no final de 2013. Trata-se de uma análise qualitativa, voltada para produzir interpretações dos dados obtidos no contexto do Programa. A ficha de avaliação é um instrumento utilizado no final de cada formação realizada no Polo para que o OE avalie a formação, aponte aspectos positivos e o que pode ser aprimorado nos próximos encontros. Dentre as várias questões respondidas, destacamos: i) o conteúdo da formação e contribuição para seu desenvolvimento profissional; ii) a avaliação da participação no curso; iii) o incentivo do curso para as práticas pessoais e profissionais e; iv) os aspectos positivos e negativos da formação. Com base na leitura das 260 avaliações finais, debruçamo-nos sobre as colocações efetuadas no que se refere à contribuição do PNAIC para o desenvolvimento profissional e promoção de mudanças nas práticas alfabetizadoras. De um modo geral, observamos que os OEs demonstraram satisfação com a formação vivenciada, pois esta possibilitou novas aprendizagens e ampla reflexão sobre as práticas de ensino nos anos iniciais. Nesse sentido, organizamos as respostas dos OEs em torno de cinco aspectos recorrentes e selecionamos alguns depoimentos que ilustram as discussões aqui apresentadas: (i) Os livros de literatura distribuídos pelo MEC foram utilizados no planejamento de suas aulas: “Me sinto mais útil na escola, aprendi muito com as leituras e me tornei "uma referência" na escola. Adotei a prática de leituras "deleite" e me dedico mais à leitura para crianças.” (Profª E.A.V.); (ii) A leitura deleite foi adotada como atividade permanente em sala de aula, defendendo-a como uma estratégia interessante para o uso constante e variado dos livros de literatura, instaurando o gosto pela leitura nos alunos: “Hoje consigo avaliar melhor e planejar aulas mais prazerosas e significativas, utilizando os jogos e os livros de literatura do PNBE no desenvolvimento das minhas aulas. Os alunos ficam muito interessados, mas antes não pensava assim.” (Profª R.A.L.); (iii) Os OEs ressaltaram que a literatura pode ser um elo entre ludicidade e aprendizagem curricular: “Deixamos de fazer atividades por fazer e planejamos aquelas que marcam a vida dos alunos, usando o lúdico sempre, através da leitura deleite. Sabemos lidar com o material do CEEL e os livros de literatura são mais aproveitados.” (Profª M.S.F.); (iv) As experiências pessoais com a leitura literária foram

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expandidas na medida em que se tornaram leitores mais assíduos e sentiram mais confiantes no papel de mediadores de leitura: “Através da troca de experiências e os muitos conhecimentos que foram passados, me tornei uma profissional criativa e com outros olhos, com relação a alfabetização e, principalmente, me tornei uma leitora, que antes não gostava.” (Profª M.E.O.B.); “Descobri que consigo trabalhar com formação de professores e pude estudar muito. A maior contribuição do curso foi a leitura deleite. Desde maio, passei a ler todos os dias. E, desde outubro, a leitura passou a ser feita pelos próprios alunos, por iniciativa deles.” (Profª M.R.F.); (iv) Os OEs fizeram a leitura deleite com seus cursistas e destacaram a importância desta atividade permanente para a promoção do gosto pela leitura literária junto às crianças: “Os momentos de leitura e discussão são prazerosos e contribuem para o crescimento de todo o grupo.” (Profª A. M. S.) A apreciação dos dados revelou que após a formação desenvolvida em 2013, os OEs compreenderam que formar leitores significa preparar sujeitos para o exercício consciente da cidadania e que a leitura deleite é uma importante estratégia para aprimorar o senso estético, promover a reflexão crítica, instigar a criatividade e aperfeiçoar o domínio linguístico. Desta forma, acreditamos que o trabalho com a leitura deleite é viável, prazeroso e fundamental quando se deseja instituir um ensino de qualidade. Considerações finais Após análise dos relatórios e avaliações finais elaborados pelos OEs, constatamos mudanças significativas nas suas práticas docentes, pois seus depoimentos revelaram que a educação literária pode ser um caminho para preservar o espaço e o tempo da brincadeira na sala de aula e simultaneamente desenvolver o gosto pela leitura da literatura infantil. Grande parte dos OEs não conhecia os livros de literatura distribuídos pelo MEC, não tiveram acesso a obras literárias em casa ou construíram práticas sociais de leitura em outros programas de formação. Contudo, seus depoimentos indiciaram que a experiência com a leitura deleite se consolidou ao mesmo tempo no plano pessoal e no coletivo, procurando novas obras, reconhecendo autores e ilustradores de literatura infantil nos acervos das bibliotecas escolares, assim como constituindo pequenas comunidades de leitores – professores e outros profissionais da escola, pais e alunos – para futuras experiências de leitura deleite. Assim, salientamos que a leitura deleite é uma atividade permanente fundamental nos processos de formação de professores alfabetizadores, uma vez que favorece o contato do professor com textos literários diversos, além de ser um momento de prazer e reflexão sobre o que se lê, proporcionando o acesso a outras realidades e, em função disso, a reflexão sobre a vida e a construção de significados para ela, sem a preocupação com a questão formal da leitura. Defendemos o uso dos materiais didáticos distribuídos pelo MEC como mais uma oportunidade para a atuação do professor em sala de aula. Portanto, torna-se necessário que o professor propicie melhores condições de uso desses materiais, envolva seus alunos em situações significativas de aprendizagem, permitindo reflexões aprofundadas sobre o processo

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de alfabetização com base no letramento. Acreditamos que aprender a ler por meio de textos literários é aprender a ler com textos que encantam, emocionam, fazem rir e chorar; histórias que permitem pensar e repensar e trazem o caráter lúdico do jogo que se instaura na e através da linguagem. Nesse ponto, recordamos Queirós (2009), quando afirma que “todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora” (QUEIRÓS, 2009, p.2). Referências BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: vamos brincar de reinventar histórias: ano 3, unidade 4. Brasília: MEC, SEB, 2012. QUEIRÓS, B. C. de. Manifesto Movimento por um Brasil literário. 2009. Disponível em: Acesso em 5 de maio de 2014.

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OS SINAIS QUE VÊM DO MAR Aira Suzana Ribeiro Martins 1 Pretendemos, neste trabalho, fazer o relato de atividades de leitura e de produção de texto desenvolvidas com estudantes de sexto ano do Ensino Fundamental. O trabalho envolveu as três matrizes da linguagem e do pensamento. Para tanto, fizemos a leitura de uma história sem legenda, “Onda” (2008), de Susy Lee e ainda a leitura do poema “A onda” (1978) de Manuel Bandeira. Ouvimos também a melodia “A maré encheu”, de Villa Lobos. As obras, envolvendo a linguagem verbal, a linguagem visual e a linguagem sonora foram selecionadas a partir de um tema em comum: mar. A realização da atividade teve como base teórica a obra de Lúcia Santaella, “As matrizes da linguagem e pensamento” (2001). A autora, com base na teoria semiótica de Pierce, acredita que a multiplicidade de linguagens com a qual deparamos no dia a dia se origina de apenas três matrizes da linguagem e do pensamento: a matriz visual, a matriz sonora e a matriz verbal. Segundo a pesquisadora, a variedade de linguagens surge a partir de combinações e misturas entre as três matrizes citadas, que estão na base dessa multiplicidade. Assim, é possível compreender as linguagens híbridas como a modalidade oral da língua, que envolve a sonoridade, linguagem verbal e a linguagem visual, já que são utilizados gestos e expressões faciais. De acordo com Santaella (2001), nossa vida está rodeada de um entrecruzamento de linguagens em constante crescimento e mutação, como a escrita, o desenho, a música, o cinema, a televisão, o rádio, o jornal, a pintura, entre outros. Essa observação, entretanto, nos leva a constatar que não nos damos conta de tal fato e, muitas vezes, deixamos de aproveitar esse fenômeno em nossa prática de sala de aula. Como sabemos, a percepção dos signos se dá por meio de nossos sentidos, sobretudo da visão e da audição, logo, procuramos, neste trabalho, promover a integração desses sentidos nas aulas de Língua Portuguesa. Partirmos do princípio de que, num texto, seja ele pictórico, musical ou verbal, todos os signos neles presentes integram um todo significativo, portanto, contribuem para a formação de sentido pela mente interpretadora. A imagem no livro sem legenda O livro sem legenda pode se tornar um elemento deflagrador de riquíssimas experiências. A imagem é basicamente uma síntese de elementos visuais, como traços, cores e formas. Simultaneamente, estes elementos formam um quadro capaz de impactar, chocar e emocionar a mente interpretadora. O pintor ou ilustrador tem a capacidade de dispor a beleza das cores, tom sobre tom e enquadrar os elementos, de forma que dali possa fazer surgir uma história e até mesmo poesia. Num primeiro momento, o leitor depara com o que lhe é 1

