Como os EUA destruíram a Paz Mundial no século XXI

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2º Seminário de Relações Internacionais – Graduação e Pós-Graduação

28 e 29 de agosto de 2014. João Pessoa

A Atuação do Conselho de Segurança das Nações Unidas face aos Desafios Sistêmicos do pós-Guerra Fria e à Concertação Política dos BRICS

Governança e Instituições Internacionais - GI

COMO OS EUA DESTRUÍRAM A PAZ MUNDIAL NO SÉCULO XXI

Luiz Fernando Castelo Branco Rebello Horta – Universidade de Brasília

Resumo Em 2001, John Ikenberry descreveu o sistema de criação das instituições pós 2a Guerra Mundial como uma escolha racional dos EUA em trocar seu poder imediato após 1945 pela construção de uma "ordem institucional estável" cujo papel americano seria não só preponderante mas também teria caráter durador. Assim, estaria consolidada uma "ordem hegemônica internacional" composta essencialmente pelo Sistema de BrettonWoods e pelo Sistema ONU. Nesse processo os acordos para formação do Conselho de Segurança da ONU levariam à consolidação de "cinco grandes" sobre os quais recairia tanto o fardo da manutenção de tal ordenamento como uma posição preponderante na política internacional. O período da Guerra Fria passou e pareceu confirmar a tese de Ikenberry. Contudo, após a queda do Muro de Berlim e o alegado fim do "sistema bipolar" o mesmo país que teria aberto mão do poder conquistado após a 2a Guerra em prol do reforço de uma ordem institucional internacional se torna o principal responsável pela desarticulação dessa ordem. Os EUA ao enfraquecerem o Conselho de Segurança através de suas ações promovem uma perigosa escalada de insegurança que tem na Crise da Ucrânia (2014) seu mais visível impacto. Esse trabalho mostrará que ao perseguir seus interesses sem respeitar a ordem que ele mesmo ajudou a criar, os Estados Unidos jogaram o mundo numa perigosa espiral de questionamento da legitimidade e eficácia das instituições que serviram de forma adequada ao período da Guerra Fria. Tornando o Conselho de Segurança uma meramente instituição burocrática com uma área geográfica de atuação definida e sem acolher as posições dos outros quatro membros permanentes os EUA solaparam as bases de reconhecimento da posição cogente do Conselho de Segurança e, abusando da sua condição de "super-potência" privaram o mundo de uma instância de resolução de conflitos de forma negociada e pacífica. Palavras-chave: Conselho de Segurança – Realismo – Liberal-Institucionalismo – Guerra Fria – Crise da Ucrânia

Introdução A literatura de RI, especialmente as linhas mais afeitas às análises baseadas nas teorias sistêmicas, afirmam que a humanidade sobreviveu à Guerra Fria em função do correto entendimento pelos Estados do modus operandi dentro do sistema internacional. Este entendimento quase todo calcado na ideia de bipolaridade realista concedendo quase nenhuma importância para o papel das instituições, que seriam variáveis dependentes do interesse dos Estados. Seja porque a distribuição de poderes levava à percepção racional por parte dos Estados de que os custos de um conflito entre os polos (e sua possível escalada nuclear) era proibitivo ou pelo fato de que, reconhecendo a importância das concepções bipolares, era respeitada a “esfera de influência” do polo oposto, o realismo se arrogava ter direcionado os Estados no caminho da “paz”, ainda que com turbulência. Nessa concepção, o Conselho de Segurança estava “congelado” pelo efeito da bipolaridade e pouco ou nada contribuiu para dita “estabilidade do sistema”. Sem aqui questionar o quanto o sistema bipolar foi “estável” ou não, a posição que se apresenta nesse trabalho é de que a causa para não ter ocorrido uma hecatombe nuclear, com a guerra declarada entre potências foram também as instituições. Não somente através dos constrangimentos e incentivos que elas criaram às atitudes dos Estados, mas principalmente por oferecerem um campo de debate, deliberação e decisão com indicativos claros das posições das potências, minorando os erros de avaliação e permitindo soluções negociadas. Dentre as várias instituições, aqui se estuda o Conselho de Segurança (CS) afirmando-se que é hoje, exatamente após a Guerra Fria, que o Conselho está “congelado”. Ao reverso do que afirma a teoria, é após 1989 que, pelas ações de seus participantes (em especial dos EUA), o Conselho perdeu a capacidade de oferecer saídas pacíficas para os conflitos internacionais. Os EUA, assim, privaram o mundo de uma instituição internacional cujo papel mediador tão bem nos serviu durante a Guerra Fria, e exatamente agora em que os atritos entre os cinco membros permanentes se acirram, o sistema internacional não mais entende legítimas as ações e decisões do CS. Um pouco de pesquisa No início de 2013 concluí minha dissertação de mestrado no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (apoiado pelo CNPQ) com um resultado que contrariava

a

maior

parte

da literatura

em

Relações

Internacionais.

