Comprar ou não comprar? Comprei! Do impulso à compulsão

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Samuel Lins*

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COMPRO OU NAO COMPRO?

COMPREI

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Do impulso à compulsão

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IVEMOS EM UMA SOCIEDADE MATERIALISTA E CONSUMISTA, NA QUAL O ACÚMULO DE BENS MATERIAIS E O CONSUMO OCUPAM UM LUGAR CENTRAL NA VIDA DAS PESSOAS, AFINAL, SEMPRE SE ENCONTRA UM BOM MOTIVO PARA COMPRAR ALGUMA COISA: aniversário do pai, da mãe, do filho, de casamento, dia das crianças, Natal, amigo secreto, o primeiro dia de trabalho, e por isso é importante comprar uma roupa nova para causar uma boa impressão ou, simplesmente, o fim de semana chegou e nada melhor do que fazer compras depois de uma semana cansativa e sobrecarregada de trabalho. Por causa disso, somos bombardeados diariamente com campanhas publicitárias que procuram vender produtos fazendo promessas que muitas vezes não podem cumprir, oferecendo aos seus consumidores alegria, felicidade e satisfação dos seus desejos através da posse dos seus produtos, sendo que, para possuí-los, as pessoas precisam comprá-los. Entretanto, esta busca pela autossatisfação através das posses e pelo desejo de comprar cada vez mais itens pode levar os indivíduos a desenvolverem comportamentos prejudiciais ao seu bem-estar, como a compra por compulsão. A compra por compulsão (oniomania, mania de comprar) ou o transtorno de compras compulsivas ocorre quando a pessoa sente uma irresistível vontade de comprar, e este desejo gera uma tensão que é aliviada somente quando a pessoa efetua a compra, acompanhado de uma sensação inicial de satisfação e prazer, seguida de culpa e remorso (Faber & O’Guinn, 1989). A compra compulsiva é um comportamento crônico e cíclico, ou seja, caracterizado pela repetição constante. Entretanto, é importante diferenciar o comportamento de compra compulsiva da compra impulsiva. A compra impulsiva ocorre quando, ao se aproximar de um produto, o consumidor desperta um repentino desejo de comprar, para obter uma gratificação imediata (Rook & Fisher, 1995). A compra por impulso não é patológica, e qualquer pessoa pode comprar por impulso. Por exemplo, é comum nas filas dos caixas dos supermercados haver o que chamamos de “corredor polonês”, uma fila repleta de prateleiras, cheias de itens que muitas vezes são comprados por impulso, sem nenhum planejamento prévio. Já o comprador compulsivo compra produtos que talvez nunca utilize, ou compra mais do que realmente precisa, muitas vezes não tem como pagar o que comprou, e não está muito interessado no

COMPORTAMENTO ] [[ARTIGO ] que está comprando: o que lhe dá prazer não é o produto em si, mas o ato de comprar (Dittmar, 2005). Assim, a excitação vivenciada ao realizar a compra é tão satisfatória que impossibilita ponderar as consequências. Apesar do impulso ser uma das características do comportamento compulsivo, o simples fato de agir por impulso não caracteriza uma compulsão. A princípio, sentir impulso para comprar não é prejudicial, pode ser considerado normal. O problema se dá quando este impulso vivenciado cresce e se desenvolve tanto, tornando-se incontrolável, caracterizando a compulsão (Rook, 1987). A melhor maneira de distinguir a compra compulsiva da impulsiva são as motivações e as consequências do comportamento, como também a intensidade da frequência com que ele acontece (Faber & O’Guinn,2008). De uma forma geral, a compra compulsiva ocorre pelo prazer de comprar em si, o foco é o comportamento de compra. Já a compra por impulso é desencadeada pelo desejo de possuir um produto, isto é, o foco é o objeto.

