Completo versão 2

July 15, 2017 | Autor: Jessica Vicente | Categoria: Questão Agrária, Institucionalismo, Função Social da Propriedade
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Agradeço a minha orientadora, sem a qual este trabalho não seria possível, ao amigo e professor Pedro Rocha de Oliveira e a minha querida amiga Caroline Mendonça pelo carinho e paciência em revisar comigo todo o texto.
Na forma como nos é apresentado e utilizado como instrumental analítico por Ellen Immergut e Paul Pierson.
Coloco o termo entre aspas para destituí-lo de qualquer noção progressista de que venha imbuído, utilizo a expressão "desenvolvimento".
Aroldo Moreira, Caminhada e esperança da reforma agrária – A questão da terra na constituinte, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2ª ed., 1987, p. 75; apud Rosalinda Pereira.
Emílio Gischkow, "Direito brasileiro – Atualização do conceito de propriedade." In: Revista de Direito Agrário, nº 2, p. 64; apud Rosalinda Pereira.
Karl Marx e Frederich Engels, A Ideologia alemã: 1º Capítulo Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Centauro, 9ª ed., 2006.
Thorstein Veblen, A Teoria da Classe Ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Nova Cultural, 3ª ed., 1988.
Rita Ramos, Sociedades Indígenas. Disponível em: . Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Platão, A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Aristóteles, "Livro segundo, capítulo 2". In: A Política. São Paulo: Escala Educacional, 2006, p. 39 – p. 43
Interpretação apresentada por Arthur Pio dos Santos, Da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Tese (Doutorado em Direito), Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco, 1971; apud Rosalinda Pereira.
Leonel Itaussu Almeida Melo, "John Locke e o individualismo liberal". In: Os Clássicos da Política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, "O federalista". 1º Volume. Francisco Weffort (org.). São Paulo: Editora Ática, 13ª ed., 2000, p. 79 - p. 110.
Milton Meira do Nascimento, "Rousseau: da servidão à liberdade". In: Os Clássicos da Política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, "O federalista". 1º Volume. Francisco Weffort (org.). São Paulo: Editora Ática, 13ª ed., 2000, p. 187 - p. 242.
A referida interpretação encontra-se em diferentes encíclicas: Rerum novarum (Papa Leão XIII, 1891), Quadragesimo anno (Papa Pio XI, 1931), Mater et magistra (Papa João XXIII, 1961).
Homem de recursos.
Continuação: ..."Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnização".
Girolamo Domenico Treccani, O título de posse e a legitimação de posse como formas de aquisição da propriedade. P. 4. Disponível em . Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Terras devolutas: terras públicas, aquelas pertencentes ao Estado.
Pároco ou padre de um distrito paroquial, equivalente também a uma pequena povoação.
Para uma análise mais extensa e acurada do que significou e como se deu a implementação da Lei de Terras de 1850 recomendo a leitura de Nas fronteiras do poder: conflitos de terra direito agrário no Brasil de meados do século XIX, de Márcia Maria Menendes Motta, Niterói: Ed. UFF, 2ª ed., 2008
Em 1919, a Constituição de Weimar proclamava "a propriedade obriga", apud Rosalinda Pereira.
O termo "lides" refere-se às situações jurídicas de natureza conflituosa em que há oposição de interesses, no caso em questão seriam aquelas relacionadas ao domínio, posse ou propriedade.
Continua ... "A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior".
Continua... "A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos".
Continua... "mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior".
Vide tabela no anexo 1.
Discurso disponível na íntegra em: . Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Ayres de Brito, "O novo e sempre velho perfil constitucional da propriedade: o golpe de mestre da classe hegemônica", In: Anais da Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, p.12, Porto Alegre: OAB, 1988, p. 528-533; apud Rosalinda Pereira (2000).
Lei delegada: "Feita pelo presidente da República, que solicita concessão especial ao Congresso, ou seja, uma delegação do Legislativo para poder elaborar a lei. Não podem ser objetos de lei delegada atos de competência exclusiva do Congresso, da Câmara e do Senado, nem temas relacionados com a organização do Judiciário e do Ministério Público. Outros assuntos que ficam fora da lei delegada: nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos, eleitorais, planos plurianuais e orçamentos". LEI DELEGADA. In: Glossário Legislativo do Senado Federal. Disponível em: . Acesso em 23 de janeiro de 2014.
HOFFMANN & NEY, Estrutura fundiária e propriedade agrícola no Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Brasília: MDA, 2010.
A nomenclatura "estabelecimento" é utilizada pelo Censo Agropecuário realizado pelo IBGE, "estabelecimento é a unidade de produção agrícola, ou seja, uma fazenda, uma média propriedade ou uma exploração agrícola. Esse estabelecimento é gerenciado por pessoas, uma família, e tem uma unidade territorial. Para cada estabelecimento pode haver um proprietário, ou seja, a família que explora aquela área pode ser também proprietária ou pode ser apenas posseira – ou seja, ocupá-la, trabalha-la mas sem o título de propriedade –, ou pode ser um estabelecimento em que as pessoas que lá vivam e trabalham não são proprietárias, mas arrendam a terra ou têm parceria com o proprietário dela." (STÉDILE, 2011: 41) O proprietário pode ser ainda uma pessoa jurídica. Já o Incra utiliza medida distinta em seus estudos, o imóvel: unidade jurídica sobre a qual há discriminação e existe um documento de posse ou propriedade.
Esse número é apresentado por Bernardo Mançano Fernandes em "O MST no contexto da formação camponesa no Brasil". In: A questão agrária e a justiça, Juvelino José Strozake (org.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., ed. 2000, 2000, p. 32.
Ibdem, p. 41.
Ibdem p. 39.
Ibdem p. 26.
Com o termo "militante" pretendo diferenciar os apoiadores políticos da reforma agrária que não sejam também trabalhadores rurais; muitos desses trabalhadores rurais assassinados eram militantes políticos.
Lei complementar: "Diferem das Leis Ordinárias por exigirem o voto da maioria dos parlamentares que compõe a Câmara dos Deputados e o Senado Federal para serem aprovadas. Devem ser adotadas para regulamentar assuntos específicos, quando expressamente determinado na Constituição da República. Importante: Só é preciso elaborar uma Lei Complementar quando a Constituição prevê que esse tipo de lei é necessária para regulamentar uma certa matéria". LEI COMPLEMENTAR. In: Legislação. Portal do Governo Federal. Disponível em: < http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/leis-complementares-1>. Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Concessão de liminar: "Ato de conceder uma ordem judicial que determina providência a ser tomada antes da discussão da causa, para resguardar direitos legais." Disponível em: < http://www.fortes.adv.br/pt-br/termo/glossario/37/concessao-de-liminar.aspx> Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Que nesse caso podem ser de dois tipos: "ação de reintegração de posse" e "ação de manutenção de posse". Disponível em: < http://www.macetesjuridicos.com.br/2009/09/acoes-possessorias.html>. Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Ibdem.
"Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas[...] (Grifos meus)".
Interpretação compartilhada por Bernardo Mançano Fernandes em "O MST no contexto da formação camponesa no Brasil". In: A questão agrária e a justiça, 2000, Juvelino José Strozake (org.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., ed. 2000, 2000,p. 43. E por João Pedro Stédile em "Evolução histórica da questão agrária no Brasil". In: Questão agrária no Brasil Wanderley Loconte (coord.). São Paulo: Atual, 11ª ed., 2011, p. 34.
Informação colhida na página eletrônica da Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2001/medidaprovisoria-2183-56-24-agosto-2001-390947-norma-pe.html. Acesso em 23 de janeiro de 2014.