Estudando

quantitativamente e qualitativamente o Conselho de Segurança de 1945-2012 verifiquei que “tanto está errada a percepção institucionalista de “congelamento” do CS [durante a Guerra Fria] como também estão erradas as deduções normativas que partem desse ponto para afirmar que o CS não serviu aos seus propósitos durante a Guerra Fria e hoje estaria servindo” (HORTA, 2013a, p. 108). Minhas conclusões tinham fulcro em duas percepções

distintas, uma teórica e outra empírica. Teoricamente eu argumentava que o CS havia sido criado não para manter a paz (como é dito pela própria carta da ONU), mas para evitar uma Guerra ENTRE os 5 membros permanentes do próprio Conselho. Essa percepção vinha alicerçada na ideia de que: (...) a teoria interpretativa jurídico-institucionalista faz uma avaliação totalmente normativa a respeito do que o CS deveria ser e fazer e, a partir daí, compara o funcionamento do CS durante a Guerra Fria com o funcionamento no pós-Guerra Fria para oferecer a tese de que: “This situation gave rise to the hope, expressed by various members of the world organization, that the potential of the Security Council, which had been held hostage by the Cold War, would now be released and the UN would be better able to function as it was intended to.” (BOURANTONIS, 2005, p. 27)” (HORTA, 2013a, p. 63)

Essencialmente, a função de existência do Conselho de Segurança é dada pela própria história em seu processo fundacional: “First, that the four major powers will pledge themselves and will consider themselves morally bound not to go to war against each other or against any other nation, and to cooperate with each other and with other peace loving states in maintaining the peace; (…)” (LOWE, ROBERTS, et al., 2008, p. 74). Difere muito a percepção de uma instituição “para manter a paz mundial”, sem limites geográficos, constrangimentos políticos ou mesmo restrição temporal, da percepção de uma instituição que visava evitar a guerra entre seus membros mais fortes (membros permanentes do CS). A segunda alternativa é, sem dúvida, histórica e politicamente mais apropriada e foi levada a termo com resultados positivos. Nesse sentido, dizer que o Conselho de Segurança estava “congelado” em função de uma pretensa bipolaridade durante a Guerra Fria 1 era não só cometer erros teóricos e empíricos de avaliação como também, desconhecer o funcionamento histórico do Conselho de Segurança. O erro teórico era afirmar, conforme as teorias realista e institucional, que o Conselho de Segurança era bipolar (conquanto o realismo afirma que a bipolaridade era a característica pervasiva de todo o período e, assim, uma instituição criada dentro da bipolaridade deveria ser bipolar) para em seguida afirmar seu “congelamento” como um efeito do poder dos Estados polos (super-potências) dentro da instituição (tese institucionalista), o que “comprovava” o cerne da teoria realista de que as instituições são variáveis dependentes da política de poder dos Estados (MALONE, 2004, p. 102): “(…) realists have noticed that whether institutions have strong or weak effects depends on what states intend. Strong states use institutions, 1 “This situation gave rise to the hope, expressed by various members of the world organization, that the potential of the Security Council, which had been held hostage by the Cold War, would now be released and the UN would be better able to function as it was intended to.” (BOURANTONIS, 2005, p. 27)

as they interpret laws, in ways that suit them. Thus Susan Strange, in pondering the state’s retreat, observes that “international organization is above all a tool of national government, an instrument for the pursuit of national interest by other means.” (WALTZ, 2000, p. 24)

Empiricamente eu me reportava ao fato de que a análise dos dados do CS não chancelava a hipótese de que ele tenha sido bipolar. Tomando por base a teoria realista e vendo nos votos negativos (vetos) das superpotências com sua expressão final de “contenção” da outra potência, era de se esperar um padrão bipolar de oposição entre apresentação de proposição e veto de forma clara, com mínima forma de cooperação institucional (conforme hipótese realista mais aceita 2 (GRIECO, 1988, p. 498-501)). O padrão empírico colhido, entretanto, é bem diferente:

20 15 10

2010

2006

2002

1998

1994

1990

USSR 1986

0 1982

EUA

1978

5 1946 1950 1954 1958 1962 1966 1970 1974

Número de Vetos

Comparação vetos EUA/USSR

EUA

Fonte: (HORTA, 2013a, p. 88) Observa-se que o uso do veto foi extensivo pela URSS entre 1946 e 1960. E pelos EUA entre 1970 e 1990. Ademais, os vetos soviéticos são quase todos contra a entrada de membros na ONU (em função da discussão sobre quem deveria ocupar a cadeira da China, se o Regime de Chiang-Kai-Shek ou o regime de Pequim). Já os vetos americanos são majoritariamente na defesa de seu aliado no Oriente Médio (Israel). Dada essa estratificação qualitativa e quantitativa é difícil ver como esse padrão se enquadrava nos ditames realistas: “(...) what the United States and the Soviet Union did, and how they interacted, were dominant factors in international politics. The two countries, however, constrained each other.” (WALTZ, 2000, p. 28). Mais do que isso, o padrão de alianças institucionais, tomadas a partir das alianças de vontade expressas nos votos é totalmente diferente do padrão de 2

“(...) states are positional, not atomistic, in character. Most significantly, state positionality may constrain the willingness of states to cooperate.” (GRIECO, 1988, p. 499)

“blocos” da Guerra Fria. Em realidade, EUA e URSS cooperaram mais que URSS e China ou Inglaterra e França, por exemplo:

Padrão Cooperativo de Alianças em votação (%) 99,23

97,91

97,99

100,00

97,91

97,91

antes 89

97,91

pós 89

80,00 60,00

42,30

48,73

40,00

45,94

45,82

41,82

42,55

20,00 0,00

pós 89 antes 89

Fonte: (HORTA, 2013a, p. 123) Se tomarmos o padrão de veto e aprovação por blocos dentro do P5 (o chamado “capitalista” composto por EUA, Inglaterra e França e o chamado “socialista” composto por

Comparação vetos por blocos

20 10

2012

2009

2006

2003

2000

1997

1994

1991

1988

1985

1982

1979

1976

1973

1970

0 1946 1949 1952 1955 1958 1961 1964 1967

Número de vetos

URSS e China) a situação em quase nada se altera.

EUA, FRA, GBR URSS, CHN

Fonte: (HORTA, 2013a, p. 91)

Ainda verificando a bipolaridade, é possível dizer com base no estudo empírico que: “apenas 17 vetos (de um total de 179) durante o período da Guerra Fria, ocorreram em resoluções apresentadas por uma superpotência (EUA ou URSS) e vetada pela outra. O número aumenta para 21 vetos se contados os vetos como blocos de um sobre o outro (capitalista composto por EUA, Inglaterra, França e socialista composto por URSS e China)” (HORTA, 2013a, p. 75). Isso de forma alguma poderia ser interpretado como um comportamento bipolar, mesmo que a teoria realista logicamente afirme que deveria ser: “Realists mantain that institutions are basically a reflection of the distribution of power in the world.” (MEARSHEIMER, 1994-1995, p. 7). O fato é que o Conselho de Segurança não apresenta um padrão bipolar de votação exatamente durante o período especificado pela teoria como bipolar 3. Além disso, durante tal período, a teoria afirma que o comportamento político das potências deveria apresentar “(…) the nearly constant presence of pressure and the recurrence of crises” (WALTZ, 1964, p. 883) O erro de se afirmar “congelado” o Conselho de Segurança durante a Guerra Fria está em não perceber a função e o objeto da instituição em tela. Como dito anteriormente, a função do CS sempre foi a de evitar uma guerra entre os membros permanentes. Para isso se criou um indicativo institucional claro (KEOHANE e MARTIN, 1995, p. 42) dos interesses de cada potência que pudesse ser verificado de pronto sobre qualquer assunto que fosse colocado sob a apreciação do Conselho: o veto 4. De fato, observa-se o veto como UMA DAS CAUSAS da paz no período da Guerra Fria: “Moreover, the veto was needed to rule out the possibility that the Council would harm relations between the permanent members by making a decision against the will of one of them” (WOUTERS e RUYS, 2005, p. 5) Diante da indicação indelével de que determinado assunto era de interesse de algum dos membros P5 (‘Permanent 5’ do Conselho de Segurança) e que por aquele assunto tal membro estaria disposto a ir às últimas consequências, o processo de negociação se abria e a paz era mantida. Mais do que exercer poder de um sobre o outro, o veto significava um valioso indicativo institucional que visava minorar as chances de uma errônea avaliação internacional, aumentando dramaticamente a capacidade da instituição – Conselho de Segurança – em oferecer informações corretas a seus participantes 5. E sempre houve muito 3

“Partindo, nesse ponto específico, do paradigma realista clássico da política internacional, o realismo estruturalista destaca aquelas características da estrutura que moldam a forma em que os componentes se relacionam.” (DOUGHERTY e PFALTZGRAFF, 2003, p. 104) 4 “The veto—a classic balance of power mechanism—helps to guard against any single state or combination imposing their own interests under the guise of community norms.” (CRONIN e HURD, 2008, p. 71). Apesar da discordância sobre o veto como “balança de poder” a literatura chancela a importância de sua existência. 5 “Institutions can provide information, reduce transaction costs, make commitments more credible, establish focal points for coordination and in general facilitate the operation of reciprocity” (KEOHANE e MARTIN, 1995, p. 42)

espaço para soluções colaborativas, mesmo dentro da árida bipolaridade teórica proposta pelo realismo:

Número de resoluções aprovadas e vetos por ano 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

R² = 0,816

resoluções

vetos

Polinômio (resoluções)

Fonte: (HORTA, 2013a, p. 87) O maior exemplo de sucesso da instituição é exatamente a inexistência de guerra entre os membros permanentes durante todo o tempo da Guerra Fria, mesmo nos maiores momentos de tensão. É impossível deixar de verificar que “institutions matters” (KEOHANE e MARTIN, 1995, p. 40) e agora num estudo feito exatamente sobre uma instituição de segurança, passando, assim, ao largo da crítica ao artigo de Robert Keohane e Lisa Martin (KEOHANE e MARTIN, 1995) feita por John Mearsheimer (MEARSHEIMER, 1994-1995). Entretanto, para que as instituições realmente funcionem, é necessário que elas tenham capacidade de se ocuparem de seus objetos primários. Trocando em miúdos, o Conselho de Segurança precisa ocupar-se em dirimir contenciosos entre o P5 pelo mundo afora. Isso implica em ter capacidade e legitimidade para tal fim. Aqui, capacidade diz muito mais do que apenas meios materiais para intervir. O termo capacidade vem fortemente revestido de legitimidade o que nos leva a perceber que o CS precisa ser entendido como autoridade legítima para que possa exercer seu múnus: “In practice, the success of the Security Council often depends less on its capacity to employ its collective military or economic strength than on its ability to gain recognition as the body with the legitimate authority to take a particular action on a particular matter.” (CRONIN e HURD, 2008, p. 3)

