Comparações entre morfologias da Tradição Polícroma na calha do alto médio Amazonas: A procura de diferenças nas continuidades
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Comparações entre morfologias da Tradição Polícroma na calha do alto médio Amazonas: A procura de diferenças nas continuidades Jaqueline Belletti*
BELLETTI, J. Comparações entre morfologias da Tradição Polícroma na calha do alto médio Amazonas: A procura de diferenças nas continuidades. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 20: 257-264, 2015.
Resumo: Nesse texto utilizamos como base a análise das morfologias de oito Fases da Tradição Polícroma da Amazônia procurando encontrar continuidades e variabilidades regionais, para isso agregamos também dados contextuais. Os resultados apontaram o potencial analítico das morfologias como base para o entendimento das variáveis regionais.
Palavras-chave: Tradição Polícroma – Variabilidade artefatual – Morfologias
Introdução
O
trabalho ora apresentado teve por objetivo realizar a comparação sistemática de diferentes aspectos da Tradição Polícroma da Amazônia (TPA) nas calhas do alto-médio Amazonas e baixo Madeira, a fim de trazer dados mais sólidos para a compreensão da Fase Tefé (manifestação regional da TPA na calha do médio Solimões). Neste texto apresentamos e discutimos apenas os dados provenientes da análise de distribuição das morfologias em 8 Fases da TPA nessas regiões. Essas foram escolhidas para iniciar o trabalho por serem índices importantes de continuidade na longa duração. Como colo(*) Aluna do PPGArq-MAE/USP, pesquisadora associada do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos e do Laboratório de Arqueologia do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
ca Lathrap (1970) a produção de determinadas morfologias está associada a padrões de consumo (economia básica) e etiqueta do servir, preparar e comer, por isso sua variação seria menos frequente que a dos motivos decorativos, mais facilmente afetados por mudanças conjunturais. Do mesmo modo, apontam Silva (2000) e Goselain (1990) que, na esfera das relações de ensino aprendizagem o domínio das técnicas de produção das diferentes formas de um repertório é a etapa mais difícil na formação da(o) ceramista; sendo assim, a reprodução continuada de determinadas formas por diferentes áreas através do tempo implicaria a relação cultural entre seus produtores. Método Foi feito o levantamento de todas as Fases existentes da TPA na calha do médio e alto
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Amazonas e, a partir das bibliografias encontradas, foram sistematizados os dados relativos à morfologia, cronologia, componencialidade e tamanho do pacote de terra preta. Foram compilados dados de nove Fases da TPA: Fase Napo1 (Rio Napo, Equador), Fase Caimito (Rio
Ucayali, Peru) Fase Zebu (Peru, Colômbia e Brasil), Fase Nofurei (Rio Caquetá, Colômbia), Fases Pirapitinga e São Joaquim (alto Solimões), Fase Tefé (médio Solimões), Fase Guarita (baixo Solimões) e Fase Borba (baixo Madeira).
Fig. 1. Distribuição geográfica das Fases analisadas.
Resultados Nosso primeiro resultado foi a elaboração de um catálogo com todas as morfologias das Fases da TPA na calha do alto e médio Amazonas e baixo Madeira. Este catálogo nos permitiu avaliar a variabilidade dentro de cada Fase e compará-las entre si. (1) Respectivas referências: Meggers e Evans 1960; Lathrap 1970 e Weber 1975; Bolian 1975; Herrera, Bray e McEwan, 1980, Hilbert, 1968 e Tamanha 2012; Simões e Lopes, 1987.
Foi percebido que todas as oito Fases da TPA analisadas possuem significativo número de morfologias2, variando entre 7 (Fase Tefé) a 13 (Fase Zebu).
(2) Temos clareza que esses números podem ser modificados com a ampliação das pesquisas nas diferentes regiões, e que o tipo de trabalho de coleta de dados realizado nas diferentes pesquisas usadas como referência certamente influenciaram no número de morfologias encontradas. Para definição da Fase Tefé foi utilizado material de uma unidade de escavação de 1,5x1,5 m2 e coletas de superfícies em diferentes sítios, já para a Fase Zebu foram escavados mais de 15 m2.
