Como o impeachment ameaça os direitos e as políticas LGBT

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Como o impeachment ameaça os direitos e as  políticas LGBT1    Thiago Coacci    O  Brasil  está  passando  por  um  momento   crítico,  o  que  está  em  jogo  é  a  vida de nossa jovem  democracia.  As   eleições  de  2014  foram  uma  das  mais  acirradas  da  história  brasileira,  ​Dilma  Rousseff  (PT)  ​venceu  por  pouco   o   candidato  da  oposição,  ​Aécio  Neves  (PSDB)​.  A  taxa  de  aprovação  da  candidata  petista  era  extremamente  baixa  em  função  da  crise  econômica,  da  crescente   visibilidade  de  escândalos  de  corrupção,  do  esforço  incessante  da  mídia de destruir  sua imagem pública, da sua falta de carisma e habilidade política para criar coalizões.    Dilma  venceu  as  eleições, mas o jogo já estava ​contra ela. A oposição, liderada por ​Eduardo  Cunha  (PMDB)​,  tentou,  de  todas  as  maneiras,  acabar  com  seu  governo.  Após  um  processo  tumultuoso,  cheio  de  viradas  que  nem  mesmo  a  ​Shonda  Rhimes  poderia  imaginar,  tanto  a  Câmara  quanto  o  Senado  aprovaram  a  abertura  do  ​impeachment   e  desde  13  de  maio,  a  presidente  Dilma  Rousseff  se  encontra  afastada  de  seu cargo até que o Senado decida se ela é  ou não culpada, o que segundo as regras pode levar até 180 dias.    Nesse  meio  tempo  o  vice­presidente  ​Michel  Temer  (PMDB)  ​assume  como  presidente  interino.  Apesar  da  condição  temporária  de  seu  cargo, Temer, com  o  compromisso de reduzir  os  gastos  públicos,  ​está  realizando  grandes mudanças institucionais no Brasil: ele cortou o  número  de  ministérios  de  31  para  22,  fundindo  ou  até  mesmo  acabando  com  alguns  ministérios.  Sua  equipe  de  ministros  é  ​composta  exclusivamente  por  homens​,  sem  mulheres  ou  minorias,  e  os  ministros  já  estão  anunciando  a  vontade  de  realizar  uma  série  de cortes em  políticas sociais. Existe um claro retrocesso na política brasileira.    1

 Artigo de opinião originalmente publicado no BrasilPost em 10 de junho de 2016:   

Diversas  coisas  são  interessantes  para  se  analisar nesse processo, mas eu gostaria de focar em  como  o  processo  de  impeachment  e  as  mudanças  institucionais  feitas  pelo  presidente   Michel  Temer podem, de fato, ​afetar os direitos e as políticas​ ​LGBT​ no Brasil.  Para responder esta questão, precisamos entender três coisas.    1.  O  sistema  jurídico  brasileiro  segue  a  tradição  romano­germânica​,  também  conhecida  como  ​civil  law.  Eu  sei,  Direito  é  muito   chato,  mas  aguentem  por  favor  porque  isso  é  importante.  Isso  significa  que  nosso  sistema  jurídico   é  baseado  principalmente  em  leis  escritas.  Existe uma  hierarquia de leis: no topo se encontra a Constituição; logo abaixo  vem as  Leis  comuns,  que  são  aprovadas  pelo  Congresso  e  servem  para  regular  todo  tipo  de  coisas  como  o  casamento  e  também  para  criar  crimes;  há  ainda  uma  multidão  de  outros  tipos  de  legislações como portarias e resoluções, são regulamentações administrativas que servem para  cada órgão regular os assuntos de sua competência.    Assim,  o  Ministério  da  Saúde  pode,  por  exemplo, permitir ou restringir o uso de determinado  medicamento.  Diferente  de  uma  Lei  comum  essas  regulamentações  podem  ser  revogadas  a  qualquer  momento  pelo  Ministro  ou  por  uma  autoridade  superior.  Se  não  há  uma  lei  específica  para  regular  o  caso,  a  situação  fica  um  pouco  mais  confusa e abre espaço para que  juízes  decidam   quase  como  quiserem,  desde  que  forneçam  uma  justificativa  jurídica.  A  maioria  das  decisões  judiciais,  no  Brasil,  não  possuem  efeito  vinculante*,  ​exceto  algumas  decisões do Supremo Tribunal Federal em ações constitucionais.    2.  Os  direitos  e  políticas  LGBT  no  Brasil  são  novos  e  precários.  Apesar  de  ser  possível  encontrar  formas  de  resistência e sociabilidade LGBT anterior,  o  movimento LGBT brasileiro  surge  apenas  no  final   da  década  de  1970.  Em  função da crise do hiv/aids, o movimento passa  por  uma  grande  inflexão  na  década  de  1980  e  revigora na década de 1990, quando se espalha  por  todo  o  País,  se  institucionaliza  no  formato  das   ONGs  e  desenvolve  uma  relação  mais  próxima  com  partidos,  especialmente  com  o  PT  e  outros  partidos  de  esquerda.  O  Estado  brasileiro  efetivamente  escutou  algumas  das  demandas  feitas  pelo  movimento  e  tentou  respondê­la,  mas  no  início  as  respostas  eram  limitadas  a  políticas  públicas  e  financiamentos  para temas relacionados a aids.   