Doutorado em Língua Portuguesa; Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Rio de Janeiro. [email protected]

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oferecido (cores, formas, traçados). Num segundo momento, desenvolve as sensações que o objeto oferece e usufrui o prazer estético, formando imagens mentais capazes de transportá-lo para o espaço onde se desenvolve a cena retratada. A escola tem no livro sem legenda um importante material de trabalho, não só para o público infantil como para o público de outras faixas etárias. O trabalho com a imagem vai levar o receptor a educar seu olhar, pois a formação de sentido de um texto pictórico vai depender daquilo que o intérprete captar e processar mentalmente. A partir daí, ele passa a estabelecer relações para formar um sentido. O material a ser observado, nesse caso, é outro, diferente daquele com o qual está habituado a trabalhar em aulas de Língua Portuguesa. A apreciação cuidadosa dos elementos que compõem um quadro é capaz de levar o indivíduo a desenvolver a capacidade de observação de diferentes materiais. Ele também vai buscar sentido naquilo que se lhe apresenta aos olhos. A experiência do contato exclusivo com a imagem, pode levar esse indivíduo a formar outros quadros mentais, capazes de desenvolver a história. A tradução mental enriquecerá a bagagem cultural desse leitor, capacitando-o para realizar uma transcodificação desse texto na modalidade oral ou na modalidade escrita. A obra “Onda” (2008) apresenta o primeiro contato da menina com o mar. As cores e as formas, elementos significativos nesse código, estabelecerão relações indiciais e simbólicas com a história que está sendo narrada. Na parte inicial do livro, temos um linguagem híbrida, em que a palavra “onda” se destaca, representando, talvez, aquilo a ser conquistado pela garota que corre em sua direção. Vemos que há predominância da cor cinza, sobressaindo a palavra escrita na cor azul. As formas revelam, inicialmente, distanciamento entre a menina e o mar. Observa-se o contraste de cores, ligado à oposição entre os sujeitos, o mar e a menina. Esta, inicialmente, mostra receio e temor. Em seguida, se encoraja, resolvendo enfrentar o desconhecido, inicialmente, com certa hostilidade. Vemos que a cor azul vai cada vez mais invadindo o espaço dominado pelo cinza. À medida que se dá a aproximação da menina com o mar, a paisagem e os personagens vão se tornando azuis. Poderíamos considerar as cores azul e cinza como signos simbólicos de sentimentos. O cinza representaria a falta de emoção e o azul, o bem-estar, a harmonia entre a criança e a natureza . A matriz verbal e a palavra De acordo com as categorias universais de Peirce (1975), a descrição, a narração e a dissertação são os três grandes princípios organizadores da sequencialidade discursiva. A matriz verbal da linguagem extrai seu poder representativo do próprio sistema de símbolos que a constitui. Os exemplos mais perfeitos de descrição se encontram no texto poético, que cria relações bem inusitadas. Esse gênero textual acaba por recuperar, analogicamente, em termos concretos, qualidades físicas, que aproximam o texto verbal do objeto representado. Sendo o

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ícone um tipo de signo, cujas qualidades sensíveis se assemelham às qualidades do objeto, ele é capaz de excitar na mente receptora sensações análogas às que o objeto excita. Selecionamos o poema “A onda”, de Manuel Bandeira, para ilustrar, em linguagem verbal, aquilo já descrito pela narrativa em imagens. O movimento de ida e vinda das palavras-sons, no campo das relações que estabelecem umas com as outras, acaba sendo analógico ao movimento das ondas que batem na praia. As palavras-ondas recriam, sensível e concretamente, o movimento das ondas. Por meio da linguagem, o leitor redescobre a onda. O jogo de palavras, as assonâncias, as aliterações e as rimas presentes no poema fazem surgir na mente interpretadora o objeto descrito. Vemos que a disposição das palavras também desenha a imagem da onda no papel. O poeta utiliza apenas seis palavras: a, onda, anda, onde, aonde, ainda, que são formadas e dispostas de forma bem lúdica, quer pela comutação de vogais, quer pela transformação do artigo em preposição que se junta à palavra “onde”. O jogo com a sonoridade se percebe também pelo aparecimento de uma vogal epentética, formando a palavra “ainda”. Por meio da repetição das palavras e sons, o poeta construiu o ritmo do poema, que recria o movimento das ondas do mar. Como podemos ver, no poema, há uma exploração artística da substância fônica projetada no nível da seleção vocabular. A música e a matriz sonora da linguagem Para J. J. Moraes (cf. SANTAELLA, p.81, 2001), os sons musicais têm a capacidade de produzir, na mente de quem ouve, três efeitos. O primeiro, efeito emocional, desperta algum tipo de sentimento no ouvinte. O segundo efeito, o energético, diz respeito a algum tipo de ação que é executada no ato de recepção de um signo musical. É comum, ao ouvirmos uma melodia, a realização de um movimento corporal, ainda que involuntário. O terceiro efeito, o lógico, se refere às associações mentais que emergem em nossa mente a partir da escuta de uma canção. No trabalho desenvolvido, selecionamos a melodia “ A maré encheu”, de Villa Lobos. Pedimos aos alunos que ouvissem a canção e estabelecessem relações dos movimentos da música com os episódios da narrativa de Suzy Lee. Após isso, comunicaram suas conclusões, associando a parte inicial da melodia, com um andamento lento, ao receio da menina em se aproximar da água. O movimento mais vivo da melodia foi ligado ao momento em que a menina se sentiu à vontade, feliz com a experiência de conhecer o mar. Os depoimentos revelam que os efeitos provocados pela linguagem musical ocorreram na atividade desenvolvida em sala de aula. A leitura e a produção de texto A etapa seguinte refere-se à proposta de elaboração de um texto. Posteriormente, os trabalhos transformam-se em letras de uma melodia do gênero acalanto, composta na aula de Educação Musical. Transcrevemos um poema, criado por Fernando Mancebo e Artur Barros:

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A menina e o mar Menina, não tenha medo Pois a onda Não tem segredo. Você não irá se machucar Se com a onda Você tranquilamente brincar. A água do mar Irá apenas te molhar. Se a maré começar a encher É melhor se proteger.

Conclusão O produto final da experiência de leitura relatada mostra que o aproveitamento de variadas linguagens na atividade de leitura é bastante produtivo. A convivência com diversas manifestações artísticas vai contribuir não só para a formação cultural do jovem, como também vai auxiliar no desenvolvimento de sua sensibilidade às manifestações artísticas que proliferam à nossa volta. Essas práticas propiciam o surgimento da autonomia e da conscientização do indivíduo, já que ele é solicitado a ver e a buscar sentido nas coisas do mundo. Referências BANDEIRA, Manuel. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1978. LEE, Suzy. Onda. São Paulo: Cosac Naify, 2008. SANTAELLA, Lúcia. As matrizes da linguagem e pensamento. São Paulo: Iluminuras, 2001. VILLA-LOBOS, Heitor. A maré encheu. In: Miguel Proença. Coletânea Piano Brasileiro. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2005. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

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FOTO-ESCRITA-EXPERIMENTAÇÃO Alda Romaguera 1 Alik Wunder 2 Este texto apresenta alguns dos pensamentos que se movimentaram na criação da exposição-instalação “imagemescritaeacontecimento”, realizada durante o 19º COLE no campus da Unicamp, entre os dias 21 e 25 de julho de 2014. O material foi produzido a partir de encontros em oficinas de criação fotográfica e poética, no projeto de extensão "Experimentações com palavras e imagens", que foi desenvolvido pelo Núcleo de Leitura Fabulografias-ALB ao longo do primeiro semestre de 2014. As foto-escritas experimentais derivam de exercícios de mixagem que se in-ventam a cada encontro, movidos pela pergunta: o que podem as palavras frente à força das imagens? Extrair da palavra sua significação, fazê-la vibrar. Potencializar na palavra o desejo, (des) vestir, fazer surgir o corpo da palavra carne da palavra palavra-gesto prenhe de cores e sons susto invenção giros puro pensamento foto-escrita-experimentação escrita política uma filosofia problemacriar in-ventar

Figura 1 - criação postal - coletivo fabulografias

escrita política ex-cripta esconderijo kryptós gráphein 1

Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Docente e pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade de Sorocaba - UNISO - Sorocaba/SP. Email: [email protected] 2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Docente e pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: [email protected]

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escritura do desejo Puro pensamento Acontecimento escrit-experimentação Composições, sobreposições e disjunções entre fragmentos de livros, poemas rasgados, ilustrações e fotografias. Contingentes e potentes encontros entre poemas e imagens num jogo de experimentação fotográfica e escrita. Fabulações entre palavras e imagens. Uma mesa, livros abertos, fotografias, uma câmera... Mãos tocam poemas, que tocam imagens, que tocam desenhos, que tocam lentes, que tocam texturas, que tocam o traço das palavras multiplicado pelo jogo fotográfico. Fotografia-texto. Pensar com Rosalind Krauss (2002), o fotógrafo como escritor e a máquina fotográfica como substituta da mão, instrumento da escrita e não da visão instantânea. Corpo da palavra. Carne da palavra. Palavra-gesto, prenhe de cores e sons. Palavra encenada. Cenários fotográficos. Susto, invenção, giros, puro pensamento. Imagem-escrita-experimentação. Pensar a escrita como dança das palavras, como viagem da língua na língua: “uma literatura e uma escrita cuja alma, sempre carnal, nervura e gozo sem entraves da língua, na língua, está para além das regenerações, das reproduções das hidras e medusas. Rizoma é só produção, dança das palavras, viagem da língua na língua” (LINS, 2012, p.01).

