Como se cantava ópera em português no tempo de Eça de Queirós

May 23, 2017 | Autor: Tania Valente | Categoria: Literature, Portuguese Music, Eça de Queirós
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Queirós, 2010(1ªed. 1878), p. 375
Queirós/Ortigão, 2004 ( 1871, 1ªed.), p. 303-304
Queirós/Ortigão, 2004 ( 1871, 1ªed.), p.306-307
Magalhães, 2007, p.60
Revolução de Setembro, 24/5/1841
Vasconcelos, 2007, p.143
Bastos, 1994, p. 343
O Patriota, 02-10-1848
O Patriota, 09-10-1848
Machado, "Folhetim" na Revolução de Setembro, 25-9-1862
De Teatro, Maio de 1927, in Moureau, 1981
Queirós, 1980, p.13
Queirós/Ortigão, 2004 ( 1871, 1ªed.), p. 303
Queirós/Ortigão, 2004 , p.303
Queirós/Ortigão, 2004 , p. 303
Machado, "Folhetim", na Revolução de Setembro, 16/2/1869
Machado, 1878, p. 37
Queirós, p.181-182
Carvalho, p. 33
Queirós, p.42
Queirós, p.153
Machado, 1878, p. 34
Brito/Crammer, 1984, p.34
Revista dos Espectáculos, 01/08/1850, n.º 6, 1º vol., pp. 42-43
Revista Popular, 02/1851, n.º 8, vol. IV, p. 74, sobre "O postilhão de Jumeau" de Brunwich/Adam
Machado, 1875, p.160
Serra Formigal, Introdução de Moureau, Vol,1, 1981
Segundo Machado, Palha tinha "habilidade de fazer passar a língua por uma filtração (…) um homem só, armar a língua portuguesa, douta, positiva, e grave, em língua leve e jovial, dando-lhe tom chistoso e gaiato, próprio de "sainete", tem mais que se lhe diga"
Sobre Rosa Damasceno, dizia Machado: "… na Trindade cantando (…) árias, romanzas, canções (…) umas estão no «spartito», outras que os ensaiadores (…) compõem expressamente para aquela garganta bonita… por dentro… e por fora."
Meireles,1969, p. 208


Título:

Como se cantava ópera em português no tempo de Eça de Queirós?

Resumo:

"Grande arte – ou seja, bel canto – era o privilégio exclusivo do Teatro de São Carlos: aqui cantava-se em italiano, nos outros palcos musicais gania-se em português."
Eça de Queirós, "A Capital!"

Esta frase de Eça de Queirós serve de ponto de partida à investigação, que será apresentada nesta comunicação, a qual pretende traçar um breve retrato de 15 minutos de como se cantava ópera em português fora do espaço de Teatro de São Carlos, entre 1845 e 1900. Esta afirmação de Eça dá a entender que os cantores não teriam preparação vocal para cantar ópera em português, o que não seria de estranhar, pois quem cantava este repertório eram normalmente actores, sem formação em canto. Porém, aquando da estreia de "A Marquesa" de António Miró no Teatro do Ginásio em 1848, o periódico O Patriota afirmou que a ópera foi interpretada por cantores que, sem grande preparação vocal e "talvez alguns ignorando até as notas de música", conseguiram cantar peças que só se deviam "exigir a bons artistas de canto" (O Patriota, 09.10.1848) e em português. Estas opiniões contradizem a de Eça de Queirós.
Outras crónicas da época, como a de um jornal alemão diz-nos que o português era cantado com uma pronúncia o mais próxima "possível da italiana, fazendo com que se torne então bela e doce." (Brito, Manuel Carlos; Cranmer, David, Crónicas da vida musical portuguesa na 1ªmetade do século XIX, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990). Críticas da "Revista dos espectáculos" confirmam esta prática, que umas vezes era encarada com humor, e outras era criticada. Afinal, como se cantava em ópera português no século de Garrett e de Eça?
Não existindo, obviamente, gravações, iremos recorrer a crónicas, críticas e outras fontes primárias do séc. XIX, para tentar traçar um retrato de uma prática musical de ópera em língua portuguesa que, sem qualquer apoio do Estado, subsistia em Teatros privados e era muito popular junto do público.


