Complexidade e Privacidade Informacional: um estudo na Perspectiva Sistêmica

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Complexidade e Privacidade Informacional: Um Estudo na Perspectiva Sistêmica MARIA EUNICE QUILICI GONZALEZ Departamento de Filosofia – UNESP Marília, SP [email protected]

JOÃO ANTONIO DE MORAES Departamento de Filosofia, Faculdade João Paulo II, FAJOPA Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas Campinas, SP [email protected]

Resumo: Neste capítulo investigamos o problema da análise da privacidade infor-

macional na perspectiva da teoria dos sistemas complexos. O problema pode ser assim enunciado: como analisar a privacidade à luz da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana? Esse problema se coloca na medida em que a interação dos indivíduos com tecnologias da informação tem propiciado novas possibilidades de ação, as quais dificultam a identificação dos limites entre público/privado. Argumentamos que a adoção da perspectiva sistêmica na análise da privacidade informacional fornece um método de investigação apropriado para a reflexão filosófico-interdisciplinar sobre novos temas que se apresentam no cenário contemporâneo das tecnologias digitais. Por fim, avaliamos o alcance de nossa proposta e atentamos para outros fatores que têm contribuído para a dificuldade do problema aqui investigado. Palavras-chave: privacidade; informação; significado; sistemas complexos; tecnologias

informacionais.

1. Considerações iniciais “Privacy  was  in  sufficient  danger  before  TV   appeared,  and  TV  has  given  it  its  death  blow”   (Louis Kronenberger)

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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A privacidade é caracterizada no escopo dos estudos tradicionais (WARREN & BRANDEIS [1890], SCHOEMAN [1984], DECEW [2006], entre outros) como a informação pessoal passível de acesso apenas ao próprio indivíduo ou a quem ele considere confiável. Nesse escopo, o tópico da privacidade envolve noções como: subjetividade, autonomia, intimidade, entre outras, constituindo um problema, por exemplo, quando informações pessoais são acessadas e/ou divulgadas sem o consentimento do indivíduo a quem se referem. Com a inserção das novas tecnologias informacionais (e.g., computadores, celulares, leitores de textos digitais, câmeras de vigilância, smartphones), principalmente aquelas vinculadas à internet, o estudo da privacidade adquiriu um grau de dificuldade maior. Isto porque, com o surgimento da internet os indivíduos, que na época da TV eram apenas receptores de informação, passaram a ser produtores, disseminando informação por meio das novas tecnologias. Com esse recurso, as informações pessoais podem se espalhar rapidamente nas redes informacionais. Dada a grande quantidade de informação disponível sobre os indivíduos nos meios digitais, surge a dificuldade de encontrar critérios de relevância para analisar a privacidade à luz da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana. Essa dificuldade caracteriza o que denominamos problema da análise da privacidade informacional. Argumentaremos que este problema não encontra recursos investigativos nos métodos filosóficos disponíveis, exigindo agora uma abordagem interdisciplinar que envolve a adoção de uma perspectiva sistêmica. Não pretendemos aqui propor uma solução a esse problema, mas apresentar uma alternativa metodológica de investigação que auxilie o estudo da privacidade no âmbito da Ética Informacional. O tema da privacidade informacional compõe um elemento importante da agenda de investigação da Ética Informacional. Esta se constitui enquanto um novo ramo de investigação interdisciplinar na Filosofia que visa refletir sobre questões, de cunho moral, relacionadas aos impactos da inserção de tecnologias informacionais na vida cotidiana (FLORIDI [2008, 2009], CAPURRO [2006, 2010]). Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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Essa nova proposta ética reúne elementos da ética tradicional, mas considera que as valiosas contribuições de filósofos do passado (tais como Aristóteles, Kant, Mill, entre outros) não foram direcionadas a ação moral no contexto das tecnologias informacionais. É nesse sentido que o estudo da complexidade se apresenta como um recurso metodológico para analisar questões éticas no contexto das novas tecnologias. Como explicitaremos, esse método permite analisar os fenômenos complexos em várias dimensões espaço-temporais buscando o padrão que os une, dando identidade a um certo sistema. Outros tópicos discutidos pela Ética Informacional são: propriedade particular, censura, identidade digital (e-ID), acessibilidade, confidencialidade, responsabilidade, universalidade, crimes cibernéticos e computação ubíqua. A Ética Informacional é um ramo da Filosofia da Informação. Esta é caracterizada por Luciano Floridi (2002, p. 137) como uma nova área da Filosofia, pautada na investigação do conteúdo da informação e no fornecimento de um novo método para análise de problemas filosóficos. Entendemos que, por ser bastante recente, não há um acordo entre os estudiosos sobre o método apropriado para investigar os temas pertinentes a Ética Informacional. É nesse contexto que propomos o método de investigação dos sistemas complexos para abordar o problema da análise da privacidade informacional. No que segue, introduzimos conceitos centrais da perspectiva dos sistemas complexos para investigar o problema da análise da privacidade informacional. Na parte 3, o tópico da privacidade é explicitado no contexto da Ética Informacional. Na parte 4, desenvolvemos, finalmente, uma análise da privacidade informacional à luz da perspectiva sistêmica. 2. Conceitos básicos da sistêmica Dentre as propriedades que caracterizam a Sistêmica, ou a perspectiva dos sistemas complexos, interessa-nos destacar aqui o método de investigação interdisciplinar que inclui várias dimensões informacionais no estudo de eventos, situações ou objetos. Nessa Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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perspectiva, a cooperação entre domínios da Filosofia, da Biologia, da Física, da Ecologia, da Sociologia, entre outros, é fundamental para a busca de padrões informacionais comuns que identifiquem organismos, situações, eventos e objetos sem restringir a especificidade dos mesmos. Entendemos que, no estudo da privacidade, esta perspectiva auxilia a identificação de propriedades compartilhadas pelos indivíduos, em diversos níveis, delimitando o que pode ser considerado privado por um indivíduo ou grupo específico. Na perspectiva Sistêmica, grupos são analisados como sistemas, enquanto que os indivíduos são seus elementos. De acordo com Bresciani  Filho  &  D’Ottaviano  (2000,  p.  284-285), um sistema pode ser caracterizado como: [...] uma entidade unitária, de natureza complexa e organizada, constituída por um conjunto não vazio de elementos ativos que mantêm relações com características de invariância no tempo que lhe garantem sua própria identidade. Nesse sentido, um sistema consiste num conjunto de elementos que formam uma estrutura, a qual possui funcionalidade.

