Computação vestível e o sujeito pós-humano

July 4, 2017 | Autor: L. Agreste Nazareth | Categoria: Ubiquitous Computing, Wearable Computing, UX Design
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

LUIZA MIRANDA AGRESTE NAZARETH

 

Computação vestível e o sujeito pós-humano Novos paradigmas de experiência de uso e design para ubiquidade

SÃO PAULO 2014  

LUIZA MIRANDA AGRESTE NAZARETH

Computação vestível e o sujeito pós-humano Novos paradigmas de experiência de uso e design para ubiquidade

Monografia apresentada ao Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, em cumprimento às exigências do Curso de Pós Graduação Latu Sensu, para obtenção do título de Especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital para Ambientes Corporativos. Orientador Prof. Dr. Guilherme Ranoya

SÃO PAULO 2014  

Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. NAZARETH, Luiza Miranda Agreste Computação vestível e o sujeito pós-humano: novos paradigmas de experiência de uso e design para a ubiquidade / Luiza Miranda Agreste Nazareth: orientador Prof. Dr. Guilherme Ranoya - São Paulo, 2014. 63 fls. Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2014 1. computação vestível. 2. pós-humano. 3. experiência de uso. 4.design. 5.ubiquidade.

 

Nome: NAZARETH, Luiza Miranda Agreste Título: Computação vestível e o sujeito pós-humano: novos paradigmas de experiência de uso e design para a ubiquidade

Monografia apresentada ao Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital para Ambientes Corporativos.

Aprovada em ___ de ___________de 2014.

BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Ranoya Instituição Julgamento __________________________________________________ Prof. Dr. Instituição Julgamento __________________________________________________ Prof. Dr. Instituição Julgamento

Dedicatória A Jesus, fonte eterna de inspiração, sabedoria e graça, pelo seu amor leal que me capacita a buscar a melhor versão de mim.

Agradecimentos Ao orientador, Guilherme Ranoya, pela prontidão, referencias e discussões tão enriquecedoras. Ao Paulo, pelo seu amor, paciência e parceria em quaisquer circunstâncias. A família e amigos, pela compreensão e incentivo durante os meses de ausência.

 

RESUMO NAZARETH, L. M. A. Computação vestível e o sujeito pós-humano: novos paradigmas de experiência de uso e design para ubiquidade. 2014. 63 f. Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2014 Este trabalho tem como objeto de estudo a relação dos dispositivos de computação vestível e o usuário contemporâneo em ambientes de ubiquidade computacional. Para tanto, recorre aos conceitos de sujeito pós-humano a fim de compreender

a

complexidade

das

expectativas

e

anseios

deste

usuário

contemporâneo no que se refere a dispositivos tecnológicos vestíveis e as suas possibilidades de reconfiguração da percepção do corpo humano. O propósito deste estudo é discorrer a respeito de como a experiência de uso de dispositivos computacionais será transformada através dos novos paradigmas que a computação vestível inaugura e como esta mudança de paradigmas impactará, em particular, as práticas do design de experiência de uso. Palavras-chave: computação vestível, pós-humano, ubiquidade, experiência de uso, design

 

ABSTRACT NAZARETH, L. M. A. Wearable computing and the post-human beings: new paradigms of user experience and design for ubiquity. 2014. 63f. Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2014 The object of this study is the human-computer interaction between the contemporary user and wearable devices in a context of ubiquitous computing. For this matter, we appeal to the concept of post-humanism to understand the complexity of this user’s expectations, needs and fears when it comes to wearable devices and their possibilities of reconfiguration of the human body. There for, the purpose of this study is to investigate the paradigms shifts that wearable computers bring to the common user experience on digital devices and how these changes will impact the practice of user experience design. Keywords: wearable computing, post-human, ubiquity, user experience, design.

 

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 8 2. CONTEXTO SOCIOCULTURAL DA COMPUTAÇÃO UBÍQUA ....................... 11 2.1

Ciberespaço e sua condição de ubiquidade .................................................. 11

2.2

Cibercultura e as relações de poder entre homem e tecnologia ................... 14

2.3

A comunicação homem-computador através de interfaces digitais............... 17

2.4

Por uma computação ubíqua: dos smartphones à internet das coisas ......... 22

3. COMPUTAÇÃO VESTÍVEL E O SUJEITO PÓS-HUMANO .............................. 29 3.1

Computação vestível como modalidade da computação ubíqua .................. 29

3.2

O sujeito pós-humano e sua relação com objetos inteligentes...................... 32

3.3

Experiência de uso de computadores vestíveis............................................. 41

4. NOVOS PARADIGMAS DE DESIGN DE EXPERIÊNCIA DE USO PARA UBIQUIDADE ............................................................................................................ 49 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 56 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 61

 

1.

INTRODUÇÃO Ao analisarmos o movimento de portabilidade e mobilidade dos dispositivos

tecnológicos, a expansão das redes de conexão sem fio e dos dados armazenados em nuvem, podemos constatar que a sociedade contemporânea, imersa na cibercultura, tem demandado por maior mobilidade, pervasividade e ubiquidade nas suas experiências de conexão com o ciberespaço. Essas necessidades tem se materializado na forma de objetos do cotidiano embebidos de processadores computacionais, sendo uma de suas modalidades os itens da indumentária contemporânea nomeados de computadores vestíveis ou wearable devices. Os dispositivos de computação vestível, recentemente introduzidos no mercado por grandes empresas de tecnologia nas formas de óculos, pulseiras e relógios de pulso, tem gerado tanto euforia e curiosidade quanto ceticismo e ansiedade na sociedade contemporânea. Mesmo não existindo anteriormente nenhuma aplicação comercial para estes dispositivos eles já fazem parte do imaginário coletivo da sociedade contemporânea ocidental por conta das representações das ficções científicas e vem sendo estudados e prototipados há anos por pesquisadores da engenharia da computação. Seu surgimento, portanto, não é algo sem precedentes mas é fruto de um processo de apropriação e ressignificação simbólica dos dispositivos computadorizados móveis já existentes a fim de suprir as demandas latentes na sociedade contemporânea por experiências mais imersivas e fluidas com o ciberespaço. Como a maioria dos processos de inovação tecnológica, enquanto as principais empresas de computação e telefonia tem investido na concepção de dispositivos vestíveis atraentes por suas funcionalidades, os early adopters se aglutinam para experimenta-los, criticar ou exaltar suas features e os usuários comuns observam toda essa movimentação sem muito compreender como essas novas tecnologias irão efetivamente fazer parte de suas vidas. Mais importante do que conjecturas e futurismos, o que já podemos prever a respeito dos dispositivos de computação vestível é o fato de suas experiências de uso terem o potencial de diferir completamente dos padrões de interface gráfica até então estabelecidos pelos computadores pessoais e smartphones.

 

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A presente pesquisa tem como objetivo principal investigar quais são as mudanças de paradigmas que a computação vestível traz para as experiências de uso de dispositivos tecnológicos em ambientes de ubiquidade computacional e, particularmente, como estas mudanças impactam as práticas do campo de estudo de design de experiência do usuário. Para respondermos a estes questionamentos, é necessário compreender quem é o usuário ou sujeito que interagirá com estes dispositivos tecnológicos e quais são as necessidades latentes deste sujeito na contemporaneidade. Para tanto, recorremos ao conceito de sujeito pós-humano como contraponto ao sujeito cartesiano absoluto e racional a fim de compreender a complexidade das expectativas e anseios deste usuário contemporâneo no que se refere a dispositivos tecnológicos vestíveis e suas possibilidades de reconfiguração do corpo. Este trabalho tem, portanto, como objeto de estudo a computação vestível e sua relação com o sujeito pós-humano e como metodologia de pesquisa nos utilizaremos de um estudo dedutivo de natureza bibliográfica e exploratória. No

primeiro

capítulo,

descrevemos

o

contexto

sociocultural

da

contemporaneidade que se configura como demandante por ubiquidade e demonstramos que o surgimento dos computadores vestíveis e da computação ubíqua é fruto de um processo de apropriação e ressignificação simbólica das tecnologias móveis já existentes, a fim de sanar necessidades latentes por maior ubiquidade computacional na sociedade contemporânea. Descrevemos a nossa compreensão de cultura contemporânea ao discorrermos a respeito do termo cibercultura e problematizarmos as relações de poder, controle e comunicação entre homem e tecnologia na contemporaneidade. Apontamos também como os computadores pessoais e smartphones se mostraram falhos em prover experiências de uso ubíquas e imersivas ao ciberespaço o que culminou na busca por novos dispositivos mais inerentes às atividades humanas e demandantes por menos atenção e concentração para sua utilização. No segundo capítulo, delimitamos o conceito de computação ubíqua e, particularmente, apontamos a computação vestível como precursora de um novo paradigma de relação homem-computador. Problematizamos os conceitos de sujeito, objeto e sua relação em ambientes nos quais os objetos também são  

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providos de inteligência e capacidade de interação com o ambiente. Neste contexto, surge o conceito de sujeito pós-humano como a transformação do homem também em sistema de informação digital. Identificamos a computação vestível como uma das formas de codificação do homem através de dispositivos tecnológicos acoplados ao seu corpo, porém sem reconfigurar sua organicidade. Através da descrição das características dos dispositivos de computação vestível, problematizamos a difusão das fronteiras entre homem e máquina oriundas desta nova relação homemcomputador, assim como o imaginário coletivo que o circunda devido às referências deste tema nas obras de ficção científica. No terceiro e último capítulo, identificamos o design como disciplina que ordena e projeta as interações entre homem-máquina e justificamos a necessidade de uma prática consistente de design de experiência de usuário a fim de que estes dispositivos tecnológicos possam ser efetivamente utilizados e incorporados ao cotidiano dos usuários comuns. Frente a isso, delineamos de forma não exaustiva como a prática do design será impactada pelos novos paradigmas de experiência de uso que surgem com os dispositivos de computação vestível.