Autora: Tânia Gomes Valente

Doutorada em Música e Musicologia, ramo de Interpretação, pela Universidade de Évora, com uma tese intitulada "A Língua Portuguesa no Canto Lírico: um estudo de relações entre técnica vocal e fonética articulatória", é actualmente colaboradora do CET (Centro de Estudos de Teatro) da Faculdade de Letras de Lisboa e da UniMeM (Unidade de Investigação em Música e Musicologia) da Universidade de Évora.
Iniciou os seus estudos musicais no Instituto Gregoriano de Lisboa. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas: Estudos Ingleses e Alemães na Faculdade de Letras de Lisboa e em Canto na Escola Superior de Música de Lisboa. Posteriormente obteve o grau de LGSM (Licenciate by the Guildhall School of Music and Drama) na área de "Music Recital – Voice" através do Trinity College. Como cantora, interpretou os papeis de Fanny na versão portuguesa da ópera "O Tanoeiro" de Thomas Cooper do Teatro da Trindade e de 2ª Dama de "A Flauta Mágica" de Mozart no Festival de Música do Museu do Traje. Para além de se apresentar regularmente em recitais, é membro do Coro Gulbenkian.




Como se cantava ópera em português no tempo de Eça de Queirós?

Boa tarde. O meu nome é Tânia Valente e a minha comunicação vai tentar dar resposta a esta questão: como se cantava ópera em português no tempo do escritor Eça de Queirós. É uma questão que não sei se alguma vez passou pelo espírito de alguém aqui presente, mas que passou pelo meu, quando encontrei esta frase de Eça:

"Grande arte – ou seja, bel canto – era o privilégio exclusivo do Teatro de São Carlos: aqui cantava-se em italiano, nos outros palcos musicais gania-se em português."
Eça de Queirós, "A Capital!"


"Ganir" é uma palavra muito forte e muito negativa em relação à prática de cantar em português. Por isso esta frase serviu-me de ponto de partida para traçar um pequeno quadro da prática de cantar ópera em português entre 1845 e 1900, datas de nascimento e morte de Eça de Queirós, o escritor em cuja a obra o teatro de ópera é um elemento recorrente. Não existindo gravações, que me pudessem mostrar com exactidão como se cantava, recorri aos escritos de Eça, e a crónicas e recessões críticas de espectáculos.

Começando com um pequeno enquadramento histórico, em 1836, a reforma do Teatro de Almeida Garrett criou um espaço para teatro declamado em língua portuguesa (o Teatro D. Maria II) , um Conservatório de Música, do qual João Domingos Bomtempo foi o primeiro diretor, e uma Inspeção Geral dos Teatros. A esta inspeção cabia a tarefa de atribuir os géneros e os dias de espetáculos a cada teatro, para que não houvesse concorrência entre eles. Ao Teatro de S. Carlos, inaugurado em 1793, foi atribuído o exclusivo de representações de ópera italiana e grande ópera francesa. Em nenhum outro teatro da capital podia ser escutada ópera italiana ou grande ópera francesa, enquanto estivesse aberta a temporada no TSC. O Teatro D. Fernando, numa certa altura da sua breve existência, tentou contornar esta proibição, pedindo licença para apresentar "canto e concertos instrumentais e vocais" no seu espaço, porém sem sucesso.

A prática de cantar-se na língua italiana em S. Carlos não era porém uma imposição legal. O italiano era visto como uma língua culta e existia no teatro toda uma estrutura de produção montada com elementos maioritariamente italianos, pelo que até a própria grande ópera francesa era cantada em italiano. Encontramos uma prova desta prática nesta citação de Eça de Queirós no Primo Basílio, quando Luiza vai ao TSC assistir a uma representação do "Fausto" de Gounod:

"… e Fausto e Margarida enlaçados, quase desfalecidos, soltavam de um modo expirante o seu dueto (…) e desprendendo-se da lânguida arcada dos violoncelos, o canto subia para as estrelas…
Al pálido chiarore
Dei astri d'oro."






