Como seria a biblioteca de Matteo Ricci?_2007

October 12, 2017 | Autor: Rui Manuel Loureiro | Categoria: Jesuits in China
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METAHISTORY History questioning History METAHISTÓRIA História questionando História

Festschrift in honour of Professor Teotónio R. de Souza Homenagem ao Professor Doutor Teotónio R. de Souza

Editors / Organização

Charles J. Borges, S. J. & Michael N. Pearson

Nova Vega Lisboa, 2007

38 COMO SERIA A BIBLIOTECA DE MATTEO RICCI? Rui Manuel Loureiro

O itinerário biográfico de Matteo Ricci no interior da China, até à sua morte em 1610, é suficientemente conhecido para que seja necessário retomá-lo aqui em grande pormenor.1 Bastará lembrar que o jesuíta italiano, não contando com as tentativas cedo interrompidas de Michele Ruggieri,2 foi o primeiro europeu que de uma forma sistemática e continuada desenvolveu estudos de língua e de cultura chinesa, de início a partir de Zhaoqing, primeira missão jesuíta em território do Celeste Império, depois em Shaozhou, de seguida em Nanchang, e assim sucessivamente, num lento caminho ascensional, que em 1601 o conduziria a Pequim, a capital imperial chinesa. A vida de Ricci, desde o momento em que desembarca em Macau em 1582, está permanentemente ligada aos livros e à leitura, pois ele é um dos jesuítas destacados pelo visitador jesuíta Alessandro Valignano para desenvolver em território chinês a nova estratégia adaptacionista. E este processo implicava, em primeiro lugar, um afincado estudo da língua escrita chinesa, ou língua mandarim, utilizada por todo o Celeste Império como forma de comunicação oficial. Matteo Ricci, evidentemente, recorreu aos serviços de mestres chineses neste processo de aprendizagem linguística. A tarefa aparecia-lhe verdadeiramente infinita, pois numa carta escrita de Zhaoqing em 1584 referia, a propósito das “letras” chinesas, que “para cada cosa tienen la suya y está bien revuelta y enlaçada; de manera que quantas palabras ay en el mundo, tantas son las letras diferentes unas de otras”.3 Mas adiantava também que, no “aprender las letras en lengua china”, estava “tan adelante” que já poderia “predicar y confesar quando ubiese oportunidad”.4 O adaptacionismo, em segundo lugar, exigia uma imersão quase total no mundo cultural chinês, quer através de alterações radicais na vida quotidiana, com uma adopção pelos missionários dos usos e costumes dos chineses, quer através da frequência continuada da literatura clássica, verdadeira chave para a decifração da civilização sínica. Desde meados do século XVI que os missionários jesuítas destacados para a Ásia haviam começado a recolher dados sobre a realidade cultural chinesa. E desde 521

logo se tinham apercebido da extraordinária importância que os letrados detinham na China, já que praticamente toda a administração imperial lhes estava entregue, desde os mais insignificantes cargos locais e regionais até aos mais elevados patamares do poder central, junto do próprio imperador. Embora inicialmente os religiosos europeus tivessem procurado estabelecer analogias com o budismo, um conhecimento mais aprofundado da realidade chinesa, obtido ao longo de mais de uma década de vivência no interior da China, ditou alterações significativas na estratégia missionária. E a partir de 1595, os padres jesuítas começam a apresentar-se junto dos chineses como xishi ou letrados oriundos do Ocidente, de uma região que mais tarde seria conhecida pelos chineses como o ‘grande reino do mar ocidental’ ou Daxiyangguo. Passaram a ser ‘mestres da religião do Senhor do Céu’, numa tentativa de identificação com a classe dos letrados sínicos, precisamente aquela que possuía um estatuto mais elevado nos quadros sociais do Celeste Império. E, a partir de então, tudo o que dizia respeito aos mandarins chineses, e sobretudo ao seu processo de formação e de selecção, passou a constituir uma área prioritária para os religiosos europeus estabelecidos na China. Desde tempos remotos, o Celeste Império possuía um elaborado e centralizado sistema de funcionalismo público, dirigido a partir da capital imperial.5 Um exército rigorosamente hierarquizado de burocratas preenchia os sucessivos níveis da administração civil, sendo cada lugar ocupado por um período de tempo normalmente limitado a três anos. A mobilidade entre diferentes espaços geográficos e entre distintas funções administrativas era quase obrigatória, podendo uma carreira de sucesso conduzir um determinado mandarim desde um posto relativamente obscuro na administração local até ao círculo mais restrito do poder central em Pequim. O recrutamento dos funcionários públicos era realizado através de um sistema global de exames civis, com sucessivos patamares de exigência, que correspondiam aproximadamente aos graus europeus de licenciado, de mestre e de doutor. O grau de xiucai, o mais baixo de todos, era obtido em exames locais, ao nível distrital; seguia-se um exame provincial, onde se podia obter o grau de juren; finalmente, os exames para acesso ao grau de jinshi, o mais elevado, realizavam-se na capital imperial. A entrada na função pública, em princípio, assegurava a qualquer chinês, independentemente das respectivas origens, uma carreira ininterrupta através da burocracia imperial, com a correspondente elevação de estatuto social. Para uma restrita porção da população chinesa, a admissão aos exames civis constituía um objectivo verdadeiramente prioritário, em função do qual se organizava toda a vida pessoal e, às vezes, familiar. E o percurso estudantil de qualquer candidato ao funcionalismo começava muito cedo, com estudos desenvolvidos em escolas locais ou com o auxílio de tutores. Todo o sistema de estudos estava orientado para a literatura, pois os exames para admissão aos diferentes graus académicos constavam quase exclusivamente de questões 522