 

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2.

CONTEXTO SOCIOCULTURAL DA COMPUTAÇÃO UBÍQUA

    2.1

Ciberespaço e sua condição de ubiquidade A contemporaneidade tem sido marcada por mudanças rápidas e constantes

no que se refere a desenvolvimento tecnológico. Steven Johnson (1997) apoiandose nos conceitos de McLuhan, identifica a velocidade elétrica como força-motriz da aceleração das mudanças sociais e tecnológicas das últimas décadas. Johnson (1997, p. 8)

reforça a diminuição do espaçamento temporal entre uma

transformação tecnológica e outra ao dizer que [...] a tecnologia costumava avançar em estágios mais lentos, mais diferenciados. O livro reinou como meio de comunicação de massa preferido por vários séculos, os jornais tiveram cerca de 200 anos para inovar; até o cinema deu as cartas durante 30 anos antes de ser rapidamente sucedido pelo rádio, depois pela televisão, depois pelo computador pessoal. A cada inovação, o hiato que mantinha o passado à distância ficou menor, mais atenuado. Isso não significou muito nos avanços que foram o livro ou o jornal ao longo dos séculos – para não mencionar a escala milenar do pintor das cavernas –, mas, à medida que foram se abreviando, os estágios começaram a interromper os ciclos de vida de seres humanos individuais.

Em outras palavras, o que outrora levava décadas ou séculos para se modificar passou a ser transformado no período de tempo de uma única vida humana. Nos últimos anos, vimos as tecnologias da informação e comunicação convergirem na microinformática e o computador pessoal ser introduzido na ecologia de mídias eletrônicas analógicas. Mais recentemente, presenciamos a vertiginosa adoção dos telefones móveis providos de sistemas operacionais, ou smartphones. Com a popularização dos computadores pessoais e smartphones, a criação de interfaces gráficas mais amigáveis e a conexão dos computadores a uma rede digital global - a Internet - presenciamos a reconfiguração de práticas sociais, políticas, econômicas e culturais dando início à “era da informação”. Castells (1996) denomina de “era da informação” e “sociedade em rede” a época e sociedade pós-industrial na qual a informação e o conhecimento passaram a ser a base do modelo de desenvolvimento e produção. Neste novo modelo, a informação substituiu a energia como matéria-prima e passou a permear e transformar todos os aspectos da vida humana, instituindo o paradigma das tecnologias da informação em detrimento do paradigma das tecnologias industriais.  

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Esse novo paradigma, fruto da reconfiguração da sociedade a partir da apropriação social das tecnologias da informação, se caracteriza por um tecido social constituído em redes, pela penetrabilidade dos efeitos das tecnologias da informação em todos os aspectos da vida humana, pela sua constante possibilidade de reconfiguração e, finalmente, pelo processo de convergência de tecnologias analógicas e específicas em sistemas de informação. Portanto, a era da informação possibilitou a digitalização e sobreposição de uma camada informacional (ou virtual) à camada do real. Segundo Levy (1996) essa camada informacional sempre existiu como o composto das subjetividades e consciência coletiva, porém as tecnologias da informação deram a ela um corpo virtual. Assim, com o advento das tecnologias da informação, ou informática, “cria-se a possibilidade de leitura da realidade, traduzida pela linguagem digital, automatizando a informação” (LEMOS, 2002, p. 107). Essa camada informacional, agora passível de ser acessada pelas tecnologias da informação a qualquer momento através da codificação e decodificação de seus componentes passa a ser a principal mediadora das vivências humanas, reconfigurando as noções espaçotemporais e inaugurando o ciberespaço. O ciberespaço, composto pelo virtual, “ao contrário do que se pensa, não remete a um para além do real, mas a uma vontade (ou não) de constituição do real enquanto novo” (PARENTE, 1999, p. 14). Portanto, a experiência do ciberespaço não propõe a substituição do real pela realidade simulada, mas a lembrança de que nós, como seres simbólicos, temos na nossa própria subjetividade uma simulação hiper-realista produzida pela linguagem (PARENTE, 1999). Vilém Flusser (2007) defende que a própria linguagem e comunicação humanas são processos artificiais, portanto a experiência do homem com relação à natureza é, desde o principio, mediada pela técnica. Lúcia Santaella (2010) reafirma Flusser ao atestar que toda relação humana com a natureza ou com sua própria natureza é, de saída, uma relação mediada pelos signos e pela cultura, sendo as primeiras tecnologias a própria fala e o gesto. Assim sendo, a condição primária do nosso cérebro, como seres simbólicos, fez com que déssemos nomes e imprimíssemos significados à natureza, criando a dimensão da semiosfera e da cultura ou da inteligência coletiva, como denomina Pierre Levy (1996). De Kerkchove  

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(2009, p. 72) complementa esse conceito ao dizer que a Internet é “um cérebro coletivo, vivo, que dá estalidos quando o estamos utilizando. [...] A Internet vem de baixo, do subterrâneo, do subconsciente da inteligência coletiva”. Sob essa ótica, podemos afirmar que as tecnologias da informação e sua camada informacional não inauguram a mediação das relações humanas, mas evidenciam quão mediadas sempre foram todas as nossas representações de mundo. Assim sendo, a virtualidade não é uma característica puramente das tecnologias digitais, mas é própria do ser humano. Nunca existiu uma realidade “não-codificada” que fosse a representação fidedigna do real. Todas as realidades são comunicadas através de símbolos, sejam elas virtuais ou não. Santaella (2010, p. 217) ressalta que, sob essa perspectiva, [...] as linhas divisórias entre o mundo natural e o cultural, o biológico e o tecnológico se esfumam, perdem toda nitidez. Se tudo o que chamamos de vida só é vida por que está projetada como código, se sistemas técnicos e sistemas de codificação estão na base daquilo que chamamos cultura, o que sobra da natureza sem cultura?

A condição inicial do ser humano é, portanto, a de ser simbólico e, desde o início da linguagem, a virtualidade e o mundo dos códigos já existiam na forma de semiosfera. Com as tecnologias da informação, houve a digitalização e universalização do acesso à essa camada informacional já existente. A universalização do acesso à camada informacional se dá através da virtualização destas subjetividades e consciência coletiva, ao ser criado um espaço de informações ou ciberespaço. Segundo Levy (1996), este ciberespaço recorta o espaço-tempo clássico que se constitui apenas como “aqui e ali” e “passado, presente e futuro” e inaugura a simultaneidade e ubiquidade, nas quais predominam fluxos de informação sem constrangimentos espaço-temporais, aos quais Castells (1999) denomina “espaço de fluxos”. A condição de ubiquidade do ciberespaço se dá pelo fato de todos que estiverem conectados a rede, em qualquer tempo e em qualquer espaço, podem ter acesso à camada informacional digital. A ubiquidade pressupõe também que as tecnologias digitais assumiram a centralidade da cultura contemporânea, reconfigurando não só a sociedade e seus conceitos espaço-temporais, mas também diversos outros aspectos da vida contemporânea. Vale reforçarmos neste momento que a condição de ubiquidade do  

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ciberespaço difere do conceito de computação ubíqua que discutiremos mais a frente neste trabalho. Isso por que enquanto percebemos que, desde sua constituição, o ciberespaço e a sociedade em rede tem uma condição ubíqua de desprendimento espaço-temporal e de acesso ininterrupto à rede digital, as tecnologias da informação tem se desenvolvido a fim de elas próprias se tornarem tecnologias mais ubíquas e oferecerem experiências de uso mais condizentes com a condição ubíqua do ciberespaço. O primeiro passo rumo à constituição de tecnologias digitais ubíquas foi a convergência das tecnologias analógicas em sistemas de informação e, por sua vez, transformação destas também em dispositivos computadorizados.