Apesar de ser um teatro italiano, e frequentado exclusivamente pelas elites, o S.Carlos era um teatro subsidiado e protegido pelo Estado. Isto revoltava Eça de Queirós:
"D. Maria é a jangada da Medusa da arte nacional. Aí sobrenadam, num esforço heróico, os restos da velha geração artista. Actores de vontade e de talento, um director excelente – lutam com a escassez da literatura, com a inércia do público, com as dificuldades económicas. E verdadeiramente uma jangada – admirável pelo esforço, incompleta pela organização: boa para lutar, imperfeita para navegar.
S. Carlos, esse, chilreia."
Eça não conseguia perceber como podia o governo patrocinar um entretenimento estrangeiro para as elites e deixar ao abandono o teatro em língua portuguesa:
"(…)qual é a atitude do Estado, respectivamente aos teatros?
É esta: O Governo não dá nada aos teatros nacionais;
E dá 25 contos a S. Carlos!
Ora que o Governo nos responda: – «É o Governo obrigado a auxiliar e a subsidiar a arte teatral?»
– Não. – Então para que dá subsídio a S. Carlos?
– É. – Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional?
Se o Governo entende que deve abandonar à indústria, à iniciativa particular, à concorrência, à espontânea acção das vocações, a arte dramática – para que faz uma excepção ao teatro italiano, protegendo-o?
Se o Governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civilização e de cultura moral – então para que faz uma excepção ao teatro português, desamparando-o?
Que o Governo pois se decida: Ou se declara indiferente e desinteressado em questões de teatro – e então fecha igualmente os seus cofres aos galãs e aos tenores; Ou se declara responsável pelo desenvolvimento deste progresso intelectual – e então dá um subsídio ao teatro nacional."

De entre estes teatros não apoiados pelo Estado, para além do D. Maria II, estava o Teatro do Ginásio, o Teatro da Rua dos Condes, o Teatro da Trindade e o já referido Teatro D. Fernando. Era nestes teatros, que subsistiam sem apoios que existiam peças teatrais em português ornadas de música, que não chegavam a ser "grande ópera", como no TSC, mas operetas, farsas líricas e "mágicas".
Em 1848 o Teatro de Ginásio, com a estreia de A Marquesa, de António Miró, "inaugura a ópera cómica nacional", segundo o dicionário de Ernesto Vieira. A ideia para esta ópera partiu do próprio Miró - maestro que já passara pelo TSC e pelo Teatro das Laranjeiras. Porém teve a oposição do então ensaiador do teatro, Emílio Doux, que argumentava "que os artistas daquele teatro não tinham condições para cantar". Ironicamente, o mesmo Emílio Doux, a 24 de Maio de 1841, publicava o seguinte anúncio na Revolução de Setembro:
"Teatro da Rua dos Condes: A empresa deste teatro tendo resolvido dotar o país de um teatro nacional de canto, convida todas as pessoas que se acham no caso de poder cantar nas ditas óperas, a apresentar-se no dito teatro para tratar com o director Emilio Doux".

Isto faz lembrar um pouco aqueles castings de televisão, em que a promoção diz "achas que sabes cantar?" ( neste caso, ópera). Então aparece lá no teatro, para o director te ouvir.
E ao que parece, este primeiros espectáculos (promovidos por Emilio Doux) no Teatro dos Condes eram "de pouca qualidade (justamente) devido à manifesta falta de preparação dos intérpretes" (tal como nos programas de tv). Já no Teatro do Ginásio, com a demissão de Emílio Doux , os artistas "redobraram a energia e ensaiaram rapidamente a ópera-cómica" A Marqueza, que estreava a 4 de Outubro. A expectativa em torno da "ousadia do Ginásio em querer cantar árias e duetos a escassos metros da «catedral»" (o TSC), fez com que a crítica mais conservadora prevenisse o público, no sentido de não esperar "ouvir cantores de primeira ordem". Porém o resultado foi surpreendente. Apesar de, naturalmente, este grupo de atores não ter condições para cantar como as estrelas do S. Carlos, conseguiram encantar o público e os críticos da época. Segundo O Patriota, a ópera-cómica tinha sido cantada «muito melhor do que se julgava», graças ao empenho dos artistas, que conseguiram cantar «volatas, trinatos e outras dificuldades, que só se devem exigir a bons artistas de canto". Apesar de muitos deles ignorarem «até as notas de música, canta[ra]m romances e sobretudo peças concertantes».
Aquando de reexibição da mesma opereta em 1862, num elenco onde estava o ator Taborda, que já cantara na estreia, foi publicada na Revolução de Setembro uma nova crítica positiva à prestação dos atores-cantores:

"A ópera-cómica difere do romance neste ponto, porque o libretista fez o homem cantor, para dar pretexto ao Sr. Taborda, ao Sr. Simões, e às Sras. Maria José e Florinda de cantarem entre si, mais ou menos aprazivelmente. (…) A execução merece louvores a artistas tão pouco experimentados em ópera cómica, como os do Ginásio. A Sr. Florinda, cujo nome está mesmo dizendo que ainda é flor, reúne os dotes de uma voz fresca e simpática às tentações da beleza peninsular. (…) Na parte da Marquesa, a Sra. Maria José deu prova de um talento delicado (…) O Sr. Simões foi um conde grave e ridículo ao mesmo tempo, como convinha; - o Sr. Taborda mostrou-se o artista simpático de toda a forma, que tem recursos para se fazer estimar, quando declama, quando está calado, e até quando, como nesta peça, faz de primeiro tenor dos italianos, e tem a sinceridade de se deixar ouvir."

Contemporâneo de Eça de Queirós, Francisco Alves da Silva Taborda foi considerado um dos melhores atores da sua geração, não apenas por ser "um ator cheio de disposição e naturalidade", mas também pela sua versatilidade, que o levou muitas vezes a cantar papeis de tenor, ao que parece, com bastante qualidade. Também contemporânea de Eça é Florinda de Macedo, que interpretou não apenas esta ópera no Ginásio, mas também várias óperas-cómicas e operetas de Offenbach e Lecocq, que Eça terá escutado no Teatro da Trindade. Dela dizia outra crónica da época que possuía "grande formosura e tinha uma voz forte e de belíssima sonoridade, maleável e de boa técnica, o que associado a uma notável desenvoltura cénica, fez de Florinda de Macedo um dos grandes nomes do Trindade durante muitas épocas consecutivas." É interessante esta descrição, porque parece que estão a falar uma prima-donna de S. Carlos, quando na verdade estão a falar de uma actriz de teatro, que cantava ópera muito, e em português!
A partir de 1868, já com Eça de Queirós a residir em Lisboa, os teatros populares começam a apresentar operetas de Offenbach, adaptadas à língua portuguesa.
Eça utiliza excertos destas operetas de Offenbach nalguns seus romances, como O Primo Basílio, onde evoca várias vezes a ária da carta da Grã-Duquesa de Gerolstein, ou aqui neste excerto da Tragédia da Rua das Flores, que principia no Teatro da Trindade, justamente durante uma récita do Barba Azul:
"No entanto, no palco, cinco mulheres enxovalhadas, de cabelos ignobilmente riçados, com decotes lassos que descobriam clavículas necessitadas, cantavam em linha, com tons agudos, num ritmo pulante.
Mortas desta cova
Surgi pa-ra a vida
Pa-ra a vida, pa-ra a vida!...(…)
E as cinco magricelas, em fila, retomando o quinteto, ganiam.."
Chamo a vossa atenção neste excerto para a descrição de Eça faz das cantoras, que dá a entender que seriam pessoas de classes sociais muito carenciadas. Além disso, elas não cantavam, "ganiam". Mais uma vez, Eça associa a prática de cantar em língua portuguesa ao verbo "ganir". Para Eça, em Portugal não se cantava bem em português: "o repertório estrangeiro é feito pelas boas vozes, educadas, criadas nos conservatórios, formadas pelo gosto e pela tradição dos teatros especiais."
Eça refere-se à formação que os cantores estrangeiros tiveram nas suas escolas de canto e países de origem, a qual seria a adequada para cantar o seu repertório nacional (sendo o exemplo maior a Escola Italiana). Como em Portugal não existia a tradição de cantar em português, era necessário, segundo Eça, "escolher operetas que possam facilmente atravessar as estreitas gargantas nacionais; e no vasto repertório estrangeiro tem de preferir as operetas fáceis, as «de meia garganta», as operetas constipadas. Fica assim reduzido o número a cinco ou seis imbróglios espanhóis, debilmente instrumentados, a que a Trindade se vai amparando como a muletas provisórias."
Além disso, tal como no Teatro do Ginásio e dos Condes, também na Trindade estas óperas eram interpretadas na maioria por atores de teatro, que nem sempre tinham a melhor preparação vocal, até porque nem teriam recursos financeiros para estudar canto. Como resultado….
"…ora das gargantas dos nossos cantores – donde saem decerto palavras sérias, nem sempre saem notas justas".