A  partir dos anos 90 surgem alguns projetos lei no Congresso, talvez os mais famosos sejam o  PL  1151/95,  que  buscava  regulamentar  as  uniões  entre  pessoas  de  mesmo  sexo,  e  o  PLC  122/06,  que  buscava  criminalizar  a  homofobia.  Ambos  projetos  foram  propostos  por  deputadas  do  PT,  o  primeiro pela Marta Suplicy  (que atualmente não se encontra mais no PT)  e  o  segundo  pela  Iara  Bernardi.  Apesar  de  várias  propostas  de  leis,  o  Legislativo  Federal  se  recusou  e  ainda   se  recusa  a  aprovar  qualquer  projeto  que  garanta  direitos  as  pessoas  LGBT,  nesse  meio  tempo,  as  pessoas  LGBT  buscaram  o  judiciário  para  garantir  seus  direitos.  As  eleições  de  2001  marcam  uma  grande  mudança  na  política  brasileira  com  a  eleição  do  presidente  Lula  (PT).  Dois  processos marcam os anos do PT em relação os direitos e políticas  LGBT.    Primeiro,  a expansão das demandas judiciais para o reconhecimento dos direitos LGBT, como  o  direito  a  união  estável  para  casais de mesmo sexo e o direito a retificação de nome e gênero  pelas  pessoas  trans.  Esse  processo  obteve  um  relativo  sucesso  e  atualmente  existe  uma  decisão  vinculante  do  STF  declarando  a  constitucionalidade das uniões estáveis entre pessoas  de  mesmo  sexo,  fundamentado  nessa  decisão,  o  Conselho  Nacional  de  Justiça  foi  além   e  através  da  Resolução  165/2013   removeu  os  obstáculos  para  o  casamento  entre  pessoas  de  mesmo  sexo**.  Para  o  caso  dos  direitos  das  pessoas  trans,  até  hoje,  não  há  um  julgamento  com  efeito  vinculante,  mas  há  uma  tendência  crescente  de  aceitar  a  mudança  do  nome  e  do  gênero. Segundo, a aproximação dos  movimentos sociais com o governo a partir da criação de  mecanismos  de  participação  como  as  Conferências  LGBT,  audiências  públicas  e  até  mesmo  com  a  realização  de  reuniões  com  ativistas  LGBT.  Esse  processo  resultou  na   criação  de  políticas  públicas  LGBT  para  além  do  eixo  da  aids  e  também  na  edição  de  portarias  e  resoluções garantindo direitos para pessoas LGBT.    É  importante  mencionar  que  muitas  das  regulações  administrativas  foram  emitidas  apenas  após  a  condenação  judicial  do  estado  brasileiro,  um  exemplo  é  a  Súmula Normativa 12/2010  da  Agência  Nacional  de  Saúde  Suplementar  (ANS),  que  garante  o  direito  de  inclusão  do(a)  parceiro(a)  homossexual  como  beneficiário  no  plano  de  saúde  privado.  A  relação  entre  esses  dois  eixos  fez  com  que  o  Brasil  gradualmente passasse de um país com um grau mínimo para  um  com  alto  grau  de   proteção a população LGBT, de acordo com a  tipologia de  Roger Raupp 