2.2

Cibercultura e as relações de poder entre homem e tecnologia Com a emergência da “era da informação”, as tecnologias analógicas foram

também codificadas e passaram a pertencer ao sistema informacional das tecnologias digitais. Esse fenômeno, também conhecido como convergência das mídias, fundiu “em um único setor do todo digital as quatro formas principais de comunicação humana: o documento escrito, o audiovisual, as telecomunicações e a informática” (SANTAELLA, 2010, p. 84). As tecnologias digitais, diferente das tecnologias analógicas, não se baseiam somente em um modelo representacional mas são, em si mesmas, sistemas simbólicos auto-representativos. Segundo Steven Johnson (1997, p. 18), [...] uma máquina impressora ou uma câmera lidam com representações como produtos finais ou resultados; são máquinas representacionais porquanto imprimem palavras em papel ou registam imagens em filme, mas os processos subjacentes são de natureza puramente mecânica. Um computador, por outro lado, é um sistema simbólico sob todos os aspectos. Aqueles pulsos de eletricidade são símbolos que representam zeros e uns, que por sua vez representam simples conjuntos de instrução matemática, que por sua vez representam palavras ou imagens, planilhas e mensagens de e-mail. O enorme poder do computador digital contemporâneo depende dessa capacidade de auto-representação.

Esta convergência de tecnologias em sistemas de informação não representa meramente um processo tecnológico que uniu múltiplas funções e linguagens dentro de um mesmo sistema de informação, mas sim, principalmente, representa uma transformação sociocultural na qual os indivíduos contemporâneos,  

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por terem maior disponibilidade de informação, passam a ter participação mais ativa na conexão dessas informações dispersas em rede e na autoria de discursos e conteúdos, chamada de cultura da convergência (JENKINS, 2006). A cultura da convergência deslocou o sujeito contemporâneo da posição de espectador e o deu os meios de se tornar também autor e produtor. O sujeito passivo da cultura das massas, se transformou em sujeito ativo e participante do tecido social e cultural na era da informação. A descentralização da autoria dos discursos e a constituição do individuo também como produtor de conteúdo são características da cultura da era da informação denominada cibercultura. Se analisarmos a origem etimológica do termo cibercultura, composta pelo termo grego “kubernetes” que significa “piloto” ou “governador”, podemos perceber que este termo retoma o próprio conceito de “cibernética” e sua teoria homônima, concebida por Norbert Wiener em 1948. Em seus estudos, Wiener cria “um modelo informacional onde a relação entre o homem e seu ambiente se estabelece a partir das trocas de informação” (LEMOS, 2002, p. 108). Na teoria cibernética, Wiener (1961) aponta o século XXI como sendo não somente a era da comunicação e da troca de informações entre animal e máquina, mas também do estabelecimento de relações de controle e poder entre estes através desta comunicação. Portanto, a cibercultura, se passível de ser restrita a uma definição, significaria “a ação humana (ordenada, procedural e, portanto, controladora) sobre os frutos de sua natureza (materiais e intelectuais)” (CORREA, 2010, p. 11). Quão mais complexos se tornam os vínculos homem-tecnologia no ciberespaço, mais difusa fica essa relação de controle homem-máquina e as fronteiras entre estes também ficam menos claras. De Kerkchove (2009) cunhou o termo “psicotecnologia” ao afirmar que as tecnologias, além de extensões do corpo humano, são também extensões da psicologia humana e que essas extensões modificam o próprio homem ao passo que o processamento das informações e semioses passam a ser realizados em conjunto com suas extensões tecnológicas e não mais somente em seu cérebro. Esse estreitamento das fronteiras da mente humana e das tecnologias digitais faz com que os próprios dispositivos tecnológicos se tornem mais autônomos e independentes.

 

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Tomemos como exemplo a extensão da memória humana para as bases de dados computacionais e sistemas de busca semânticos. A memória, por ser repositório do repertório cultural que traz consigo a base de símbolos e convenções culturais, é elemento chave para o processo de significação. Em um mundo codificado em sistemas de informação digital, marcado pelas relações de interdependência entre homem e máquina e distribuído em redes, o primeiro processo de significação é feito pelo próprio dispositivo tecnológico ao acessar e buscar as informações necessárias para as interações entre os homens e entre homem-tecnologia através destas bases de dados. Ao delegar sua memória aos dispositivos tecnológicos, o homem está delegando também parte do processo de significação de suas relações. Neste contexto, vemos de maneira bastante evidente e marcante como nossas escolhas têm sido influenciadas e direcionadas por algoritmos cada vez mais complexos e capazes de nos resguardar em uma bolha daquilo que não nos pareceria significante. Porém, não estamos só delegando nossa memória e parte do processo de significação às máquinas, mas também estamos dando poder de decisão e controle sobre o que irá compor nossa realidade. Vemos aqui a possibilidade de uma inversão de papéis, e como alertava De Kerkchove (2009), corremos o risco de o humano passar a ser extensão da tecnologia e não o contrário. A

problemática

do

controle

e

comunicação

homem-tecnologia

é

potencializada ao adentrarem nessa ecologia de dispositivos tecnológicos uma nova forma de relação homem-tecnologia: os objetos portados de inteligência artificial e processadores computacionais capazes não só de acessar à rede, mas de tomar decisões autônomas baseadas na análise dos dados e informações disponíveis no ambiente, independentes da ação humana.

2.3

A comunicação homem-computador através de interfaces digitais Como vimos nos parágrafos anteriores, o primeiro passo rumo à uma

computação mais ubíqua foi a convergência de tecnologias analógicas específicas também em sistemas de informação digital e, por sua vez, em dispositivos computadorizados. O que diferencia as tecnologias da informação das demais  

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tecnologias de comunicação analógicas é o fato de estabelecerem-se não somente como meios ou veículos de comunicação, mas também por firmarem um diálogo com o homem, seu usuário, através de processos interativos. Em outras palavras, por ser um meio interativo, a relação do homem com o computador não é ferramental, mas sim complexa e comunicacional, demandando processos de linguagem e significação. A fim de que esta comunicação entre homem e computador seja efetiva, faz-se necessário a mediação dessa relação por interfaces digitais que sirvam como tradutoras da interação homem-computador. Segundo Santaella (2013, p. 56), Interface tornou-se uma palavra-chave desde que o computador virou uma máquina dialogante. Sem interface, não há interatividade, outra palavrachave. Em um sentido genérico e técnico, interface é definida como ambientes que permitem que dois ou mais sistemas mútuos se adaptem. Quando duas entidades tão distintas quanto a máquina e o humano pretendem entrar em conversação, é preciso haver recursos na superfície da primeira adaptáveis aos sentidos por meio dos quais o humano apreende e responde aos estímulos e apelos do mundos.

Steven Johnson, em seu livro “Cultura da interface” define interface como a forma pela qual o homem se orienta nos espaços de informação, ou ciberespaço, sendo uma “estranha nova zona entre o meio e a mensagem” (JOHNSON, 2010, p. 35). Com a convergência tecnológica, observamos a consolidação do computador pessoal como tecnologia agregadora de funções que outrora tinham outros suportes tecnológicos, tais como ler, escrever, jogar, etc. Por suporte tecnológico entendemos não somente as tecnologias dotadas de alguma forma de maquinário, mas também tecnologias analógicas tais como o próprio livro, papel e caneta. Como o computador pessoal foi projetado como uma máquina multifuncional, fez-se necessário a criação de elementos representacionais para a execução das diversas tarefas que lhe eram propostas e facilitar a manipulação dos computadores pessoais por usuários comuns. Neste cenário, é criada a interface gráfica, também conhecida como GUI (graphical user interface). Seus padrões mais amigáveis e metafóricos foram fundamentais para o processo de popularização do computador pessoal. Os componentes da GUI, sejam os periféricos de entrada e manipulação da máquina computacional, como o mouse e o teclado, ou elementos representacionais como as janelas e os ícones do desktop, são analogias trazidas do “mundo real” para o virtual  

