Compreensão antropológica e objetivação participante

June 29, 2017 | Autor: Gabriel Peters | Categoria: Pierre Bourdieu, Etnografia, Reflexividade
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Compreensão antropológica e objetivação participante Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ) 15/11/2011 O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de modalidades de organização social, representações culturais e padrões de conduta significativamente diferenciados em relação àqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual relativamente autônoma. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência históricodescritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição de caráter mais ostensivamente epistêmico. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance definicional a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]). O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência auspiciosa um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia, já que Bourdieu, como Dumont, passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sócio-simbólicos dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o

procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo e a transpõe do âmbito da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988). Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação particularmente atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas, representadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção cognitivamente desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que o cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de significado e contextos de ação e experiência humana. A passagem pela antropologia também é particularmente relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos, na medida em que essa disciplina impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica algo aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374), captação calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas também dependente de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo. Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu sobremaneira para a criação do “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão vivaz de toda espécie de insatisfações intensamente experimentadas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como mais uma demonstração acachapante da profunda implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen quando o einfühlen desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica que concebe o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural

regulativamente voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados. A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstaculizava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada. Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a interrogação e elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274). Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a modalidade de etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”, mas é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias socialmente fundadas de entendimento, bem como sobre os lucros específicos que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria ao mesmo controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir. Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a idéia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da

ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:

“Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).

Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do indígena. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada, em particular o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-nomundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação cognitiva e desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123), como nas caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem a roupagem seja da teoria da escolha racional, seja do “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21). Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação dialógicohermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação social e epistêmica do sujeito cognoscente com tal objeto, não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico no caso da

investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método. Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas de produção e organização das práticas sociais que são invisíveis aos agentes sob a roupagem da cognição consciente, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito. É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post. Bibliografia BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. ________Homo academicus. Stanford: Stanford University Press,1988. ________Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990a. _______The logic of practice. Stanford: Stanford University Press, 1990b. ________Lições da aula. São Paulo, Ática, 2001. _______Participant objectivation. Journal of the Royal Anthropological Institute, v.9, n.2, p.281-294, 2003b. ________A distinção: crítica social do julgamento do gosto. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007. BOURDIEU, P; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992. CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (eds). Writing culture: the poetics and politics of ethnography.Berkeley: University of California Press, 1986. DUMONT, Louis. (1997), Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp. ________(2000), Homo aequalis. São Paulo: Edusc. GADAMER, H.G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997. GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997. KURASAWA, F. The ethnological imagination: a cross cultural critique of modernity. University of Minnesota Press, 2004 LOEWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen. São Paulo: Cortez, 1994.

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