Legitimidade é um conceito bem mais complexo do que se faz parecer. Para Bruce Cronin e Ian Hurd (CRONIN e HURD, 2008) ele se assenta em três condicionantes fundamentais: o processo de deliberação, a existência e cumprimento dos mesmos procedimentos (idênticos para todos os membros) e de algum grau de efetividade de suas

ações (CRONIN e HURD, 2008, p. 6-10). Nesse sentido, o escopo mínimo dos estatutos legais do Conselho de Segurança (que até hoje funciona com um estatuto provisório) oferecia, por historicidade remontada da Segunda Guerra, uma tela de fundo de respeito entre os países que haviam lutado e vencido o nazismo. Se por propaganda ou por conhecimento histórico os cinco países se respeitavam mutuamente, pouco importa, contudo, o efeito era claro. Durante a Guerra Fria existia respeito pelas capacidades de cada um dos participantes e assim se formava uma base sobre a qual a legitimidade podia ser

percebida.

Assuntos

sobre

as

“áreas

de

influência”

das

potências

eram

convenientemente abordados com olhares mais permissivos, evitando-se conflitos entre o P5, basta ver a estratificação das resoluções aprovadas antes e depois de 1989-1991.

Número de resoluções

Resoluções Aprovadas por região do Globo 800 618

600 400 200 0

0

0

4

0

16

186

60 25

0

6

216 136

176

235 235 0

antes 89

0

pos 89 antes 89

Fonte: (HORTA, 2013a, p. 122) Surpreendentemente, o nível de deliberação durante a Guerra Fria era também maior: “Em números totais a crítica se torna ainda mais forte. Durante a Guerra Fria (1946-1989) o percentual de discordância nas decisões do Conselho era de 46,59% com quase 50 países diferentes exercendo, por diferentes vezes, sua manifestação de discordância (abstenção, voto negativo ou falta), já entre 1989 e 2012 o percentual de discordância cai para 9,48% com apenas 37 países diferentes exercendo a opção da discordância (HORTA, 2013, p. 104). Se atentarmos para o expressivo aumento das oportunidades para discordar (resoluções apresentadas) que foram 646 durante os 33 anos da Guerra Fria e 1431 resoluções nos últimos 23 anos (1989-2012), cabe a pergunta: tínhamos, durante a Guerra Fria, mais democracia no Conselho de Segurança? (HORTA, 2013b).”

A pesquisa empírica só vem a fortalecer o que uma parte pequena de teóricos já vinham afirmando, embora sem serem ouvidos frente à euforia normativa institucionalista: “I will show that the Council has shifted from a pluralist cold war approach to one that is aggressively interventionist and partial to the preferences of policy-makers from the United States and allied states (…) Perhaps because of the political impasse between the United States and the Soviet Union and collective demands from the recently decolonized states of the South to reduce great power dominance, the cold war era was marked by a great deal of pluralism.” (CRONIN e HURD, 2008, p. 156) “The traditional emphasis on the restrictions imposed, due to U.S.– Soviet rivalry, on UNSC authority masks a more complex reality, which renders simplistic the standard portrayals of an ongoing UNSC paralysis.” (CRONIN e HURD, 2008, p. 110)

O problema contemporâneo Ainda no mesmo trabalho (dissertação de mestrado) eu concluía com uma afirmação: “Afirma-se que é agora, pós 1989, que o CS está “congelado” uma vez que sequer como arena de discussão e acomodação política dos interesses dos grandes membros (P5) ele tem servido. O número de intervenções chanceladas ou não pelo Conselho cresceu imensamente, bem como a simples desconsideração de seus desígnios (chamada pela teoria de “outside options”) é cada vez mais frequente e expressiva.” (HORTA, 2013a, p. 109)

É sempre muito difícil argumentar contra o status quo teórico, mais ainda contra o “mainstream” da interpretação institucionalista e realista. Mas eu interpretava como perigosa a falta de interação conflituosa dentro do Conselho de Segurança. O conflito encerrado dentro de uma instância institucional internacional é um conflito que tem maiores chances de ser resolvido sem o uso da violência física. É a verificação do funcionamento do ordenamento político; da política como forma de dirimir conflitos. O período da Guerra Fria é conhecido (não sem uma boa dose de questionamento) de período de “Paz” e é o momento em que se registra o maior número de dissensos dentro do CS. Inversamente, com o fim da Guerra Fria, o número de dissensos cai assustadoramente, aumenta muito, contudo, o número de conflitos pelo mundo afora.