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Outro aspecto que merece ser destacado é que o simples fato de uma pessoa gostar de fazer compras, ter o hábito de comprar muito, ou em um fato esporádico gastar mais do que poderia também não se configura como compra por compulsão. Um indivíduo pode ter a atividade de comprar como um hobbie ou lazer, bem como pode dispor de muitos recursos financeiros e, consequentemente, fazer muitas compras, ou, por descuido, comprar um produto e não conseguir pagar por ele. Entretanto, a combinação de satisfazer-se em um ambiente de compras, realizar compras em excesso, não conseguir pagá-las e sentir desejos súbitos de fazer compras são fortes indicadores de um comportamento compulsivo. Agora, vou pedir a você que responda rapidamente e da forma mais sincera possível a estas perguntas: há sacolas de compras fechadas em seu armário? As outras pessoas consideram que você compra em excesso? Boa parte da sua vida se baseia em comprar? Você se considera um comprador impulsivo, ou seja, alguém que não pensa nas consequências? Você costuma comprar coisas que não precisa ou coisas que não planejou comprar? Se você concorda com a maioria destas perguntas, é bom parar para pensar e refletir sobre seus hábitos de compra. É bem possível que você seja ou esteja se tornando um comprador compulsivo. Estas perguntas foram retiradas da Richmond Compulsive Buying Scale (RCBS), elaborada por Ridgway, Kukar-Kinney e Monroe (2008) e traduzida e adaptada recentemente para o contexto brasileiro por Leite e colaboradores (2013). A RCBS fornece algumas perguntas que ajudam a pessoa a pensar sobre seu comportamento de compra, fazendo-a refletir sobre a possibilidade de ser um shopaholic, ou seja, um comprador compulsivo. Obviamente, responder sim para todas estas perguntas não o caracteriza imediatamente como comprador compulsivo. É importante destacar que todo e qualquer diagnóstico deve ser feito com um profissional especializado (psicólogo e psiquiatra). Mas o que leva uma pessoa a se tornar um comprador compulsivo? Diversos fatores podem estar relacionados, como aspectos sociodemográficos, emocionais, sociais e biológicos. As mulheres tendem a ser mais propensas a comprarem compulsivamente. Entretanto, não podemos interpretar esta evidência como se fosse algo inato ao público feminino. A explicação para esta relação pode estar em fatores socioculturais, uma vez que as mulheres são

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Estudos comprovam que a compra compulsiva está diretamente relacionada às emoções. As emoções negativas tornam-se um gatilho para compra por compulsão.

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mais socializadas no consumo, e mais estimuladas desde pequenas a possuírem e a utilizarem mais acessórios. Não precisamos ir muito longe para fazer esta constatação: em qualquer shopping center, vamos encontrar um número expressivamente maior de lojas destinadas ao público feminino. Do mesmo modo, pessoas mais jovens também tendem a ser mais compulsivas, principalmente por estarem aprendendo a lidar com as suas próprias finanças. Muitas vezes, adolescentes e jovens não tem noção do quanto gastam e do que é preciso ser feito para pagar suas próprias contas. Para além disso, o acesso fácil ao crédito, a compra parcelada e o uso do cartão de crédito também são formas de contribuir para o desenvolvimento da compra compulsiva, pois estes hábitos e formas de pagamentos muitas vezes ludibriam o consumidor, não o fazendo ter consciência de quanto dinheiro realmente possui e do quanto efetivamente pode gastar. Neste sentido, os jovens mais propensos à compulsividade nas compras utilizam o cartão de crédito de forma mais intensa (Veludo-de-Oliveira, Ikeda, & Santos, 2004), portanto, juventude e cartão de crédito podem ser elementos constitutivos de uma bomba relógio rumo à compra compulsiva. Assim, ressaltamos a importância da família na educação financeira. Os pais e responsáveis

precisam educar os seus filhos ainda quando crianças a lidarem melhor com o dinheiro para que, quando adultos, sejam mais prudentes em relação aos seus gastos. Por outro lado, o ambiente familiar também pode ser considerado um “fator de risco”, uma vez que a compra compulsiva é mais comumente observada em famílias que já evidenciam este tipo este tipo de transtorno (Valence, D’astous, & Fortier, 1988), e em famílias com uma estrutura familiar problemática, que passaram por questões emocionalmente prejudiciais, como o divórcio dos pais, por exemplo (Rindfleisch, Burroughs, & Denton, 1997). Estou triste? Logo compro! Um aspecto crucial para o desenvolvimento da compra compulsiva diz respeito às emoções do consumidor. Estudos mostram que pessoas com baixa autoestima, com tendência à depressão ou que estão simplesmente tristes tendem a ser mais compulsivas na compra. As emoções negativas podem ser consideradas como um gatilho para o comportamento de compra por compulsão. O curioso é que estas emoções negativas são ao mesmo tempo causa e consequência deste comportamento, funcionando de forma compensatória. A pessoa sente-se triste e deprimida, e enxerga a atividade de compra como uma forma de aliviar esta tristeza, mas, ao passar o

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frenesi, ela volta a vivenciar emoções negativas, como frustração e tristeza, dando continuidade ao ciclo. Assim, existem dois lados da compra: se por um lado existe o desejo e o prazer de comprar, como forma de aliviar a tensão interna, por outro lado, nem sempre este sentimento de autossatisfação se mantém, havendo culpa e ressentimento após a compra. Para além disso, a compra por compulsão é um comportamento obsessivo-compulsivo que pode estar relacionado a outros transtornos como a cleptomania (mania de roubar objetos), o alcoolismo, transtornos alimentares (bulimia), e associado a problemas psiquiátricos como ansiedade, depressão e transtorno bipolar. Ainda podemos mencionar outros fatores que estimulam este tipo de comportamento: a pressão exercida pelos pares, principalmente sobre pessoas mais vulneráveis que buscam reconhecimento através dos bens que possuem; os aspectos culturais, como os valores, particularmente os valores individualistas típicos da sociedade ocidental. E, por fim, questões biológicas que consideram a existência de um componente genético. Um estudo realizado pelos pesquisadores Hirschman e Stern (2001) constatou que o gene D2DR está mais presente em compradores compulsivos. Além das emoções negativas mencionadas antes, outras consequências do comportamento compulsivo de compras são o endividamento e