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a fim de formatar o espaço de informações de modo que pudesse ser compreendido e manipulado pelo homem através do reconhecimento e da familiaridade. A interface, desta forma, ofereceria ao usuário e ao computador um terreno comum ou “um terreno simbólico onde a interação acontece” (LEMOS, p. 118). Estes primeiros padrões de interface digital, compostos pela metáfora e representação gráfica do desktop, pastas, disquetes e impressoras, janelas, teclado e mouse fugiram do imaginário coletivo que posicionava a tecnologia como prótese do corpo humano e fizeram com que “pela primeira vez, uma máquina fosse imaginada não como um apêndice de nossos corpos, mas como um ambiente, um espaço a se explorado” (JOHNSON, 2010, p. 24). Assim sendo, podemos sinalar que os padrões de interface gráfica do computador pessoal surgiram mais como resposta às necessidades do mercado da época do que às expectativas do usuário. A criação da GUI “reinventou o computador, transformando-o de uma calculadora regida por instruções textuais ou linhas de comando para um sistema interativo e multimídia” (MANOVICH, 2013, p. 101, tradução nossa). Os pesquisadores da Xerox PARC, criadores da GUI, assumiram como pressuposto para a construção dos primeiros padrões de interface gráfica as teorias cognitivas de Jerome Bruner de que, no homem adulto, coexistem três níveis de cognição: sinestésico, visual e simbólico. Para tanto, desenvolveram o mouse como proposta de ligação das mãos do usuário à máquina servindo de representação sinestésica de sua movimentação no espaço virtual, os ícones como representações visuais dos objetos que seriam manipulados e a possibilidade de linguagem de programação e desencadeamento lógico para construção de novas representações gráficas através do pensamento abstrato e simbólico (MANOVICH, 2013). Quarenta anos após sua criação, a GUI ainda permanece como padrão predominante no design de interfaces gráficas para dispositivos computadorizados. Segundo Manovich (2013, p. 100, tradução nossa), o sucesso da GUI se deu pois “foi projetada para ajudá-los (usuários) a pensar, descobrir e criar novos conceitos usando não somente uma forma de mentalidade, mas todas elas juntas.” Neste primeiro momento das interfaces digitais, o conteúdo apresentado através dessa nova forma de relação homem-tecnologia foi fruto da apropriação das tendências de experimentação da literatura modernista da época e das formulações  

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de Ted Nelson a respeito da não-linearidade e do hipertexto, dando origem à linguagem da hipermídia. O layout e organização de seus conteúdos em tela também muito se assemelhavam com a diagramação das páginas e sistema de navegação de um jornal impresso, tendo cabeçalhos ao topo, páginas iniciais, organização das informações em colunas, presença de um índice e sumário de navegação nas páginas internas (CARDOSO, 2013). O movimento de apropriação das linguagens e padrões das tecnologias anteriores é comum ao processo de introdução de uma nova tecnologia à sociedade. Porém, com o computador esse processo foi potencializado. Isso por que os dispositivos

computadorizados,

como

meios

auto-representativos,

tem

a

possibilidade de simular e expandir todos os meios anteriores devido à convergência das mídias em sistemas de informação e, ao mesmo tempo, inauguram novas formas de experiências antes nunca possíveis por conta da constituição material das demais tecnologias analógicas (MANOVICH, 2013). O maior problema, porém, da GUI pode ser justamente o sucesso de sua metáfora. Visto que o computador pessoal tem o poder de representação, o uso da metáfora do desktop neste contexto foi extremamente bem sucedida pois possibilitou a manipulação direta da máquina pelo homem através de ações já convencionadas do mundo real (abrir uma pasta, jogar uma arquivo na lixeira, etc). Porém, ao passo que formatamos a cognição humana para o reconhecimento e não para a descoberta, exploração e construção de novos significados, existe o risco destas metáforas limitarem o potencial da criação de uma linguagem própria aos dispositivos computadorizados e o surgimento, por sua vez, de padrões e formas de uso advindas desse contexto digital, não transportadas do mundo analógico. De Kerchove (2009, p. 38), ao refletir a respeito da interação homem-computador e como esta afetaria a cognição humana afirma que [...] a questão importante que persegue os psicólogos cognitivos é se, ao usarmos o computador, somos mestres ou escravos – ou um pouco de cada um deles. Serão as rotinas de programação eventos puramente exteriores que dizem respeito a uma máquina objetiva ou tenderão a impor um protocolo de operações tão rigorosos que nos tornarão meras extensões do programa?

De Kerkchove (2009, p. 23) denomina de tecnopsicologia “o estudo da condição psicológica das pessoas que vivem sob a influência da inovação  

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tecnológica”. Segundo ele, a realidade psicológica do homem é moldada de acordo com seu ambiente e, consequentemente, através das tecnologias que utiliza, chamadas de psicotecnologias. Um exemplo de psicotecnologia é o alfabeto que, segundo o autor, “é o software que conduz a psicologia humana” (DE KERKCHOVE, 2009, p. 47). Segundo De Kerkchove (2009) o letramento condicionou homens a privilegiarem a experiência frontal, lógica e reflexiva de concentração visual em detrimento de outros sentidos, criando assim diferenciações, por exemplo, entre a audição oral e a audição letrada. Assim sendo, constituiu-se a predominância do visual e da construção de conceitos abstratos através da linguagem em detrimento das demais experiências sinestésicas. Esta tendência explica o direcionamento das interfaces gráficas dos computadores para a mimese de experiências que privilegiavam a concentração frontal, tais como o teclado da máquina de escrever e o monitor da televisão. Mais além, esta tendência nos ajuda a entender o motivo de serem tão bem aceitas as metáforas visuais e os padrões de interface gráfica: em uma cultura letrada e visual, com uma cognição pautada pelo letramento, a representação visual predomina sobre as demais formas de cognição. Porém, a despeito dos esforços em criar interfaces gráficas que facilitassem a utilização do computador pessoal pelo usuário, Donald Norman (1999) aponta em seu livro “The Invisible Computer” que o próprio nome “pessoal” seria equivocado para denominar este dispositivo pois, ao invés de proporcionar uma experiência amigável e pessoal, os computadores pessoais eram máquinas que ocupavam muito espaço, demandavam um longo processo de aprendizagem para utilizá-los (mesmo com interfaces mais amigáveis) e processos mais desgastantes ainda para mantêlos funcionando, demandando constantes “check-ups”, formatações e atualizações. Além de centralizar diversas funções, o computador pessoal nivelava todas as “formas de fazer” em uma única configuração ergonômica e cognitiva de interface (muitas vezes mais desapropriada para a realização de algumas funções do que as suas “formas de fazer” anteriores). O desprendimento do “fazer” de sua “forma de fazer”, ou seja, o desprendimento da técnica de sua tecnologia acabou por reconfigurar a própria técnica. O computador pessoal, na sua forma de desktop, mesmo com seus padrões de interface gráfica mais amigáveis falhou em conferir a experiência de ubiquidade que o ciberespaço e a cibercultura demandam. Em busca de maior mobilidade, o  

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computador pessoal evoluiu para o computador pessoal portátil, na sua forma de “laptops”. Porém, por mais que este novo formato de dispositivo tecnológico pudesse ser mais facilmente carregado de um lugar para o outro, sua experiência de uso ainda demandava imobilidade e uma experiência de concentração frontal, sendo impossível de utilizá-lo enquanto o homem estivesse em movimento. Luisa Donati (2005) declara que, mesmo se tornando mais compacto e podendo ser deslocado no espaço, o laptop ainda conferia certa imobilidade ao usuário e uma experiência de uso limitada uma vez que “a sua utilização configura uma interrupção e deslocamento da atenção de uma atividade anterior já que precisa ser ligado e desligado, colocado sobre algo móvel, etc.” (DONATI, 2005, p. 27). Com a miniaturização dos processadores computacionais, a evolução das conexões sem fio, o aumento da utilização dos dispositivos móveis e o armazenamento de dados em nuvem, o acesso à camada informacional, outrora restrito à imobilidade de um computador pessoal, enfim se tornou móvel. O advento dos dispositivos computacionais móveis sinalizou o começo de um distanciamento do hardware e metáfora do desktop, porém não representou uma ruptura com seus padrões convencionados de interface. Mesmo que os dispositivos móveis tenham desprendido o dispositivo tecnológico de sua restrição territorial, ainda pautavam suas experiências na concentração frontal do indivíduo. Não podemos negar que os dispositivos computacionais móveis evoluíram os padrões de interface dos computadores pessoais ao passarem a utilizar outros sentidos como o tato através do toque nas telas porém, a grosso modo, se apropriaram da mesma linguagem digital dos computadores pessoais, a GUI e a hipermídia para construção de sua linguagem. As interfaces gráficas baseadas em metáforas visuais foram essenciais para a história da microinformática, porém, ao passo que os formatos dos computadores começam a diversificarem-se e a distanciarem-se da forma tradicional de desktop, assim também as interfaces digitais precisam se reinventar e encontrar novos padrões interação e experiências de uso.