Figura 2 - criação postal - coletivo fabulografias

Escrita política, ex-cripta, esconderijo, kryptós gráphein, escritura do desejo. Puro pensamento, acontecimento, escrit-experimentação. Fa(bu)lar. Burlar com a palavra roubando-lhe explicações, bulir escrit-imagens na busca por uma política visual, em que palavras/imagens oportunizem a criação de novas visualidades e visagens na relação com a arte e a cultura. Tais elementos se expressam ética e esteticamente nestas imagens, fotografias-textos, que estabelecem conexões profícuas com a proposta de pensar a Educação como plano de composição que desenha o mundo enquanto acontece (AMORIM, 2008, 2001).

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Figura 3 - criação postal - coletivo fabulografias

Uma escrita-experimentação e uma educação que apostam na criação de palavras e imagens singulares; um entreter e entremear e entrever planos, no movimento turbilhonante que se gera nesses encontros, potências ampliadoras para outros (des)entendimentos sobre educação. Linhas de fuga, que não convergem para nenhum ponto de meio, de margem ou de caminho, que perspectivam o infinito, que ressoam neste estilo de escrita, lançam pensamentos para a singularidade educação: Cabe deixar viajarem a língua e as palavras, pôr a língua em variação contínua, pois é assim que se podem esvaziar os conteúdos, desfazer as formas e deixar passar algo assignificante, informal, assubjetivo. A variação contínua é como o rizoma, não tem princípio nem fim, mas meio; não é arborescente, tão tem raiz, é órfã. É encontro. É uma espécie de bate-papo entre internautas: só se entra pelo meio. Neste sentido, a variação contínua, a escrita como puro devir, desterritorializa as dualidades, as oposições pertinentes, para, por meio da vibração das palavras e do estremecimento das regras, provocar, no sentido também de vomitar, uma cheia, uma inundação, uma libertinagem, profusões de signos úmidos, secos, irrigados e, assim, abrir alas para uma língua desviante que fia e engendra um sentido novo, inédito: uma escrita por vir. (LINS, 2012, p.04)

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Figura 4 - criação postal - coletivo fabulografias

Busca por uma política visual, em que palavras/imagens oportunizem a criação de novas visualidades e visagens na relação com a fotografia. Imagens e escritas a se desenhar com/por experimentações escritas. Lugar de experimentação, dialogando e contribuindo para a criação desta amálgama coletiva. Com Deleuze, tomar da arte aquilo que resiste, e resistir educação por um estilo de escrita. “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha.” (DELEUZE, 1992, p.215). Deleuze problematiza um pensamento que resiste na/pela criação. A capacidade criativa manifesta-se em ação política quando nos convida a pensá-la enquanto força de um corpo que resiste à submissão, contra todas as forças que, ao nos atravessarem, nos querem fracos, tristes, servos e tolos. Resistência que se faz na/pela força de criar algo novo, que se instala nas singularidades do acontecimento como num devir. Revolucionário devir que resiste em obras de arte, em movimentos artísticos que operam em linhas de fuga, como máquinas de guerra. Linhas de fuga criando impropriedades na singularidade sem identidade, na busca por uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, por vir, Porque se os homens, em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma agora imprópria e insensata da individualidade, conseguissem aderir a esta impropriedade como tal e fazer do seu ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta, se os homens pudessem não ser-assim, não terem esta ou aquela identidade biográfica particular, mas serem apenas o assim, a sua exterioridade singular e o seu rosto, então a humanidade ascenderia pela primeira vez a uma comunidade sem pressupostos e sem sujeitos, a uma comunicação que não conheceria já o incomunicável (AGAMBEN, 1993, p. 52).

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Frente à força das imagens, praticar a resistência/existência na/pela criação, força das palavras neste encontro que devém foto-escrita-experimentação em/pela sua exterioridade singular. Referências AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Tradução de Antònio Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993. AMORIM, A. C. R. 'XUDomR &XUUtFXOR5HIUmR5HSHWLomR,PDJLQDomR ETD. Educação Temática Digital, v. 9, p. 324-331, 2008. ______. Mapeando a Educação Ambiental e a Formação de Professores pelos Esfacelamentos da Modernidade. Educação. Teoria e Prática (Rio Claro), Rio Claro, v. 9, n.16/17, p. 62-68, 2001. DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. KRAUSS, R. O fotográfico. Trad. Anne Marie Davée. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2002. LINS, D. A Escrita Rizomática. Revista Polichinello n. 10 - Por Uma Escrita Rizomática, 20 jun 2012. Disponível em: http://sibila.com.br/novos-e-criticos/a-escrita-rizomatica/5331 acessado em maio de 2013. WUNDER, Alik. In-ventos por entre áfricas, literaturas e imagens. Projeto de Pesquisa. 2012.

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( )... Alessandra Aparecida de Melo 1 Ana Bittencourt 2 Cláudio Camargo 3 Queria transformar o vento. Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto. Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física do vento: uma costela, o olho… mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz… Manoel de Barros

Este artigo traz pensamentos em torno de uma proposta expositiva para o 19o Congresso de Leitura do Brasil, movida por acontecimentos e reflexões do Núcleo de Leitura da Associação de Leitura do Brasil - ALB (FAEPEX - 2013) e do Projeto Fabulografias em áfricas-cartões-postais (Faculdade de Educação - Unicamp - FAEPEX - 2011). Desenvolvemos nestes projetos oficinas de criação e fotografia e poesia tendo a temática da cultura afro-brasileira como disparadora. Nestes encontros desenvolvemos e partilhamos pensamentos da equipe sobre imagens e sons com pessoas e grupos que lidam com a cultura afro-brasileira, e criamos coletivamente cartões postais e sonoros (impresso e em um blog) que possam gerar um fluxo de comunicação com outros grupos. Durante estes anos de oficinas pudemos nos deparar com situações deslumbrantes de criação coletiva de imagens fantásticas e versos, no entanto algumas situações levaram à reflexão sobre os locais onde a fala preconceituosa é explicitada e o silêncio e perturbador. A inspiração para a proposta da exposição ( )... é precedida de uma série de acontecimentos narrados a seguir. No primeiro banquete de imagens e palavras oferecido pelo Coletivo Fabulografias no Centro Cultural Casarão do Barão (Campinas, SP), no ano de 2010, tivemos a honra de contar com a presença de Tia Nice (Leonice Sampaio Antônio), expoente da cultura negra da cidade de Campinas, vendedora de acarajé nas feiras do Centro de Convivência, fundadora do Museu do Negro e também militante do movimento negro da cidade. Ela, em um relato emocionante, apresentou-nos um lenço, dispôs-se a ser fotografada e contou-nos sua trajetória desde a infância, sua tentativa de ser bolsista em um colégio de brancos e sua entrada como primeira operária negra em uma fábrica da cidade. Deste último episódio Tia Nice descreveu o desdém das operárias, seus julgamentos silenciosos e a opressão do racismo: - Negra, uma negra aqui? A boca calava, os olhos não. No entanto, este silêncio não durou muito, em poucos dias foram 1

Graduanda em Filosofia- Unicamp- Campinas – SP - [email protected] Graduanda Educação Física – Unicamp – Campinas – SP - [email protected] 3 Graduando Pedagogia – Unicamp – Campinas- SP - [email protected] 2

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pichados dezenas de xingamentos no banheiro, palavras ofensivas. Diante daquela parede Tia Nice demonstrou a força de um espírito que não pode facilmente ser alquebrado, que se forja da injustiça e jamais se dobra. Como resultado chamou o encarregado e disse-lhe que enquanto ele não visse o que havia acontecido, não voltaria ao trabalho, pois ela não havia feito aquilo e ninguém poderia acusar a "negrinha".