A tabela disponibilizada pelo IBGE com a evolução histórica do índice de Gini para o Brasil e estados da federação encontra-se no anexo 2.
"Se num país as terras pertencessem a apenas um proprietário, o índice de Gini seria 1,00. Se, entretanto, o tamanho das terras de cada um correspondesse ao valor resultante da divisão do território disponível pelo número de proprietários existentes, esse índice se aproximaria de 0,00" (STÉDILE, 2011: 39)
Manifesto publicado no sítio online do MPM em 4 de outubro de 2012. Disponível em: . Acesso em 23 de janeiro de 2014.
Merece destaque o fato do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao tratar de um caso que envolvia MST, já ter julgado com esse entendimento. Disse que se o movimento popular visa pressionar o governo para acelerar a implementação de política constante na Constituição, não se está diante de movimento para tomar a propriedade alheia, não havendo se falar, portanto, no crime contra o patrimônio deste art. 161, §1°, II. (STJ, RT 747/608).
Tabela apresentada por Vítor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 7ª ed., 2008, p. 50. Tabela sem título no original.
IBGE. "Tabela 10 – Evolução do índice de Gini, segundo as unidades da federação". In: Censo Agropecuário 2006. Disponível em: . Acesso em 23 de janeiro de 2014.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
BACHARELADO INTERDISCIPLINAR EM CIÊNCIAS HUMANAS




JESSICA SIVIERO




A PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA NO BRASIL E A DOUTRINA DA FUNÇÃO SOCIAL





Trabalho de conclusão de curso de Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas orientado pela Profa. Dra. Patrícia Rangel.







Juiz de Fora
2014
A PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA NO BRASIL E A DOUTRINA DA FUNÇÃO SOCIAL

Resumo
Este artigo buscará discutir, no âmbito da questão agrária, a implementação da doutrina da função social da propriedade privada da terra no direito brasileiro, por uma perspectiva histórica pautada nas discussões do institucionalismo histórico. Para tanto, empreende-se uma análise da origem e desenvolvimento da instituição "propriedade" no Brasil. Através de uma revisão crítica dos marcos regulatórios da propriedade privada e das leis agrárias brasileiras, procurar-se-á destacar os incentivos oriundos da vida econômica e da comunidade política que impactam sobre a conformação fática da propriedade da terra, buscando-se realçar as continuidades e vicissitudes que corroboram para a atual configuração da estrutura fundiária brasileira.
Palavras-chave: propriedade privada. Institucionalismo histórico. Doutrina da função social.
Abstract
This paper seeks to discuss, in the context of the agrarian reform, the implementation of the doctrine of the social function of the land's private ownership in Brazilian law, guided by a historical perspective on the discussion of historical institutionalism. To do so, undertakes an analysis of the origin and development of the institution "propriety" in Brazil. Through a critical review of the regulatory frameworks of private property and of the Brazilian agrarian laws, will be sought to highlight the arising incentives of the economic life and of the political community, which impact on the factual conformation of land ownership, also seeking to highlight the continuities and vicissitudes that corroborate for the current configuration of Brazilian agrarian structure.
Keywords: private property. Historical institutionalism. Social function doctrine.










INTRODUÇÃO
Este artigo buscará discutir, no âmbito da questão agrária, a implementação da doutrina da função social da propriedade privada da terra no direito brasileiro, por uma perspectiva histórica pautada nas discussões do institucionalismo histórico. A doutrina da função social implica na conformação do uso da propriedade privada a um suposto interesse coletivo, sob a égide desta doutrina a exploração econômica da terra voltar-se-ia a ganhos distributivos para toda a sociedade. A doutrina da função social da propriedade da terra surgiu em países da Europa central e ocidental, em parte destes levou a uma redistribuição da propriedade fundiária, o que se denomina por reforma agrária. Buscando compreender a atual configuração da estrutura fundiária brasileira, deparei-me com uma questão: a instituição da doutrina da função social da propriedade da terra no Brasil não foi acompanhada por uma onda de reforma agrária capaz de modificar a forma como está distribuída a propriedade rural. O que me leva a pensar: instituições não nascem e se desenvolvem apartadas do contexto social em que estão imersas, contextos distintos deverão levar a conformações diversas, como nos indica a literatura do institucionalista histórica.
Passei então a buscar compreender a origem da instituição "propriedade" e como esta se modificou ao longo do tempo até chegar a englobar a tal doutrina da função social. Partindo dessa análise específica, procurarei demonstrar como foi instituída a propriedade no Brasil e quais as diferentes regulamentações a que esteve submetida, até chegar à adoção da doutrina da função social por nossas Constituições, passando por uma breve revisão dos marcos regulatórios da propriedade privada da terra e das leis agrárias brasileiras. Não deixo de considerar ao longo do estudo, os incentivos oriundos da vida econômica e da comunidade política sobre a propriedade, bem como os resultados e impactos gerados tanto sobre as normas como sobre a configuração fática da propriedade.
Este esforço de reflexão organiza-se em quatro diferentes seções: a primeira apresenta o referencial teórico adotado para conduzir a análise, qual seja, o institucionalismo histórico, uma perspectiva de análise da Ciência Política que busca compreender e destacar o papel das instituições e da relevância temporal (histórica) na configuração de resultados sociais e políticos. A segunda, contendo uma breve introdução à discussão acerca da propriedade da terra, busca recuperar a origem da instituição "propriedade" com suas diferentes possíveis interpretações, até chegarmos à doutrina da função social. Na terceira parte, busco reconstruir a história da propriedade privada da terra no Brasil, em conjunto com os incentivos e reflexos oriundos e produzidos na nossa estrutura fundiária. Esclareço de antemão que não seria possível, em um artigo, esgotar a discussão sobre o tratamento normativo aplicado à propriedade fundiária no Brasil, logo, selecionei os momentos de inflexão. A quarta e última seção traz considerações finais a respeito do tema discutido, contendo reflexões teóricas e indicações de possíveis campos de pesquisas a serem desenvolvidos futuramente.
O INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO COMO REFERENCIAL TEÓRICO
Sendo uma perspectiva de análise dentro da Ciência Política que busca compreender e destacar o papel das instituições e da relevância temporal (histórica) na configuração de resultados sociais e políticos, o institucionalismo histórico servirá de ferramenta analítica para pensar a configuração atual da propriedade da terra no Brasil. Esta é resultante de um longo processo histórico e político de ocupação e exploração do território, que se reflete nas normas e procedimentos adotados para regulação da propriedade privada e que estruturam a vida na comunidade política. A instituição a ser analisada aqui é a "propriedade privada", tomada como resultante histórica do "desenvolvimento" da sociedade ocidental.
Para trabalhar com a noção de instituições, cabe primeiro definir o termo. Na literatura institucionalista histórica, as instituições são definidas de forma ampla como "procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política" (HALL & TAYLOR, 1996: 196). Igualmente, o institucionalismo histórico enfatiza as assimetrias de poder relacionadas ao funcionamento e desenvolvimento normal das instituições, seu foco encontra-se na análise de relações de poder e interesse.
Para desenvolver os argumentos a serem apresentados, tomo como pressuposto que o estabelecimento da propriedade privada dos meios de produção cria uma condição de desigualdade e hierarquia dentro das sociedades, com os donos da propriedade detendo mais poder e capacidade de controle sobre a configuração de sua estrutura que aqueles não detentores de propriedade. Na esteira das análises institucionalistas históricas, retomo o olhar sobre o Estado como um complexo de instituições capaz de estruturar a natureza e o resultado dos conflitos entre grupos, ou seja, o Estado aparece como árbitro e não apenas processador de conflitos.