os prejuízos sociais. Segundo uma pesquisa recente realizada pelo Banco Central (2014), um dos principais motivos do endividamento das famílias brasileiras é atribuído à falta de domínio dos gastos e às compras realizadas de maneira impulsiva e descontrolada. Diante da vergonha do endividamento, é comum que os compulsivos escondam a fatura bancária dos familiares, mintam sobre seus gastos, e escondam o que compraram, prejudicando o convívio social. É muito difícil uma pessoa assumir-se como uma compradora compulsiva, principalmente em uma sociedade como a nossa em que o ato de comprar é aceitável e desejável, diferentemente de outros tipos de vícios. As justificativas podem ser muitas, até porque muitos dos compradores compulsivos podem ter condições de pagar suas próprias compras e podem “sustentar o seu vício”, afinal, “se eu posso pagar, porque não comprar?”, utilizando este argumento como forma de defesa, justificando o seu comportamento. De justificativa em justificativa, a maioria dos shopaholics procuram ajuda apenas quando as dívidas extrapolaram o limite máximo, quando os problemas nos relacionamentos surgem em decorrência dos exageros nos gastos, quando as questões legais e judiciais batem à porta, ou quando a situação está tão incontrolável ao ponto de provocar quadros depressivos. Apesar de ter sido recentemente incluída

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48 O tratamento deve ser imediato quando o diagnóstico é confirmado. A pessoa deve se manter afastada de ambientes consumistas, diminuir o uso de cartões de crédito e reduzir o acesso a recursos financeiros.

como doença no DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), a compulsividade nas compras é um vício que precisa ser enfrentado e tratado como qualquer outro tipo de vício (drogas, comida, sexo, álcool etc.). O DSM é um manual elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, utilizado em todo mundo por profissionais da área de saúde mental, que classifica as doenças mentais e define os critérios usados para diagnosticá-las. Diante de um diagnóstico confirmado, existem várias formas de tratamento. Primeiramente é abordada a questão comportamental: se as compras são prejudiciais para a pessoa, o melhor a se fazer é afastá-la do ambiente consumista, diminuindo a frequência de ida aos shopping centers, cancelando e evitando o uso

de cartões de crédito, e reduzindo o acesso aos recursos financeiros. A pessoa vai passar por um processo de transição e de aprendizado para lidar com o dinheiro e com as compras, da mesma forma como se faz com os transtornos alimentares ou a dependência química. Há também os grupos de autoajuda que fornecem suporte social, como os Devedores Anônimos (DA), formado por pessoas que compram e gastam compulsivamente, que funciona semelhantemente aos Alcoólicos Anônimos. Para quem mora em São Paulo, o Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas oferece tratamento gratuito (http://amiti.com.br/ compras-compulsivas). Por fim, em apenas algumas situações, o tratamento medicamentoso com antidepressivos é realizado. “Ia passando por uma dessas lojas, quando pensei... por que comprá-lo, por que não comprá-lo? Comprei-o! ”. Este famoso jargão do memorável personagem Armando Volta, da escolinha do professor Raimundo, é motivo de brincadeira para uns, mas para outros é coisa séria. A compulsão nas compras não se desenvolve de repente, do dia para a noite. Quando um comprador compulsivo se reconhece como tal, e reflete sobre os motivos que contribuíram para chegar neste quadro, costuma identificar vários fatores que contribuíram para o desenvolvimento e que, talvez, poderiam ter sido evitados, sem precisar ter chegado a tal ponto. Diante de tudo isso, convém pensar e refletir sobre nosso próprio comportamento de compra, antes que prejudique a nós mesmos e as pessoas que nos cercam. * Samuel Lins é professor do departamento de Psicologia da PUC-Rio, Doutor em Psicologia (Universidade do Porto Portugal), Mestre em Psicologia Social (Universidade Federal da Paraíba - UFPB), Licenciado e Formado em Psicologia na área Clínica/Psicanálise (UFPB) e Bacharel em Administração (UFPB). Atualmente é um dos responsáveis pela pesquisa “Família: Emoções, valores e consumo”, realizada em todo território nacional, que tem o objetivo de analisar a relação entre o ambiente familiar e o comportamento de compra. Para participar é preciso ter mais de 18 anos e responder o questionário disponibilizado no endereço eletrônico: https://pt.surveymonkey. com/s/pesquisafamilia. E-mail para contato: [email protected]

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