Resoluções do CS com alguma forma de dissenso 120,00

conflito total Polinômio (conflito total)

100,00 80,00 60,00 40,00 20,00

2012

2009

2006

2000

1997

1994

1991

1988

1985

1982

1979

1976

1973

1970

1967

1964

1961

1958

1955

1952

1949

1946

2003

R² = 0,7854

0,00

Fonte: (HORTA, 2013a, p. 104) Gráfico dos conflitos mundiais:

Fonte: (HARBOM e WALLENSTEEEN, 2007, p. 625) 6 A correlação dos dados oferece um surpreendente argumento: o Conselho de Segurança está “congelado” 7 exatamente agora quando a teoria diz que ele está

6 O estudo de Harbom e Wallensteen vai apenas até 2006. Os dados posteriores a 2006 apenas reforçam a correlação mostrada com guerras na República Democrática do Congo (2007), Sudão (2009), Yemen (2009), Sudão (2011), Egito (2011), Líbano (2011), Síria (2011), Líbia (2011), Mali (2012), República Centro Africana (2012), Sudão do Sul (2013), Ucrânia (2014) e etc.

funcionando liberto das amarras da Guerra Fria: “Hence, when the end of the cold war enabled the Council to act as it was originally intended, it had already possessed the legal tools to act beyond the boundaries of collective security” (CRONIN e HURD, 2008, p. 73) “It was a tendency that flowed naturally from the view that the absence of great power unity throughout the Cold War had defined UN experiences to such a degree that those very experiences were now largely irrelevant to an understanding of the ‘post-Cold War’ challenges facing the organization. Closely linked to this was the conviction that the removal of Cold War tensions would necessarily result in the restoration of great power unity and, with it, in a revitalized Security Council capable of developing the long-established practices and functions of UN peacekeeping in new and far more ambitious directions” (LOWE, ROBERTS, et al., 2008, p. 176) “This situation gave rise to the hope, expressed by various members of the world organization, that the potential of the Security Council, which had been held hostage by the Cold War, would now be released and the UN would be better able to function as it was intended to”. (BOURANTONIS, 2005, p. 27)

Apesar da teoria afirmar que “The UN has proved to be the most effective institution in history for aligning the security interests of the strong and the weak at the global level.” (LOWE, ROBERTS, et al., 2008, p. 249), o conflito (pós 1991) saía da arena de discussão das instituições (notadamente o CS) para tornar-se material nas sociedades mundo afora. E a pergunta era exatamente o motivo disso. Por quê e como o Conselho de Segurança estava sendo tão esvaziado de sentido, provocando o perigo real de uma escalada de conflitos que não tinha ocorrido nem nos anos mais tensos da Guerra Fria? A resposta revelou-se através do estudo da “outside option”. Outside option É consenso na literatura sobre o Conselho de Segurança que após o fim da Guerra Fria ele se tornou muito mais “invasivo”. Empiricamente, o número de resoluções que permitiam algum grau de invasão no território de um país soberano (indiferente ao motivo alegado) aumenta imensamente. “Yet while the Charter technically limits the Security Council’s authority to opposing aggression and responding to threats or breaches of the peace, the Council has rarely acted in this area. Rather, its most effective and significant actions since the 1990s have been in areas that go beyond the powers granted to the Council either by the Charter or by some 7 Aqui se assume a mesma interpretação normativa que a teoria aponta para o período da Guerra Fria: incapaz de evitar conflitos. O argumento de que o Conselho de Segurança foi criado para evitar uma Guerra entre os cinco membros perdura. Entretanto, para usar a interpretação normativa da teoria é preciso perceber que é agora que o CS não consegue oferecer formas de solução para os conflitos pelo mundo.

other means of expressing consent: nation-building (Bosnia, Afghanistan, Somalia, East Timor), prosecuting war crimes (the former Yugoslavia, Rwanda, and Sierra Leone), peacekeeping (57 operations since 1960), dismantling apartheid (South Africa), alleviating serious humanitarian crises (Rwanda, Burundi, East Timor, and Zaire), resolving civil wars (Liberia and Angola) and restoring a democratically elected government (Haiti).” (CRONIN e HURD, 2008, p. 57)

A produção científica sobre o tema reconhece que, após o fim da Guerra Fria, alguns países passaram a entenderem-se legítimos para agir fora do Conselho de Segurança 8. E, mais profundamente, afirma-se que o próprio CS se tornou uma: forma de os “United States and other powerful Western states to exercise authority primarily over weaker states in the Southern hemisphere.” (CRONIN e HURD, 2008, p. 154). Uma leitura rápida no gráfico nesta comunicação que versa sobre os locais geográficos das resoluções é suficiente para chancelar tal afirmação. Dentro desse escopo, reconhece-se a força do chamado “Permanent 1” ou os Estados Unidos e sua capacidade de fazer valer seus interesses dentro do espaço institucional do CS, mesmo que com meios não ortodoxos. 9 Entretanto, as ferramentas de ação internacional dos EUA não se limitam ao Conselho de Segurança. Segundo Voeten, a intenção da ação por fora da via institucional do CS pode ser tentada como uma “costly outside option, either unilaterally or with na ally” (VOETEN, 2001, p. 845). A ação por dentro do CS normalmente é entendida como menos custosa uma vez que a ação multilateral recebe maior suporte legislativo interno nos EUA e o reconhecimento como ação legítima tanto pela opinião pública americana 10 quanto pela comunidade internacional é bem maior (VOETEN, 2001, p. 848). Esse parece ser o mesmo entendimento de Niko Krisch, quando afirma que “Yet while acceptance of action through the Council may be somewhat unstable, its alternative – the use of force outside the Council – is more clearly regarded as unacceptable” (LOWE, ROBERTS, et al., 2008, p. 147) De fato, a existência da possibilidade real de ignorar as decisões, vetos e recomendações do CS influencia não somente o resultado final da ação internacional, mas também o processo de tomada de decisão dentro do próprio Conselho: “Outside options may more generally be important to create multilateral agreements among veto players with conflicting interests” (VOETEN, 2001, p. 856):