Para esta perspectiva teórica, é central a ideia de path dependence. Quer dizer, processos dependentes de uma trajetória histórica, social e política envolveriam uma lógica segundo a qual os resultados em uma "conjuntura crítica", ou seja, num momento de inflexão em que as normas são estabelecidas ou reestabelecidas, desatariam mecanismos de retroalimentação que reforçam a ocorrência de um padrão no futuro. Os argumentos sobre a path dependence podem nos ajudar a compreender a poderosa inércia que caracteriza muitos aspectos do desenvolvimento político, pois, trabalha-se com a noção de que práticas políticas e sociais reificadas dificultam e retardam mudanças institucionais, ao mesmo tempo que se realiza uma reforma institucional, mantem-se algo do modelo precedente. Esta é uma das razões pelas quais se optou por tomar o institucionalismo histórico como referencial teórico de análise. O modelo do latifúndio, resultante da primeira forma como se organizou a propriedade, em consonância com os interesses econômicos que o acompanhavam, consegue se reafirmar a cada novo ponto de inflexão que poderia levar a seu esgotamento. Do que se reflete no corpo das normas escritas, que se não o legitimam, abrem precedentes para que continue em vigor.
ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA PROPRIEDADE
Cabe, antes de tudo, esclarecer alguns termos que já foram utilizados até aqui e que aparecerão novamente ao longo do texto, e outros que ainda serão abordados. Começo diferenciando o conceito de "propriedade" do de "posse". A posse estaria ligada a uma relação de natureza fática, concreta. Já a propriedade seria a expressão jurídica dessa relação, é esta a instituição que será aqui discutida. Outras duas expressões também chaves para o entendimento do texto são: "estrutura fundiária" e "questão agrária". Para os fins aqui propostos, considera-se estrutura fundiária a "forma como está distribuída a propriedade das terras num país" (STÉDILE, 2011: 39). Já a expressão "questão agrária", que surge na Economia Política, engloba aquelas análises que buscavam compreender como o capitalismo se desenvolvia e intervinha na agricultura. O significado atual ultrapassa o de origem, remetendo a toda uma área do conhecimento científico voltada ao estudo da forma como sociedades organizam o uso, a posse e a propriedade da terra. Na literatura da Economia Política, o termo pode ainda aparecer para denotar a existência de "problemas agrários" presentes sempre que a forma de distribuição da terra, seu uso e propriedade constituem um empecilho, quer para o aumento da produção, o abastecimento satisfatório de toda a população ou para o progresso social e econômico.
A propriedade da terra está diretamente ligada ao bem estar social geral, pois, a terra como bem de produção, é, entre outras coisas, locus da produção de alimentos: bem indispensável à existência humana. Um dos pressupostos da forma moderna de democracia é a proteção da propriedade privada, que aparece como direito constituído e garantido pelo aparato de Estado. Todavia, pensar a forma atual da propriedade da terra depende de um esforço de reconstrução histórica de seu significado, pois, ao longo da história ocidental, tem sido fonte de poder econômico e político. A forma como se entende a propriedade da terra variou com o tempo, resultado de incentivos diversos oriundos da vida na comunidade política. Alguns autores, na esteira dos contratualistas, dirão que a "propriedade" surge como forma de evitar o conflito entre os homens, visto que o desequilíbrio entre as necessidades humanas ilimitadas e os bens limitados da natureza geraria uma guerra de todos contra todos (definição hobbesiana de Estado), do que surge o Estado para garantir a propriedade (definição de Locke para o "contrato social") – expressa dessa forma a propriedade apresenta, por conseguinte, caráter muitíssimo individualista. Há também aqueles que defendem que, conforme já mencionado, a instituição da propriedade privada está diretamente relacionada ao "poderio econômico e político" e seria fonte de uma desigualdade criada para legitimar diferenças sociais. Em Marx, a propriedade aparece diretamente relacionada à divisão do trabalho colocando indivíduos em determinadas relações de produção. Surge como propriedade tribal, passando com o desenvolvimento das forças produtivas à propriedade comunal, uma forma de propriedade privada coletiva, até que com o desenvolvimento da divisão do trabalho teria surgido a propriedade privada imóvel. Equivale a dizer que a cada estágio do desenvolvimento produtivo corresponderia uma forma distinta de propriedade, estando a estrutura social e política diretamente relacionada à produção e reprodução material de vida. Thorstein Veblen (1988) defenderá que em diferentes sociedades o estabelecimento da propriedade privada é concomitante ao surgimento da "classe ociosa", uma classe que se dedicaria exclusivamente a "atividades honoríficas", quer dizer, que liberada de trabalhos produtivos ou "industriais", sem utilidade prática cotidiana, teria se concentrado preferencialmente em atividades de governo e sacerdócio. Rosalinda Pereira (2000) identifica a instituição da propriedade com a escolha por uma vida comunitária sedentária, relacionada, por conseguinte, à agricultura. Logo, a primeira forma de propriedade seria coletiva, visto que os seus bens eram trabalhados pela comunidade servindo para atender aos desígnios do coletivo.
Abro um parênteses para ressaltar que o modelo da propriedade tal como tratado aqui, pode ser rastreado ao longo da história da Europa ocidental. Diferentes sociedades ao longo do globo dão (ou pelo menos deram) usos distintos a terra, entendendo a posse de formas bastante diversificadas, sendo que muitas dessas sociedades sequer instituíram a propriedade privada. Rita Ramos (2009) dirá em relação às sociedades indígenas que: "sendo um recurso natural vinculado à vida social como um todo, a terra não é e não pode ser objeto de propriedade individual. De fato, a noção de propriedade privada da terra não existe nas sociedades indígenas."
Já nos filósofos clássicos, encontramos discussões acerca da função da propriedade privada. Platão, em defesa de uma forma de organização social mais voltada ao comunismo, dirá que os bens da sociedade devem pertencer a todos. Aristóteles reconhece que os bens pertençam aos particulares, todavia, reforça a crença de que deviam servir para satisfazer a coletividade. Em São Tomás de Aquino, a propriedade aparece como um direito natural do homem na sua luta pela sobrevivência, porém, esse direito é limitado pelo bem comum: direito de todos viverem condignamente.
Em Locke, a propriedade aparece como uma extensão dos homens, fruto da racionalidade que os leva a transformar a natureza através do trabalho. Ou seja, a propriedade encontra-se na sociedade já no estado de natureza, é uma instituição anterior à sociedade civil, logo, é um direito natural do indivíduo que o Estado não pode violar. O advento do dinheiro teria permitido que os bens fossem trocados por ouro e prata (duradouros), marcando, por conseguinte, a passagem da propriedade limitada pelo trabalho, para a propriedade ilimitada baseada na acumulação. Já para Rousseau, a propriedade existe exclusivamente no Estado de Sociedade, é, aliás, o fundamento sobre o qual este reside. O estabelecimento da propriedade privada configura a usurpação de um bem coletivo: a terra. É, portanto, uma fraude, o ato que inaugura uma condição de desigualdade entre os homens, que irá se refletir nas normas e convenções sociais estabelecidas, que pautadas pela propriedade legitimam essa desigualdade inicial. Consequentemente, Rousseau propõe uma ruptura com esta sociedade fundada sobre o acúmulo de propriedades; a partir de um pacto voluntário entre todos os homens (o Contrato Social), seria feita a alienação total das propriedades e dos direitos dela decorrentes em benefício do coletivo – as propriedades seriam redistribuídas, ficando cada qual com a parcela necessária e suficiente para uma vida digna.