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Fig. 2. Exemplo de comparação de presença e ausência de determinados tipos morfológicos em diferentes Fases.
Gráfico 1. Quantidade de tipo morfológicos por Fase.
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Olhando apenas para as morfologias percebemos dois principais elementos de variabilidade entre as Fases da TPA analisadas: as Fases Caimito e Nofurei apresentam um conjunto de morfologias com menor semelhança em relação aos demais conjuntos e a significativa diferença de ocorrência de morfologias dentro da Fase Guarita. Diante desses dados recorremos a outras informações presentes na bibliografia para tentar entender tais questões. A Fase Caimito apresenta cronologia coerente com as demais Fases da TPA na calha do alto-médio Solimões (1320 A.D + 60 sítio TAM-2 e 1375 A.D + 105 sítio TAM-1), do mesmo modo, nela são encontrados elementos diagnósticos dessa Tradição, como a pintura polícroma, acanalados, vasos quadrangulares e urnas com diademas. Entretanto, as expressões que tomam esses elementos diagnósticos são bastante diferenciadas. Quanto aos motivos acanalados esses assumem desenhos mais arredondados e fluidos que os das demais Fases, onde os acanalados apresentam-se lineares e retos em sequências bastante encadeadas. A urna antropomorfa encontrada por Lathrap (1970) possui morfologia bastante rara, sendo um vasilhame oval apenas com o diadema e a expressão do rosto. Weber (1975) e Bolian (1975) apontam que Caimito apesar de estar próxima às demais Fases da TPA é a menos semelhante, tendo o material da Fase Napo maior semelhança com o material, então chamado Miracanguera (material da calha do Solimões), do que com o Caimito. Weber (1975) encontra pontos fundamentais de diferenciação entre as Fases Napo e Caimito, contudo conclui que essas diferenças se dão em nível de traços e não de uma estrutura, esta última seria muito similar entre ambos os conjuntos artefatuais. Isso significaria uma origem comum e um período de separação pouco extenso entre seus processos de expansão. Lathrap (1970), por sua vez, argumenta que as diferenças entre Caimito e Napo representariam as diferenças entre ocupações ancestrais dos grupos Cocama e Omágua. Ainda existem poucos dados para a região do Ucayali, entretanto, acreditamos que as
variações na cerâmica Caimito devem ser discutidas a partir da perspectiva dos fluxos regionais (BARRETO, 2010; ROE, 1995; DeBOER,1990). A Fase Nofurei possui datas coerentes com as esperadas para TPA– 1245 A.D. + 50 para o sítio ARA-14 e 1610 A.D + 60 para o ARA-7, quanto à estratigrafia a Fase apresenta pacotes pouco profundos e presença de feições, similar às outras Fases da TPA (HERRERA, BRAY E MCEWAN, 1980). Entretanto, as feições se assimilam muito mais às da Fase Caimito, do que as ocorrentes nas outras Fases, dado que nas últimas as feições se caracterizam por valas com fragmentos de cerâmicas, enquanto nas duas primeiras elas se relacionam a buracos de poste e depósitos de vasos cerâmicos inteiros. Entre todo o conjunto cerâmico Nofurei ocorre um único tipo (restrepo rojo em Zonas) com acanalado sobre o qual é aplicado engobo vermelho. Segundo Herrera, Bray e McEwan (1980) é o tipo mais próximo da TPA, mesmo assim pouco significativo numericamente dentro do conjunto. Não há a policromia strictu sensu (pintura vermelha e preta sobre engobo branco). Morfologias frequentes em outras Fases da TPA são pouco ocorrentes aqui, mesmo no tipo restrepo rojo em zonas. As morfologias similares aos da TPA aparecem com decorações não frequentes em outras Fases. Logo, acreditamos que a reprodução de alguns elementos decorativos da TPA na calha do alto-médio Amazonas através do Caquetá deve entrar no escopo do comércio, emulação e troca de mulheres. A validade desse argumento pode ser reforçada com base nos dados das crônicas que descrevem o Caquetá-Japurá como grande via de comércio e circulação entre o alto rio Negro e o Solimões (PORRO, 1996 e 2007). Entretanto, a hipótese é apenas especulativa e é necessário um maior volume de dados sobre os contextos associados à TPA na região para testar a validade de tal hipótese. Quanto à variabilidade interna da Fase Guarita percebemos durante o levantamento
(3) Segundo as discussões de Rice (1987) sobre formafunção.