relacionadas com os clássicos chineses. Um examinando com sucesso deveria conhecer praticamente de cor os Quatro Livros e os Cinco Clássicos, bem como diversas outras obras atribuídas a Confúcio ou aos seus seguidores.6 E também deveria ser um escritor exímio de composições poéticas e de ensaios eruditos. O ensino baseava-se sobretudo na memória, devendo cada estudante decorar textos que em conjunto totalizavam mais de 400 mil caracteres, muitos deles repetidos, claro. Para além de memorizar uma determinada obra, como os Analectos ou o Grande Ensinamento, por exemplo, o estudante deveria ainda conhecer muitos dos comentários que a propósito dessa obra haviam sido elaborados ao longo dos tempos por sucessivas gerações de eruditos. Um editor comercial do Fujian publicou em 1591 um catálogo de obras destinadas aos candidatos aos exames, o qual incluía, para além dos clássicos, livros de história, antologias poéticas, modelos de ensaios e diversos comentários aos Quatro Livros.7 O grupo mais importante de clássicos chineses, atribuídos à tradição confuciana, englobava, por um lado, os Quatro Livros: Analectos [Lunyu], Grande Ensinamento [Daxue], Doutrina do Meio [Zhongyong] e Mêncio [Mengzi]; e, por outro lado, os Cinco Clássicos: Livro das Odes [Shi jing], Livro dos Documentos [Shu jing], Livro das Mutações [Yijing], Livro dos Ritos [Li ji] e Anais da Primavera e do Outono [Chunqiu]. Para além dos comentários, que ajudavam o estudante a entender o texto nem sempre claro dos clássicos, especialmente importantes eram os modelos de ensaios, pois durante os exames os candidatos tinham de redigir textos relativamente extensos em resposta às questões que lhes eram colocadas. Durante a dinastia Ming, vulgarizou-se no sistema de exames o chamado ensaio de oito-pernas, que devia ser estruturado em outras tantas partes distintas.8 E as compilações publicadas de ensaios redigidos para anteriores exames constituíam uma preciosa ajuda para os candidatos. Matteo Ricci e os seus companheiros de missão foram descobrindo este complicado sistema de ensino a pouco e pouco, à medida que também iam entendendo a fulcral importância do grupo dos letrados na sociedade chinesa. Os religiosos jesuítas eram normalmente homens de elevada cultura, que possuíam longos anos de preparação académica e que se dedicavam ao estudo e à meditação. A cultura católica e humanística baseava-se precisamente num alargado conjunto de textos canónicos, que depois eram sucessivamente comentados e interpretados. E o ensino europeu de então também atribuía extrema relevância à memorização de determinados textos. Nada mais lógico, pois, que, uma vez definidas as premissas do adaptacionismo, os missionários europeus fossem estabelecendo analogias e realizando aproximações relativamente ao mundo dos letrados chineses. Os padres jesuítas, no fim de contas, deveriam sentir-se os letrados da Europa,9 com a radical diferença de que não lhes competia o exercício directo do poder, ao contrário do que sucedia com os mandarins chineses. Mas estes últimos apareciam cada vez mais como os interlocutores privilegiados no processo de conquista espiritual da China que a Companhia de Jesus queria levar a cabo. 523

Em 1593 Matteo Ricci escrevia que ele e um seu confrade tinham estado ocupados todo o ano “in studiare” um “corso che costumano udire delle cosi morali i letterati della Cina, che sono Quattro Libri di quatro philosophi assai buoni e di buoni documenti morali”. Acrescentava ainda que a instâncias de Alessandro Valignano estava a preparar alguns comentários em latim a esses mesmos livros. Numa referência humorística aos seus estudos de chinês, concluía que “in senectute mea mi farò putto di scola”.10 O pessoal em serviço na missão chinesa parece ter dedicado consideráveis energias à aprendizagem da língua mandarim e ao estudo da cultura erudita do Celeste Império.11 Um tal processo, parece óbvio, exigia a posse e o manuseamento de livros chineses, que os jesuítas foram adquirindo a pouco e pouco, certamente aconselhados pelos seus tutores chineses, à medida que dominavam melhor a língua dos mandarins ou guanhua. Evidentemente, os livros abundavam na China, onde a impressão através de processos xilográficos estava vulgarizada desde há muitos séculos.12 A imprensa imperial publicava regularmente edições dos clássicos confucianos, textos canónicos budistas e daoistas, bem como crónicas e corografias, que conheciam uma ampla distribuição; as administrações provinciais e regionais imprimiam constantemente obras de carácter oficial, contendo leis, regulamentos e rituais; mosteiros budistas e daoistas publicavam as suas próprias edições de textos religiosos e de obras exegéticas; academias privadas de letrados e escolas familiares ou locais produziam obras didácticas, normalmente sob a forma de comentários dos clássicos; e editores comerciais difundiam obras do mais diverso teor, desde almanaques e romances populares, até tratados de adivinhação e de medicina, passando por monografias regionais e livros de memórias. Os livros das oficinas imperiais destinavam-se sobretudo a abastecer a densa rede de bibliotecas que desde finais do século XIV se espalhara por todo o Celeste Império, associadas às escolas existentes em todas as localidades minimamente importantes. Uma biblioteca local média poderia possuir mais de três mil juan ou fascículos. Mas o mercado livreiro também era alimentado por consumidores privados, sobretudo pela classe dos letrados e pelo grupo ainda maior daqueles que pretendiam candidatar-se aos exames públicos de acesso à administração imperial. Grandes bibliotecas chinesas privadas de finais de Quinhentos podiam reunir 40 mil ou mesmo 50 mil juan. Entretanto, muitos dos que reprovavam nos exames, encontravam um modo de vida alternativo no ensino e na publicação de obras didácticas, já que na hierarquia confuciana a profissão de editor vinha logo abaixo da de letrado em termos de estatuto social. A China de finais do século XVI era, sem dúvida, um verdadeiro mundo de livros, tal a extraordinária importância atribuída à cultura escrita, quer na preservação das tradições, quer na gestão do império, quer na selecção do funcionalismo público. Os chineses, talvez mais do que qualquer outro povo, reverenciavam sobremaneira o seu vastíssimo património escrito, que procuravam preservar através de múltiplas estratégias, que passavam nomeadamente 524