Com a decadência do regime feudal (patrimonial), e o crescimento das relações de troca, no contexto das Revoluções Liberais, a propriedade passou a ser interpretada como instrumento de que dispõe o homem para o exercício da atividade econômica, consolidando-se, por conseguinte, um conceito individualista de propriedade. O Código Civil francês de 1804, ou como ficou mais conhecido, Código Napoleônico, no seu artigo 544, consolida a propriedade como um direito pessoal, ilimitado e absoluto. Quer dizer, a propriedade da terra encontrava-se regida por ideais burgueses, não chegando a se formar um direito especificamente rural para a regulação da propriedade agrária – distinta das demais formas de propriedade devido ao seu caráter de bem de produção, que como tal deve ser efetivamente usado para produzir. O resultado foi um imenso desequilíbrio fundiário, com acumulação de terras e formação de latifúndios por toda Europa central e ocidental. Essa fase é marcada pelo deslocamento para os centros urbanos das principais atividades econômicas, havendo, por conseguinte, transferência de força de trabalho do campo para as cidades. A terra passa então a ser vista como uma nova mercadoria, apresentando caráter especulativo.
As injustiças agravadas e geradas pelo novo sistema de produção resultaram em agitação social. Pensadores, teóricos do direito, filósofos e economistas dedicaram exaustiva crítica ao modelo da propriedade privada, entre estes especialmente Karl Marx e Friedrich Engels enfatizariam as consequências sociais desastrosas geradas pela propriedade privada dos meios de produção, propondo uma solução revolucionária: a coletivização dos meios de produção. Outros teóricos buscaram enfatizar a necessidade de se imputar à propriedade – e aos próprios indivíduos – uma função social. Leon Duguit (1911), dirá que "o proprietário, pelo fato de possuir a propriedade, tem de cumprir a finalidade social que lhe é implícita, e somente assim estará socialmente protegido, porque a propriedade não é um direito subjetivo do proprietário, mas uma função social de quem a possui" (PEREIRA, 2000: 97). Segundo este argumento, caso não utilize sua propriedade ou a utilize mal, seu direito de proprietário deve desaparecer. Nesse processo, a Igreja católica, recuperando o ideal tomista de propriedade, exerceu papel significativo na elaboração e consolidação da doutrina da função social da propriedade, que passa a ser vista como um direito natural que o Estado deve proteger, mas seu uso deve estar condicionado ao bem comum.
Tal mudança na interpretação do conceito de propriedade, sensível ao caráter especial da terra como bem de produção, impulsionou o surto de reforma agrária vivido pelos países europeus no início do século XX. A doutrina da função social da propriedade da terra imbui a propriedade de uma função (do proprietário) que deve ser exercida com vistas a satisfazer as necessidades do coletivo, contribuindo para o bem estar social. Resulta de uma evolução da concepção de propriedade, como escreveu Rosalinda Pereira,
"a propriedade, assim, se justifica desde que cumpra sua função social; ela não é uma função social, mas tem uma função social, no que podemos definir função social da propriedade como os deveres positivos que devem ser exercidos pelo proprietário"(PEREIRA, 2000: 101).
A FORMAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL
A propriedade privada da terra é instituída no Brasil no momento de sua colonização por Portugal, o que contribui para a investigação histórica, pois, permite situar precisamente no tempo o momento de consolidação da instituição "propriedade". Igualmente, marca o início da trajetória de normas e procedimentos a serem investigados.
Com a colonização, a Coroa procede designando para si o monopólio da propriedade sobre as terras brasileiras e regulamentando a divisão e ocupação do território através das Capitanias Hereditárias. Estas consistiam em grandes extensões de terra que eram entregues ao controle de homens ligados à Coroa portuguesa que seriam responsáveis por reparti-las em subunidades, denominadas sesmarias, e entregá-las a particulares detentores de recursos suficientes para explorá-las. Note-se: "a propriedade da terra era originariamente pública" (TRECCANI, 2013: 3), o que interessará no momento da discriminação das terras do Estado e das de particulares. Durante todo o período colonial vigorou a Lei de Sesmaria de 1375 que previa a transferência de domínio, após o cumprimento de algumas cláusulas contratuais, tais como: aproveitamento do solo, medição e demarcação do imóvel, registro da Carta e pagamento do dízimo. Cumpridas todas estas obrigações o rei confirmaria a Carta e a terra seria incorporada ao patrimônio particular.
Logo, as concessões sesmariais estavam em tese condicionadas ao uso e aproveitamento, o que não deixa de ser uma forma germinal de doutrina da função social:
"na concessão de sesmarias, fora determinado que se concedessem glebas em quantidade (área) que um homem de cabedais pudesse explorar... E que se ele não a explorasse dentro de um determinado lapso de tempo que era prefixado, esta terra reverteria ao patrimônio da Ordem de Cristo, que era administrada por Portugal" (PEREIRA, 2000, p. 107).
Porém, desde sua implementação, o modelo de sesmarias engendrou mecanismos próprios que fizeram com que a terra perdesse sua conotação social e fosse incorporada como bem puramente patrimonial. Alguns destes mecanismos decorreram de incentivos oriundos do modelo de exploração econômica, a extração e monocultura de gêneros tropicais voltadas à exportação, somadas às dimensões geográficas continentais e à falta de técnicas desenvolvidas de agricultura resultaram na configuração dos latifúndios. A isto, vem se juntar a política de colonização aristocrática simbolizada por este modelo de concessão de capitanias hereditárias. A posse era entregue aos particulares pela Coroa, e, entre seus critérios de elegibilidade estavam ser aliado do Império Português, pertencer à nobreza e ter recursos para investir. Além disso, a lei não designava limites para as extensões a serem concedidas, exceto o fato de serem entregues em quantidade que um "homem de cabedais" pudesse explorá-las.
Proclamada a Independência do Brasil em 1822, seguiu-se à elaboração da primeira Carta Política brasileira. A Constituição do Império de 1824, Lei Maior do país, seguia o modelo de Estado moderno e foi influenciada pelas Cartas liberais europeias. Por conseguinte, legislava sobre o direito de propriedade entre os direitos individuais, no seu Titulo 8º (Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros). O art. 179 versa sobre: "A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte... XXII. E'garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude (grifos meus)." Logo, vem a ratificar uma concepção individualista de propriedade privada, reforçada pelos dispositivos derivados da Revolução Francesa, limitando a expropriação a casos especiais de interesse público. Dessa forma, reconhecia e perpetuava o modelo do latifúndio – inclusive aquele improdutivo.
Até a redação da Lei de Terras de 1850, não havia uma legislação brasileira específica no sentido de regularizar a propriedade rural. Insiro aqui um novo parênteses para apresentar alguns dados bastante interessantes trazidos pelo autor Girolamo Domenico Treccani (2013) acerca da validação das Cartas sesmariais, que compõem um estudo realizado no começo do século XX na Província do Grão-Pará (que abrangia os atuais Estados de Pará, Amapá, Amazonas, Maranhão e Piauí). O estudo considera um levantamento feito de 1700 até 1835, demonstrando que teriam sido expedidas 2.158 Cartas de Sesmarias, todavia, apenas 560 destas, isto é, cerca de 25,9% do total, teriam sido validadas pela Coroa, transformando-se em propriedade plena. Ou seja, visualizamos que a configuração da propriedade da terra carecia de regularização, a Lei de Sesmarias de 1375, uma lei portuguesa, no contexto brasileiro, sob a influência de práticas e interesses distintos daqueles atuantes em solo português, produziu resultados distintos.