Figura 1- Tia Nice - Coletivo Fabulografias

Nil Senna artista popular campineira também nos brindou em muitos dos encontros com suas performances, histórias emocionantes e palavras que nos fizeram embotar a língua dentre tantas histórias de boi, de seca, de fome, de guerra e de paz proferidas na interpretação de "Ave Sapiens". Algumas que ainda martelam-nos a mente em um ecoar incessante:- "Vinha fazer um protesto, mas mandaram me calar. O negro quando cala perde o valor que tem".

Figura 2 - Nil Senna- Coletivo Fabulografias

Na Escola Estadual Miguel Vicente Cury, a primeira na qual trabalhamos, foi realizado em conjunto com os alunos do ensino médio bolsistas do PICjr Laís e Kildery uma série de

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ações com o intuito de ventar Áfricas e proliferar imagens. Uma das escolhas para a divulgação das oficinas foi a fixação de cartazes sobre o projeto que ficariam disponíveis para a intervenção dos alunos durante um período de tempo. Estes cartazes convidavam a uma intervenção anônima provocada pela pergunta: 'Que Áfricas ventam por você?", e neles foram escritos dizeres ofensivos. Em 2014, realizamos uma série de oficinas no Centro Cultural Casarão em Barão Geraldo para as quais convidamos os alunos da Escola Estadual Francisco Álvares. A escolha da divulgação foi uma conversa na biblioteca da escola em diálogo com as imagens do projeto. Durante esta apresentação pudemos ouvir os sussurros dos comentários racistas entre os alunos e ofensas em tom de piada. Ao longo das muitas oficinas e intervenções realizadas pelo projeto nos cartões postais apareceram muitas Áfricas. Por vezes uma África colorida e seus muitos guizos, formas e cores, mas escondem-se as Áfricas veladas, as Áfricas condenadas aos porões dos navios, presas a fome e guerras civis, contrabandeadas aos nacos em diamantes de sangue, com meninas aprisionadas, retalhadas por guerras tribais? As Áfricas que são ofendidas pela forma que seu nariz possui, pela revolta de seus cabelos, por suas formas e cores? Durante as oficinas percebemos que em lugares velados e anônimos este racismo mostra-se.. Tornou-se impossível ignorar tanto preconceito e tais observações foram expostas no II Seminário Quem tem Cor AGE no ano de 2013. Depois tanta violência explícita e velada retornamos repletos, retornamos ao que é calado e velado e revisitamos um dos lugares onde o racismo manifesta-se: o banheiro público. Com o intuito de resignificá-lo artisticamente, assim como vem sendo feito por artistas como Mariana Mara em "Sarau sanitário". “O nosso interesse por esse ambiente específico se deu por conta de o banheiro público ser um espaço de intersecção entre os domínios do público e do privado, no sentido de que a pessoa se encontra sozinha em uma cabine, embora a cabine seja de uso público.” (FRANCISCON , 2011).

Parênteses, seu corpo pede, intervém com imagens que são fruto de várias oficinas realizadas pelo Coletivo Fabulografias e Núcleo de Leitura ALB 4. A instalação-intervenção 4

[1] Equipe do Núcleo de Leitura (2012-2014): Prof. Dr. Antonio Carlos Amorim (professor responsável), Profa. Dra. Alik Wunder (coordenação), Profa. Dra. Alda Romaguera (pesquisadora colaboradora), Alessandra Melo, Cláudio Camargo, Ana Bittencourt, Beatriz Barbosa, Angélica Brotto Maicon Braga Campos. Equipe Coletivo Fabulografias (2010-2012): Bia Cavani Porto e Gustavo Torrezan (artistas visuais, Larissa Gaulia (bolsista SAE e estudante de engenharia de computação), Lais Fernanda Jaciane (estudante de pedagogia – bolsista SAE), Laura Regina Fernin (estudante de pedagogia – bolsista Pibic), Alessandra Melo (estudante de filosofia – bolsista SAE), Vinícius Bastos Gomes (estudante de música – pesquisa Pibic), Kildery Monteiro (estudante de ensino médio – bolsista Pibc Jr), Bruna Cristina Gama (estudante de ensino médio – bolsista Pibic Jr). Grupos e artistas convidados: Associação dos Benfeitores dos Bailarinos e Atores (ABAMBA) – Montagem: Navio Negreiro, Leonice Sampaio Antonio – Tia Nice do Acarajé – Ong NINA, Sebastião Vitos Rosa – Companhia de Santo Reis “Azes do Brasil”, Grupo de Samba “Geraldo Filme”, Guarda de Moçambique-

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traz projeções, sons e fixa imagens e textos em formato grande na parte interna do banheiro e das cabines com o objetivo de partilhar com os frequentadores as criações coletivas que resultaram em cartões postais e sonoros. A intervenção dos frequentadores neste material ocorre para que novas Áfricas sejam fabuladas, ventadas e incorporadas e associadas à instalação e gerem um fluxo de comunicação com os outros grupos anteriores. O processo de intervenção ao ser fotografado em todos os dias do evento, tem a intenção de captar o gesto inacabado desta construção artística coletiva. Referências BARROS, Manoel de. Ensaios Fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2001. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. WUNDER, Alik. Áfricas em ventos: fotografia e fabulação em criações de cartões-postais. Studium (UNICAMP), v. 39, 2011. WUNDER, Alik ; DIAS, Susana Oliveira . Fabulografias: in-ventar por áfricas-cartõespostais. In: Amorim, Antonio Carlos; Marques, Davina; Dias, Susana Oliveira. (Org.). Conexões: Deleuze e vida e fabulação e .... Petrópolis: De Petrus, 2011, v. , p. 89-102 FRANCISCON, Taís. PERINA, Ivan de Salles. PIZZI, Luana Ercolin, Marcelo El Khouri Buzato. Língua, Literatura e Ensino, letramentos marginais na universidade: o caso das pichações em banheiros, 2011.

mirim de Paulínia, Comunidade Jongo Dito Ribeiro – Projeto duas Marias e uma Edith, Matriarcas do Samba de Bumbo de Campinas, Nil Sena, Grupo Cultural “Netos de Bandim” (Guiné-Bissau), Marli Wunder (fotografia e montagem do espaço), Marilde Stropp (fotografia), Marcelo Albuquerque Pupo ( vídeo), e Odair Mechi Soares (montagem do espaço), E. E. Vicente Cury, EE Francisco Álvares;

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ORALIDADE E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA LEITURA DE POESIA Alessandra Cardozo de Freitas 1 Em voz alta o som é diferente, é melhor de ouvir. André

A epígrafe que inicia este trabalho é parte de uma postagem, em fórum eletrônico, desenvolvida por um dos aprendizes participante de nossa pesquisa sobre a mediação na leitura de poesia. Nesse trecho da postagem, o aprendiz André (pseudonônimo) nos faz refletir sobre a voz como mobilizadora da interação do leitor com a poesia. Sobretudo, nos faz compreender que a leitura oral permite uma experiência singular com o som, elemento constitutivo do texto poético, que se torna “melhor de ouvir”. A diferenciação no som percebida pelo aprendiz é reveladora da mediação realizada, particularmente dos aspectos prosódicos abordados pela mediadora durante a oralização do texto, que motivou a escuta pensante. Esse fenômeno catalizador que a voz exerce sobre o aprendiz constitui o foco de nossa atenção neste trabalho. Os dados aqui analisados são provenientes de um trabalho de intervenção, de natureza qualitativa e longitudinal, realizado com aprendizes do ensino fundamental, de uma escola pública de Natal/RN. Os aprendizes participantes da pesquisa foram acompanhados durante o 4º e o 5º ano de escolarização, em sessões de leitura de poesia e sessões de postagem em fórum eletrônico, sob a mediação da pesquisadora. Para destacar a voz como elemento mobilizador de engajamento e construção de sentidos na leitura de poemas, recorremos as postagens no fórum eletrônico da segunda sessão de leitura, realizada no mês de abril de 2012. O poema selecionado pelos aprendizes foi “Vou, voo, e volto” (COLASANTI, 2007, p. 23): Vou, voo, e volto Cavalo de vento cavalo de ar salto na sela e vou galopar. Galopo na praia galopo no mar a crina é uma vela que faz navegar. Navega na onda navega no sal 1

Doutora em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, [email protected].