Os sistemas complexos são sistemas abertos, informacional e materialmente; eles trocam informação, energia e matéria com o ambiente no qual estão inserido. Além disso, esse tipo de sistema, característico dos seres vivos, da sociedade, dos planetas entre outros, são sensíveis às variações do meio que os circundam. Tais variações podem gerar mudanças abruptas e inesperadas em seus elementos e mesmo na totalidade do sistema. Em contraste, sistemas fechados são informacionalmente estáveis e, enquanto duram, apresentam comportamentos previsíveis; por exemplo, o termostato, que troca energia com o meio, mas não altera sua função ao longo do tempo. Além da interdisciplinaridade, própria do método de investigação dos sistemas complexos, as seguintes características desse tipo de sistemas são particularmente relevantes para nossa proposta de análise da privacidade informacional:

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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auto-organização; princípio de emergência; princípio da não-linearidade; parâmetros de controle e de ordem1; princípio hologramático; princípio de organização recursiva. A auto-organização é uma característica fundamental dos sistemas complexos. Ela constitui um processo de organização espontânea que ocorre entre elementos de naturezas distintas, sem a presença de um coordenador central (interno ou externo) ou de um centro controlador absoluto. Conforme Debrun (1996, p. 4): há auto-organização cada vez que o advento ou a reestruturação de uma forma, ao longo de um processo, se deve principalmente ao próprio processo – às características nele intrínsecas – e, só em menor grau às condições de partida, ao intercâmbio com o ambiente ou à presença eventual de uma instância supervisora.

Os processos auto-organizados podem ser classificados em primários e secundários dependendo do grau de dependência em relação à sua história constitutiva. A auto-organização primária, de grande interesse para a presente investigação, é própria dos sistemas que realizaram um corte abrupto com o passado, instaurando mudanças significativas na sua nova identidade (DEBRUN, 1996). Já a auto-organização secundária ocorre através de ajustes das relações que se estabelecem entre os elementos de sistemas, ajustes esses constituídos durante um processo de aprendizagem, de longa du1