Retomando, a Lei de Terras de 1850, aprovada pelo Decreto 1.381, de 30 de janeiro de 1854, contendo nove capítulos e 108 artigos, procurava dar resolução às inúmeras situações relacionadas à ocupação das terras, com o intuito discriminar as terras devolutas das particulares promovendo a conservação daquelas. Para tanto, os possuidores individuais deveriam proceder ao registro de suas terras, os chamados Registro Paroquiais de Terra, que ocorreriam da seguinte forma: o possuidor procuraria o vigário de sua freguesia e declararia: "o nome do possuidor, designação da Freguesia em que estão situadas [as suas terras]; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida; e seus limites (grifos meus)" (MOTTA, 2008: 161). Essa informação merece destaque: a forma como eram realizados os Registros Paroquiais de Terra, ou seja, a partir de um ato voluntário do possuidor em comparecer à paróquia, ausente uma visita técnica competente e uma unidade de medida objetiva, sem sequer haver obrigatoriedade em determinar a sua extensão.
Para os fins aqui propostos, algumas considerações bastam acerca da Lei de Terras: esta teve grande dificuldade em ser implementada, tendo sido considerada um fracasso na década de 1870 tanto para demarcação das terras devolutas quanto para a solução dos conflitos relacionados ao domínio de terras; muitos dos grandes possuidores não procederam ao Registro, alegando não ser necessário sob justificativa de terem seus títulos de revalidação das sesmarias; os registros feitos, tanto por possuidores de grandes extensões quanto de médias e pequenas, eram demasiado truncados, não sendo possível determinar os limites e extensões fáticos.
Em todo o seu corpo, a Lei de Terras desconsiderou os delineamentos da função social, não chegando a estabelecer limites ao tamanho da propriedade nem critérios de produção e exploração. Acrescente-se ainda que cessado, o prazo para regularização das possessões, a forma exclusiva de aquisição da terra seria através de relações mercantis de compra e venda, excluindo-se o reconhecimento da propriedade com base no uso. Se tivermos em conta que em meados do século XIX já se caminhava para o fim do regime escravocrata, vale a afirmação de que, "com a constituição da propriedade da terra mais de trinta anos antes do fim do sistema escravocrata, a terra tornara-se cativa. De modo que os escravos tornaram-se livres e sem-terra" (FERNANDES, 2000: 18).
Em 1891, o Brasil, agora elevado ao status de República, promulga a sua nova Constituição, que, no art. 172, dispunha sobre o direito de propriedade, reiterando o conceito individualista de propriedade expresso na Carta de 1824 e ignorando a incorporação da doutrina da função social.
"Art. 172: A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: [...] § 17. O direito de propriedade mantem-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indemnização prévia."
Esse artigo recebeu nova redação pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926, mas o inciso referente à propriedade manteve-se inalterado. Previsto na Constituição de 1891, promulga-se em de 1º de janeiro de 1916 a Lei nº 3.071, o Código Civil de 1916. Pensado dentro dos ditames propostos no Código Napoleônico e em descompasso com a doutrina da função social da propriedade que se consolidava no continente europeu, acaba por reiterar aquele ideal de propriedade individualista, como demonstra o art. 524, "A Lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua". O que se observa é a capacidade de reafirmação de práticas consolidadas, perpetuadas pelo modelo institucional – o que na literatura é denominado "retroalimentação".
Da mesma forma, o Código Civil exclui de seu escopo critérios de produtividade e bom uso dos recursos naturais e técnicas produtivas, o que se demonstra no art. 485 em relação à posse: "Considera-se possuidor todo aquele, que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade. (grifos meus)". Ou seja, não imbuia a posse de função alguma, quer dizer, não exigia daquele que possuísse certa extensão de terra o dever de cultivá-la. Um fato curioso e imprescindível para a discussão que se seguirá é que esse Código Civil só viria a ser revogado em 2002, com a aprovação da Lei nº 10.406. Atente-se ainda para um outro fato, as lides rurais são resolvidas tendo-se por base jurídica o Código Civil.
A DOUTRINA DA FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO BRASILEIRO
A doutrina da função social da propriedade somente aparece na legislação brasileira com a Carta de 1934, em seu capítulo II, que dispõe sobre os direitos e garantias individuais. O art. 113, nº 17 afirma: "É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar (grifos meus)". Dessa forma, o direito de propriedade, apesar de ainda ser tratado exclusivamente no âmbito dos direitos individuais, aparece com a obrigação de se conformar ao interesse coletivo. Porém, fixado de maneira incipiente na norma escrita, esse germe da função social não resultou em medidas efetivas de intervenção na estrutura fundiária, sequer deu origem à legislação complementar que discorresse sobre os critérios para que o "interesse coletivo" se configurasse. A doutrina da função social, ou pelo menos algum de seus correlatos, desaparece da Carta de 1937, ressurgindo na Constituição de 1946 entre os dispositivos da ordem econômica e social como "bem estar social", vide art. 147, "O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social". Lemos também no art. 141, que integra as disposições acerca dos direitos e garantias individuais, a desapropriação por interesse social: "§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social (grifos meus)".
Foi justamente nas discussões da Constituinte de 1946 que se iniciou o debate institucional em torno da reforma agrária, vista como necessária para a transformação da estrutura fundiária brasileira, que já naquela época era interpretada como um problema para o progresso econômico do meio rural, para a distribuição de renda e justiça social devido aos altos índices de concentração fundiária. Em seu clássico Coronelismo, enxada e voto ([1948]), Vitor Nunes Leal já apresenta resultados impressionantes sobre a concentração de terras no Brasil com base nos dados do censo agrícola de 1940. As "superpropriedades fundiárias", aquelas com 1000 ha ou mais, representavam 1,5% do total das propriedades e somavam 48,3% da área total. Se somarmos os percentuais dessas "superpropriedades fundiárias" com os das "grandes propriedades" (entre 200 e 1000 ha, exclusive), o resultado que obtemos é o seguinte 7,8% das propriedades concentravam 73,1% da área total.
Luiz Carlos Prestes aponta, em seu discurso para justificar o veto da bancada do Partido Comunista do Brasil (PCB) ao Projeto de Constituição de 1946, alguns limites importantes para a Carta que se confeccionava no tocante à instituição da doutrina da função social. Frente aos reflexos que deveriam vir a corresponder à reforma agrária, afirmava: "não se diz nada de prático sobre a reforma agrária, sobre a maneira de acabar com os restos feudais na agricultura". Este discurso foi proferido em plenário no dia 17 de junho de 1946, a crítica refere-se ao corpo da norma constitucional, pois, não eram estabelecidos critérios e ditames práticos que apontassem caminhos efetivos para a consolidação da reforma agrária, isto ficaria a cargo de regulamentação complementar a ser estabelecida. Tal lei complementar só veio a ser promulgada em 1964, e até então vigoravam os preceitos conservadores expressos no Código Civil de 1916. Ou seja, ao passo que se transformava a instituição propriedade, deixavam-se brechas que permitiam o exercício de práticas reificadas e conflitantes com a mudança que se desejava implementar, o que justifica a afirmação "o novo e sempre velho perfil constitucional da propriedade".
Em 1962, foi promulgada a Lei Delegada nº 11 que constituía a Superintendência de Política Agrária (Supra). Essa lei teria como uma de suas finalidades impulsionar a reforma agrária, que na perspectiva do governo continha forte caráter econômico, estando voltada ao desenvolvimento do mercado e economia internos. Vale lembrar que Celso Furtado era o ministro do governo João Goulart e tinha liderado o grupo daqueles que estiveram presentes nas discussões da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Em seu discurso histórico do dia 13 de março de 1964, o então presidente João Goulart anunciou que enviaria ao Congresso uma Lei de Reforma Agrária com o objetivo de desapropriar as grandes propriedades mal utilizadas que se localizassem a até 100 quilômetros de cada lado das rodovias federais e estabelecendo o tamanho máximo de mil hectares para a propriedade rural. Porém, seu governo foi deposto em 31 de março do mesmo ano pelo golpe que instaurou a ditadura civil-militar.