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a vela abre asa me leva a voar. Voando no alto começo a cansar ao ver minha casa já quero voltar. Na abordagem do poema “Vou, voo, e volto”, propomos as seguintes estratégias de mediação: discussão de pré-leitura; em seguida, os aprendizes foram solicitados a lerem em silêncio e, depois, em voz alta o poema, com o objetivo de estimular a leitura individual, sem influência prévia de um modelo; após a leitura silenciosa dos aprendizes, a pesquisadora fez a leitura em voz alta; concluída a etapa de leitura, foi realizada a discussão de pós-leitura; realizada a sessão de leitura e discussão, os aprendizes foram registrar no fórum eletrônico comentários sobre o poema. Todas as estratégias foram conduzidas pela pesquisadora e planejadas de acordo com a experiência de leitura por andaime (GRAVES e GRAVES 1995). No momento de leitura oral, foco de nossa atenção, a pesquisadora buscou explorar a modulação da altura, intensidade, tom, duração e ritmo da oralização do poema (CASTELOPEREIRA, 2003, p. 53), de modo que os aprendizes identificassem o movimento de galope do cavalo. Nessa mesma direção, os aprendizes também foram mobilizados a ler o poema estabelecendo o sentido de galope. Eles foram divididos em dois grupos, com funções diferenciadas: um grupo repetia o título do poema, enquanto, o outro, lia o poema de maneira apressada. Os resultados da prática dessas estratégias foram expressos nas postagens que os aprendizes realizaram no fórum, entre as quais destacamos: Eu gostei muito do título e gostei também de ler a poesia que a gente leu hoje é muito interessante que fala de voar fala de crina de cavalo. O que eu mas gostei foi a professora fez uma rima que se transformou em uma canção e gostei de ler jumto com a turma. (Barbara, 2012) Eu gostei porque era muito bonito e também paresia uma música. Davi (2012) Esse poema ele é muito interessante para nós eu achei esse poema muito legal por que ele tem umas rimas muito legais como esse galopo na praia galopo no mar a crina é uma vela que faz navegar. João (2012)

Nas três postagens apresentadas, os aspectos prosódicos são evidenciados pelos aprendizes, que sugerem funções distintas para a sonorização do poema: oportunizar musicalidade ao texto; imprimir beleza às palavras organizadas em versos; possibilitar a construção de sentidos na interface voz e imagens. Nesse processo, é possível depreender o

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quanto a oralidade mobiliza a construção de sentidos pelos aprendizes. Sentidos que dão corporeidade ao poema, pois evidencia seus sons, ritmos, imagens e sentidos. Pound (1997, p. 40 - 41) refere-se à literatura como linguagem carregada de significado e explica que, na poesia, [...] as palavras ainda são carregadas de significado principalmente por três modos: fanopéia, melopeia, logopéia. Usamos uma palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a saturamos de um som ou usamos grupos de palavra para obter esse efeito.

Articulando o pronunciamento do autor às postagens dos aprendizes, podemos afirmar que a oralização do poema pelo mediador, quando adequadamente realizada, permite que os aprendizes explorem os três modos de constituição do poema expressos por Pound (1997), atribuindo-lhe corporeidade. Segundo Amarilha (2010, p. 91), O texto que se oferece para a leitura oral é duplamente exigente. Apresentase em sua materialidade linguística como uma partitura a ser lida, em que aberturas e limites são indicados, e solicita em sua natureza acústica a presença de uma voz que a sonorize. A voz que emerge na leitura oral expõe, literalmente, um aspecto da corporeidade do texto.

Como observamos, a oralização da natureza acústica do texto contribui para a significação textual, conferindo-lhe corporeidade. Os aprendizes da pesquisa, inclusive, motivados pelo modo como a pesquisadora leu oralmente o poema, propuseram uma situação de leitura oral coletiva, usando o próprio corpo para expressar o som do galope do cavalo, principalmente ao bater as mãos nas pernas durante a leitura. Esse exercício de improvisação, acolhido pela pesquisadora, revela a escuta pensante (SCHAFER, 2011) manifesta pelos aprendizes. Pensante, criativa e participativa. Nesse contexto, instaura-se o sentido de comunidade. Ou seja: a leitura oral constitui estratégia que acolhe os leitores em uma relação de intimidade com o texto, em que o prazer da coautoria vem à tona (JAUSS, 2002). Acrescentamos, ainda, o entendimento de que, para o leitor aprendiz, a oralização constitui a primeira interpretação do texto escrito. O modo como o mediador oraliza o texto, denota significação. Assim, compreendemos que a leitura em voz alta deve ser uma habilidade básica do professor. Esse fato não exclui, por sua vez, a leitura silenciosa, que deve anteceder a leitura oral, como movimento de acolhida do escrito que será oralizado. Somos do ponto de vista de que essas duas práticas devem ser valorizadas pelo professor no tratamento da leitura em sala de aula, com vista à formação consistente do aprendiz como leitor. Também advertimos que na prática da leitura oral pelo mediador, o aprendiz assume sua condição de leitor da palavra oralizada, explorando qualidades do texto poético, como a fanopéia (POUND, 1997). Essa situação foi descrita por um dos aprendizes da pesquisa:

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Eu achei muito legal porque eu conseguir viajar no mundo da imaginação eu vii na minha mente um cavalo bem bonito voando no céu com uma crina parecida com a vela do barco na minha imaginação ele poderia voar no céu e poderia nadar no mar o meu cavalo era bem bonito galopando no céu e no mar. (SILVIA, 2012).

Não seria esse um dos propósitos da escola no trabalho com a leitura de poesia: articular voz e escrita, voz e imaginação, em uma ação prospectiva de formação leitora? Constitui, portanto, papel do mediador fazer esse movimento de aproximação entre oralidade-escritaimaginação. Isso pode acontecer na leitura oral de poesia. Esse é o convite que deixamos para os professores: tornar a voz elemento agregador de sons, sentidos, imagens, palavras, textos e leitores. Referências AMARILHA, M. Literatura e oralidade: escrita e escuta. In; DAUSTER, T; FERREIRA, L (Orgs.) Por que ler? Perspectivas culturais do ensino da leitura. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. CASTELO-PEREIRA, L. Leitura de estudo. Campinas: Alínea, 2003. COLASANTI, M. Minha ilha maravilha. São Paulo: Ática, 2007. GRAVES, Michel F., GRAVES, Bonnie B. The scaffolded reading experience: a flexible framework for helping students get the most out of text. Reading. v. 29, n. 1, p. 29-34. Apr. 1995. JAUSS, H.R. O prazer estético e as experiências fundamentais da poíesis, aisthesis e katharsis. In: COSTA LIMA, L. A literatura e o leitor: Textos da estética da recepção. 2ed. Revista e Ampliada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. POUND, Ezra. ABC da literatura. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1997. SCHAFER, M. O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991. http://pesquisaepoesia.ativoforum.com

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O ACESSO À LITERATURA COMO UM DIREITO: PRÁTICAS DE LEITURA LITERÁRIA COM ALUNOS SURDOS Alessandra Gomes da Silva 1 Iniciamos o presente trabalho lembrando que o prazer de ouvir e de contar histórias é inerente ao próprio ser humano. Imersos em costumes da tradição oral, ouvimos e narramos nossas histórias. Podemos encontrar, em nossa memória afetiva, lembranças de diversos textos que, desde nossa tenra idade, nos constituíram. Assim foram passados costumes, ritos e tradições. Assim se construíram saberes, valores e sentimentos que marcaram nossa identidade e a nossa noção de pertencimento ao grupo. Desse modo, Fernandes (FERNANDES, 2009, p.50) ressalta a importância do narrar, pois, segundo a autora, “não podemos compreender nossa cultura sem compreender as histórias que estão sendo contadas e como”. Mais adiante, complementa que “é em meio a esse contar e recontar de histórias que todos fomos formados”. O presente trabalho, então, propõe lançar um olhar sobre as atividades desenvolvidas com os textos literários, tendo como foco alunos surdos no contexto do Ensino Fundamental no Instituto Nacional de Educação de Surdos. Inicialmente, porque, quando pensamos em pessoas surdas, sempre que se estuda a história desses sujeitos, pode-se notar que a dificuldade linguística tem sido apontada como o principal problema enfrentado por tais indivíduos. A não aceitação da língua de sinais como verdadeiramente uma língua, um veículo eficaz para a comunicação, capaz de expressar diferentes emoções, tal como qualquer outra língua, relegou muitos surdos ao isolamento, afastando-os do convívio social, pois como muitos não chegavam a possuir uma língua oral estruturada, acabavam sem compreender o que acontecia ao seu redor e durante muito tempo foram vistos como pessoas incapazes. Nesse sentido, com a publicação da lei de Libras (Língua Brasileira de Sinais, 2002) 2, agora com o status de língua, reconhece-se, por conseguinte, o direito de o surdo ter acesso a uma língua que seria sua língua natural, ponto de partida para qualquer outra aprendizagem. De acordo com a visão de Skliar (SKLIAR, 1998), que compreende a surdez como diferença, tal aceitação acarretará no reconhecimento de uma identidade híbrida, com traços culturais próprios, tendo como base o uso de um meio gesto-visual de comunicação por esses indivíduos. Nesse sentido, ao pensar na comunidade surda e o seu contato com as narrativas, penso nas palavras de Benjamin, em o narrador, (BENJAMIN, 1996), em que o autor aborda a 1

Desde 2006, é professora de Educação Básica do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), Rio de Janeiro e, atualmente, é mestranda do programa de pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-RJ. E-mail: [email protected] 2 LIBRAS é a abreviação utilizada pelos surdos brasileiros para designar a Língua de Sinais do Brasil. A LIBRAS foi oficializada pelo decreto-lei 10.436 de 24/04/2002 cujo texto foi regulamentado pelo decreto nº 5.626, publicado em 23/12/2005, no Diário Oficial da União, nº 246 (pág. 28, 29 e 30).