 

21  

2.4

Por uma computação ubíqua: dos smartphones à internet das coisas Como vimos anteriormente, por mais que a condição do ciberespaço já fosse

de ubiquidade, os dispositivos tecnológicos de acesso a essa camada informacional ainda

não

proporcionavam

experiências

de

usos

condizentes

com

estas

expectativas. Alegamos que o primeiro passo rumo à uma computação ubíqua foi a convergência midiática das tecnologias analógicas e a apropriação das funções destas pelo computador pessoal que se constituiu como máquina multifuncional. Também vimos que o segundo passo rumo a uma computação ubíqua foi o desprendimento das tecnologias digitais de sua condição de imobilidade. Segundo Santaella (2013), com os dispositivos digitais móveis que dão acesso ao ciberespaço, a mobilidade física do homem foi expandida dando origem à hipermobilidade. Com a hipermobilidade, o computador se torna “um dispositivo onipresente que expande a capacidade do usuário de utilização dos serviços que o computador oferece, independente de sua localização” (SANTAELLA, 2013, p. 17). Os computadores pessoais portáteis, até então em forma de laptops, se apropriaram dos telefones móveis, mudando seus significados e funções e os transformando em smartphones, computadores pessoais ainda mais portáteis e, agora sim, móveis. Os telefones móveis que, outrora, tinham como principal e única função proporcionar a comunicação oral ou textual entre duas pessoas independente de sua territorialidade passaram também a ser dispositivos que centralizavam diversas outras tecnologias como máquina fotográfica, sistemas de localização geográficos, reconhecimento de voz e, principalmente, continham um sistema operacional e processadores computacionais, tais como os computadores pessoais. Os telefones móveis não somente foram informatizados, como também foram conectados à rede, inaugurando a categoria de objetos do cotidiano conectados à Internet (que não um computador pessoal em seu formato tradicional). Com sua conexão à rede através de um dispositivo móvel portátil, o homem passou a vivenciar o ciberespaço em sua potencia de ubiquidade. Delimitamos como potencia pois a experiência ainda não havia atingido a máxima vivência de desprendimento espaço-temporal da ubiquidade. Os smartphones, assim como o computador pessoal, ainda demandavam por uma concentração frontal do usuário,  

22  

tendo como principal foco a manipulação do dispositivo tecnológico e não a conexão com o ciberespaço por si só. Assim sendo, o smartphone ocupava o centro da ação e atenção humana, ainda requerendo uma experiência de conexão com o ciberespaço limitada pelo próprio dispositivo de acesso. Por mais que não tenham rompido completamente com a experiência de uso do computador pessoal, podemos dizer que os smartphones consolidaram um momento de transição, iniciados pelos laptops, entre uma primeira fase estática da relação homem-computador para uma segunda fase marcada pela ubiquidade. Reforçamos que os smartphones não são a concretização dessa fase, mas sim a indicação das necessidades latentes da cultura contemporânea por ubiquidade. Em momentos de transição cultural como estes, a apropriação da nova tecnologia pela sociedade ainda convive com os antigos paradigmas de linguagem e experiências de uso, mesmo que já levante questionamentos a estes. É importante reforçarmos que o surgimento de uma nova tecnologia não extingue as tecnologias das eras anteriores. Pelo contrário, ao analisarmos criticamente a história social das novas tecnologias de informação e comunicação, podemos confirmar que cada novo dispositivo tecnológico nasce tanto da reconfiguração dos dispositivos anteriores quanto traz consigo ressignificações para as outras formas de relação homem-tecnologia. Portanto essa relação deve ser analisada sob um ponto de vista dialógico, não determinista. Pois, por um lado, o desenvolvimento tecnológico propõe novas formas de comportamento com relação a dispositivos tecnológicos mas, por outro, a apropriação social e simbólica da tecnologia questiona e reconfigura as práticas originais designadas à tecnologia recém introduzida na sociedade (LEMOS, 2002). Portanto, o advento dos smartphones não significa a desaparição e inutilização dos computadores pessoais, mas sim a sua ressignificação simbólica no cenário sociocultural. O processo de reconfiguração sociocultural gerado por uma nova tecnologia é gradual e quando amadurecido essa nova condição traz consigo novas necessidades que se apropriarão de outras tecnologias para supri-las, gerando um ciclo de mudanças contínuo causado por esse diálogo entre tecnologia e cultura. Para melhor compreensão, podemos exemplificar esse conceito de período de transição e evolução tecnológica ao retomarmos o conceito de “cultura  

23  

das mídias”, como foi chamado por Lúcia Santaella (2010) o período entre a cultura de massas e a cibercultura. Em sua proposta teórica, Santaella (2010) defende que equipamentos como o videocassete, a fotocopiadora, o walkman, as videolocadoras e a própria TV a cabo, incitaram a sociedade das massas a individualizar o consumo de mídia, deslocando o processo de recepção no espaço-tempo. Portanto, a sociedade que precedeu e originou as novas tecnologias da informação já não era mais uma sociedade marcada tão somente pela massa e pelo receptor passivo. Pelo contrário, essas novas possibilidades de recepção abriram caminho para novas formas de busca e consumo de informações que excediam as capacidades técnicas das tecnologias disponíveis e às quais as novas tecnologias vieram de encontro. Sob esta ótica, ao retomarmos o olhar para os smartphones podemos perceber que a sociedade em que vivemos, devido a reconfiguração social causada pela

apropriação

simbólica

dos smartphones, se

caracteriza

por sujeitos

participativos e conectados em rede com necessidades latentes por maior mobilidade e ubiquidade em suas experiências de conexão com o ciberespaço. A sociedade contemporânea almeja pela liberdade das restrições espaço-temporais proposta pelo ciberespaço, mas seus dispositivos tecnológicos e suas experiências de uso ainda são restritas. Os smartphones, por serem tecnologias de transição, adotaram a linguagem dos computadores pessoais e não superaram as expectativas de liberdade das restrições físicas e temporais em suas experiências de conectividade. Por mais que fossem

dispositivos

que

promovessem

mobilidade

ao

acesso

à

camada

informacional da rede e tivessem evoluído algumas dimensões do uso de dispositivos tecnológicos, ainda proporcionavam uma experiência homem-tecnologia dicotômica entre o real e o virtual, além de uma experiência de uso com mais ênfase na manipulação do dispositivo do que a experiência por ele proporcionada. Não bastante, a mobilidade dos smartphones e a disponibilidade ininterrupta de informações em qualquer lugar e a qualquer momento fez com que a relação homem-tecnologia se tornasse viciante e sobrecarregada. A própria tecnologia criada para suprir a necessidade de maior mobilidade criou uma nova necessidade:  

24  

uma relação mais inteligente, leve e dialógica entre homem-tecnologia na qual a tecnologia se apresentasse de maneira mais calma e complementar às ações humanas. Em outras palavras, o homem passou a demandar “formas de fazer” que estivessem mais atreladas às tarefas especificas que deseja realizar. O sujeito contemporâneo demanda por mais que uma experiência de uso de dispositivos computacionais na qual tenha que manipular indiretamente o dispositivo através de uma interface de representação gráfica. Há uma demanda por dispositivos que não exijam tamanha atenção e que facilitem a ações humanas a despeito de ocuparem o centro de nossas atenções. Assim sendo, a sociedade contemporânea demanda por computadores mais tangíveis e inerentes às suas atividades do cotidiano. Computadores estes que não se atêm à forma tradicional mas que se reconfiguram para permear o cotidiano e se tornarem mais efetivos, porém mais discretos. Lemos (2002, p. 177) ao dissertar a respeito da interatividade dos dispositivos digitais já sugeria que esta nova forma de interação

homem-tecnologia

iria

reconfigurar

a

relação

entre

o

sujeito

contemporâneo e seus objetos ao dizer que [...] a interação homem-tecnologia tem evoluído a cada ano no sentido de uma relação mais ágil e confortável. [...] A interatividade digital caminha para a superação das barreiras físicas entre os agentes e para uma interação cada vez maior do usuário com as informações e não com objetos. [...] Essa nova qualidade de interatividade (eletrônico-digital), com os computadores e com o ciberespaço vai afetar de forma radical a relação entre o sujeito e o objeto na contemporaneidade.

O passo seguinte rumo à computação ubíqua, após o advento dos dispositivos móveis, tem sido a incorporação de processadores computacionais em outros objetos do cotidiano, sejam móveis ou estáticos, gerando ambientes inteligentes e computadorizados. Diferente da hipermobilidade, a computação ubíqua propõe um ambiente povoado por computadores invisíveis embarcados nos objetos do cotidiano de modo que [...] o computador tem a capacidade de obter informação do ambiente no qual está embarcado e utilizá-la para dinamicamente construir modelos computacionais, ou seja, controlar, configurar e ajustar a aplicação para melhor atender as necessidades do dispositivo ou usuário. O ambiente também pode e deve ser capaz de detectar outros dispositivos que venham a fazer parte dele. Desta interação surge a capacidade de computadores agirem de forma “inteligente” no ambiente no qual nos movemos, um ambiente povoado por sensores e serviços computacionais (ARAUJO, 2003, p. 50).