Rios***.  Comparado  com  outros  países,  pode  parecer  muito,  mas,  efetivamente,  não  é  e  definitivamente não é o suficiente.    A  maioria  das  políticas  públicas  LGBT  são  limitadas,  o  Processo  Transexualizador  ­  uma  política  que  deveria  prover  todo  o  tratamento  médico  e  psicológico  requerido  pelas  pessoas  trans  para  a  transição,  como  a  hormonização  e  as  cirurgias  de  redesignação  sexual  ­,  por  exemplo,  está  disponível  em  um  pequeno  número  de  cidades.  Apenas  quatro hospitais fazem  as  cirurgias  e  existe  uma  fila  extremamente  longa,  a  espera  pode  ultrapassar  10  anos.  Além  disso, o Brasil ainda é o país campeão nos assassinatos de pessoas LGBT.    3.  O  processo  de  impeachment  está  diretamente  ligado  a  valores  religiosos  e  conservadores.  Não  apenas  aqueles  que  desejam  o  impeachment  de  Dilma  são  contra  seu  governo,  mas  eles são orientados por valores religiosos e conservadores. Essa influência ficou  mais  do  que  clara  nos  discursos  proferidos  na  Câmara,  onde  deus  e  a  família  apareceram  como  umas  das  principais  razões  de  voto  para  o  impeachment,  aparecendo  mais  frequentemente do que as denúncias das pedaladas.    Isso  não  é  nada  novo,  na  verdade  podemos  retraçar  a  participação  religiosa  na  política  brasileira  desde  o  processo  da  constituinte,  em  1987­88,  mas  é  a  partir  de  meados  dos  anos  2000  que  há  uma  ampliação  em  número  e  influência  dos  religiosos,  tanto  na  Câmara  quanto  no  Senado.  Esses  políticos  religiosos  e  conservadores  foram  a  principal  razão  pela  qual  o  legislativo  nunca  aprovou  nenhuma  legislação  favorável  aos  direitos  LGBT,  eles  se  opõem  ferozmente  a  cada projeto, foram bem­sucedidos em remover menções a gênero e sexualidade  em  projetos  mais  amplos  e  até  conseguiram  que a presidente Dilma vetasse algumas  políticas  LGBT, como o Projeto Escola Sem Homofobia (conhecido como "Kit Gay").    No  mesmo  ano  que  Dilma  foi  reeleita,  o  número  de  deputados  evangélicos  chegou  a  78,  um  recorde  nunca antes alcançado. Eduardo Cunha, um dos principais orquestradores do processo  de  impeachment,  é  um  desses  deputados  e  ele  é  famoso  por  se  opor  a  direitos  das  mulheres,  propondo  projetos  para  restringir,  ainda  mais,  o  direito  ao  aborto.  Cunha  se  encontra  agora  suspenso  do  parlamento  em  função  das  investigações  de  abuso  de  poder  durante  sua  estadia  como  presidente  da  Câmara,  no  entanto,  o  Congresso  e  o  presidente  interino  Michel  Temer 