Há uma discussão acerca da distinção entre parâmetros de ordem e parâmetros de organização. O segundo tipo de parâmetro estaria presente em qualquer tipo de sistema, porém, o primeiro tipo apresentaria um grau de especificidade maior. Neste trabalho, adotaremos a noção de parâmetro de ordem, uma vez que, como indicaremos, as propriedades que retroagem sobre os indivíduos, delimitando o que consideram como significativo de ser protegido, são bem identificadas. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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ração, que possibilita a emergência de qualidades estáveis, identificadoras de sua identidade. A emergência, supostamente presente nos processos de auto-organização (primária e secundária), ocorre a partir da interação entre os elementos do sistema, no nível microscópico, a qual produz, no nível macroscópico, parâmetros de ordem, manifestos na forma de padrões informacionais. Uma vez constituídos, esses parâmetros direcionam o comportamento dos elementos no plano micro que lhe deram origem (HAKEN [2000]; GONZALEZ & HASELAGER [2007]). Eles estão relacionados às qualidades que “surgem”   das   interações entre os elementos do sistema, não sendo redutíveis à mera soma desses elementos. Além disso, as propriedades emergentes não se limitam ao plano físico, mas apresentam novidades organizacionais que retroagem sobre os elementos que, através de suas interações, propiciaram as condições de sua formação. Na dinâmica de emergência e retroalimentação de certas propriedades sistêmicas estão presentes também os parâmetros de controle, sustentadores dos parâmetros de ordem. A Figura 1, extraída da obra de Lewin (1994), ilustra aspectos dessa dinâmica:

Figura 1 (LEWIN, 1994, p. 25) Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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Na figura acima os parâmetros de controle estão representados na parte inferior, identificados pelas setas finas que atuam nas possibilidades de interação e no modo como os elementos do sistema interagem entre si. A atuação dos parâmetros de controle sobre os elementos faz emergir os parâmetros de ordem, ilustrados na parte superior da figura (estrutura global emergente). Como indicado, uma vez criados, os parâmetros de ordem retroagem sobre os elementos que lhe deram origem influenciando suas interações e reforçando os parâmetros de controle que os coordenam. Um exemplo da presença dos parâmetros de controle e de ordem na dinâmica dos elementos de um sistema pode ser ilustrado através de uma competição de natação. Nessa situação, os parâmetros de controle seriam: o tamanho da piscina, a temperatura da água, a localização dos trampolins, o número de nadadores, entre outros fatores que constituem a situação da competição e delimitam a ação dos competidores. Já os parâmetros de ordem podem ser ilustrados através da ordem emergente da atuação desses parâmetros de controle sobre os nadadores, influenciando, por exemplo, a velocidade e o estilo de movimentação dos mesmos (MORAES, 2014, p. 117-118). Apesar de parâmetros de controle e de ordem influenciarem a ação dos elementos, entendemos que eles não se diluem nos sistemas de que fazem parte; indivíduos em uma sociedade, por exemplo, podem promover uma revolução em certas situações quando os parâmetros de controle alcançam um valor crítico, ocasionando a alteração dos parâmetros de ordem vigentes (HASELAGER & GONZALEZ, 2004). Na perspectiva sistêmica, a relação entre elementos/sistema é caracterizada a partir do princípio hologramático, o qual, segundo Morin (2005, p. 181), prescreve que, em um certo sentido, a parte está no todo e o todo está na parte. Assim, por exemplo, no caso da sociedade humana, ela está presente nos indivíduos por meio das leis, da instituição da linguagem e da cultura; o indivíduo, por sua vez, se faz presente enquanto parte da sociedade que atua em sua constituição, contribuindo para a identidade e dinâmica da sociedade. Contudo, Morin (2001) ressalta que o princípio hologramático Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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não se identifica com o holismo tradicional. Isso porque a totalidade de um sistema possui qualidades e propriedades que não se encontram nas partes isoladas. Estas partes, por sua vez, possuem propriedades que podem desaparecer quando submetidas ao controle geral do sistema. O que está em jogo aqui é o processo de emergência de propriedades globais que retroagem sobre as partes que lhe deram origem, através do princípio de organização recursiva. O princípio de organização recursiva, segundo Morin (2005, p.182), prescreve que os efeitos e produtos presentes em uma organização são necessários a sua própria causação. É nesse sentido que: “uma   sociedade   é   produzida   pelas   interações   entre   os   indivíduos   e   essas interações produzem um todo organizador que retroage sobre os indivíduos para coproduzi-los   enquanto   indivíduos   humanos”.   Como veremos na parte 4, a organização recursiva acelerada constitui um dos fatores responsáveis pela auto-organização primária que parece estar produzindo uma ruptura radical nas novas concepções de privacidade. A partir das características dos sistemas complexos acima indicadas, procuraremos explicitar a nossa hipótese segundo a qual a abordagem sistêmica fornece um método que auxilia o estudo da privacidade no contexto informacional, possibilitando uma compreensão da dinâmica recursiva sociedade/indivíduo. Nesse viés, a privacidade será analisada enquanto um parâmetro de controle presente na relação entre indivíduos em seus contextos específicos regidos por parâmetros de ordem da Ética Informacional vigente. 3. A privacidade na perspectiva da ética informacional Como indicado na parte 1, a Ética Informacional é um ramo da Filosofia da Informação que diz respeito aos rumos que as tecnologias informacionais estão dando à sociedade. Em relação à análise da privacidade, ilustrações do modo como as novas tecnologias informacionais podem constituir um problema são: i) a existência de redes sociais na internet, que possibilitam a aquisição e disseminação de informação sobre os indivíduos sem que os mesmos estejam cientes disso, e ii) as câmeras de vigilância, que podem não apenas Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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restringir ações individuais, mas também registrar informações sobre hábitos individuais e coletivos, muitas vezes sem o consentimento das pessoas. As novas possibilidades de interação fornecidas pelas tecnologias digitais, conforme o grau de familiaridade do indivíduo, promovem   uma   sensação   de   dependência   de   estar   “online”.   Além   disso,  mesmo  que  o  indivíduo  não  queira  estar  “online”  a  maior  parte do tempo, tal sensação permanece em virtude da disseminação de dispositivos informacionais no cotidiano, tais como câmeras, cartões de crédito, entre outros. Nessa situação, surge a questão: quais as implicações éticas da inserção de tecnologias informacionais na sociedade para a ação cotidiana? Quais as implicações de tal inserção para a noção de privacidade atual? A análise da privacidade se coloca como um problema no âmbito das tecnologias informacionais em virtude da grande capacidade de captação e disseminação de informação sobre os indivíduos, exigindo um critério de relevância como ponto de partida da investigação. Para complicar ainda mais este cenário, a noção de privacidade adotada pelo senso comum tem sido alterada pela inserção de tecnologias informacionais no cotidiano. Entendemos que um processo de auto-organização primária (tal como explicitado na parte 2) está em curso no campo da Ética, gerando rupturas radicais, por exemplo na concepção tradicional (ocidental) de privacidade.  A  concepção  de  “vida  privada”,  íntima,   pertencente apenas ao sujeito e acessível apenas a ele/a ou a quem ele/a considere confiável, está se alterando entre os usuários das novas tecnologias informacionais, em virtude de interações interpessoais realizadas por meio de interfaces digitais. Tais interações ocorrem principalmente no âmbito das redes sociais, como as do Facebook, Google+, Twitter. Nelas os usuários preenchem seus perfis com informações sobre suas músicas preferidas, data de aniversário, locais que costumam frequentar, estado civil, preferência sexual, relações de amizade, etc.. Nesse contexto, a noção de privacidade tradicional parece não ser adequada para a compreensão dos limites daquilo que é adBresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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mitido como privado, visto que as pessoas se expõem na internet sem que esta exposição seja acompanhada de um sentimento de invasão de sua privacidade. Como sugere Quilici-Gonzalez (2012), talvez uma diferença importante entre os problemas tratados pela ética tradicional e aqueles pertinentes ao contexto das tecnologias informacionais esteja no fato de que as pessoas registram seus gostos e opiniões momentâneas. Quando ocorrem mudanças, todo o histórico   já   está   registrado   por   aqueles   “amigos”   que   foram   caracterizados  como   “friends”   no   ajuste   do   Facebook. Pode ocorrer que dez anos depois da publicação de certas cenas sobre a vida de um indivíduo ele se envergonhe daquela experiência e deseje esquecêla, mas ela estará registrada no fluxo informacional das redes sociais e poderá ser usada para seu constrangimento. No passado, apenas as pessoas com vida pública enfrentavam este tipo de problema. Agora, porém, quase todos autorizam a exposição de parte de sua vida numa  “esfera  pública  controlada” 2. Um dos fatores responsáveis por essa ruptura abruta entre vida pública e privada parece ser a familiaridade que os usuários adquiriram com as tecnologias informacionais por seu uso rotineiro, favorecendo a exposição de informação pessoal nas redes sociais; o uso frequente de tais tecnologias faz com que os usuários as utilizem sem muito questionamento. O preenchimento de informação pessoal em redes sociais é, na maioria das vezes, feito de forma mecânica. Fatores como idade e desconhecimento do modo como tais tecnologias funcionam também contribuem para o fornecimento de informação  pessoal  às  redes  sociais  de  forma  “automática”.  