pela impressão xilográfica e pelo desenvolvimento de bibliotecas.13 E, como os padres jesuítas foram avaliando, à medida que se familiarizavam com as práticas culturais chinesas, pareciam estar reunidas condições essenciais para difundir o cristianismo entre os chineses, de forma que a Companhia de Jesus optará pela lenta construção de um vasto património escrito, através da produção de manuscritos e através da impressão de livros. Ciente do contexto cultural onde se pretendia inserir, Matteo Ricci desde cedo começou a compor obras em chinês, não necessariamente dedicadas a temas religiosos.14 Em 1595, a instâncias de um dos seus amigos mandarins, preparava um ‘Tratado sobre técnicas mnemónicas’, o Xiguo jifa, que se destinava a auxiliar candidatos chineses aos exames oficiais. Embora circulasse em manuscrito, a obra só seria impressa pela primeira vez em Ganzhou, muitos anos mais tarde, em 1625. Ainda em 1595, Ricci fazia imprimir por métodos xilográficos o Jiaoyou lun ou ‘Tratado sobre a Amizade’, uma antologia de excertos de diferentes obras ocidentais, que se poderia ter baseado nas Sententiae et exempla do português André de Resende, impressas em Paris em 1590, mas também poderia ser constituída por fragmentos conservados na memória, dos seus tempos de estudante em Itália e em Portugal. O método aculturativo começava a dar os seus frutos, pois a reputação de Matteo Ricci junto dos chineses como homem de letras não parava de crescer, enquanto os seus escritos eram amplamente circulados. Ainda em 1595, o jesuíta italiano escrevia para Macau, narrando ao padre Duarte Sande um curioso episódio em que estivera envolvido. Tendo sido convidado por “alguns siuçais [xiucai] letrados do primeiro grao” em Nanchang, e pretendendo “dar mostra do que sabia das letras chinas”, solicitou aos seus anfitriões “que escrevessem muitas letras chinas de maneira que quizessem em hum papel sem ter entre si nhuma ordem”. Uma vez desenhados os carateres chineses, Ricci leu-os uma única vez, para seguidamente, de cor, os repetir pela ordem exacta em que estavam escritos. Não satisfeito com esta exibição de memória gráfica, recitou de novo todos os caracteres, desta vez por ordem inversa. Os chineses presentes “ficarão todos muito mais pasmados e como fora de si”.15 Eventualmente, graças a esta táctica de aproximação aos letrados, Ricci acabou por atingir Pequim, uma primeira vez em 1599, para dois anos mais tarde, em 1601, receber autorização oficial para se estabelecer na capital imperial. Não fora propriamente a doutrina cristã que trouxera o missionário italiano e os seus confrades tão longe, mas antes uma metodologia que combinava, em doses variadas, um enorme domínio da língua mandarim e da cultura letrada chinesa, uma grande capacidade de debate ideológico no próprio terreno da tradição confuciana, e um inteligente aproveitamento de determinados aspectos da ciência e da tecnologia europeias. Poder-se-á notar, de passagem, que os religiosos jesuítas, praticamente desde os primeiros tempos da missão chinesa, recorreram a uma diversificada gama de objectos prestigiantes para atraírem as atenções dos chineses, e sobretudo das 525

elites letradas. Para além de livros preciosos, como os oito volumes da monumental Bíblia Poliglota impressa por Christopher Plantin em Antuérpia entre 1568 e 1572, que chegaram a Pequim em 1604,16 os missionários europeus dispunham de pinturas a óleo, de prismas de cristal, de relógios de corda, de globos e de mapas. Todos estes artefactos despertavam a curiosidade dos interlocutores chineses dos jesuítas, sobretudo os mapas. Quando ainda vivia em Zhaoqing, Matteo Ricci preparara um planisfério com legendas em chinês, adaptado à visão sínica do mundo, pois nele o território do Celeste Império figurava em lugar central. Mandado imprimir pelo governador daquela cidade em 1584, com o título de Kunyu wanguo quantu, ou ‘Carta completa da míriade de países que existem sobre a terra’, o mapa de Ricci conheceu enorme sucesso, com sucessivas e emendadas edições.17 Os conhecimentos geográficos europeus, assim, foram desde logo utilizados no processo de aproximação aos letrados chineses, o mesmo sucedendo, de resto, com outros saberes especializados, relacionados nomeadamente com a matemática. Em Pequim, Ricci viria a preparar diversos textos científicos, tratando tópicos de geometria e de aritmética. Alguns deles correram manuscritos, enquanto outros foram impressos, como os seus Jihe yuanben ou ‘Elementos de Euclides’, que saíram dos prelos em Pequim em 1607, baseados numa obra homónima de Christoph Clavius que fora impressa em Colónia em 1574. E diversos missionários jesuítas distinguir-se-iam como matemáticos insignes, sendo amiúde chamados pela corte imperial para colaborarem em trabalhos relacionados com o calendário e com a astronomia, sectores verdadeiramente fundamentais do conhecimento na China da época Ming. Depois de 1601, Matteo Ricci não mais abandonaria Pequim, desenvolvendo uma estratégia diversificada, que visava, em primeiro lugar, consolidar a posição e o prestígio dos religiosos europeus junto da corte imperial, para, em segundo lugar, garantir uma relativa liberdade de manobra às missões jesuítas que se iam espalhando um pouco por todo o Celeste Império.18 Por entre múltiplos outros afazeres, Ricci procuraria cultivar a amizade de importantes letrados, alguns dos quais se chegaram inclusivamente a converter ao cristianismo, como Xu Guangqi, Yang Tingyun e Li Zhizao, todos eles membros da prestigiada Academia Imperial.19 Os académicos pequinenses mantinham ligações regulares com uma vasta rede de letrados, que a orgânica do funcionalismo público espalhava por toda a China, de forma que constituíam um apoio vital para as empresas jesuítas disseminadas pelas províncias chinesas. Ao mesmo tempo, estes letrados eram colaboradores essenciais não só no acesso à cultura clássica chinesa, mas também nos projectos jesuítas de produção e de impressão de obras filosóficas e doutrinárias em língua chinesa. Foi decerto com a ajuda de Xu Guangqi, mais conhecido como Doutor Paulo, que Ricci preparou a edição do seu célebre Tianzhu shiyi ou ‘Verdadeiro significado do Senhor do Céu’, impresso xilograficamente em Pequim em 1604. Escrita em caracteres sínicos para um público chinês, esta obra, em forma de diálogo entre um letrado chinês e um cristão ocidental, apresentava de forma sumária a doutrina 526