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dificuldade de narrar, de relatar sua experiência por meio da linguagem. Quanto aos surdos, vejo, no entanto, uma celebração dessa possibilidade de se narrar, uma vitória na luta por poder passar suas experiências por meio de uma língua comum – a Língua de Sinais. Ainda precisamos levar em consideração que os surdos não constituem uma comunidade geograficamente definida e, em grande parte, há uma convivência, ora de diálogo, ora de conflito, com o grupo (majoritário) de ouvintes. Tal grupo vivencia, pois, uma experiência de bilinguismo compulsório, uma vez que são obrigados a aprender a língua portuguesa e se tornar bilíngues. Com o passar do tempo, as narrativas se transformaram, novas linguagens foram incorporadas ao nosso cotidiano e, com elas, novas práticas culturais. O desenvolvimento das novas tecnologias impulsionou também a produção de materiais bilíngues, gerando uma visibilidade maior da língua de sinais e das produções de surdos. Tais produções envolvem a tradução de textos literários para a Libras, realizada por tradutores/intérpretes de língua de sinais, ou a contação de histórias, geralmente, realizada por profissionais surdos. Além disso, há, em um número menor, produções autorais de surdos. Nesse contexto, no tocante à literatura e às novas tecnologias, assinalamos Holanda (HOLANDA, 2009) que também aponta para a questão de que, ao mesmo tempo em que houve um desenvolvimento de novos meios de difusão da informação e comunicação, houve uma inédita pluralidade de vozes (...). Dicções étnicas, etárias, regionais, definidas por preferências sexuais, políticas, de classe, comportamento, “atitude”, e mais uma gama infinita de posicionalidades, mostram não apenas a vitória política das minorias mas também um fato novo e de insofismável importância: entram agora em cena a presença de novas competências e saberes definindo outros códigos e valores no circuito da criação e circulação dos produtos literários

Isso significa dizer que, paralelamente ao desenvolvimento tecnológico, houve uma inegável possibilidade maior de diversificação e circulação das produções literárias, tornando possível, e desejável, a inserção de diferentes grupos sociais, principalmente de grupos historicamente ‘excluídos’. Tais questões nos fazem pensar nosso trabalho com a literatura, buscando estimular uma perspectiva multicultural e de respeito às diferenças. No tocante ao trabalho com os alunos surdos, então, tornam-se possíveis ferramentas de ensino os vídeos veiculados por diversos sites de compartilhamentos tais como o You Tube, por exemplo. Podemos compreender, de inicio, o uso de narrativas visuais. Com vídeos formados basicamente por imagens, tais como, os curtas Maria Flor, Vida Maria ou Paperman, que mesmo sendo animações, permitem a discussão de conceitos narrativos, facilitando a compreensão do aluno e que podem ser retomados quando o trabalho for com um texto escrito. Além disso, não podemos esquecer que nossos alunos têm nível de proficiência variado em língua de sinais e a imagem torna-se texto, gerando novas possibilidades de interpretação. Desse modo, podemos abordar diferentes características dos textos narrativos como: diferentes personagens, espaço, o tempo, o enredo, estruturas lineares e não lineares, entre

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muitos outros. A caracterização da cena que compõe a narrativa é um exercício importante e comum, uma vez que nossos alunos são usuários de uma língua gestual e sabemos que a dramatização é um dos pilares dessa língua que se estrutura visualmente. Uma segunda possibilidade de trabalho diz respeito ao uso das narrativas em Libras. Tais narrativas, ainda em pequena quantidade, como mencionadas anteriormente, envolvem traduções de textos literários para a Libras, contação de histórias ou, ainda, textos literários originais produzidos por surdos. Nesse sentido, é necessário destacar que ainda que tenhamos o texto em língua de sinais e não apenas em língua portuguesa escrita, tal fato não anula as dificuldades decorrentes das especificidades de um texto literário. Desse modo, continua indispensável a presença de um professor, mediador experiente, que transite pelos dois universos linguísticos, e que realize atividades que promovam o debate do texto e as interpretações possíveis a partir dele. Além disso, o trabalho realizado com a contação de histórias pelos próprios alunos é interessante, pois pode possibilitar que eles transitem de uma língua linear, como é o português, para a Libras, como acontece na maioria das atividades que os alunos surdos realizam. O uso de câmeras de vídeo, ou mesmo câmeras fotográficas, permite que os alunos possam ver suas narrações, avaliando o trabalho realizado e propondo novas formas de compreensão para a narrativa lida. É pensar, nesse sentido, em formas de integrar diferentes textos, em novas linguagens e de diversas estéticas, desenvolvendo competências de análise e reflexão no contexto escolar, promovendo ainda o fundamental trânsito entre a língua de sinais e a língua portuguesa escrita e vice-versa. Assim, destacamos a busca permanente por estratégias que permitam transpor os desafios inerentes ao aprendizado da leitura e de escrita em contexto bilíngue. Nesse sentido, sabemos da importância da literatura como um potencial mediador cultural, despertando o interesse de nossos alunos para a leitura e, ainda mais, propiciando a inventividade e o prazer do lúdico no processo de aprendizado linguístico. Espera-se, por fim, justificarmos nosso interesse em discutir tais questões uma vez que a literatura também contribui efetivamente para a construção de saberes e subjetividades importantes para nossos educandos surdos, sobretudo, no Ensino Fundamental. Reforça-se tal complexidade pelo fato de não dispormos ainda de muitos materiais adequados para o trabalho com nossos alunos. Materiais nos quais se considerem suas especificidades linguísticas, os seus interesses e suas necessidades, contribuindo na construção de práticas de leituras literárias mais democráticas e produtivas. Referências BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a Obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução Sergio Paulo Ruanet. São Paulo, Brasiliense, 1996. (p.197-221)

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FERNANDES, Adriana Hoffmann. Infância e cultura: o que narram as crianças na contemporaneidade? Brasil, 2009. 241 f. Tese (Doutorado em Educação), Programa de Pósgraduação em Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. HOLLANDA, H. Buarque. Quem tem medo da tecnologia? Disponível Acesso em 25 de maio. 2013.

em:

SKLIAR, Carlos. Bilingüismo e Biculturalismo: uma análise sobre as narrativas tradicionais na educação dos surdos. Revista Brasileira de Educação, 8, 1998. (p.44-57)

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ENSINO MÉDIO PROFISSIONALIZANTE: UM ESTUDO SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA Alessandra Pereira Gomes Machado 1 Marluce de Souza Lopes Santos 2 Acreditamos que as práticas de leitura sejam relevantes no processo de aquisição de novo habitus – considerado por Bourdieu como o “sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2005, p. 191). A partir de estudos, descobrimos que a leitura possui uma história, que o leitor se apropria das leituras realizadas de diferentes formas e de lugares sociais diversos, que a leitura nem sempre foi livre e desejada, o que explica livros e leitores tão perseguidos em diversos períodos históricos. Dessa forma, percebe-se que a leitura não tem uma aparente neutralidade e um caráter universal (DARNTON, 2010). As práticas de leitura como categoria de análise das práticas escolares As escolas de educação profissional possuíam um objetivo mais social do que técnico, tinham um caráter de terminalidade e não se articulavam com os demais graus de ensino. Assim, era formalizada a dualidade estrutural na educação técnico-profissional (CUNHA, 2000; SOARES, 2003). Em 2007, permitindo-nos um salto histórico nesse estudo, o governo publica o Decreto 6.302 que institui o Programa Brasil Profissionalizado, com a ideia, como em outros momentos da história da educação profissional, para atender a uma crescente exigência de mão de obra qualificada no mercado brasileiro e em 2008 é articulada a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, em que as Escolas Agrotécnicas, Técnicas e os Centros Federais de Educação Tecnológica formam uma única rede, autorizando os Institutos a ministrarem cursos de graduação e pós-graduação. As discussões, portanto, sobre a falta de leitura do brasileiro, que giram em torno também da qualidade do ensino, levam o olhar para a função cultural da escola em face da diversidade da clientela. Para tanto sentimos a necessidade de investigar as práticas escolares como fruto de uma cultura escolar, dando destaque à função cultural da escola. Entendendo cultura escolar como “um com conjunto de normas” e “um conjunto de práticas” próprias da escola (JULIA, 2001). O conceito de cultura escolar tem corroborado 1

Mestre em Educação (UFRRJ). Professora efetiva de Português do Codap/UFS. Membro do grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação: intelectuais da educação, instituições educacionais, práticas escolares (NPGED-UFS). Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Pedagoga, especialista em Planejamento Educacional. Técnica em Assuntos Educacionais da UFS, membro do grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação: intelectuais da educação, instituições educacionais, práticas escolares (NPGED-UFS). Endereço eletrônico: [email protected].