 

25  

Os objetos do cotidiano providos de processadores computacionais tem sido denominados de computadores ubíquos ou pervasivos. Estes novos dispositivos computadorizados passam a trocar informações entre si, independentemente da ação humana, retirando o dispositivo do centro da atenção do homem e movendo-o para o plano de fundo do ambiente. Também conhecida como internet das coisas, a computação que permeia e penetra nos objetos do ambiente reconfigura as funções destes objetos, ao convertê-los também em sistemas de informação e integrá-los à rede de dispositivos. Frente às demandas econômicas das industrias de tecnologia, a computação ubíqua tem tomado a forma também de computação pervasiva “na medida em que o processamento das informações obtidas por meio dos diversos objetos que nos cercam servirá para a aceleração do comércio eletrônico, negócios baseados na rede, fluxos financeiros, etc.” (CORREA, 2010). Friedemann Mattern (2007, p. 10) afirma que os dispositivos de computação ubíqua "estão, de diversas formas, substituindo o homem como mediador entre o real e o virtual”. Ousamos afirmar que essas novas tecnologias estão, na realidade, substituindo o modelo de interação no qual o computador é o mediador em uma relação dicotômica entre o real e o virtual. Estas novas tecnologias trazem o homem de volta ao papel de mediador entre estas duas dimensões e tornam as fronteiras entre o real e o virtual mais difusas. Os dispositivos computacionais ubíquos inauguram uma experiência de uso na qual o dispositivo tecnológico não é o centro da atenção humana na conexão com o virtual. Porém, ao mesmo tempo, também inauguram a possibilidade do homem não ser mais o único agente inteligente, ou sujeito, que toma grande parte das decisões nos ambientes digitais, uma vez que passa a delegar parte delas para os objetos inteligentes ao seu redor. O computador passa de máquina manipulada para sujeito ativo no processo de significação e comunicação em ambientes de ubiquidade computacional. A computação ubíqua muda também o paradigma de interfaces gráficas e representacionais

uma

vez

que

é

composta

por

dispositivos

que

não

necessariamente tem suas interações baseadas em telas e representações visuais. Além disso, parte destes dispositivos não requererem sequer uma comunicação direta com o usuário humano através de uma experiência de concentração frontal,  

26  

mas sim comunicam-se com outros dispositivos ao seu redor, demandando somente uma atenção periférica do usuário. Ao passo que os computadores vão assumindo novas formas, também suas interfaces precisam ser repensadas a fim de prover uma comunicação homem-computador mais natural e inerente às suas tarefas do cotidiano.

 

27  

3.

COMPUTAÇÃO VESTÍVEL E O SUJEITO PÓS-HUMANO

    3.1

Computação vestível como modalidade da computação ubíqua Mark Weiser, pesquisador da Xerox Palo Alto Research, cunhou o termo

computação ubíqua em um artigo escrito para a Scientific American em 1991. Weiser começa seu artigo com a célebre frase: “As tecnologias mais profundas são aquelas que desaparecem. Elas se infiltram na fábrica da vida cotidiana até se tornarem indistinguíveis desta” (WEISER, 1991, p. 1, tradução nossa). Cinco anos depois, em conjunto com John Brown (então chefe de pesquisa da Xerox PARC), refletiu mais especificamente a respeito da transformação da relação do homemcomputador no contexto da computação ubíqua. Weiser e Brown (1996) consideram a computação ubíqua como sendo a terceira era da relação homem-computador, tendo como precursoras as eras do mainframe, do computador pessoal e um período de transição marcado pelos computadores pessoais em rede (Internet). A computação ubíqua, para eles, é composta por

tecnologias calmas, que se camuflam ao ambiente e ocupam

posições mais periféricas à atenção e cognição humana. Inclusive, os autores ressaltam que já convivemos com tecnologias ubíquas, como a escrita e a eletricidade, que foram de tal modo incorporadas às tarefas do nosso cotidiano que não mais as consideramos como tecnologias artificiais e não notamos a abrangência do impacto e relevância destas em nossas vidas. Diferentemente da realidade virtual, Weiser e Brown (1996) apontam a computação ubíqua como sendo a “virtualidade corporificada”. Em outras palavras, com o embarcamento dos processadores computacionais nos objetos do cotidiano, ao invés do homem adentrar em uma realidade simulada da virtualidade, o virtual passa a potencializar e expandir as possibilidade do real, na forma de uma realidade aumentada. No primeiro momento da relação homem-computador, a era do mainframe, os computadores ainda eram escassos e as máquinas, além de serem compartilhadas entre muitas pessoas, demandavam um alto nível de especialização para haver comunicação entre o homem e o computador. Sem interfaces gráficas, a linguagem de programação em linhas de comando restringia os usuários do  

28  

mainframe à especialistas em computação. Com o advento do computador pessoal e seus padrões e acessórios de interface mais amigáveis, diminuiu-se o grau de conhecimento necessário para interação homem-computador popularizando assim o seu acesso, porém, como descrito anteriormente, este ainda permaneceu como algo que precisaria ser aprendido e que demandava alta carga cognitiva para ser usado. O próximo momento das relações homem-computador seria o da conexão dos computadores pessoais em rede, ou a Internet, no qual coexistiriam expressões das eras do mainframe e do computador pessoal. Weiser e Brown (1996) defendiam ser este somente um momento de transição para o quarto momento, da computação ubíqua e que quando adentrássemos no contexto da ubiquidade, teríamos uma vasta ecologia de computadores interconectados. Alguns destes seriam visíveis e outros estariam embebidos nos objetos do nosso cotidiano que, por sua conta, comunicariam entre si sem requerer qualquer comando dos usuários. Escrita muito antes do prenúncio dos smartphones, a teoria de Weiser não restringe o conceito de computação ubíqua à dispositivos computacionais móveis, mas sim em tecnologias da informação que assumissem posições mais secundárias, invisíveis, discretas e calmas. Segundo Weiser (1999), o real poder do conceito de computação ubíqua não reside em uma tecnologia específica, senão na interação entre todas as tecnologias ubíquas do ambiente. Portanto, além de seu embarcamento no plano de fundo da vida humana, outra característica dos computadores ubíquos é a diversidade de seus tamanhos e funções. Em ambientes de ubiquidade computacional, ao invés de um único dispositivo com múltiplas funções como o computador pessoal, os ambientes são compostos por diversos computadores com funções específicas, sendo que muitos deles não são nem ao menos reconhecidos pelo usuário final como computadores. Para que todos funcionem, pressupõe-se que estejam conectados, em constante interação e sejam conscientes de seus contextos. Dentre os potenciais de transformação sociais da computação ubíqua, “ao empurrar os computadores para o plano de fundo, a virtualidade corporificada fará indivíduos estarem mais conscientes das pessoas que estão do outro lado da conexão do computador” (WEISER, 1999, p. 14, tradução nossa). Potencialmente,  

29  

portanto, a computação ubíqua significaria uma diminuição da dependência e veneração de dispositivos tecnológicos, voltando assim o foco destes para as razões pelas quais os estamos utilizando. Além disso, Weiser (1999) também aponta a resolução do problema de ansiedade de informação como possível transformação social da computação ubíqua, uma vez que delegaríamos aos computadores ubíquos as tarefas e decisões periféricas, liberando assim a atenção humana para as atividades mais centrais e complexas. Além de um manifesto em prol de “tecnologias mais calmas”, o conceito de computação ubíqua de Weiser se propõe a questionar a própria efetividade da relação homem-tecnologia estabelecida pelos computadores pessoais. Assim como Weiser, Donald Norman (1999) também defende o equivoco da interação homemcomputador através dos computadores pessoais e propõe que a indústria de tecnologia deveria investir em projetos de Information appliances ou aplicações de informação.

Segundo

Norman

(1999)

diferentemente

de

um

computador

multifuncional, information appliances são projetados para cumprir funções especificas, sua atribuição funcional está tão atrelada ao seu propósito de uso que a própria tecnologia se torna “invisível” e as informações geradas por eles são facilmente compartilhadas entre dispositivos. Frente a isso, ambientes de ubiquidade computacional são, portanto, ecossistemas

compostos

por

diversas

modalidades

de

dispositivos

computadorizados embebidos em objetos do cotidiano que se comunicam entre si, são conscientes de seus contextos e se posicionam como tecnologias calmas no plano de fundo das ações humanas. Dentre estes objetos do cotidiano providos de processadores computacionais está também a computação vestível, objeto de estudo deste trabalho. Nos próximos parágrafos abordaremos os questionamentos que a computação vestível, como modalidade de computação ubíqua, levanta a respeito dos conceitos de sujeito, corpo e interface na contemporaneidade, inclusive tornando difusas as fronteiras do que é ser humano e do que é máquina. Gisele Beiguelman (2004, p. 1) defende que estes movimentos rumo à computação ubíqua “indicam que o corpo humano se transformou em um conjunto de extensões ligadas à um mundo cíbrido, pautado pela interconexão de redes e sistemas online e offline”.  

30  

Este mundo cíbrido reconfigura o corpo humano ao conectá-lo às redes (seja por dispositivos externos ou internos) e torna-o interface digital entre o real e o virtual.