É possível que nesta época se julgasse que a passagem da declamação para o canto fosse um passo natural para um ator. Isto terá levado a uma multiplicação do número de cantores em Lisboa, como nos diz Júlio César Machado:
"Quando a gente diz teatros de declamação é como falar daquele homem, que se dizia «antigo proprietário dos antigos terrenos do antigo Tivoli». Teatros de declamação são os teatros onde se declamava noutro tempo. Hoje canta-se por aí em toda a parte, e a Itália que se desvanecia com a ideia de ser a mãe pátria dos cantores principia a estar vexada de observar que em Lisboa de um dia para o outro rebentam cantores como cogumelos!"

Porém, este passo do teatro declamado para a ópera era normalmente dado sem os artistas receberem a formação adequada. Além do mais, parece que os próprios empresários de teatro nem sempre valorizavam quem tivesse estudado música, como nos mostra o mesmo Machado neste episódio interessante, a propósito da escolha de cantores para O Chalet:

"Quando se tratara de dar ópera-cómica, reuniram-se todos, e o Romão falou:
- Algum de nós canta?
-Eu não! – disse o Pereira. (…)
Nisto o Marquês ia pedir a palavra para uma declaração, e explicar que, na sua qualidade de antigo menino do coro, havia em tempos aprendido música.
- Ah! Tu aprendeste música? Então também não serves. No teatro, quem haja aprendido musica, desafina."
Esta desqualificação artística dos intérpretes, enquanto cantores, contribuía para a "desvalorização cultural dos espetáculos" (Carvalho, 1992:122) e da própria língua portuguesa enquanto língua para o canto. Porém, existiam opiniões divergentes, como veremos mais adiante.

Voltando a Eça de Queirós, se é verdade que nos seus romances, descrevia a sociedade em grande pormenor, também é verdade que ele era um crítico mordaz dessa mesma sociedade, e que as muitas referências musicais que surgem nas suas obras eram utilizadas com um sentido irónico. Por exemplo, no Primo Basílio, pode-se afirmar que "nenhuma das citações empregadas por Eça de Queirós são gratuitas ou nascem sem um propósito definido e eficaz" (Valentim, 2010:146), como acontece aqui, em que Luísa rejubila, ao pensar no encontro com o seu amante, enquanto Juliana "goza" com ela:

"Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante: achava tão delicioso viver, sair, ir à Encarnação, pensar no seu amante! (…) Saiu correndo, tontinha, cantarolando:

Amici, la notte è bella…
La ra la la…
Quase topou com a Juliana (…)
- Canta, piorrinha, canta, cabrazinha, canta, bêbadazinha…!
E ela mesma, tomada de um júbilo agudo, atirou vassouradas rápidas, soltando a sua voz rachada:

"Além d'amanhã termina a campanha,
P-o-o-or aqui se diz…
Se tal for verdade, se não for patranha…
E com um espremido enfático:
Serei bem feliz!"

Eça contrapõe a felicidade exuberante de Luísa, expressa numa ária de ópera italiana, ao azedume de Juliana, já na posse da carta de Basílio, que irá desmascarar a patroa, cantando, com "voz rachada", justamente a ária da "Carta Adorada", da opereta A Grã Duquesa de Gerolstein de Offenbach. Segundo M. V. de Carvalho, nesta cena vemos, de um lado, o teatro "S.Carlos, que fazia parte da educação sentimental de Luísa, do outro o teatro de Offenbach: ou seja, de um lado, a ordem estabelecida, do outro, a sua potencial subversão". Luísa é sempre descrita como uma voz "fresca e clara". Do outro lado surge Juliana com "voz de falsete", "voz rachada" e "espremidos enfáticos". Mas, curiosamente, esta forma de interpretar a ária da Carta de Offenbach não é exclusiva de Juliana, pois Eça coloca a mesma ária da boca de Leopoldina, que é descrita como uma "voz mordente", que por vezes se "arrastava numa extensão desafinada":