cristã, recorrendo a métodos de exposição tipicamente chineses para rebater ou aproveitar determinados conteúdos das filosofias chinesas.20 Matteo Ricci, baseado em anos de estudo da cultura do Celeste Império e dos seus principais textos clássicos, ensaiava uma aproximação entre a religião do Senhor do Céu e determinados aspectos e conceitos do pensamento filosófico chinês. A obra conheceu um significativo sucesso, sendo posteriormente reimpressa numerosas vezes. O grande catecismo ricciano, parece evidente, pressupunha a existência ou a utilização de uma importante biblioteca de textos europeus e chineses. Os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola e as Constituições da Companhia de Jesus, textos jesuítas fundacionais, assim com a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento, fariam obrigatoriamente parte desse fundo bibliográfico. Mas ao longo das páginas do Tianzhu shiyi encontram-se muitas outras referências livrescas, algumas implícitas, muitas delas explícitas. Entre os autores ocidentais, destacam-se sobretudo Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, cujos ensinamentos são regularmente convocados nos escritos jesuítas. E entre outros filósofos gregos, Pitágoras é repetidamente utilizado, no contexto da discussão da doutrina budista que surge no capítulo “Refutação dos falsos ensinamentos acerca da reencarnação nas seis direcções”.21 As principais fontes utilizadas por Ricci, contudo, são de origem chinesa, revelando o religioso jesuíta uma admirável familiaridade com um importante conjunto de textos clássicos chineses, que deveria ter à sua disposição. Os Quatro Livros, claro, haviam sido cuidadosamente estudados, pois passagens, argumentos ou conceitos dos Analectos, do Grande Ensinamento, da Doutrina do Meio e do Mêncio são referidos em numerosas ocasiões, às vezes implicitamente, outras vezes de forma explícita.22 O mesmo sucede com os Cinco Clássicos, que Matteo Ricci utiliza em variadíssimas oportunidades, citando o Livro das Odes, o Livro dos Documentos, o Livro das Mutações, o Livro dos Ritos e os Anais da Primavera e do Outono.23 Outras obras do pensamento chinês são citadas ao longo das páginas do catecismo ricciano, como a Sutra do Lótus e o Daode jing, ou ‘Livro das Mutações’, textos fundamentais dos cânones budista e daoista, respectivamente. E os nomes de Confúcio, de Laozi e de Buda são repetidamente mencionados, numa demonstração clara de que por 1604 Matteo Ricci, com o indispensável apoio de amigos chineses como Xu Guangqi, havia cumprido um vasto programa de leituras dos clássicos do pensamento confuciano e das doutrinas daoista e budista. Pormenor curioso, o padre jesuíta cita a determinada altura o seu planisfério com legendas em chinês que corria impresso em diversas edições.24 E no entanto Matteo Ricci queixava-se em 1605, nas suas cartas para a Europa, da falta premente de livros, pedindo nomeadamente que lhe enviassem um exemplar do “libro delle Imagini del p. Natale”, referência ao Evangelicae Historiae ex ordine Evangeliorum, com mais de 150 ilustrações, que o jesuíta Jerónimo Nadal publicara em Antuérpia em 1593.25 Este pedido era justificado pelo facto de, na sua opinião, os chineses ficarem normalmente “stupiti dei libri d’imagini”, não podendo crer 527