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para uma pesquisa que desnaturalize a escola e a veja como um espaço para a educação formal, mas também como uma instituição de socialização. Nessa perspectiva, a leitura é entendida como um processo cultural em que "o significado dos textos depende das capacidades, das convenções e das práticas de leitura próprias das comunidades que constituem, na sincronia ou na diacronia, seus diferentes públicos" (CHARTIER, 2009a, p. 37). O trabalho de identificação das práticas de leitura – o percurso metodológico Essa pesquisa 3 foi realizada no Instituto Federal Campus São Cristóvão-Sergipe, antiga Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão-Sergipe (EAFSC). Os dados apresentados foram coletados a partir da aplicação de um questionário aos sujeitos envolvidos na pesquisa. Os 66 sujeitos integrantes dessa pesquisa cursavam, em 2012, o 1º ano do curso Técnico em Agropecuária, sendo a faixa etária desses alunos entre 15 e 19 anos, a maioria de 15 anos que atende à idade/série/ano cursada. As primeiras questões do questionário foram elaboradas com o propósito de caracterizar os sujeitos e as demais de identificar o tipo e o hábito de leitura dessa prática. Identificação das práticas de leitura – a possibilidade de uma análise A partir das respostas 4 dos sujeitos da pesquisa nos questionários sobre o hábito de leitura, obtivemos os seguintes resultados: 5 alunos não se identificaram como leitores; enquanto 59 indicaram que a internet é o principal meio de leitura, utilizando por mais de 1 hora, principalmente, as redes sociais; 52 sujeitos leem livros, sendo que 17 indicaram que leem pelo menos 1 livro por mês. Na caracterização do gosto da leitura, os sujeitos indicaram que leem para adquirir conhecimento e informação; e o tipo de leitura de que mais gostam são revistas de notícia. Ao comparar esses dados, percebemos a relação existente entre o gosto e o tipo de leitura, sendo as revistas de notícia as mais indicadas para manterem-se informados e adquirirem conhecimento. Ao relacionar esse resultado com os dados da caracterização do hábito de leitura, identificamos uma contradição, por não indicarem a revista como um hábito. Na perspectiva de analisar as práticas de leitura a partir da cultura escolar, investigamos qual disciplina escolar apresenta atividades de leitura. Os resultados mostram que as disciplinas da área de Linguagens Códigos e suas Tecnologias são as que mais utilizam a prática de leitura em sala de aula, sendo Língua Portuguesa (54) e Literatura (36) as de maior ocorrência. No item “outros” do questionário, os alunos citaram as disciplinas da área 3

Artigo produzido com os dados coletados pelo aluno-pesquisador Lucas Almeida Francisco do Codap da UFS, como bolsista do programa PBIC Jr. apoiado pela FAPITEC/SE. 4 Os sujeitos da pesquisa não responderam todas as perguntas desse questionário e, em algumas questões, puderam optar por mais de um item.

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técnico-profissionalizante, como: Zootecnia, Avicultura, Apicultura, Agroecologia, Piscicultura, Olericultura e Agricultura geral. Quando questionados se as práticas de leitura interferem na sua formação e na sua vida, os sujeitos da pesquisa apontaram que “adquirir mais conhecimento”, “ficar mais informado”, “obter uma boa formação” e “melhorar o vocabulário”. Apenas 3 não emitiram opinião e 4 declararam que a leitura “não” interfere em nada na sua vida. Os sujeitos da pesquisa também foram questionados sobre as melhores estratégias que os professores poderiam utilizar como estímulo à leitura. Dentre as sugestões de maior ocorrência, encontramos: “temas de interesse do aluno”, “mais leitura em sala de aula”, “sugerir leituras” e “dinâmicas”. Sete sujeitos não atribuíram resposta à questão. Alguns apontaram sugestões que acreditamos estar ligadas ao tipo de leitura de que gostam: “usando piadas em quadrinhos” e “leituras de mangás”. Na questão que se pede para dar um conselho a amigos (as) do sujeito que não gostam de ler, identificamos o incentivo da leitura para a formação, como já indicou em outros pontos do questionário, mostrando uma coerência nas respostas. As práticas de leitura: alguns desafios a serem desvendados Estudar a cultura escolar nos permite ampliar nosso olhar sobre as práticas escolares, possibilitando reflexões sobre nossa prática pedagógica, enquanto professor; além de perceber a importância da leitura para formação do aluno leitor. Analisar as práticas de leitura dos alunos é poder rever a postura enquanto formador e incentivador desse hábito, além de ter a oportunidade de perceber a relação dos alunos com a introdução das novas tecnologias no cotidiano e no ambiente escolar. Concluímos que há hábito de leitura entre os sujeitos da pesquisa, sendo a internet o meio mais utilizado e que apesar da mudança no hábito da leitura com a revolução tecnológica, os alunos apontam a necessidade de serem motivados constantemente pelos professores. O hábito de leitura dos alunos foi caracterizado por conhecimento e informação, por leitura diversificada, por hábito de leitura constante, sendo o tipo de leitura que apontaram como preferido os de revista de notícias. Não foi possível identificar esse tipo de leitura como formador de habitus, uma vez que não se trata de uma leitura socialmente compartilhada pelos jovens. As afirmações dos sujeitos podem indicar status, mérito, como afirma Chartier (2009b, p. 84) que “pela representação do livro, o poder funda-se sobre uma referência ao saber. Assim, ele se mostra ‘esclarecido’”. Analisando a prática de leitura no ambiente escolar, observamos que as disciplinas que mais utilizam a prática de leitura em sala de aula são Literatura e Língua Portuguesa. Relacionando a cultura escolar dessas disciplinas que são baseadas em leituras de romances de períodos literários com a prática de leitura prazerosa, percebemos que esse tipo de leitura não é citado pelos alunos, mostrando que a prática escolar distancia do cotidiano.

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Percebemos que a metodologia para a prática de leitura, segundo os sujeitos da pesquisa, é bem diversificada, sendo a mais utilizada em sala de aula a leitura de pequenos trechos em voz alta. Essa prática pedagógica, segundo sugestões dos alunos, fortalecer-se-ia se associada à leitura de “livros atualizados”, “indicação dos livros preferidos do professor para os alunos”, “livros que promovam o lazer, o prazer e o conhecimento”. Entendemos que os sujeitos da pesquisa veem a prática da leitura assim como Darnton (2010, p. 177) para “prestar-se a ajudar um homem a progredir no mundo” seja pelo “aumento do poder de argumentação, comunicação e análise crítica” ou por “abrir caminhos e horizontes”, enfim para o crescimento pessoal. Referências BOURDIEU, Pierre. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: A economia das trocas simbólicas. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 183-202. CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009a. _______________. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 2009b. CUNHA, Luiz Antônio. O ensino industrial-manufatureiro no Brasil. Revista Brasileira de Educação, maio/jun/jul/ago, nº 14, 2000, p.89-107. DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FELGUEIRAS, Margarida Louro. Cultura escolar: da migração do conceito à sua objectivação histórica. In: FELGUEIRAS, Margarida Louro; VIEIRA, Carlos Eduardo (Eds.) Cultura escolar, migrações e cidadania. Porto: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e autores, 2010. p. 17-32. JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de História da Educação. Campinas: Editora Autores Associados, nº 1, Janeiro/Junho, 2001, p. 9-43. SOARES, Ana Maria Dantas. Política educacional e configurações dos currículos de formação de Técnicos em Agropecuária, nos anos 90: regulação ou emancipação? Tese de Doutorado, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2003.