8

A pergunta sobre se existia “Outside Option” durante a Guerra Fria ainda não foi respondida. De uma maneira geral usa-se o termo somente para ações pós 1989-1991. Ver Jonathan Graubart in Cronin & Hurd (CRONIN e HURD, 2008, p. 156-157) 9 Para ver um estudo sobre a convergência da liberação de verbas do FMI a membros não permanentes e seus votos em favor de propostas dos EUA ver artigo de James Vreeland (DREHER, STURM e VREELAND, 2009), para uma crítica ver Bacarinni e Diniz (BACCARINI e DINIZ, 2011) 10 Ver também Niko Krisch em Lowe et all. (LOWE, ROBERTS, et al., 2008, p. 148)

The US, the UK, and France have been dominant in shaping Council policy since the end of the Cold War, despite Russia’s and China’s veto power and their often diverging interests. This has been explained as a result of the existence of outside options: because dominant powers can credibly threaten to act outside an institution, they can shift negotiating results in their favour if their opponents have an interest in keeping them within the institution (for example, because this allows them greater infuence on the shape of the action). (LOWE, ROBERTS, et al., 2008, p. 141)

Segundo o autor, o resultado do jogo institucional varia essencialmente com a existência (e o reconhecimento por parte dos outros membros) da possibilidade real de uma ação sem a chancela do CS, ou seja, uma ação “por fora” da instituição (VOETEN, 2001, p. 849). Ao mesmo tempo que existe uma ressignificação do sentido das formas de abstenção: “Such an abstention signals discontent, not indifference. At the same time, an abstention indicates impotence. Why else would a state with formal veto power not exercise it on a resolution that it dislikes?” (VOETEN, 2001, p. 851) It appears that a credible outside option allows the United States to shift the disagreement outcome in UNSC bargaining, that is, creates a bargaining range that would not exist in the absence of such an option (VOETEN, 2001, p. 851)

Voeten (2001), no mesmo trabalho, conclui de forma otimista que: “Outside options may more generally be important to create multilateral agreements among veto players with conflicting interests” (VOETEN, 2001, p. 856). A avaliação histórica e empírica mostra, entretanto, uma conclusão diferente, muito mais consistente com a primeira postura evocada pelo autor que afirma que abstenção indica “impotência”. Essa “impotência” acaba por atacar diretamente a legitimidade da instituição conquanto deixa patente que mesmo com os pressupostos deliberativos estabelecidos pela teoria (CRONIN e HURD, 2008). Incapaz de alcançar uma decisão deliberada e que se refletisse em um processo de barganha institucional o qual ensejaria a legitimidade da ação institucional por meio da autoridade histórico-política do CS ele se encontra, atualmente, inútil. Incapaz de receber o conflito internacional e oferecer ao mundo uma forma pacífica de solução de maneira a evitar que o conflito gerasse cisões mais profundas que pudessem contribuir para uma escalada em direção à guerra. São exemplos eloquentes da incapacidade do CS de chegar a soluções negociadas o caso da Guerra do Iraque em 2003 que mesmo sem a autorização do CS foi levada a cabo invasão americana; o caso da recente invasão da Líbia (2011) em que a resolução 1973 (2011) permitia apenas a “zona de exclusão aérea” e, mesmo assim, os EUA levaram a cabo a deposição de Kadhafi, entre outros. Ainda recentemente, os conflitos da Síria permitiram que fosse textualmente demonstrada a falta do processo deliberativo institucional conquanto o embaixador russo

afirma, não sem base histórica para fazê-lo, que o CS vem sendo sucessivamente usado para impor os interesses do Oeste sobre o mundo: The Russian delegation had very clearly and consistently explained that we simply cannot accept a document, under Chapter VII of the Charter of the United Nations, that would open the way for the pressure of sanctions and later for external military involvement in Syrian domestic affairs. The Western members of the Security Council denied such intentions, but for some reason refused to exclude military intervention. Their calculations to use the Security Council of the United Nations to further their plans of imposing their own designs on sovereign States will not prevail. (S/PV.6810)