Em 30 de novembro de 1964, foi promulgada a Lei nº 4.504, mais conhecida como Estatuto de Terras. Representava o primeiro ornamento legal que dispunha diretamente sobre a reforma agrária, incorporando a doutrina da função social e regulamentando critérios para seu cumprimento. Alguns pontos devem ser destacados em relação ao Estatuto: (a) previa o cadastro de todas as propriedades rurais do país, lembrando que a mesma proposta já aparecera mais de um século antes com a Lei de Terras de 1850; (b) propunha uma classificação geral para todas as propriedades baseada em critérios de tamanho, utilização e capacidade de produção, prevendo a desapropriação daquelas que subtilizassem seu potencial produtivo, na esteira do que se entende por doutrina da função social; (c) do que decorria transformar os minifúndios e os latifúndios em áreas prioritárias de desapropriação; (d) para fins de reforma agrária; (e) condicionando o uso da terra ao interesse social, promovendo justa e adequada distribuição da propriedade e a exploração racional da terra.
Todavia, esse aparato normativo limitou-se ao arcabouço legal, não tendo levado a uma reforma real da estrutura fundiária brasileira. Segundo dados do Censo Agropecuário, a concentração fundiária praticamente não se alterou no período que vai de 1975 a 2006, conforme demonstra a tabela abaixo. Se, em 1975, os 50% menores estabelecimentos ocupavam não mais que 2,5% da área total, em 2006, esse número caiu para 2,3%. Da mesma forma, se os 5% maiores ocupavam 68,7% da área em 1975, o percentual subiu para 69,3% em 2006. Variação de fato pequena, que, se não demonstra significativo aumento na desigualdade do acesso à terra, demonstra a enorme capacidade de retroalimentação do modelo do latifúndio com sua consequência mais notável: uma enorme desigualdade fundiária.
Tabela 1 – Proporção da área total ocupada pelos 50% menores (50-) e 5% maiores (5+) estabelecimentos, conforme condição de produtor

Vale destacar que o Estatuto de Terras de 1964 foi mantido como Lei de regulamentação da reforma agrária até 1993, quando é promulgada a Lei Agrária (Lei nº 8.629). A Carta de 1967 (art. 157, inciso III) e a Emenda 01/69 (art. 160, inciso III, e art. 161) também trazem o termo "função social".
O período que vai de 1965 a 1985 marca uma ruptura e abre novos caminhos para o desenvolvimento da agricultura no país. O modelo adotado pelos militares para políticas de desenvolvimento agropecuário priorizava a modernização tecnológica com liberação especial de crédito, tornando a agricultura dependente da indústria produtora de insumos. Ou seja, os governos militares não realizaram a reforma agrária preconizada pelo Estatuto, o que se viu foi um movimento de "colonização" das terras pouco ocupadas de regiões como a Amazônia, simbolizado na máxima do General Médici: "uma terra sem homens para homens sem terra!" Considerando o modelo apresentado acima o que se iniciou foi um movimento de atração de indústrias para o campo, especialmente de capital internacional.
É preciso ressaltar que por detrás da implantação e debate normativo acerca da propriedade da terra, existiu grande mobilização e organização de trabalhadores rurais, camponeses, famílias sem terra, clérigos, intelectuais e membros de partidos de esquerda na luta pelo acesso à terra e pela reforma agrária. Desde as últimas décadas do século XIX, a pressão de setores populares pela democratização efetiva da estrutura fundiária faz-se presente no cenário político nacional, sem a qual nenhuma das regulamentações e debates tratados acima teriam sido levados à esfera pública. A implantação da ditadura significou a perseguição ao PCB e demais militantes da esquerda, contudo, as pressões políticas para a abertura do regime e pela promoção da reforma agrária não cessaram. Durante o Estado de exceção forma-se uma das principais organizações da sociedade civil em favor da reforma agrária: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
A política econômica adotada pelo regime colocava-se, por conseguinte, em ampla contradição com as forças sociais atuantes no campo e seu projeto alternativo para a sociedade, levando a intensificação dos conflitos no campo. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) cadastrou 715 conflitos por terra em 1979, sendo que 88,1% destes começaram a partir de 1973. Já nos dois primeiros anos da década de 1980, a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) registrou 1.363 conflitos por terra. Ao passo que a censura e ausência de liberdade de expressão e debate em torno das questões públicas, resultaram na "militarização da questão agrária", estima-se que durante o regime militar tenham sido assassinados 1.106 trabalhadores rurais,e ainda, que no ano de 1985, fosse assassinado um trabalhador rural a cada dois dias, quer por "jagunços", quer pela polícia. Esse número não inclui o assassinato de militantes em prol da reforma agrária.
Em 1985, tem-se a abertura e organização de uma nova Constituinte para a elaboração da Carta promulgada em 1988. "Essa realidade carregada de contradições desafia as formas institucionais no período de abertura política" (FERNANDES, 2000: 38) e ao longo do período democrático. Tratava-se de reconhecer não apenas a necessidade e a urgência de transformação da estrutura fundiária, mas de se construir uma nova concepção de propriedade, impulsionada pelas ocupações de terra realizadas pelos movimentos camponeses. O que estava (e ainda está) em pauta era instituir uma nova forma de se organizar uso, posse e propriedade. Para os movimentos pró-reforma agrária tratava-se de ir além do modelo ocidental – inclusive daquele que apregoa a doutrina da função social – em direção à coletivização de um meio de produção indispensável: a terra.
A Constituição de 1988 traz o reconhecimento da doutrina da função social da propriedade entre os direitos fundamentais, art. 5º, inciso XXIII, o que implicaria na elevação de seu status (i.e. função social) à categoria de fundamento para que se veja protegido o direito de propriedade. A "função social" aparece ainda entre os princípios da ordem econômica, art. 170, inciso III, da política urbana, art. 182, §2º e da política agrícola e fundiária e da reforma agrária, art. 184. Todavia, vale para a Carta atual aqueles argumentos apresentados por Prestes na Constituinte de 1946: "não se diz nada de prático sobre a reforma agrária", isto ficaria a cargo de regulamentação complementar. A proposta de emenda constitucional de iniciativa popular para o Capítulo III (Da política agrícola e fundiária e da reforma agrária), contando com mais de 1 milhão e 200 mil assinaturas, foi rejeitada. O referido capítulo conta com 8 artigos, a serem regulados pela Lei 8.629 (Lei Agrária/93) e pela Lei Complementar nº 76(Lei de Rito Sumário). A Constituição Federal, em seu artigo 186, elenca os requisitos da função social da propriedade:
"A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores."
Esses requisitos já haviam sido previstos no Estatuto de Terras, mas a forma como são retomados no texto constitucional é demasiado vaga, o que torna tais critérios pouquíssimo objetivos, dando margem a diferenças hermenêuticas. Uma das possíveis interpretações é a apresentada por Rosalinda Pereira (2000), para quem a expressão "aproveitamento racional e adequado" remeteria à utilização de técnicas modernas que garantissem o satisfatório aproveitamento do solo sem agredi-lo, o que implica em considerar também as condições geofísicas da terra. Já o requisito "utilização adequada dos recursos naturais" – tendo a Constituição Federal um capítulo (Cap. VI, art. 225) destacado sobre a questão ambiental – ratificaria a necessidade de "preservação do meio ambiente", quer dizer, evitar sua degradação devido à utilização de técnicas que tragam aumento da produtividade sem respeito aos limites do solo e demais componentes. Os outros dois requisitos exigiriam do dono da terra que cumprisse com as obrigações trabalhistas e que a propriedade fosse utilizada de maneira a promover o bem estar dos trabalhadores em geral, ou seja, da coletividade. Logo, três elementos identificam o cumprimento da função social e precisam estar presentes simultaneamente para que esta se configure: um econômico, outro social e um ecológico. Portanto, a propriedade transforma-se ao mesmo tempo em "propriedade direito" e "propriedade obrigação", devendo servir à sociedade. A propriedade da terra é uma "propriedade-instituição, uma propriedade de que o próprio desenvolvimento social necessita, que está imersa na responsabilidade social da comunidade e não pode elidir a sua função social" (PEREIRA, 2000: 119).