“che siano dipinte”.26 Ricci estaria a referir-se sobretudo à escassez de livros de origem europeia, pois em Pequim não tinha decerto qualquer problema em adquirir obras chinesas. E estava atento às novidades do mercado livreiro sínico, pois em 1605 falava dos “molti libri novamente stampati” na capital imperial, referindo que lia “ogni giorno ai nostri che qui stanno qualche libro cina”.27 Nos anos imediatos, Matteo Ricci continuou a desenvolver em Pequim os seus estudos sinológicos, ao mesmo tempo que redigia múltiplos escritos em português, em italiano, e em chinês. Publicou nomeadamente, em impressão xilográfica, textos que procuravam aproveitar temáticas caras aos letrados chineses, para maior difusão de determinados aspectos da doutrina cristã, como Xizi qiji ou ‘Milagre dos caracteres ocidentais’ [1605], Ershi wuyan ou ‘Vinte e cinco sentenças’ [1605], e Jiren shipian ou ‘Dez paradoxos’ [1607]. Continuou também a dirigir uma correspondência regular em direcção à Europa, sendo algumas das suas missivas utilizadas em diversos impressos jesuítas. Prosseguiu ainda a redacção em italiano dos seus volumosos Commentarj della Cina, nos quais fazia a crónica detalhada da génese e da evolução das missões jesuítas no Celeste Império.28 Entretanto, Matteo Ricci, na sua correspondência, repete insistentemente, para Macau, para Lisboa, para Roma, pedidos de envio de livros para a missão chinesa, sobretudo obras de carácter científico, relacionadas com as matemáticas, a astronomia e a cosmografia. Pois entendera que um dos grandes argumentos que os jesuítas podiam exibir perante os letrados chineses, e mesmo perante a corte imperial, eram os seus conhecimentos científicos e os impressivos volumes saídos das tipografias europeias. Em 1608 escrevia para Roma a Claudio Acquaviva, então responsável supremo da Companhia de Jesus, que “per mezzo delle nostre scientie si ha da far molto alla christianità”, adiantando mesmo que “più si fa nella cina con libri che con parole”.29 A mensagem sobre a extraordinária importância dos livros em contexto chinês não podia ser mais clara. Através dos escritos de Ricci é possível detectar algumas das obras que fariam parte da sua biblioteca, ou antes, da biblioteca da residência jesuíta em Pequim, que depois de 1605 se localizava em Nantang. A jóia mais preciosa desse espólio livresco seria decerto a grande Bíblia Poliglota, que, segundo o missionário jesuíta, servia não só para uso dos religiosos europeus, mas também “per fare stupire a tutta la Cina de sì bello libro”.30 Igualmente muito admiradas pelos chineses, eram as duas edições do magnífico atlas de Abraham Ortelius, Theatrum orbis terrae, ambas impressas em Antuérpia, uma em 1570 e outra em 1595.31 Nelas se baseara Ricci para desenhar a sua própria ‘Carta completa da míriade de países que existem sobre a terra’. Outros títulos disponíveis em Pequim, todos eles essenciais numa biblioteca científica, seriam o Almagestum de Cláudio Ptolomeu [Veneza, 1515], o Cosmographicus liber de Petrus Apianus [Antuérpia, 1529], as Opera mathematica de Johann Schöner [Nuremberga, 1551], e o De Principiis Astronomiae & Cosmographiae de Gemma Frisius [Antuérpia, 1553].32 Pelo menos um outro livro da antiga biblioteca dos jesuítas de Pequim continha uma dedicatória a Ricci, o Astrolabivm do seu 528

antigo mestre Christoph Clavius [Roma, 1593]. Mas mais alguns títulos da biblioteca ricciana se poderiam identificar, através de referências intertextuais encontradas nos seus próprios escritos, como por exemplo as já citadas Sententiae et exempla de André de Resende [Paris, 1590]; ou as Opera de Santo Agostinho, na edição de Paris, 1586;33 ou o Epitome Arithmeticae Practicae e a Horologium nova descriptio, ambas do padre Clavius, impressas em Roma em 1585 e 1599, respectivamente;34 ou alguma das muitas edições quinhentistas de obras de Aristóteles. À data da morte de Matteo Ricci, em 1610, a missão jesuíta parecia estar firmemente implantada na capital do Celeste Império e em várias residências espalhadas pelas províncias chinesas. Tanto mais que, num extraordinário privilégio, o imperador Wanli concedera um terreno em Zhalan para sepultura de Li Madou, nome chinês do falecido padre italiano, significando que a partir de então os seus confrades teriam de permanecer em Pequim para lhe prestarem os tradicionais ritos funerários. A direcção da missão chinesa cabia agora a Niccolò Longobardi, um outro italiano, que, com o auxílio dos seus colaboradores chineses, e talvez seguindo instruções de Ricci, traçou um ambicioso plano de reforma do calendário chinês e de tradução para a língua chinesa de todo um conjunto de obras científicas complementares. E foi então decidido que um procurador viajaria para a Europa, a fim de obter apoios suplementares para a empresa chinesa dos jesuítas, que por esses anos aparecia algo marginalizada no contexto da estratégia asiática da Companhia de Jesus. O homem escolhido para a missão foi Nicolas Trigault, um jovem jesuíta originário da Flandres, que estava na China desde 1610. A missão que lhe foi confiada pelos seus confrades, entretanto, desdobrava-se em diversas componentes.35 Em primeiro lugar, o flamengo deveria tentar conseguir em Roma a autonomização da missão chinesa, assegurando ao mesmo tempo fontes de rendimento seguras. Depois, Trigault deveria obter junto das autoridades eclesiásticas aprovação explícita para a política adaptacionista que estava a ser seguida pelos jesuítas na China. Em terceiro lugar, havia que assegurar o regular abastecimento da empresa chinesa em termos de pessoal missionário e em termos de recursos materiais. Em quarto lugar, a viagem à Europa devia ser aproveitada para se adquirirem livros suficientes para que todas as residências chinesas dos jesuítas possuíssem “una honesta libreria”.36 Enfim, em quinto lugar, Nicolas Trigault era portador de diversos manuscritos, que deveria tentar publicar na Europa, de forma a dar maior visibilidade pública à missão chinesa da Companhia, que em termos editoriais permanecia ofuscada pelas temáticas japonesas. Um desses manuscritos continha os Commentarj della Cina do padre Matteo Ricci, uma volumosa “historia di questa missione”, que o jesuíta italiano compusera nos seus últimos anos de vida.37 A obra ricciana máxima, aparentemente, encontrou boa recepção nos meios romanos da Companhia de Jesus, pois seria impressa logo em 1615, em Augsburg, sob o título De Christiana Expeditione apud Sinas sucepta ab Societate Iesu. Os apontamentos originais de Ricci foram reorganizados por Nicolas Trigault durante a viagem entre Macau e Roma (curiosamente 529