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AÇÃO TRANSDISCIPLINAR: POSSIBILIDADE DE ATENUAR AS DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS ALUNOS DO ENSINO MÉDIO NA PRODUÇÃO ESCRITA Alexandra Cardoso Rinaldi da Silva 1 Márcia Regina Galvão 2 José Arnaldo de Macedo Júnior3 Justificativa Em 2013, alunos do 3º. Ano EM da EE. Dep. Benedito Matarazzo, S. J. Campos, SP, ao produzirem textos dissertativo-argumentativo, tangenciavam ou fugiam do tema proposto, assim como apresentavam o desenvolvimento comprometidos pela ausência de argumentos coesos e ausência de proposta de solução. A partir disso, foi detectado pelo professor de Português que a falta de domínio de posicionamento frente ao tema prejudicava a elaboração e desenvolvimento de tese e a construção de argumentos que defendem um posicionamento. Partindo do pressuposto de que os estudantes têm conhecimento de mundo e de que eles têm posse do conhecimento acadêmico oferecido ao longo dos onze anos de escolaridade básica, foi visto também que tais saberes não eram utilizados como bagagem na construção tanto da tese quanto dos argumentos de sustentação. Não havia entrosamento entre as áreas do saber assim como entre discursos por elas disponibilizados, de maneira que os alunos quando tinham de resgatar dada informação não a fazia de maneira contextualizada. Percebeu-se que os conhecimentos acionados pelos alunos, no momento da escrita, baseavam-se no senso comum, expresso em vocabulários tais como: atualmente, todo mundo, coisa, algum, entre outros. Com isso, entendeu-se que ante a necessidade de resgatar tais informações, seria necessário dar oportunidade aos alunos de produzirem textos que viabilizassem a construção de sua identidade através do eu sujeito autor, uma vez que eles precisavam deixar essa situação por meio da leitura de forma eficaz para então, acionar conhecimentos para dar boa justificativa daquilo que acreditam. Já que a primeira qualidade de um texto é a unidade (KOCH 2006). A qualidade é um dos mais importantes recursos argumentativos, caso contrário o texto torna-se dispersivo, cheio de informação desencontrada, não é entendido por ninguém. O texto fala tudo, mas não fala nada. (PLATÃO e FIORIN 2006). Sabendo-se que muitos alunos fariam o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e que este reclama aptidão a compreender a matriz de produção de texto, a proposta de redação visa aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento a fim de desenvolver o tema e a estruturação do gênero dissertativo-argumentativo, portanto, foi constatado que os alunos não 1

Licenciada em Letras/Univap, S. J. dos Campos, SP. [email protected] Licenciada em Letras/Univap, S. J. dos Campos, SP. [email protected] 3 Licenciado em Sociologia/UNESP, Araraquara,SP e História/Univap, S.J. dos Campos, SP. [email protected] 2

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estavam preparados para atender as expectativas que o Exame pré-determina em seu edital relacionado à competência leitura e escrita. Se o objetivo é formar cidadãos capazes de utilizar a escrita com eficácia, que tenham condições de assumir a palavra também para produzir textos adequados, é preciso organizar o trabalho educativo para que experimentem e aprendam isso na escola. (PCN, 1997:48)

Enfim, os alunos analisados serviram como fonte de estudo e indicaram aos professores que estes precisavam adaptar, em curto prazo, as exigências de currículo do Ensino Médio em concomitância com as competências e habilidades cobradas pelo ENEM. Para tanto, um projeto transdisciplinar foi elaborado e executado a fim de amenizar as problemáticas apontadas. Edgar Morin, em Pierre Weil, dispõe que o conceito de transdiciplinaridade está atrelado a comunicar os saberes sem operar a redução deles; tal definição nos concede uma visão ampliada do trabalho docente, uma vez que tanto as disciplinas quanto os conteúdos que outrora eram apresentados em um ambiente limitado por paredes e enjaulados em horários e oportunidades distintas agora passa a ser apresentado como a criação de oportunidades para a comunicação entre as diferentes linguagens, portanto, entre as ciências numa ação que transpõe os moldes do ensinar para aprender. Para KLEIN (1998), “Não se deve esperar que os alunos integrem qualquer coisa que o corpo docente não possa fazer ou faça ele mesmo.” sendo assim, a docência transdisciplinar deve não impor sua concepção de ensino e sim levar o aluno a transpor as informações e conteúdos aprendidos de um local ao outro, ou seja, de um campo, área do saber a outra. Para tanto, o reforço da fala de Klein está na realidade do homem quando a este é requerida aplicabilidade do saber adquirido em situações adversas da vida. Coube, portanto, a realização de um trabalho docente que integrou as disciplinas Língua Portuguesa, Sociologia e Filosofia como oportunidade para levar tanto o aluno a refletir sobre os conceitos apresentados em uma proposta de produção textual transdisciplinar quanto organizar e construir uma tese pautada em argumentos formulados em coerência com os conceitos filosóficos empregados nas relações sociais. Para o desenvolvimento do trabalho docente, foi elaborada uma SD (Sequência Didática) em forma de módulos proposta pelos autores genebrinos Dolz & Schneuwly (2004) a qual foi da competência da Língua Portuguesa o ensino da organização das ideias e a estruturação destas em detrimento das necessidades da construção frasal e do gênero argumentativo. Já a Filosofia atentou para além das linhas construídas pelos grandes filósofos estudados a ordenação das ideias baseadas na indução e dedução. À Sociologia foi dada a competência de fazer uma análise sobre o conceito de cidadania. “Criar contextos de produção precisos, efetuar atividades ou exercícios múltiplos e variados: é isto que permitirá aos alunos apropriarem-se das noções, técnicas e instrumentos necessários ao desenvolvimento de suas

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capacidades de expressão oral e escrita”. DOLZ, NOVERRAZ & SCHNEUWLY(2004, p.2)

Projeto Pautado na SD e no trabalho Transdisciplinar a proposição de formar produtores de texto de autoria viabilizou a ressignificação dos conteúdos ensinados em Sociologia e Filosofia e estes eram integrados no Português tanto na interpretação dos textos fonte quanto na da proposta de produção de texto. Foi competência da Filosofia o ensino da interpretação dos enunciados e a reflexão das situações contextualizadas pelos alunos a partir das ideologias do livre-arbítrio de Skinner e o determinismo de Karl Marx e ainda o princípio Kant a despeito do entendimento a partir de um objeto em seu conceito. Desta forma, ao introduzir temas de redações ou argumentos constituídos no senso comum, os alunos foram confrontados em suas próprias hipóteses a fim de chegarem ao cerne do raciocínio pautado uma lógica coesa em seu conceito. Já a Sociologia, em domínio do propósito aplicado em Filosofia, apegou-se nas questões relacionadas ao contexto político, ambiental e comportamental das últimas gerações e a elas aplicou os conceitos dos Direitos Civis e os Humanos consolidados a partir da Rev Francesa. E, também confrontou aos alunos de maneira que eles passaram a compreender a sociedade como um fenômeno macroestrutural e desta forma deixaram de ter visões pautadas no senso comum, cedendo lugar a um universo de raciocínios coesos como tange a lei. Coube ao Português integrar e ressignificar os saberes das demais disciplinas envolvidas e associá-las ao ensino das habilidades D7,8e15 (Ident.tese, estabelecer relação entre tese e argumento de sustentação e relação lógico discursiva através da conjunção) mais o ensino das especificidades do gênero dissertativo-argumentativo. Conclusão As ações que pautaram esta SD consolidada em ações transdisciplinares favoreceu satisfatoriamente a construção de textos de autoria dissertativo-argumentativo escrito por alunos em fase pré-Enem, ao passo que se ignorado tanto dificuldade quanto os princípios teóricos aos quais o projeto foi alicerçado a escola não cumpriria o que tange o papel de formar cidadãos capazes de utilizar a escrita como eficácia através de um trabalho docente organizado, educativo, experimentado e aprendido. Referências BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Média Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasíla: Ministério da Educação /Secretaria da Educação Fundamental. 1997

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BUNZEN, Clécio. MENDONÇA, Márcia. orgs., PORTUGUÊS NO ENSINO MÉDIO E FORMAÇÃO DO PROFESSOR. Série Estratégica de Ensino 2 ,3a. ed - São Paulo:,Editora Parábola, 2009 DOLZ, Joaquim, NOVERRAZ, Michlèle, SCHNEWLY, Bernardo. Sequências Didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. M. et al.Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização de R. H. R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004, p. 95-128. Disponível em
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