"Leopoldina dava tons dolente à voz, revirava o olhar expirante, uma quadra sobretudo enternecia-a, repetiu-a com paixão: Vejo-o nas nuvens do céu… (…)
E Leopoldina terminava com ais! Em que a sua voz se arrastava numa extensão desafinada."

Se Luísa representa o TSC e Juliana e Leopoldina os teatros populares, poderemos então presumir que a sua forma de cantar também está relacionada com o contraste que existia entre "bel canto", por um lado, e canto em português, por outro?
Vejamos outras opiniões, nomeadamente do nosso cronista Júlio César Machado (1835- 1890). Antes de iniciar a sua atividade de cronista, Machado passou pelo Teatro do Ginásio, onde foi tradutor, nomeadamente da ópera-cómica O Chalet (texto de Scribe, música de Adam). Machado descreve-nos assim esta experiência:


"Tratava-se, nem mais nem menos, de passar para português os versos do original, por maneira que coubessem na música francesa, e tivessem nas palavras a mesma acentuação; tal verso precisava que a primeira sílaba fosse aberta, a segunda surda, se eu principiasse por uma palavra em que a primeira sílaba fosse fechada, estava tudo perdido para o canto. As dificuldade para isto na nossa língua são consideráveis: (NOMEADAMENTE, A) cada vogal em português tem umas poucas de pronuncias: pára, para, Pará; de outras vezes, contendo-se as silabas gramaticalmente, acha-se tudo estragado musicalmente, quando duas vogais se embebem uma na outra; ainda de outras, se a pausa, o acento predominante que há sempre numa das silabas da palavra, e que é onde se demora a pronuncia, não for guardada na palavra correspondente, (etc. E SE TUDO ISTO CORRER MAL) o canto ressentir-se-à."

Esta descrição de Machado é sintomática das dificuldades que existiam em adaptar uma peça estrangeira para a língua portuguesa, não só por não ser a língua para a qual a música foi pensada, mas pelas próprias características da língua. Nesta tarefa, Machado contou com a preciosa ajuda do maestro Frondoni. É possível que outros tradutores de ópera, que não tivessem o talento de um Machado, ou a ajuda de um Frondoni, tenham feito más adaptações de ópera ao português, como nos mostra Eça de Queirós, numa passagem dos "Maias", na qual João da Ega, acabado de chegar de Sintra, compara a horrível cozinha do Vitor às traduções das comédias do Ginásio, de francês para "calão":

" Não, não tinha jantado. E via já ali uns ovos moles nacionais, que o encantavam, enfastiado como vinha da horrível cozinha do Victor. Oh, que cozinha! Pratos lúgubres, traduzidos do francês em calão, como as comedias do Ginásio!

Uma crónica do Allgemeine Musikalische Zeitung de 30-6-1808 chama-nos a atenção para uma prática curiosa, de cantar em português com uma "pronúncia que se tenta aproximar o mais possível da italiana, fazendo com que se torne bela e doce".

"No entanto, aqui como em toda a parte, a ópera cómica e a opereta mais curta, popular, ou cómica, fazem decerto mais sucesso e atraem um público mais numeroso, embora não mais respeitável. Contudo, a primeira, em geral, e a segunda, sempre, são escritas na língua nacional, cuja pronúncia cantada se tenta aproximar o mais possível da italiana, fazendo com que se torne então bela e doce."

Esta prática de cantar em português com pronúncia italiana devia-se ao facto de alguns dos intérpretes de ópera em português serem de origem italiana:

«Sobressaiu na parte de Gina a Sr.ª Persoli, já conhecida dos dilettanti de S. Carlos. A jovem cantora revelou uma notável tendência para a declamação, em que pode vir a ser eminente, modificando com o tempo o acento pátrio da sua pronúncia. Foi uma bela aquisição de que deve felicitar-se a empresa.»