efectuada em parte por via terrestre, através da Pérsia e do império otomano), que os completou com outros documentos jesuítas, nomeadamente diversas cartas ânuas, traduzindo o texto final para latim. A obra conjunta de Ricci e de Trigault conheceu um imenso sucesso através de toda a Europa, sendo a versão latina repetidamente reimpressa e logo traduzida em diversas línguas europeias. Estas sucessivas edições de um texto que se baseava em testemunhos vivenciais contribuíram para prestigiar entre os europeus a missão jesuíta da China. E este tipo de propaganda revelou-se essencial para que diversos objectivos da missão de Nicolas Trigault fossem efectivamente atingidos. Uma obra tão volumosa como De Christiana Expeditione, evidentemente, teve de recorrer a uma multiplicidade de fontes, e nomeadamente às experiências em primeira-mão de Ricci e de Trigault, que amiúde fazem uso de lembranças pessoais. Mas os dois autores utilizaram também um assinalável conjunto de textos europeus e chineses, cuja presença se pode detectar nas entrelinhas da obra.38 Em primeiro lugar, é bem visível a frequência regular da correspondência jesuíta, oriunda não só de Pequim, como das residências existentes em outras cidades chinesas, sendo alguns dos relatórios sectoriais transcritos na íntegra. Em segundo lugar, aparecem com frequência, ao correr dos sucessivos capítulos, transcrições ou paráfrases de documentos chineses relacionados com as missões jesuítas, nomeadamente memoriais de mandarins. Depois, surgem numerosas menções a autores antigos e modernos da cultura ocidental, como Demócrito, Euclides, Ptolomeu, Santo Agostinho, Girolamo Ruscelli, Jerónimo Nadal, Christoph Clavius, Abraham Ortelius. Uma curiosíssima citação respeita a Pedro Nunes, reportando-se talvez às Opera do célebre matemático português, editadas em Basileia em 1566.39 Enfim, por último, como em outros textos de Ricci, abundam as referências a obras chinesas. Por um lado, surgem com especial destaque os livros atribuídos a Confúcio, “príncipe dos filosofos chineses”, quer os Quatro Livros, designados como “Tétrabiblion”, quer os Cinco Clássicos, ou “cinco doutrinas”. Estes nove volumes, segundo Ricci e Trigault, “eram os mais antigos das bibliotecas chinesas, dos quais derivam quase todos os outros”.40 São também várias vezes mencionados na De Christiana Expeditione os escritos em chinês dos missionários jesuítas, e nomeadamente os diversos tratados impressos de Matteo Ricci, que merecem mesmo um capítulo próprio.41 Uma interessante referência negativa respeita aos livros de Xu Guangqi, o letrado chinês que em 1603 se converteu ao cristianismo. O Doutor Paulo, como lhe chamavam os jesuítas, “tinha uma bela e ampla biblioteca”, recheada dos títulos essenciais da cultura chinesa, mas depois da conversão decidiu purgar o seu espólio livresco com a ajuda dos religiosos europeus: “todos os livros interditos pelos estatutos eclesiásticos foram queimados”. Durante três dias, no pátio da casa do converso chinês, os jesuítas lançaram à fogueira todas as obras que tratavam “da arte da adivinhação e dos seus preceitos”.42 530

Poucos anos após o desaparecimento de Matteo Ricci, a missão jesuíta da China conheceria, ao menos temporariamente, tempos difíceis, pois em 1616 altos funcionários imperiais de Nanquim e de Pequim haviam desencadeado uma violenta campanha contra os missionários europeus.43 Diversos memoriais enviados ao imperador Wanli acusavam os religiosos jesuítas de variados crimes, e nomeadamente de hostilizarem as crenças sínicas tradicionais e de conspirarem para desestabilizar a ordem social chinesa, através da difusão de doutrinas subversivas. O padre Álvaro Semedo, que então se encontrava em Nanquim, viria mais tarde a resumir todas essas acusações na sua Relatione della Grande Monarchia della Cina, impressa em Roma em 1643: “a entrada furtiva no reino, a propagação de uma lei contrária aos ídolos e aos seus antepassados, a concorrência dos títulos sublimes do nosso Deus com o rei e do nosso Ocidente com o seu Oriente, a corrupção dos amigos, a destruição da astrologia chinesa por falsa e errónea, motivada pelo dano da Europa e coisas semelhantes”.44 Os cristãos, em suma, eram equiparados a uma sociedade secreta, que, através de reuniões regulares onde se praticavam estranhos ritos e através da intensa difusão de escritos heterodoxos, visavam a conquista do poder. Visão esta, que, de certa maneira, fazia todo o sentido do ponto de vista do pensamento chinês tradicional. A hipótese, aparentemente, nunca foi levantada, mas não é impossível que Shen Que e Fang Congzhe, os dois mandarins mais activos na campanha anti-cristã, tivessem sido inspirados por notícias recebidas do Japão, onde por esses anos as autoridades centrais nipónicas estavam a desencadear violentíssimas perseguições contra os jesuítas, sob acusações absolutamente idênticas.45 Apesar dos missionários terem esboçado uma defesa consistente, através de uma série de memoriais dirigidos à corte imperial, redigidos por letrados chineses cristianizados ou simpatizantes dos jesuítas, o imperador Wanli assinou em princípios de 1617 um édito decretando a expulsão dos padres europeus da China. Quase todos os jesuítas se retiraram então para Macau, mantendo a Companhia apenas um pequeno núcleo de missionários em Hangzhou, graças à protecção de Yang Tingyun, um importante letrado chinês cristianizado, conhecido nas fontes jesuítas como Doutor Miguel. Nada se sabe do que sucedeu então à biblioteca do estabelecimento jesuíta de Pequim, que fora incessantemente utilizada por Matteo Ricci, e que talvez tenha sido guardada em casas de letrados chineses simpatizantes dos padres. Mas alguns documentos coetâneos revelam o que se passou em Nanquim, onde existia também uma importante casa da Companhia de Jesus. Todo o espólio jesuíta foi cuidadosamente arrolado pelas autoridades chinesas encarregadas de executar o édito imperial de expulsão dos padres.46 A importante biblioteca jesuíta, que não seria muito diferente da que até então existira em Pequim, mereceu especial atenção aos diligentes funcionários imperiais, que em Agosto de 1617 organizaram a queima dos livros chineses relacionados com a doutrina cristã e, presumivelmente, de todos os livros ocidentais, já que dificilmente distinguiriam aqueles que se ocupavam de assuntos religiosos. 531