não  estão  livres  de  valores  religiosos  e  conservadores.  Esse  governo  ainda  é  apoiado  e  influenciado por um grupo religioso e conservador e o preço do apoio está sendo cobrado.    Como  uma  consequência  da  falta  de  sincronia  entre  os  três  poderes  em  relação  aos direitos e  políticas  LGBT,  esses  se  desenvolveram  exclusivamente  baseados  em precedentes judiciais e  regulações  administrativas.  Esses  direitos são frágeis porque são baseados em formas "fracas"  de leis, que podem ser modificadas ou revogadas a qualquer momento, e em decisões judiciais  que,  em  sua  maioria,  não  são  vinculantes.  Nesse  momento,  o  Executivo e o Legislativo estão  ocupados  por  pessoas  religiosas  e  conservadoras  que  são  contrárias  aos  direitos  LGBT,  elas  tem  o  poder  para  revogar  as  regulações  administrativas  que  garantem  os  direitos  e  instituem  as políticas LGBT e já há sinais de que isso está acontecendo.    Existem, pelo menos, dois sinais dessa tendência de retrocesso.    Primeiro​,  a proposição do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 395/2016, apresentada 18 de  maio,  por  um  grupo  de  deputados  religiosos,  dentre  eles  Ronaldo  Nogueira,  o  atual  ministro  do  trabalho.  Um  PDC  é  um  instrumento  legal  para  o  Congresso  suspender  regulações  administrativas  emitidas  pelo   executivo,  o  PDC  395/2016  visa  suspender  o  Decreto  8727/2016,  emitido  pela  Presidenta  Dilma  e  que  permite  as  pessoas  trans  utilizarem  o  nome  social em instituições da administração pública federal.    O  segundo  sinal  ​é  a  fusão  do  Ministério  da  Cidadania  com  o  Ministério  da  Justiça.  O  Ministério  da  Cidadania  possuía  pastas  para  as  mulheres  e  uma  para  a  igualdade  racial, além  disso  o  possuía  em  sua  estrutura  conselhos  para  os  direitos  de  grupos  minoritários,  como  o  Conselho  Nacional  de  Combate  a  Discriminação  LGBT  (CNCD/LGBT).  O  Conselho  é  responsável  por  formular  e  monitorar  políticas  LGBT,  ele  também  emite  portarias  estabelecendo  parâmetros  para  a  concessão  de  uma série de direitos LGBT, como o direito ao  uso  do  nome  social  por  pessoas  trans  em  universidades,  regulamentado  pela  Resoluação  CNCD/LGBT 12/2015.    Depois  da  fusão,  as  pastas   para  as  minorias  foram  extintas  e  os  conselhos  podem  fechar  a  qualquer  hora.  Para  piorar  a  situação,  ​Alexandre  de  Moraes​,  o  ministro  desse  novo 

Ministério,  é  famoso  por  desrespeitar  direitos  humanos básicos e foi durante sua gestão como  secretário  de  segurança pública de São Paulo que ocorreram uma série de repressões violentas  contra manifestantes.    Mesmo  com  a  nomeação   de  Flávia  Piovesan,  uma  famosa  defensora  dos  Direitos  Humanos,  para  ocupar  a  pasta  de  Direitos  Humanos  dentro  do  Ministério  da  Justiça  e  Cidadania,  a  configuração   das  forças  políticas  não  aponta  para  um  cenário  em  que  ela  terá  liberdade  para  atuar  na  efetiva  manutenção  e  promoção  dos  direitos  e  políticas   LGBT.  ​Nem  mesmo  o  Temer  está  com  liberdade  completa  para  atuar​,  marca  disso  é  o  número  de  vezes  que   já  teve  que  recuar  em  algum  assunto  para  conseguir  manter  apoio,  como   no   caso  do  Ministério  da Cultura.    Não  é  sem  razão  que  ​a  XX  Parada  do  Orgulho  LGBT de São Paulo foi marcada por gritos de  "Fora  Temer​",  pelos  motivos  acima  elencados,  acredito  que  o  governo  interino  não  só  não  expandirá  as  políticas  e  direitos  LGBT  que  vimos  emergir  a  partir  do  governo  Lula,  como   vislumbro  um  risco  maior:  existe  a  possibilidade  concreta  de  um  retrocesso  nos  direitos  LGBT  e  de  um  desmantelamento das políticas existentes, desfazendo um processo de  mais de  uma  década.  Esse  medo  é  ampliado  dada  a  precariedade  dos direitos e políticas LGBT, o que  faz  com  que  seja  muito  fácil  revogá­las.  Tudo  que  é  preciso  é  uma  assinatura  e  puff! Sashay  away direitos e políticas LGBT.    *  O  efeito  vinculante  de  uma  decisão  significa  que  ela  se  aplica  a  todos  os  casos  similares,  obrigando  outros  juízes  a  decidirem  da  mesma  forma.  Na  prática, funciona quase como uma  Lei.  **  O  direito  brasileiro  diferencia  entre  união  estável  e  casamento.  Ambas  são  formas  de  regular  as  uniões  entre  pessoas,  são  similares  em  direitos,  mas  com  um  grau  diferente  de  institucionalização.  Não  há  uma  hierarquia  legal  entre  os  institutos,  mas  o  casamento  é  comumente visto como "superior" e mais valorizado.  ***  RIOS,  R.  R.  (2010).  Sexual   Rights  of  Gays,  Lesbian,  and  Transgender  Persons  in  Latin  America:  a  Judge's View, in: CORRALES; J. PECHENY, M. The Politics of Sexuality in Latin  America:  a reader on lesbian, gay,  bisexual, and transgender rights.  Pittsburgh: University of  Pittsburgh Press. 

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