Porém, nem sempre esta prática era bem vista pela crítica:

« A Sr.ª Drusilla desempenhou com graça e habilidade a parte que lhe coube, distinguindo-se também num papel cómico o Sr. Sargedas. (…)
Recomendamos-lhe, sobretudo, algum cuidado na pronúncia das palavras, porque é realmente desagradável ouvir num teatro da capital apausiguar, holocasto, e outras incorrecções igualmente indesculpáveis. »



No geral Júlio César Machado expressa em relação aos cantores portugueses uma opinião mais positiva que Eça, apesar de ele próprio também ser um crítico muito mordaz da sociedade lisboeta oitocentista. A propósito de uma prática, bastante conhecida em S. Carlos, mas que também contagiou o Teatro da Trindade, que era a prática das claques encomendadas, Machado tece este comentário:

"As zarzuelas às vezes, na Trindade, esfriam por falta de bravo! bravo! bravo! … Quanto pior se canta, mais numerosos são os aplausos, é como nas salas, quando a menina do Dr. Ramiro canta a ária da Favorita, ou a Sombra ligeira da Dinorah, ou qualquer coisa que lhe lembre pelo mais funesto dos sucessos. Ou romper em palmas, ou torcer-se uma pessoa a rir."

Após este comentário, Machado apressa-se a explicar que "na Trindade não se canta mal!"
"…e até considero pasmoso que artistas que nunca haviam cultivado os seus dotes vocais possam desempenhar-se de tantas e tantas operetas, zarzuelas, óperas cómicas. Eles não cantam mal, remedeiam. Fazem-me lembrar o leite que a gente bebe a bordo dos vapores ingleses. É um arranjo de água com farinha, e algum leite, creio eu. Quando se diz ao moço:
- Isto não é leite, homem!
- No, but it is a very fine substitute!
Assim é isto. Não é propriamente cantar bem, mas é uma boa substituição."(Machado, 1875:160)

Por esta afirmação podemos concluir que na Trindade e noutros teatros populares não se fazia bel-canto, apenas cantava-se ópera em português…como se podia! Umas vezes bem, outras menos bem, e noutras, se calhar, efetivamente "gania-se!" Mas o importante é que se fazia um grande esforço para montar um espetáculo, com poucos recursos. Machado tem uma visão mais compreensiva do que a do autor d'Os Maias, e mais de acordo com o próprio público que frequentava estes espetáculos, que seria bem menos exigente que o do TSC. Ele entende que estes artistas, que não tiveram a formação das vozes que passam pelo TSC, (as quais, como mostram críticos da época, e o próprio Eça, também não seriam sempre as melhores) conseguiam fazer bastante, apesar dos poucos recursos de que dispunham e apesar da exigência de cantarem repertório muito díspar. Um outro cronista da Revolução de Setembro, a propósito da récita ópera-cómica O mestre Capela, em 1849, também mostra uma visão compreensiva:

"São desculpáveis quaisquer defeitos que porventura possam aparecer no canto: todos sabem que os artistas do Ginásio não são cantores de profissão, e por isso todos os esforços que fazem para captar as simpatias do público são louváveis e dignos de serem premiados pelo público, concorrendo a um teatro que no seu género é único entre nós."(RS,6-7-1849)

Eça pende para uma visão mais crítica, talvez como forma de denunciar que o nosso país não dava aos seus artistas a formação mais adequada, nem se esforçava no sentido e ter uma ópera nacional:
"Ópera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a criação musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos." (Queirós/Ortigão, 2004:303)

Apesar dos esforços dos liberais para laicizar o ensino da música, com a extinção da Escola do Seminário da Patriarcal, a verdade é que o Conservatório nunca conseguiu formar uma Escola de Canto ou de composição de índole nacional.


Quando um artista tinha talento, se não tivesse fortuna familiar ou algum mecenas, não tinha do Governo qualquer apoio para estudar fora do país. Por outro lado, aqueles cantores que conseguiam estudar e construir uma carreira internacional nem sempre encontravam em Portugal (mais precisamente no TSC) uma boa receção. Assim aconteceu com Alfredo Gazul e os irmãos Andrade, o que levou a que estes artistas deixassem praticamente de atuar em Portugal, ou desistissem mesmo de cantar!