Por conseguinte, tal interpretação da doutrina da função social exigiria um tratamento de posse e propriedade distinto daquele aplicado pelo Código Civil de 1916. Com sua noção conservadora e individualista de propriedade, expressa no art. 524 ("A Lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua"), o CC de 1916 foi o instrumento jurídico usado para a solução das lides rurais até 2002, quando se promulga o novo Código (Lei nº 10.406). Algumas considerações a respeito daquele que vigorou por 86 anos são válidas. Apresento a seguir parte da conclusão do relatório de comissão parlamentar de inquérito destinada a apurar as origens, causas e consequências da violência no campo brasileiro:
"seria injusto atribuir ao Poder Judiciário toda a responsabilidade pelas violências no campo. No entanto, parte de seus membros tem contribuído decisivamente com as injustiças, com a intocabilidade da propriedade privada, com a instituição do latifúndio e legitimando as formas mais absurdas de violência contra lavradores e apoiadores da reforma agrária. Inúmeros casos que servem como exemplo desta ineficácia do Judiciário nos foram relatados: o uso indevido das ações possessórias que se destinam a defesa da posse para a proteção da propriedade (Grifos meus)" (PEREIRA, 2000: 121).
Parte da violência no meio rural é atribuída no relatório às concessões de liminares nas ações possessórias. Interessa-nos aqui a "ação de reintegração de posse", que é a movida por quem sofre esbulho (a perda do poder de fato sobre o bem). Essas ações devem seu entendimento basicamente a dois artigos do Código Civil de 1916 que se mantiveram no Código Civil de 2002; o art. 485 idêntico ao art. 1.196 ("Considera-se possuidor todo aquele, que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade (grifos meus)") e o art. 499 ("O possuidor tem direito a ser mantido na posse, em caso de turbação, e restituído, no de esbulho") transformado no art. 1.210 ("O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado"). Note-se que a noção de possuidor expressa dessa forma desconsidera aqueles requisitos elencados pela Constituição como fundamentos para que se mantenha a propriedade: produtividade, respeito às leis trabalhistas e ambientais e observância do bem estar geral. O problema relativo ao esbulho será tratado mais a frente. Logo, ao passo que se dá nova redação ao artigo 524, incluindo a obrigatoriedade de atendimento dos critérios relativos ao cumprimento da função social entre os direitos do proprietário, com o art. 1.228, deixam-se brechas que abrem precedentes para a defesa do latifúndio.
Em 1993, conforme havia sido prevista pela Constituição, foi promulgada a Lei nº 8.629, ou Lei Agrária, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. Comparada ao Estatuto de Terras, essa lei representa um retrocesso no que diz respeito à efetivação da reforma agrária. Pois, abandona as designações de minifúndio e latifúndio como categorias passíveis de desapropriação, passando a empregar os termos pequena, média e grande propriedades. A desapropriação, por conseguinte, deverá decorrer do não cumprimento dos critérios acima discutidos (produtividade, respeito às leis trabalhistas e ambientais). A Lei Agrária dirá em relação aos critérios a serem seguidos para avaliação da produtividade apenas que estes devem ser afixados pelos órgãos competentes (Incra no nível federal e Institutos Estaduais de Terra nos estados), tendo-se por base os parâmetros da sub-região em que o imóvel se encontrar. Da mesma forma, não simplifica o processo de desapropriação, deixando brechas que facilitam a sua contestação e tornam moroso e dispendioso o processo desapropriatório. Os projetos de Lei Agrária e de Rito Sumário foram apresentado pelo deputado Antônio Marangon (PT), de uma aliança do PT com outros partidos de centro-esquerda, decorreu a aprovação em julho de 1992 do projeto Lei Agrária, que ainda precisava ser sancionado pelo então presidente Itamar Franco. Em fevereiro de 1993, a Coordenação Nacional do MST realizou uma audiência com o presidente apresentando medidas para a reforma agrária e pedindo o veto de dispositivos que inibiriam sua efetivação. A lei foi sancionada em 25 de fevereiro de 1993 com 10 dispositivos vetados.
O exame da Lei Agrária merece atenção detida e pormenorizada, objetivo que ultrapassa os limites do presente trabalho. Portanto, recorta-se o seu Art. 2º para uma análise mais detida, com o objetivo de assinalar as assimetrias reforçadas pelo corpo normativo no que tange à atuação de grupos de interesse da sociedade civil que postulam com as instituições do Estado a reforma agrária, notadamente os movimentos camponeses. O art. 2º que dispõe sobre os critérios a serem observados para a desapropriação, era originalmente composto por 2 parágrafos:
"§ 1º Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
§ 2º Para fins deste artigo, fica a União, através do órgão federal competente, autorizada a ingressar no imóvel de propriedade particular, para levantamento de dados e informações, com prévia notificação".
Expressa dessa forma, a primeira etapa do processo desapropriatório era relativamente simples, a União era autorizada a adentrar imóvel rural para levantamentos de dados a qualquer turno, bastando notificação prévia. Porém, este artigo foi editado em 2001 via Medida Provisória (nº 2.183-56) expedida pelo presidente à época, Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Não tendo ainda sido transformada em lei, vigora por força do art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 2001. O art. 2º teve excluído o segundo parágrafo e agregados outros 8 novos parágrafos, que vieram a retardar o processo desapropriatório, criando impecílios e barreiras para a vistoria e levantamento de dados no imóvel; buscando barrar o benefício daqueles cadastrados para assentamento, caso promovam o ato político da ocupação, transportada para o corpo legal como invasão; e bloqueando o acesso a benefícios públicos daquelas entidades, organizações, pessoas jurídicas, movimentos ou sociedades que participem ou incentivem a "invasão" de imóveis alvo de litígio. O § 6º é fundamental para corroborar com o argumento que se pretende desenvolver. Qual seja:
"§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.
Uma das principais estratégias políticas de luta dos movimentos camponeses tem sido as ocupações de terra, com vistas a pressionar os governos na efetivação de planos para a reforma agrária. Na ausência de políticas públicas efetivas, o que demonstra a análise recente da estrutura fundiária brasileira, o que se procedeu foi uma "judicialização" da questão. Dados do Censo Agropecuário de 2006 mostram um aumento do índice de Gini de 0,857 em 1985, para 0,872 em 2006 - o índice de Gini mede o grau de concentração ou de distribuição das terras do país, variando de 0 a 1. Os problemas decorrentes de uma estrutura fundiária socialmente injusta foram tratados, inclusive nos anos democráticos, como "caso de polícia", sendo o Poder Judiciário um ator central para perpetuação de tal estrutura. A adoção de uma nova concepção de propriedade por parte do Código Civil apenas recentemente, junto com os reflexos produzidos pela antiga noção conservadora de posse e sua manutenção, vem a corroborar com o argumento. Além disso, note-se as expressões destacadas no § 6º, "esbulho possessório" e "invasão motivada por conflito fundiário".