Os inventários oficiais referem a existência na biblioteca jesuíta de Nanquim de mais de 200 fanzi shu, ‘livros em caracteres estrangeiros’, de diversas dimensões, para além de várias estantes cheias de yishu, ‘livros bárbaros’. Tratar-se-ia da parte do espólio livresco dos jesuítas que comportava livros europeus versando temas religiosos, filosóficos e científicos. Todos terão sido queimados. Outra secção da biblioteca incluía fanshu, edições impressas de ‘livros estrangeiros’ traduzidos para chinês, algumas delas em vários exemplares. Este conjunto dizia respeito às traduções e às adaptações de obras ocidentais de carácter científico e técnico produzidas pelos jesuítas desde os primeiros tempos da sua presença na China, como os Jihe yuanben [‘Elementos de Euclides’], de que são arrolados 12 exemplares. O inventário identifica estes títulos como “livros sobre cálculos astronómicos” e refere que serão oportunamente enviados para Pequim.47 Uma distinta secção das listas oficiais incluía 7 títulos de obras de doutrina cristã impressas em chinês, num total de 248 volumes. O Tianzhu shiyi de Matteo Ricci, com 57 exemplares, encabeçava a lista, a qual englobava também Ershi wuyan [‘Vinte e cinco sentenças’] e Jiren shipian [‘Dez paradoxos’], ambos de Ricci, respectivamente com 37 e 2 exemplares. Toda esta secção de “livros que servem para iludir o povo” foi queimada.48 Uma outra parte do inventário de Nanquim respeita aos livros chineses existentes na biblioteca da missão jesuíta estabelecida naquela cidade. São arrolados 63 títulos de obras chinesas, que totalizavam mais de 300 volumes.49 Aqui, pela primeira vez, aparecem listados os títulos mais manuseados pelos jesuítas na aprendizagem da língua chinesa e na familiarização com a cultura clássica da China. Curiosamente, quase todas as obras incluídas na listagem eram de leitura obrigatória para os candidatos aos exames civis. O que significa que os jesuítas estavam a tentar compreender e dominar o conjunto mínimo de conhecimentos literários que eram exigidos aos letrados chineses, com o evidente objectivo de com eles poderem estabelecer um frutuoso diálogo. Os clássicos confucianos ocupavam cerca de um terço desta secção da biblioteca jesuíta, que incorporava edições dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos, num total de 129 volumes. Faziam também parte do espólio diversos clássicos daoistas, e nomeadamente uma edição do Daode jing. A biblioteca jesuíta incluía ainda, para além comentários dos clássicos, de dicionários e de enciclopédias, diversas obras relacionadas com a história, a literatura, a medicina, a música e a arte da guerra. Todas as obras em conjunto, enfim, parecem configurar a biblioteca de um estudante que se quisesse preparar para os exames chineses, o que deverá querer dizer que as escolhas livrescas dos jesuítas seriam ditadas pelos mestres chineses com quem aprendiam a língua mandarim. Eventualmente, os jesuítas haveriam de readquirir o favor das autoridades imperiais, graças a uma insistente campanha levada a cabo a partir de Hangzhou e de Macau, que envolveu também importantes mandarins chineses.50 Em 1621 os religiosos inacianos estavam de regresso a Pequim, começando de imediato a reconstituir o seu fundo livresco, que em breve se enriqueceria extraordinariamente 532

com a chegada, enfim, do espólio bibliográfica trazido da Europa por Nicholas Trigault. Entretanto, parece evidente que as actividades multidisciplinares de Matteo Ricci, entre 1583 e 1610, foram fundamentais para a constituição em Pequim de uma relevante e inovadora biblioteca, que promovia a confluência entre dois mundos livrescos, o europeu e o chinês, que até então se tinham basicamente ignorado um ao outro. A biblioteca ricciana, tal como pode hoje ser reconstituída a partir de indícios contidos nos seus principais escritos, reuniria um alargadíssimo conjunto de manuscritos e de impressos, tanto ocidentais como orientais, que permitiriam estabelecer pontes textuais entre a cultura religiosa e científica da Europa quinhentista e o mundo da literatura clássica chinesa. Enfim, uma biblioteca muito própria, traçada à medida das imensas aspirações intelectuais do jesuíta italiano, que configura um singular paradigma de encontro cultural nos alvores da modernidade.

NOTAS 1 Vd., de entre uma vasta bibliografia, Jonathan Spence, The Memory Palace of Matteo Ricci, Nova Iorque, Penguin Books, 1985; George L. Harris, “The Mission of Matteo Ricci, S. J.: A Case Study of an Effort at Guided Culture Change in China in the Sixteenth Century”, Monumenta Serica, Los Angeles, 25 (1966), pp.1-168; e Liam M. Brockey, The Harvest of the Vine: The Jesuit Missionary Enterprise in China, 1579-1710 [dissertação de doutoramento policopiada], Providence, Rhode Island, Brown University, 2002, pp. 19-57. 2 Rui Manuel Loureiro, “Primórdios da sinologia europeia entre Macau e Manila em finais do século XVI”, Revista de Cultura, Macau, 2 (2002), pp. 6-23. 3 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche del P. Matteo Ricci S. I., 2 vols, Macerata, Premiato Stabilimento Tipografico, 1911-1913, vol. 2, p. 45. 4 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 49. 5 Sobre o funcionalismo público chinês e o respectivo sistema de exames, vd. Ichisada Miyazaki, China’s Examination Hell – The Civil Service Examinations of Imperial China, New Haven, Yale University Press, 1981; e sobretudo o monumental estudo de Benjamin A. Elman, A Cultural History of Civil Examinations in Late Imperial China, Berkeley, University of California Press, 2000. 6 Sobre os clássicos chineses, vd. a exposição de Claude Larre, Les Chinois, Paris, Editions Lidis, 1981, pp. 148-173. 7 Kai-wing Chow, “Writing for Success: Printing, Examinations, and Intellectual Change in Late Ming China”, Late Imperial China, Baltimore, 17, 1 (1996), pp. 120-157. 8 Benjamin A. Elman, A Cultural History, pp. 391-399. 39p1B o39-m .ayrH 1pr9-m ut.neH sE jm E ,lintA yC a,luanr,A A luB itjn.uel. 9 Chinese Traditions and Universal Civilization, Durham, Duke University Press, 1997.37p15-., 10 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, pp.117-118. 11 A respeito dos estudos linguísticos dos missionários, vd. Liam M. Brockey, The Harvest of the Vine, pp. 313-374. 12 Sobre a produção e circulação de livros na China, vd. Kai-wing Chow, “Writing for Success”, pp. 120-157; e Timothy Brook, The Confusions of Pleasure - Commerce and Culture in Ming China, Berkeley, University of California Press, 1999. 13 Roger Chartier, “Gutenberg Revisited from the East”, Late Imperial China, Baltimore, 17, 1 (1996), pp.1-9.