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Em  2014  foi  iniciada  uma  discussão  acerca  do  “direito  de  ser  esquecido”  (the right to be forgotten) no ambiente virtual. Essa discussão começou em função da solicitação de um indivíduo, que 1998 teve problemas financeiros, mas que ainda hoje, quando procurado por seu nome no Google, tais informações são as primeiras que aparecem. Por causa de constrangimentos gerados, esse indivíduo solicitou ao Google a retirada de tais informações. Tal solicitação deu início a um debate filosófico-interdisciplinar,   com   alcance   ao   âmbito   legal,   acerca   do   “direito   de   ser   esquecido”,  o  qual  está  em  processo  na  Corte  da  União  Europeia e na UNESCO. (cf. http://www.bbc.com/news/technology-27394751 e http://www.bbc.com/news/ worldeurope-27388289). Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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A interação possibilitada pelas redes sociais entre os indivíduos dificulta, paradoxalmente, a identificação dos limites do que é considerado passível de proteção individual. Assim, uma primeira dificuldade na análise da privacidade informacional consiste em delimitar um contexto no qual as informações concebidas no passado como privadas se tornam atualmente explícitas e acessíveis em ambientes virtuais. Essa dificuldade sinaliza uma ruptura, própria da auto-organização primária, da visão de privacidade comum às gerações não familiarizadas com as novas tecnologias digitais. A dificuldade de identificar os limites entre público/privado também   tem   como   fator  responsável  a   constituição   de   uma   “sociedade   da   vigilância”.   Esta   expressão   é   utilizada   para   caracterizar   a   sensação de observação gerada pela presença de tecnologias informacionais na sociedade. Em contraste com o sentimento de revolta pela   vigilância   e   controle   da   “geração   rebelde”   de   1960,   as   novas   gerações aparentemente constituem dois grupos no que diz respeito à presença, por exemplo, de câmeras em ambientes públicos: os indiferentes  e  aqueles  que  se  sentem  protegidos.  A  “sociedade da vigilância”  é  marcada,  atualmente,  pela  presença  da  computação ubíqua. Conforme indicado em Quilici-Gonzalez et alli (2010), o termo computação ubíqua foi introduzido por Weiser (1991) para caracterizar os sistemas processadores de informação que estão disseminados na vida diária dos indivíduos, captando, armazenando e transmitindo informação sobre eles o tempo todo. Uma característica central da computação ubíqua é ser espalhada, sem um centro controlador específico, atuando, na maior parte das vezes, sem a consciência dos indivíduos. Exemplos deste tipo de computação são as câmeras de segurança, que armazenam informações sobre o que acontece em um determinado ambiente, mesmo sem a autorização dos indivíduos que passam por aquela área, crachás com código de barra e sistemas de biometria registradores de frequências em certos ambientes, entre outros. Entendemos que a computação ubíqua é uma das responsáveis   pela   manutenção   da   “sociedade   da   vigilância”,   pois   grande   parte das informações adquiridas através deste tipo de artefato se refere aos hábitos particulares dos indivíduos, sem que eles estejam Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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cientes; informações essas que podem ser utilizadas para pôr em risco a privacidade dos mesmos. Com o recurso das tecnologias informacionais, os diretores de supermercados, por exemplo, sabem o que os indivíduos consomem, o mesmo acontecendo com os dirigentes de bancos, que têm os dados de movimentações financeiras ou das companhias que gravam, sem autorização, conversas telefônicas. Em síntese, os impactos das tecnologias informacionais na vida cotidiana indicam uma ruptura na concepção de privacidade, na medida em que alteram de forma significativa o que se entende por privacidade  na  “Era  da  Informação”.  Compreender  os  limites  do  que   pode ser considerado privado se tornou um desafio após a inserção das tecnologias informacionais na ação cotidiana dos indivíduos. A grande quantidade de informação disponível sobre o indivíduo, nas redes sociais e na computação ubíqua, indica a dificuldade de estabelecer um critério de relevância para analisar a privacidade no contexto informacional. Na próxima seção, propomos uma abordagem sistêmica para investigar esta dificuldade. 4. A privacidade informacional à luz da sistêmica Sob a perspectiva dos sistemas complexos, a privacidade pode ser inicialmente analisada como: uma propriedade emergente das relações compartilhadas entre indivíduos e grupos, que apresenta maior ou menor grau de expansão em virtude das características referentes à localização de cada indivíduo (MORAES, 2014, p. 113). Nessa perspectiva, a privacidade passa a ser analisada enquanto um parâmetro de controle convencionalmente constituído a partir da informação significativa para os indivíduos inseridos em certos grupos, em contextos específicos. A localização geográfica do indivíduo é relevante para a análise da privacidade em virtude do seu modo de conduta, tanto no mundo  “real”  quanto  na  rede, que reflete o meio em que está inserido. Contudo, sua localização informacional, não necessariamente geográfica, mas de pertencimento a um grupo, fornece também subsídios para o estabelecimento de um critério de relevância para análise da privacidade. É, inicialmente, o indivíduo situado e incorBresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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porado que torna possível o estabelecimento do que ele considera privado; sem um indivíduo situado e incorporado não há privacidade. Mas, a condição que julgamos suficiente para a delimitação do que pode ser considerado privado dependerá, em última instância, dos valores convencionalmente estabelecidos em seu grupo, os quais funcionam como parâmetros de controle para o sistema informacional que o identifica. A propriedade hologramática (indicada na parte 2) se expressa aqui como um indicativo de que a privacidade explícita no grupo (todo) se reflete nos indivíduos (partes). Nesse viés, Mainzer (1997, p. 313, tradução nossa) tece a seguinte consideração sobre o papel do indivíduo na dinâmica da sociedade: De um ponto de vista macro, podemos, é claro, observar indivíduos contribuindo com suas atividades para o estado-macro coletivo da sociedade representando ordem política, cultural, e econômica [parâmetros de ordem]. Ainda, estados-macro da sociedade, é claro, não são apenas as médias das partes. Seus parâmetros de ordem influenciam fortemente os indivíduos da sociedade pela orientação de suas atividades e pela ativação ou desativação de suas atitudes e capacidades. Esse tipo de feedback é típico em sistemas complexos dinâmicos.