Parafraseando análise recente publicada pelo Movimento Popular por Moradia (MPM), o crime de esbulho é patrimonial, aconteceria se a intenção da ocupação fosse a de apropriar-se do terreno com a finalidade de enriquecimento ilícito. A finalidade do crime de esbulho é usurpar a propriedade alheia. Não é esse o caso do movimento político dos sem-terra. Os sem-terra ocupam um imóvel, no geral latifúndios improdutivos, grandes extensões de terra que não utilizam ou subutilizam sua capacidade produtiva real, com a finalidade política de pressionar o poder público para resolver o problema agrário, destinando o imóvel ocupado ou algum outro para assentamento de famílias sem-terra, e não necessariamente para os ocupantes. A ocupação também é um instrumento de pressão popular ante a inércia do poder público em implantar outras políticas que favoreçam à reforma agrária. Nas palavras de Bernardo Mançano Fernandes (2000: 45), "a ocupação é uma ação que inaugura uma dimensão do espaço de socialização política: o espaço de luta e resistência. Esse espaço construído pelos trabalhadores é o lugar da experiência e da formação do Movimento [MST]". Logo, esta medida serviu à criminalização de uma estratégia política central para a existência e organização do Movimento, além de ter contribuído para retardar projetos de desapropriação e assentamento. Note-se, art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, diz: "As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional". Portanto, os governos posteriores são igualmente responsáveis pela sua manutenção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para entender a configuração atual da estrutura fundiária brasileira, comecei por reconstruir a história da instituição "propriedade" no Brasil. Tinha como pressupostos que a propriedade privada da terra é fonte de poderio econômico e político, sendo que seu estabelecimento cria uma condição de desigualdade e hierarquia na sociedade. Por conseguinte, o Estado (um complexo de instituições) seria um agente ativo intervindo diretamente na produção dos resultados, legitimando essa condição de assimetria. Para observar e interpretar como tais relações são transpostas para o plano da vida real, escolhi por proceder à análise de uma instituição, a propriedade da terra, que gera resultados fáticos e diretamente sensíveis na estrutura fundiária. No caso em análise, os números por eles mesmos já mostram grande força expressiva, o índice de Gini para o Brasil, em 2006, era de 0,872, o que representa alta concentração de terras, quer dizer: muitos com quase nada e poucos com quase tudo.
A propriedade ser regulada por leis específicas traz uma nova vantagem para o seu estudo: permite procurar nas normas escritas continuidades e assimetrias. Nesse processo, alguns conceitos trazidos pela literatura institucionalista histórica foram centrais para análise das relações de poder no que tange a propriedade rural. A noção de trajetória (path dependence) conforma a análise desde o estabelecimento do foco do estudo, pois, informa que uma conjuntura ou instituição presente é resultante e dependente do desenrolar histórico de forças sociais, o que justifica a tentativa de compreender o prevalecimento do modelo do latifúndio buscando encontrar as origens históricas de sua formação.
Note-se que a forma aristocrática de colonização das terras brasileira, em conjunto com os incentivos econômicos para extração e monocultura voltados à exportação propiciaram a formação do latifúndio, as expensas de qualquer finalidade e caráter sociológicos que pudesse a propriedade da terra ser imbuída. Contrariando, por conseguinte, a forma germinal de doutrina da função social que acompanhava a Lei de Sesmarias ao condicionar a propriedade ao uso.
Ao contextualizar historicamente a formação e o desenvolvimento dos principais marcos normativos da propriedade rural, busquei enfatizar que as preferências daqueles que se beneficiam das assimetrias estruturais apresentam grande capacidade de afirmação, reiterando práticas sociais consolidadas. Momentos de inflexão, simbolizados, por exemplo, nas constituintes, em que regras são estabelecidas ou reestabelecidas, o que se observou foi a ratificação do modelo precedente, mecanismo conhecido como retroalimentação.
No caso brasileiro, ocorre de forma bastante peculiar: a adoção de uma regra, notadamente da doutrina da função social, que poderia levar ao esgotamento do modelo do latifúndio e redefinição da estrutura fundiária, dá-se de maneira vaga, deixando margem para diferenças hermenêuticas e abrindo brechas para defesa e perpetuação das grandes propriedades. Terem existido ao longo da história brasileira apenas dois códigos civis, instrumento jurídico usado na resolução direta dos conflitos fundiários, demonstra a relativa estabilidade de um corpo normativo frente à Constituição, que ao longo do século XX foi refeita cinco vezes.
O esforço aqui empreendido justifica-se para melhor compreensão da questão agrária, que, atualmente, tem como elemento central a reforma agrária e possui a seguinte configuração: ocupações de terra como estratégia de luta e pressão camponesa, somadas a uma intensificação da concentração fundiária, sendo a reforma agrária entendida como uma política pública possível para solucionar o problema fundiário. Como política pública (i.e. reforma agrária), envolve instituições do Estado e da sociedade civil, desde as agências e órgãos estatais voltados diretamente ao desenvolvimento agrário e fomento da reforma agrária, a governos federal e estaduais – via decretos de desapropriação e planos de desenvolvimento econômico e social que incluam a realização da reforma agrária –, até aquelas instituições da sociedade civil como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Confederação Nacional de Agricultura (CNA).
O sistema de governo adotado, ao menos aparentemente democrático, implica em que diferentes grupos de interesse postulem com o Estado o controle sobre os recursos e políticas. Quando o institucionalismo histórico enfatiza que o Estado é um agente ativo na configuração dos resultados, mostra-se atento às diferenças de poder sob controle dos grupos. Em trabalhos a serem desenvolvidos, pretendo buscar interpretar como se dão as relações entre as organizações da sociedade civil e as instituições estatais.
Uma limitação muito séria deste estudo é a análise pouco detida das regras atuais, todavia, penso que um estudo das normas correntes, não precedido pela reconstrução crítica da trajetória de normas anteriores, seria demasiado truncado não evidenciando as continuidades e problemas persistentes. Um horizonte de estudos futuros é justamente este estudo pormenorizado das regras atuais, que seja capaz de evidenciar as movimentações e movimentos políticos por detrás delas.
Procurei adentrar na discussão da "judicialização" da questão agrária, demonstrando como na ausência de uma política pública efetiva para a reforma agrária, resultou na criminalização de importante estratégia de luta dos movimentos sociais. A análise presente limitou-se ao aspecto normativo, seria mais interessante talvez recuperar a violência com que são tratados os movimentos camponeses, dimensão que também apresenta forte aspecto temporal. Não nos esqueçamos da luta de Canudos, da Revolução Farroupilha, das Ligas Camponesas e de tantos outros movimentos camponeses de luta pelo acesso à terra que foram violentamente reprimidos pelo aparato de Estado. O que nos leva a outra limitação ainda mais grave deste trabalho, a pouca atenção dedicada à atuação da sociedade civil, tanto de movimentos sociais como o MST, como da CNA. Espero, em trabalhos futuros, conseguir incorporar estas dimensões à análise do objeto deste estudo: a propriedade como instituição e seus marcos regulatórios.

























REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANEXO 1

Área
% sobre o número total
% sobre a área total
"Superpropriedades latifundiárias"
(de 1000 ha e mais)
1,46
48,31
"Grandes propriedades"
(de 200 ha a 1000 ha, exclusive)
6,34
24,79
"Médias propriedades"
(de 50 ha a 200 ha, exclusive)
17,21
15,90
"Pequenas propriedades"
(de 5 ha a 50 ha, exclusive)
53,07
10,45
"Minifúndios"
(de menos de 5 ha)
21,76
0,55
Fonte: Censo Agrícola de 1940


















ANEXO 2



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