A mesma sorte tinham os compositores nacionais, que tentavam escrever ópera, como Sá Noronha ou Augusto Machado, que Eça terá retratado n'Os Maias na figura do maestro Cruges. Num episódio em que o talentoso Cruges toca a sonata "Patethique" de Beethoven no salão da Trindade perante um público endafado, Eça procurou chamar a "atenção para a fraca componente de cultura musical na sociedade portuguesa", a qual desconhecia de tal forma a obra de Beethoven que "a senhora Marquesa de Soutal, perante o exacto esclarecimento de João da Ega, que ela não ouviu bem, sobre o nome da peça, disse muito seriamente à sua roda que se tratava da «sonata pateta»".
O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição dele, aquela coisa triste?
- É de Beethoven, Sr.ª D. Maria da Cunha, a Sonata patética.
Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marquesa de Soutal, muito séria, muito bela, cheirando devagar um frasquinho de sais, disse que era a Sonata pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos sufocados. A Sonata pateta! Aquilo parecia divino!

Ainda assim, houve no tempo de Eça atores, ), que se conseguiram afirmar igualmente como cantores, como Rosa Damasceno,Taborda, Sargedas, ou ainda Francisco Palha , um dos fundadores do Teatro da Trindade, onde introduziu a zarzuela e as operetas de Offenbach. Estes actores eram muito elogiados pela crítica, enquanto cantores, como podemos verificar nestas citações. Infelizmente os seus "nomes e talentos não têm merecido a honra de figurar ao lado dos «cantores de ópera» portugueses"( Carvalho, 1992:121).

E queria concluir esta apresentação com esta frase de José de Meireles:
"Fomos sempre muito negativos em qualquer campo das Artes, no tocante às habilidades dos portugueses (…) Isto vem a propósito de comentários à saída (dos teatros), como se fosse possível exigir dos cantores portugueses a mesma responsabilidade daqueles que nos levam grossas divisas, enquanto cá dentro, os nossos artistas «medem fita de nastro» e num intervalo ensaiam e à noite cantam."

Esta frase é bastante demonstrativa de uma realidade, infelizmente ainda muito atual. É muito difícil para um cantor, hoje em dia, viver apenas da sua arte, por razões que todos conhecemos, pelo que têm que de desdobrar a fazer outras coisas, a fim de sobreviver. Das senhoras com grandes vestidos e joias, que Eça tão bem retratou, para as senhoras com casacos de vison que hoje vemos nas óperas poderá não ter havido uma grande evolução a nível cultural. É evidente que houve mudanças, a nível da formação musical, da acessibilidade desta mesma formação e da difusão da cultura musical, porém pouco se tem avançado no domínio da divulgação do nosso património artístico, sobretudo da ópera. O que seria bom era que de facto se cantasse mais ópera em português e houvesse público para a escutar.






BIBLIOGRAFIA

Monografias e capítulos de livros:

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Artigos
Carvalho, Mário Vieira de, "A cultura musico-teatral na ficção queirosianas", Investigação, Edição e Estudos Críticos de Música Portuguesa do séc. XVIII ao séc. XX, CESEM, FCSH, Universidade Nova de Lisboa

Carvalho, Mário Vieira de, "Eça de Queirós e a ópera no século XIX em Portugal" , In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 91, Maio 1986, p. 27-37.

Valentim, Jorge, "De sopranos e barítonos ou como Eça de revisita a ópera do séc. XIX", Abril - Revista do Núcleo de Estudos, de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 3, n° 5, Novembro de 2010, p. 139-148

Vasconcelos, Ana Isabel, "A farsa lírica no Teatro Romântico ou a forma mínima da desejada nova ópera portuguesa", in Forma Breve 5. Teatro Mínimo, Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007, pp. 139-150


Periódicos
A Revolução de Setembro, 1848-1869
O Patriota, 1848
Revista Popular, 02/1851
Revista dos Espectáculos, 08/1850


Sites:

CETbase - Teatro em Portugal - fl.ul : ww3.fl.ul.pt/CETbase/




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