Cabe ressaltar que a privacidade que aqui se esboça decorre de um processo que envolve um certo grau de auto-organização, uma vez que não é imposta por um centro controlador absoluto, mas se constitui na própria dinâmica de interação entre os indivíduos. Ainda que o Google, entre outros, possam controlar as informações disponíveis na rede, resta ainda um espaço para interação espontânea entre os usuários que dá margem a algum grau de liberdade na perspectiva sistêmica. A análise daquilo que merece ser protegido, no contexto da sistêmica, pode ser realizada em dois planos: (i) no modo pelo qual a privacidade é dinamicamente concebida pelo grupo ou (ii) nas características individuais que podem vir a atuar como parâmetros de controle na emergência de parâmetros de ordem constitutivos de diferentes concepções de privacidade. Como indicamos na parte 2, indivíduos podem promover mudanças significativas em visões tradicionais da moralidade, da política e, no mesmo bojo, da privaciBresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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dade, quando os parâmetros de controle vigentes se desgastam ou atingem um limite. Nas palavras de Mainzer (1997, p. 313, tradução nossa): Se os parâmetros de controle das condições do meio alcançam certos valores críticos devido às interações internas e externas, as variáveis macro podem se mover a domínios instáveis, dos quais caminhos alternativos altamente divergentes são possíveis. Pequenas microflutuações não previsíveis (e.g., ações de poucas pessoas influentes, descobertas científicas, novas tecnologias) podem decidir quais dos caminhos divergentes, em estados instáveis de bifurcação, a sociedade seguirá.