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das morfologias para a comparação da TPA um padrão bastante interessante quanto a essas na área do médio baixo Solimões, nos sítios relacionados à Fase Guarita, componente local da TPA, estudados por Hilbert (1968) e Tamanaha (2012). Dos 7 sítios estudados pelo Tamanaha (2012) quatro apresentavam baixa variabilidade morfológica (sítios Laguinho, Hatahara, Nova Esperança e Santa Fé), tendo apenas quatro formas, e três apresentavam maior variabilidade (sítios Santa Cruz, Lauro Sodré, São Paulo II), chegando a apresentar mais de 13 formas. Foi interessante notar que os sítios com baixa variabilidade apresentavam sempre as mesmas quatro formas e que os sítios com maior variabilidade eram todos unicomponenciais, enquanto entre os com baixa variabilidade havia tanto sítios unicomponenciais como multicomponenciais.
Esse aparente padrão chamou a nossa atenção e procurando entender por que alguns sítios relacionados à TPA no médio e baixo Solimões possuíam baixa variabilidade e outros maior. Quanto à variabilidade formal, notamos que as quatro formas que se repetem nos sítios de menor variabilidade possuem morfologias relacionadas ao armazenamento, preparo e consumo3. Outro ponto interessante é que as maiores vasilhas entre essas peças tem cerca de 50 cm de diâmetro e altura média de 1/2, 1/3 desse, sendo assim vasilhas portáteis. Então, percebemos duas características importantes da dimensão formal do material dos sítios com baixa variabilidade: os vasos estão relacionados às atividades básicas de alimentação e a portabilidade tem sido selecionada como característica de performance importante.
TABELA 1 Síntese das diferenças entre as dimensões da variabilidade entre sítios com menor e maior variabilidade Dimensão Variabilidade
Menor Variabilidade
Maior Variabilidade
Espacial
Curso sec. e princ.
Curso Princ.
Quantitativa
Menor
Maior
Relacional
Pacote raso, mesmo em sítios de TPI profunda
Pacote mais espesso
Formal
Paraf. Alimentar
Portátil
Maior variabilidade
Sintetizando todos os dados disponíveis sobre cronologia, localização e dimensões da variabilidade dentro dos sítios estudados por Tamanaha (2012) podemos concluir que existem três conjuntos diferenciados de sítios relacionados à Tradição Polícroma na área do médio baixo Solimões: a) Um primeiro conjunto (conjunto 1) é caracterizado por sítios com menor variabilidade morfológica (apenas quatro formas), baixa densidade de material, com datações entre os séculos
X e XI até posteriormente ao contato, os sítios desse conjunto são multicomponenciais e apresentam profundos pacotes de terra preta (mais de 2m de profundidade); contudo, o pacote estratigráfico polícromo é raso (até 20 cm aproximadamente). Nesse conjunto estão inseridos os sítios Hatahara, Laguinho e Nova Esperança; b) Um segundo grupo (conjunto 2) apresenta inicialmente as mesmas características do primeiro conjunto, isto é, sítio com menor variabilidade morfológica (apenas quatro formas),
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baixa densidade de material, pacote estratigráfico raso (até 20 cm aproximadamente); contudo, apresenta cronologia antiga (810 A. D. + 40) , é unicomponencial e não apresenta terra preta. Nesse conjunto está colocado o sítio Santa Fé. c) Por fim, há um grupo (conjunto 3) que apresenta maior variabilidade que os demais sítios (chegando a mais de 13 tipos morfológicos
no sítio Lauro Sodré), alta densidade, pacote estratigráfico profundo (entre 50 e 70 cm), sua cronologia vai desde datas antigas até os séculos X e XI, os sítios são unicomponenciais, sendo seu pacote de terra preta menor que nos sítios multicomponenciais, mas composto apenas por ocupação polícroma. Aqui estão inseridos os sítios São Paulo II, Lauro Sodré e Santa Cruz.