3.2

O sujeito pós-humano e sua relação com objetos inteligentes Com o embarcamento de processadores computacionais em objetos do

cotidiano, a relação do homem com seus objetos e consigo mesmo é transformada. Os objetos, ou coisas, que outrora estavam ao nosso dispor para mera utilização passam a compor a rede de sujeitos providos de inteligência (mesmo que artificial), conscientes de seu contexto e atuantes na construção da teia de conexões e significados da camada informacional. Não somente sua relação com os objetos do cotidiano é transformada, como também é sua relação com os dispositivos computacionais, uma vez que estes estão infiltrados na complexidade das relações do seu cotidiano e não mais ocupam um papel social de mediador entre o real e o virtual através de experiência representacional de concentração frontal. A fim de compreendermos esta nova relação homem-computador, precisamos entender como estão constituídas atualmente as duas partes, o sujeito e o computador, agora na forma de objetos. Tratemos

primeiramente

do

sujeito

contemporâneo

e

usuário

das

tecnologias da informação. Na pós-modernidade, não cabe mais no conceito de sujeito a figura cartesiana de subjetividade na qual sua essência é universal, soberana, pensante, racional e reflexiva. Este sujeito absoluto, independente e racional foi construído a partir dos pensamentos humanistas e iluministas. A psicanálise e os filósofos pós-estruturalistas já haviam questionado este sujeito cartesiano que se constituía como centro soberano da ação humana ao apontar que ele é, na verdade, produto e artificio de sua história e linguagem (TADEU, 2009). Vimos também no primeiro capítulo deste trabalho que a própria virtualidade é inerente a condição de ser simbólico do homem e que não há como distinguirmos natureza e cultura quando compreendemos que a própria linguagem é um processo artificial ao homem. Qual seria então a diferença entre o natural e artificial, sujeito e objeto, homem e máquina em um contexto em que o próprio homem e sua subjetividade são fabricadas pela sua linguagem e história? Como distinguir o sujeito  

31  

de seu objeto quando ambos exalam fluxos de informação e são atuantes na construção dos significados da contemporaneidade? O homem não vive mais no mundo das coisas, mas foi ele próprio convertido em objeto, podendo ser também mensurável, calculável e passível de ser manipulado (FLUSSER, 2007). Baseando-se no conceito de que o homem transforma a natureza em cultura através das tecnologias, Flusser (2007) defende que o homem é, por definição, um ser que fabrica coisas e que estas coisas, por sua vez, transformam o próprio homem. Com base neste conceito, Flusser (2007) propõe que a história da relação homem-tecnologia é marcada por quatro formas de homem: homem-mão, homem-ferramenta, homem-máquina e, finalmente, homemaparelhos-eletrônicos. A relação homem-aparelhos-eletrônicos, diferentemente da relação homem-máquina, tira a máquina do centro do processo de fabricação das coisas e inaugura uma relação de simbiose entre o homem e tecnologia na qual [...] graças aos aparelhos eletrônicos, todos estarão conectados com todos onde e quando quiserem, por meio de cabos reversíveis e, com estes cabos e aparelhos, todos poderão se apropriar das coisas existentes, transformálas e utilizá-las (FLUSSER, 2007, p. 41).

Os cabos reversíveis que Flusser (2007) cita são hoje fluxos de informação transmitidos via conexões sem fio, mas o conceito de simbiose no qual as ações humanas passariam a ser mediadas por tecnologias de informação vem tomando forma cada vez mais clara através da computação ubíqua. Segundo Flusser (2007), este novo homem-aparelho-eletrônico não se relaciona mais com coisas, mas com não-coisas – com informações desprendidas da materialidade. Vale esclarecer aqui que as não-coisas de Flusser (2007) não se tratam de informações sem referentes reais, tais como ideias, mas sim coisas desmaterializadas, informações que foram transmutadas do material para o imaterial. Este novo homem, portanto, [...] não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar [...] deseja experimentar, conhecer, sobretudo desfrutar. Por não estar mais interessado nas coisas, ele não tem problemas. Em lugar de problemas, tem programas. E mesmo assim continua sendo homem: vai morrer e sabe disso. Nós morremos de coisas como problemas insolúveis, e ele morre de não coisas como programas errados (FLUSSER, 2007, p. 58).

Este homem mensurável, programável e que constitui uma relação de simbiose com as tecnologias da informação tem sido chamado também de pós  

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humano. Compreendemos que este conceito representa a codificação do corpo humano em sistemas de informação digital, sendo que esta codificação pode se dar de três maneiras: através do acoplamento de dispositivos computacionais na indumentária do corpo humano, através da inserção de implantes e próteses providas de processadores computacionais ou através da manipulação de informações do código genético. A primeira maneira de codificação do corpo humano descrita acima, ou computação vestível, será o foco de nosso estudo e aprofundamento teórico, porém, como este trabalho se propõe a analisar os novos paradigmas de experiência do usuário que estes dispositivos inauguram e entendemos que todas as formas de codificação do corpo compõe a complexidade deste novo usuário, ou sujeito póshumano, vemos como necessário pontuarmos brevemente as problemáticas que a discussão dos implantes, próteses e manipulação de código genético trazem a tona. Primeiramente, não compreendemos estes implantes e próteses somente como a robotização do homem, como o imaginário coletivo propõe através da ficção científica. Entendemos que as tecnologias que constituem um ciborgue podem ser diversas, abrangendo possibilidades reconfiguradoras (quando criam criaturas póshumanas que são máquinas humanizadas ou homens maquinizados) ou melhoradoras (quando criam criaturas que transpassam as possibilidades do humano e potencializam suas capacidades) (TADEU, 2009). Mas também entendemos que as tecnologias do ciborgue possuem possibilidades menos evidentes, mas tão “ciborguizadoras” quanto, quando se propõem a funções aplicadas para restaurar e substituir funções já existentes que estivessem comprometidas no homem (TADEU, 2009). Estas hibridizações levantam questionamentos éticos a respeito dos limites possíveis para a reconfiguração da natureza humana. Segundo Tadeu (2009, p. 10), “ironicamente, são os processos que estão transformando de forma radical o corpo humano que nos obrigam a repensar a alma humana”. Ao contrário do sujeito cartesiano e lockiano cuja essência é imaterial, o sujeito pós-humano “reconhece a multiplicidade, a contradição, o contexto, a objetividade situada como constitutivos do humano, do que decorre uma nova ontologia de instabilidades” (SANTAELLA, 2013, p. 24). O sujeito pós-humano vem questionar o imaginário coletivo que figura  

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corpo e mente como substâncias distintas, no qual a mente, imaterial, tem predominância sobre o corpo. Esta distinção fica menos clara, principalmente se colocado sob a perspectiva da “mecanização e eletrificação do humano e da humanização e subjetivação da máquina” (TADEU, 2009, p. 12). Porém, significaria isto definitivamente o fim da visão cartesiana e dualista entre corpo e subjetividade? Paula Sibilia (2006) afirma que, na realidade, o que tem acontecido é a substituição da subjetividade e alma como essência do homem pela informação genética. Na era da informação, nada mais natural do que deslocar a identidade e o centro da essência humana para os códigos genéticos e circuitos cerebrais. Podendo reduzir a matéria orgânica à informação e tendo em vista a possibilidade de codificação e decodificação da informação biológica em informação digital. Segundo Sibilia (2006), a herança cartesiana recebe um upgrade ao dar atenção prioritária ao “software” humano, ou programação genética. Nesta conjuntura, o “hardware” (corpo humano) permaneceria como secundário à genética, podendo ser modificado e alterado sem destituir a natureza humana. Paula Sibilia (2002) discorre mais a respeito da hibridização do homem em seu livro “O homem pós-orgânico” e utiliza-se dos estudos do sociólogo português Hermínio Martins para apontar duas vertentes da tecnociência que podem ser representadas por dois personagens míticos da cultura ocidental, Prometeu e Fausto. Segundo ela, a tecnociência de vocação prometeica procura dominar a natureza através da técnica, visando o bem humano. Para a autora, a tecnociência moderna era marcada por esta vocação prometéica, pois se propunha a utilizar a técnica para aumentar as capacidades humanas, porém sem interferir naquilo que se constitui como a natureza humana. Assim como Prometeu presenteou o homem com o fogo, mas foi punido pelos deuses por ter exposto o homem a prerrogativas divinas, a tecnociência prometeica vê as tecnologias como extensões humanas, mas não como possibilidade de suprimir suas limitações. A computação vestível, por mais que seja uma tecnologia pós-moderna, ainda é regida pela tecnociência moderna ou prometéica. Luisa Donati (2005, p. 27) define essa modalidade de computação ubíqua como sendo uma tecnologia [...] incorporada pelo usuário potencializando um uso mais integrado com outras atividades correntes sem limitar os movimentos corporais ou impedir a mobilidade deste. Está sempre ligado e acessível, e com uma

 

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performance computacional que permite auxiliar o usuário em atividades motoras e/ou cognitivas, sem, no entanto ser considerado como uma simples ferramenta. É importante reforçar que o usuário estará realizando outras atividades concomitantemente com a utilização deste dispositivo, como já acontece com o telefone celular, palmtop, pager, que operam também desta forma. Funciona como uma "segunda pele", sobreposto, sendo necessária então descartar desta classificação os implantes tecnológicos.