Sobre o mesmo tema a China afirma sobre a postura do Oeste que: Thirdly, sovereign equality and non-interference in the internal affairs of other countries are the basic norms governing inter-State relations enshrined in the Charter of the United Nations. China has no self-interest in the Syrian issue. We have consistently maintained that the future and fate of Syria should be independently decided by the Syrian people, rather than imposed by outside forces. We believe that the Syrian issue must be resolved through political means and that military means would achieve nothing. (…) Fourthly, the draft resolution jeopardizes the unity of the Security Council. The Council was unanimous in adopting resolutions 2042 (2012) and 2043 (2012), displaying a hard-won spirit of unity and cooperation. During consultations on today’s draft resolution, the sponsoring countries failed to show any political will or cooperativeness, adopting a rigid and arrogant approach to the reasonable basic concerns of other concerned countries and refusing to make revisions (S/PV.6810)

Se diplomaticamente os vetos russos e chineses vêm suportando o regime de Bashar Assad e não se pode, formalmente, falar em uso da “outside option” uma vez que não houve medidas militares contra o governo sírio, os vazamentos de informações feitas pelo Wikileaks fizeram o governo americano reconhecer que patrocinam os opositores do governo no sentido de derrubá-lo (http://www.cbc.ca/news/world/u-s-admits-funding-syrianopposition-1.987112 acesso em 28/07/2014). Diante de tal evidência é preciso primeiro perceber que a postura russa e chinesa vêm carregadas de uma desconfiança no processo institucional exatamente porque se a “outside option” já minava por excelência a capacidade e legitimidade do CS, as ações de financiamento pelo governo americano demonstram que esse já, há muito, este vem deliberadamente erodindo a ordem institucional global. Ordem esta que, segundo John Ikenberry, tanto trabalhou para criar (IKENBERRY, 2001).

Nós, pesquisadores, temos que olhar com mais cuidado, à luz das evidências atuais, para verificar se realmente o “strategic restraint” afirmado por Ikenberry (2001) não está contaminado, desde o início por atitudes como as acima demonstradas. O fato é que, seja através do uso da força aberto e contrário aos desígnios do CS e da sinalização do veto por parte de membros permanentes ou seja através das “covert options”, como o financiamento de operações que visam a implementação do interesse negado institucionalmente, os EUA estão colocando o mundo em situação de enfrentar conflitos armados entre potências. O caso da Ucrânia Desde 23/02/2014 a integridade territorial da Ucrânia (estabelecida entre 1991 e 1995 durante a debacle da antiga URSS) vem sendo ameaçada especialmente na sua parte sudeste por movimentos separatistas pró-russos. Não nos cabe aqui analisar a correção ou não das reivindicações dos rebeldes ou das ações do governo. Cabe ressaltar, entretanto, que dia 16/03/2014 mais de um 1,2 milhão de pessoas votaram num plebiscito onde era perguntado se aceitavam unirem-se à Rússia. Mesmo com 96,8% de votos a favor da união as

potências

ocidentais

não

aceitaram

a

validade

do

sufrágio

(http://www.nytimes.com/2014/03/07/world/europe/ukraine-sanctions.html?_r=0, acesso em 28/07/2014). A crise que já era violenta se torna ainda mais perigosa por oferecer um palco em que o ocidente pode fortalecer a ordem institucional criada no pós Segunda Guerra Mundial ou definitivamente enterra-la. O CS recebeu apenas uma assertiva, apresentada pelos EUA 11 (e vetada pela Rússia), sobre o conflito. É a S/2014/189 de 15/03/2014 que reafirmava: “(…) its commitment to the sovereignty, independence, unity and territorial integrity of Ukraine within its internationally recognized borders (…) Notes that Ukraine has not authorized the referendum on the status of Crimea; (…) Declares that this referendum can have no validity, and cannot form the basis for any alteration of the status of Crimea; and calls upon all States, international organizations and specialized agencies not to recognize any alteration of the status of Crimea on the basis of this referendum and to refrain from any action or dealing that might be interpreted as recognizing any such altered status;” (S/2014/189)

Efetivamente, a posição russa afirma que defende o direito de autodeterminação da Criméia e lembra que: (...) When the Soviet Union fell, Crimea automatically became part of Ukraine. The view of the people of Crimea was once again ignored. After the fall of the Soviet Union, for more than 20 years Crimea attempted to exercise

11 O representante Americano, entretanto, afirma ser a reunião do qual o documento S/PV.7138 procede ser já a sétima reunião para discussão o tema da Ucrânia.

its right to self-determination. In January 1991, a referendum was conducted in Crimea, resulting in the adoption of a law in Ukraine regarding the establishment of autonomous Crimea. In September 1991, the High Council of Crimea adopted a declaration on State sovereignty. In 1992, the constitution of Crimea was adopted, declaring Crimea an independent state within Ukraine. However, in 1995, through a decision of the Ukrainian authorities and the President of Ukraine, the constitution was annulled, without the agreement of the Crimean people. (S.PV.7138)

O conflito está evidente embora a forma de solução ainda seja de difícil previsão. Combates estão sendo travados em áreas que vão ainda mais ao norte do que apenas a Crimeia. O governo da Ucrânia vem fazendo repetidos apelos à intervenção internacional, ainda sem sucesso. De fato, existe já postura anterior do CS de impor zonas de exclusão e mesmo intervenção sem a autorização de nenhum dos lados, embora nunca contra um membro permanente. This became evident with the way in which the Council chose to address the conflicts in the former Yugoslavia during the early 1990s. In doing so, it specifically established two practices that represent a dramatic expansion in the Council’s legal authority: the creation of war crimes tribunals and the designation of sovereign territory as “safe zones” designed to protect civilian populations in conflict situations, without the consent of the belligerents. (CRONIN e HURD, 2008, p. 73)