TABELA 2 Síntese das diferenças entre os sítios com menor e maior variabilidade morfológica. Variabilidade
Densidade
Estratigrafia
Datação
Componentes
Terra Preta
Conj. 1
Baixa
Baixa
Raso
MID4 Recente
Multicompo.
Profunda
Conj. 2
Baixa
Baixa
Raso
Antiga
Unicompon.
Ausente
Conj. 3
Alta
Alta
Prof.
Ant. MID
Unicompon.
Cont. Oc.
Essas observações sobre a variabilidade artefatual e a estrutura do registro arqueológico desses diferentes sítios nos levam a crer que os conjuntos 1 e 2 compõem um mesmo grupo; enquanto o conjunto 3 compõe um outro grupo. Para nós, as diferenças apresentadas entre esses dois grupos se dão, pois, cada um representa um tipo de área de atividade diferente dentro do contexto da Fase Guarita. Desta forma, o conjunto 3 seria relativo às áreas de aldeia, enquanto o conjunto 1 e 2 estariam relacionados às atividades de acampamentos temporários; pelos tipos de vasos encontrados acreditamos que possam ser de acampamentos de roçado.
Considerações finais Nossa revisão das morfologias nos permitiu evidenciar que para o entendimento da dispersão da TPA as morfologias são um marcador de continuidade importante, como colocado por Lathrap (1970). Entretanto, agregando a discussão da presença de morfologias a uma análise mais detalhada de seus elementos e das questões contextuais envolvidas, podemos buscar especificidades locais que nos ajudem na compreensão da dispersão do material cerâmico associado à TPA e à chamada Expansão Polícroma.
(4) MID – Faixa cronológica com maior incidência de datas, isto é, entre 1100 e 1350.
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BELLETTI, J. Comparing morphologies of Polícroma Tradition in the Upper-Middle Amazon River: The search for differences in the continuity. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 20: 257-264, 2015.
Abstract: This article aims to investigate continuities and regional variations by analyzing the ceramic morphology of nine archaeological fases of Polícroma Tradition in an integrated way to contextual data. The results allowed us to establish the importance and validity of the morphological analysis of ceramic containers to understand regional variations.
Keywords: Polícroma Tradition – Artefactual variability – Morphological ceramic characteristics
Referencias bibliográficas BARRETO, C. 2010 Cerâmica e complexidade social na Amazônia antiga: uma perspectiva a partir de Marajó. In: Edithe Pereira e Vera Guapindaia. (Org.). Arqueologia Amazônica. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, v. 1, p. 193-212. BOLIAN, C. 1975 Archaeological excavations in the trapecio of amazonas the polychrome tradition. PhD Dissertation. University of Illinois at Urbana Champaing. DeBOER, W. 1990 Interaction, Imitation and Communication as Expressed in Style: The Ucayali Experience. In Conkey, M. e Hastorf, C. (Eds.) The uses of Style in Archeology. Cambridge, Cambridge University Pres. 1990. p. 151 HERRERA, L.; BRAY, W..; MCEWAN, C. 1980 Datos sobre la arqueologia de Araracuara (Comisaría del Amazonas Colombia). Revista Colombiana de Antropologia, v. 23: 183- 251. GOSSELAIN, O. 1998 Social and Technical Identity in a Clay Crystal Ball. In: M. Stark (Ed.). The Archaeology of Social Boundaries. Smithsonian Institution Press. Washington/ London. pp. 78-106 HILBERT, P. 1958 Preliminary results of archeological investigations in the vicinity of the Mouth of
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BELLETTI, J. Comparações entre morfologias da Tradição Polícroma na calha do alto médio Amazonas: A procura de diferenças nas continuidades. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 20: 257-264, 2015.
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TABELA 1 Síntese das diferenças entre as dimensões da variabilidade entre sítios com menor e maior variabilidade Dimensão Variabilidade
Menor Variabilidade
Maior Variabilidade
Espacial
Curso sec. e princ.
Curso Princ.
Quantitativa
Menor
Maior
Relacional
Pacote raso, mesmo em
Pacote mais espesso
sítios de TPI profunda Formal
Paraf. Alimentar Portátil
Maior variabilidade
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