Suponhamos a situação em que um indivíduo comece a frequentar a universidade. Este indivíduo carrega consigo concepções do que é privado instauradas por sua cultura, família, etc. Ele compartilha com outros indivíduos do seu meio concepções do que considera privado. Após um tempo de vivência, ele, muito provavelmente, irá refletir também grande parte das concepções do que é considerado digno de ser protegido pelos outros estudantes. Além disso, mais do que sua localização geográfica, outros fatores podem influenciar o que ele considera privado, dentre eles as relações que o indivíduo mantém no meio virtual, as quais demarcam sua localização informacional. São essas múltiplas relações que marcam o grau de dificuldade da análise da privacidade informacional, uma vez que extrapolam as barreiras das distâncias físicas. Tanto em sua localização geográfica como em sua localização informacional, o indivíduo pode atuar como um precursor de uma nova concepção do que merece ser protegido. Se sua proposta for compartilhada por outros, ela ganhará força de modo a alterar a concepção vigente. Se o princípio de organização recursiva acelerada, mencionado na parte 2, se aplicar a esta situação, rapidamente novos parâmetros de controle serão instaurados e consolidados na construção de uma nova concepção de privacidade. Uma vantagem de se adotar o método da complexidade no estudo da privacidade é que ele permite entender o processo de autoorganização primária subjacente às rupturas presentes na dinâmica Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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da sociedade. No caso da noção de privacidade, esse método permite compreender as diferentes temporalidades a que estão submetidos os indivíduos de uma mesma época. O princípio da organização recursiva acelerada atua de modo realmente acelerado nos usuários jovens de novas tecnologias digitais que rapidamente aprendem a manipular os seus artefatos alterando seus hábitos, os quais funcionarão como causa de sua própria ordem, alterando, não apenas as suas concepções de mundo, mas a sua própria noção de privacidade e identidade. Já nas gerações mais antigas, essa dinâmica é desacelerada propiciando que relações de longa duração se mantenham inalteradas no que diz respeito às suas concepções de privacidade. Em síntese, à luz da perspectiva sistêmica, o critério de relevância adotado para análise da privacidade informacional seria dado em função: a) do contexto, geográfico e/ou informacional, no qual ocorre a exposição de informação pessoal por parte dos indivíduos; b) da dinâmica auto-organizadora, que atua na formação de parâmetros de controle e de ordem mantenedores da visão de mundo dos indivíduos; e c) do princípio de organização recursiva acelerada, que atua de modo diferente em gerações distintas que convivem em uma mesma época. Entendemos que em cada contexto, as condições (a), (b) e (c) acima fornecem subsídios para análise daquilo que é tido como privado a partir das propriedades que os indivíduos consideram como dignas de serem protegidas. Assim, por exemplo, enquanto que para um determinado grupo de indivíduos (principalmente, adolescentes e aqueles que têm maior proximidade com o uso de tecnologias informacionais) o acesso à informação por outros (mesmo desconhecidos) não constitui uma invasão à sua privacidade; para outros o simples uso da biometria em um biblioteca, por registrar Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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determinados hábitos e preferências, pode causar uma sensação de invasão de privacidade. 5. Considerações finais Neste capítulo, desenvolvemos uma discussão acerca do problema de análise da privacidade à luz da inserção de tecnologias informacionais na ação cotidiana dos indivíduos. Como indicamos, essas tecnologias possibilitam aos indivíduos se tornarem produtores de informação, incluindo as que dizem respeito a outros indivíduos. É neste tipo de situação que a privacidade se torna um problema de difícil análise, pois, no âmbito digital, uma vez disseminada a informação não se possui um controle total sobre ela. O potencial de compartilhamento de informação das tecnologias digitais não envolve um centro controlador único. Assim, está presente, principalmente, a dificuldade de encontrar um critério de relevância para se identificar o que é considerado privado pelos indivíduos. Tendo em vista os diversos fatores em torno do problema da análise da privacidade informacional, esboçamos uma abordagem sistêmica, segundo a qual a privacidade é analisada enquanto convencionalmente constituída por indivíduos ou grupos a partir das propriedades que são consideradas dignas de serem protegidas. Em tal análise são admitidas as diferenças de contexto nos quais o que é considerado privado estaria presente, principalmente em função do princípio de organização recursiva acelerada. Entendemos que a análise da privacidade informacional segundo a perspectiva sistêmica possui a vantagem de encampar a realidade virtual, de redes de relações, as quais compõem a localização informacional de certos indivíduos. Uma questão que pode ser levantada acerca do método sistêmico de análise da privacidade é: como adotar uma postura metodológica sistêmica de análise da privacidade, a partir da qual se identificam as propriedades consideradas dignas de serem protegidas por indivíduos ou grupos, sem cair num relativismo conceitual? Julgamos que para evitar um relativismo conceitual é preciso ressaltar que o método que estamos propondo seja perspectivista. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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O perspectivismo, tal qual proposto por Peterson (1996), é uma postura metodológica por meio da qual se constitui uma explicação multidimensional. Segundo este prisma, desenvolve-se o mapeamento dos possíveis planos de análise em busca de um padrão comum que identifique o sistema que possui tais dimensões. Neste sentido, uma abordagem sistêmica de cunho perspectivista pode ser entendida como uma postura metodológica a partir da qual se busca a identificação do padrão comum presente nas relações entre partetodo nos diversos planos de expansão de análise (indivíduo-indivíduo, indivíduo-grupo, grupo-grupo). Além dos fatores apresentados, outro que contribui para a dificuldade do problema de análise da privacidade informacional é a constituição de seres híbridos na sociedade contemporânea. Estes são formados a partir do crescimento dos indivíduos em meio às tecnologias (FLORIDI, 2005, 2006, 2014). Em outras palavras, seres híbridos são aqueles que se desenvolvem em meio ao contexto informacional, como, por exemplo, os indivíduos nascidos após 1996 em sociedades industrializadas. A esses indivíduos o contato com tecnologias informacionais não causa estranheza. A atuação do princípio da organização recursiva acelerada permite compreender a familiaridade presente na interação dos seres híbridos com as tecnologias, a qual promove a aprovação tácita de tais tecnologias. Tal aprovação se faz presente pelos benefícios que apresentam em sua primeira impressão, sendo que os danos são percebidos ao longo do tempo (QUILICI-GONZALEZ et alli, 2010); danos esses, por exemplo, referentes à exposição de informação acerca de um indivíduo sem seu consentimento. Julgamos, ainda, que a familiaridade e a aceitação tácita das tecnologias informacionais pelos indivíduos em sua vida cotidiana contribui para a adesão de uma transparência das informações sobre seus hábitos. Capurro (2005, p. 42, tradução nossa) considera que o conceito tradicional de privacidade está sendo substituído por um de:   “Seja   transparente!   Então você   será   um   bom   cidadão”. Nesse contexto, uma nova indagação se coloca: como equacionar a relação transparência/privacidade, dado que a transparência seria em prol da segurança pública? Conforme lembra Garfinkel (2008, p. 69): “[conBresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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flitos] entre o interesse do Estado no controle social e o interesse dos cidadãos individuais na liberdade de interferência não razoável [às suas privacidades] são constantemente resolvidos em prol do Estado”.   Tendo em vista tal concepção,  a  tendência  a  uma  sociedade  “transparente”   seria   inevitável?   O   fim   da   privacidade   seria   apenas   uma   questão de tempo? Diferente de Kronenberger, consideramos que a privacidade ainda não tomou seu golpe final. Mesmo com a dificuldade engendrada pela atuação do princípio da organização recursiva acelerada promovido com a inserção das tecnologias informacionais na ação humana, entendemos que, se iniciada uma reflexão acerca dos impactos de tais inserções, ainda seria possível conservar a privacidade multifacetada, mesmo no âmbito virtual. Neste contexto, o papel do filósofo é de grande importância, pois se faz necessária uma visão crítica das consequências morais e políticas na ação dos indivíduos. Enfim, a privacidade se destaca nas discussões atuais como um dos temas que se tornaram de difícil análise quando situadas no contexto informacional. Destacam-se mais questões do que respostas, em virtude do caráter de novidade que as tecnologias informacionais aplicaram a este assunto. Assim, entendemos que as discussões acerca da privacidade no âmbito virtual e da interação entre indivíduos/tecnologias informacionais deveriam ser assuntos-chave na agenda filosófica dos novos rumos que a Filosofia tem seguido na  “Era  da  Informação”.   Referências BRESCIANI   FILHO,   E.;;   D’OTTAVIANO,   I.M.L. Conceitos básicos   de   sistêmica.   In:   D’OTTAVIANO,   I.M.L.;;   GONZALEZ,   M.E.Q. Auto-Organização: estudos interdisciplinares. Campinas: CLE/UNICAMP, p. 283-306, 2000. (Coleção CLE, v. 30) CAPURRO, R. Privacy. An intercultural perspective. Ethics and Information Technology, v. 7, p. 37-43, 2005.

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do CLE-Auto-Organização, com especial destaque a José Arthur Quilici Gonzalez. Agradecemos também ao apoio dado pela UNESP/Marília, FAPESP (proc. 2011/15601-4 e proc. 2010/52627-9) e CNPq por financiar esta pesquisa. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 161-180, 2014.

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