E especialmente os EUA têm, como mostrado acima, histórico em ações internacionais recentes tanto configurando as “outside options” como as aqui nominadas “covert options” e o discurso do embaixador americano evocando a Guerra Fria deixa poucas dúvidas de que haverá alguma ação. We have heard a lot, each time that the Security Council has met, about the echoes and relevance of history. We have heard, for example, about the pleas of the brave democrats of Hungary in 1956 and about the dark chill that dashed the dreams of Czechs in 1968. We still have the time and the collective power to ensure that the past does not become prologue. (...) From the days of Lenin and Trotsky until the fall of the Berlin Wall, Pravda was the name of the house newspaper of the Soviet communist regime. But throughout that period, one could search in vain to find “pravda” in Pravda. (...) Russia has used its veto as an accomplice to unlawful military incursion. That very veto was given nearly 70 years ago to countries that had led an epic fight against aggression (S.PV.7138)

Novamente, não cabe aqui verificar se são corretas ou não os motivos das ações de ambas as partes ou a congruência e correção dos seus argumentos. Em discussão está apenas a capacidade da ordem institucional ser mantida, reforçada ou transposta. Em

momentos anteriores os EUA passaram por alto das decisões do CS para fazer valer seus interesses próprios e, com isso, vulneraram a legitimidade institucional. Agora se vêm os efeitos deletérios desse tipo de atitude. Frente às “dangerous actions” russas, conforme citado textualmente pelo representante americano, a legitimidade do CS inexiste, especialmente com a abstenção da China. Conclusão Os EUA alegadamente (IKENBERRY, 2001) construíram uma ordem internacional no pós-guerra em que exerciam uma restrição estratégica do seu poder naquele momento com o objetivo de maximizar os efeitos e o tempo de duração das instituições internacionais formadas. Se esse foi o intuito ou não importa menos do que a efetiva verificação de que, durante a Guerra Fria essa ordem funcionou contrariando a literatura que afirmava um CS “congelado”. Tanto funcionou que o nível de deliberação e oposição pacífica dentro do CS entre 1946 e 1989 é muito maior do que entre 1989 até os dias de hoje. Notadamente o número de resoluções tomadas por consenso e a incapacidade do CS de fazer valer suas decisões críticas a todos os signatários da Carta das Nações Unidades parecem caminhar juntas. A mesma nação que alegadamente orquestrou a ordem constitucional vigente a partir de 2001 passou sucessivamente a erodi-la e jogar o mundo numa perigosa espiral de imprevisibilidade. Desrespeitando os sinais claros (vetos) emitidos pela instituição, os EUA aberta ou veladamente tomaram atitudes que relegaram os outros membros do CS a condição de “impotência”. Tal percepção, que os outros membros fazem do seu papel dentro da instituição, reafirmada pela falta do contraditório dentro do processo deliberativo do CS (demonstrado pelo alto índice de resoluções aprovadas por unanimidade) e pelos vazamentos do Wikileaks (monstrando que o arsenal de possibilidades de ação dos EUA não se encerram nas “outside options”) fazem fortalecer o argumento de que é hoje – exatamente pós queda do Muro de Berlim – que o CS encontra-se “congelado”. Efetivamente inoperante no seu essencial que é evitar uma guerra entre os membros permanentes. O conflito na Ucrânia mostra todos os preocupantes sinais que existiram em 1953 durante a Guerra da Coréia, em 1979 durante a invasão russa ao Afeganistão e tantos outros momentos de atrito entre os membros permanentes, com uma diferença: a legitimidade institucional avariada do CS. O conflito reveste-se de importância cabal para a Rússia seja pela proximidade de suas fronteiras, seja pelo interesse geopolítico na região. Ao mesmo tempo a condição de nação europeia adquirida pela Ucrânia e sua proximidade com a OTAN retomam a histeria da Guerra Fria e evocam uma pretensa necessidade “moral” de ação por parte dos EUA.

Aos americanos restam apenas duas alternativas: (1) ou reforçar a instituição CS respeitando seus desígnios o que significaria dizer aceitar o referendum da Crimeia e os vetos russos sobre o assunto, abstendo-se de qualquer ação tentando, com isso, reforjar as amarras que foram construídas ao longo da Guerra Fria; (2) ou promover uma ação aberta (através da “outside option”) ou encoberta (através da “covert option”) contra a Rússia e assim jogar a legitimidade do Conselho de Segurança definitivamente por terra colocando o mundo na iminência de um conflito entre dois membros permanentes e, possivelmente, uma nova Guerra Mundial. Se, por um lado, usando o pressuposto do Estado racional, os custos de da última opção são muito altos, por outro temos que considerar que o Estado não se pauta sempre pelo modelo racional, especialmente em momentos de crise. Mais do que nunca, fica evidente que as últimas ações americanas (desde 2001) têm tornado o mundo um local muito mais inseguro. Talvez mais inseguro do que era durante a Guerra Fria. Bibliografia

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