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14 Sobre as obras de Ricci em chinês, vd. Henri Bernard, “Les adaptations chinoises d’ouvrages

européens”, Monumenta Serica, Pequim, 10 (1945), pp. 1-55 & pp. 309-388 (cf. pp. 313-333); Jonathan D. Spence, The Memory Palace, passim; e Yu Dong, Catalogo delle Opere Cinesi Missionarie della Biblioteca Apostolica Vaticana [XVI-XVIII sec.], Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, 1996, pp. 76-79. 15 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p.155. Vd. Jonathan D. Spence, The Memory Palace, pp. 138-139. 16 Jonathan D. Spence, The Memory Palace, pp. 87-89. 17 Richard J. Smith, Chinese Maps - Images of ‘All Under Heaven’, Hong Kong, Oxford University Press, 1996, pp.42-49; e Yu Dong, Catalogo, pp. 76-77. 18 Sobre os primeiros jesuítas em Pequim, vd. Andrew C. Ross, A Vision Betrayed – The Jesuits in Japan and China, 1542-1742, Edimburgo, Edinburgh University Press, 1994, pp.118-154; e Liam M. Brockey, The Harvest of the Vine, pp. 19-89. 19 Willard J. Peterson, “Why Did They Become Christians? Yang T’ing-yün, Li Chih-tsao, and Hsü Kuang-ch’i”, in Charles E. Ronan & Bonnie B.C. Oh, eds, East Meets West – The Jesuits in China, 1582-1773, Chicago, Loyola University Press, 1988, pp. 129-152. 20 Matteo Ricci, The True Meaning of the Lord of Heaven [T’ien-chu Shih-i], eds Douglas Lancashire, Peter Hu Kuo-chen & Edward J. Malatesta, Taipé, Ricci Institute, 1985, pp. 10-38. 21 Cf. Matteo Ricci, The True Meaning, pp. 239-283 [original em inglês]. 22 Cf. Matteo Ricci, The True Meaning, pp. 53, 65, 105, 111, 119, 123, 171, 179, 189, 231, 285, 287, 303, 307, 375 e 429. 23 Cf. Matteo Ricci, The True Meaning, pp. 57, 99, 123, 125, 177, 185, 301, 303, 307, 329, 337, 375, 387 e 429. 24 Matteo Ricci, The True Meaning, p. 243. 25 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 260. 26 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 272. 27 Opere Storiche, vol.2, pp. 256 e 258. 2vo p5e, O ch ep8c.6re h2oieS r,pt.erlO p 28 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.1, pp. 1-610. 29 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 343. 30 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 282. 31 H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque du Pé-T’ang, Paris, Société d’Edition Les Belles Lettres, 1969, ns. 2355-2356. 32 H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque, ns. 819, 1672, 2518 e 2711. 33 H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque, ns. 798, 898. 34 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol. 2, p. 363. 35 Edmond Lamalle, “La Propagande du P. Nicolas Trigault en faveur des missions de Chine [1616]”, Archivum Historicum Societatis Iesu, Roma, 9 (1940), pp. 50-90. 36 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 491. 37 Pietro Tacchi Ventura, ed., Opere Storiche, vol.2, p. 492. 38 Cf. Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition de l’expédition chrétienne au royaume de la Chine, 1582-1610, ed. Joseph Shih, Georges Bessiere & Joseph Dehergne, Paris, Desclée de Brower, 1978, passim. 39 Cf. H. Verhaeren, ed., Catalogue de la Bibliothèque, pp. 683-684. 40 Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition, p. 97 [original em francês]. 41 Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition, pp. 536-541. 42 Matteo Ricci & Nicolas Trigault, Histoire de l’expédition, p. 524 [original em francês]. 43 Edward T. Kelly, The Anti-Christian Persecution of 1616-1617 in Nanking [dissertação de doutoramento policopiada], Nova Iorque, Columbia University, 1971.

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44 Álvaro Semedo, Relação da Grande Monarquia da China, trans. Luís Gonzaga Gomes, ed. António Carmo, Macau, Direcção dos Serviços de Educação e Juventude, 199435p01-., 45 Valdemar Coutinho, O Fim da Presença Portuguesa no Japão, Lisboa, Sociedade Histórica da

Independência de Portugal, 1999. 46 Adrian Dudink, “The inventories of the Jesuit house at Nanking made up during the persecution of 1616-1617 [Shen Que, Nangong Shudu, 1620]”, in Federico Masini, ed., Western Humanistic Culture Presented to China by Jesuit Missionaries, Roma, Institutum Historicum Societatis Iesu, 1996, 119-157. 47 Adrian Dudink, “The inventories”, p. 137 [original em inglês]. 48 Adrian Dudink, “The inventories”, p. 140 [original em inglês]. 49 Cf. Adrian Dudink, “The inventories”, pp. 143-156. 50 Sobre o posterior desenvolvimento das missões jesuítas na China, vd. Liam M. Brockey, The Harvest of the Vine, pp. 90-216, que cita a bibliografia fundamental.

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