Assim sendo, a computação vestível, como forma de codificação do corpo humano, se institui como “uma segunda pele”, não adentrando na materialidade do corpo humano ao ponto de reconfigurar sua organicidade. A segunda vertente de tecnociência, denominada fáustica, se refere justamente à utilização da tecnologia como forma de suplantar as limitações humanas. Segundo Sibilia (2002, p. 48), [...] a meta do atual projeto tecnocientífico não consiste na melhoria das ainda miseráveis condições da maioria dos homens: ele é atravessado por um impulso insaciável e infinitista, desconhecendo explicitamente os limites que constrangiam o projeto científico prometeico.

Assim como o personagem mitológico Fausto compactua com o Diabo a fim de superar suas próprias possibilidades, a tecnociência faustica vale-se da reconfiguração da natureza humana através das biotecnologias e tecnologias de ciborguização a fim de suplantar as limitações biológicas do corpo humano. Sibilia (2002, p. 48) alega que as práticas da biotecnologia de acoplamento e penetração das tecnologias ao corpo humano são “um impulso cego para o domínio e a apropriação total da natureza, tanto interior quanto exterior ao corpo humano”. Para Sibilia (2002), o homem pós-orgânico, como denomina o pós-humanismo marcado pelas modificações genéticas, não vê as tecnologias como meras extensões e aperfeiçoadoras das capacidades humanas, mas sim como a possibilidade de superação de suas restrições biológicas e uma forma de exercer controle total sobre a vida e a natureza, inclusive colocando em questão a própria mortalidade. Porém, além das discussões éticas oriundas das fronteiras do orgânico e da máquina, o que a tecnociência contemporânea também nos indica é que a tecnologia não pode ser distinguida do homem, pois ao mesmo tempo que ela é criada por ele, ela própria o constitui e o transforma. O homem contemporâneo é, portanto, produto de seu desenvolvimento tecnológico se considerarmos os impactos socioculturais do fogo, da roda, da alfabetização, da escrita, da eletricidade, etc. Mais uma vez, não sugerimos uma leitura determinista e simplista  

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desses fatos. Como descrito anteriormente, as tecnologias são fruto de uma evolução cíclica entre as necessidades latentes de uma sociedade e os novos desejos oriundos da reconfiguração sociocultural oriundos da apropriação simbólica de uma nova tecnologia. O que precisamos ter claro é que o homem não mais pode ser distinguido de sua técnica. Ao passo que os dispositivos tecnológicos começam a ser providos de características humanas, tais como a compreensão semântica de ações, comunicação e execução de tarefas cognitivas, essa distinção entre homem e máquina fica ainda menos clara. Segundo Oliveira (2003, p. 187), “construídos com o objetivo de compreender o modus operandi do ser humano, nossos robôs são cada vez mais feitos à nossa imagem e semelhança”. Estes robôs, diferentemente do imaginário coletivo construído pela ficção científica, não precisam ter mais uma aparência física de ser humano para identificarmos sua semelhança conosco. Passemos agora, justamente, à análise da outra parte da relação homemcomputador e observemos como estes novos dispositivos computacionais, os objetos do nosso cotidiano, se configuram atualmente. Mesmo antes de estarem incorporados ao ciberespaço através de processadores computacionais, objetos carregam em si duas dimensões, a formal – sua configuração morfológica ou a matéria que o constitui – e a informacional – sua capacidade de mediar relações em um determinado contexto e criar significados (CARDOSO, 2013). Segundo Flusser (2007), todo objeto tem como finalidade transformar as relações do usuário com seu entorno a fim de concretizar uma possibilidade de uso e se transformar em um conceito ou modelo. A dimensão informacional do objeto se refere, portanto, àquela que dá forma à matéria segundo alguma intenção, conferindo assim um significado ao objeto. Como exemplo, tomemos a atribuição da forma (ou função) de alavanca à um pedaço de madeira. Este ato de “in-formar” ou dar forma à matéria da madeira gerou uma possibilidade de uso (alavancar) que passa a ser um modelo conferido à qualquer outra matéria que se assemelhe à essa forma. O significado de um objeto, porém, não é algo fixo. Existem fatores que condicionam seu significado e conferem ao objeto uma natureza mutável no espaçotempo, sendo eles: uso, entorno, duração, ponto de vista, discurso e experiência (CARDOSO, 2013). Segundo Cardoso (2013, p. 62), “a apreensão de todos os  

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fatores citados deriva da relação entre usuários e artefatos, numa troca de informações e atribuições que se processa em modo contínuo. Em última instância, é a comunidade que determina o que o artefato quer dizer”. O uso e o entorno (ou contexto de uso) de um objeto podem variar no espaço-tempo e sua variação determina o significado ou função do objeto. Um mesmo objeto pode ter diversas funções ou ciclos de vida de funções distintas ao longo da história. Quanto mais longa a permanência ou duração de um objeto na sociedade, mais suscetível este está a ter atribuído a ele significados distintos ao longo do tempo. Estes significados se unem para formação de um repertório cultural que acompanhará e mediará a trajetória de significados do objeto ao longo do tempo (CARDOSO, 2013). Deste modo, podemos constatar que o significado de um objeto não somente é mutável, como está intimamente atrelado à condição deste objeto ser utilizado continuamente no cotidiano. Conquanto o objeto continue a ser utilizado (independente do uso atribuído ser igual à sua função originalmente projetada) este objeto não se tornará um dejeto e continuará tendo significado simbólico e cultural. Vimos anteriormente neste trabalho que a apropriação social de dispositivos tecnológicos faz com que seus significados sejam reconfigurados. O exemplo dado do telefone móvel é pertinente aqui novamente para mostrar como a função de um objeto é menos projetada do que atribuída pelo uso a que se adapta. No caso do telefone móvel, o objeto que outrora foi projetado para ter as funções de um telefone acrescido de mobilidade passou a ter também funções de um computador pessoal, como resposta à apropriação social deste objeto e à necessidade latente de ubiquidade e conectividade à camada informacional digital. Outro conceito também expresso neste trabalho é que uma nova tecnologia geralmente recorre à linguagem e formatos anteriores assim que introduzida na sociedade antes de definir sua própria morfologia e semântica. Um objeto que exemplifica este conceito é a própria interface gráfica dos computadores pessoais. A fim de facilitar a apropriação e uso dos computadores pessoais, sua forma se assemelhou inicialmente a um monitor de televisão com uma máquina de escrever. A partir deste novo uso, estes objetos – monitor e máquina de escrever – tiveram seus significados modificados e reconfigurados. Vê-se assim, claramente, que “as

 

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ideias geram objetos e estes permanecem no mundo mesmo depois que as ideias mudam” (CARDOSO, 2013, p. 151). Quando falamos a respeito de interações e relações do homem e objetos inteligentes em ambientes de ubiquidade computacional, as interações e significados dos objetos ficam ainda mais complexos, pois o objeto interage com a camada de informações da rede digital, além de possuir sua própria dimensão informacional. Além disso, o sujeito deixa de ser unicamente aquele que utiliza o objeto (o sujeito humano) para ser também o próprio objeto (sujeito não-humano) que passa a possuir também inteligência e capacidade para criar conexões e significados por conta própria. Os objetos, outrora coisas inanimadas cujos significados eram atribuído pelo seu uso por um sujeito exterior a eles, se transformam em sujeitos animados e participantes dos processos comunicacionais contemporâneos. Indo além, estes objetos, antes coisas materiais, passam a ser desmaterializados quando codificados e transformados em sistemas de informação e seu significado passa a ser composto não somente pelo seu uso, mas também pelos dados digitais coletados, transformados e compartilhados através dele. Vale retomarmos neste momento o conceito de cibernética e as teorias de controle e poder do homem sob a máquina, retomando também, inclusive, o próprio conceito de cibercultura que, como demonstrado anteriormente, se configura como a cultura de controle do homem sob a sua natureza. Com o estreitamento das fronteiras entre o humano e a máquina, confundem-se também as relações de poder e controle entre eles. Estaria o homem disposto a não mais exercer o controle sobre a sua natureza? Para respondermos à esse questionamento basta analisarmos brevemente o imaginário coletivo da cultura ocidental no que se refere à teorias de ciborgue e inteligência artificial das máquinas retratados em produtos culturais como livros e filmes de ficção científica. Nourish e Bell (2009, p. 1, tradução nossa) pontuam que   [...] a ficção científica não somente antecipa, mas ativamente molda o futuro tecnológico através de seu efeito no imaginário coletivo. Ao mesmo tempo, a ficção científica em culturas populares providencia o contexto no qual novos desenvolvimentos tecnológicos são entendidos.

Oliveira (2003, p. 182) diz que, assim como a fábula e a fantasia, a ficção científica é fruto da “interrogação da nossa humanidade e de nosso mundo a partir  

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da presença do Outro ser (pigmeus e trogloditas, alienígenas e robôs, duendes e ogros) ou de um outro mundo (as culturas orientais, os planetas longínquos, os reinos de fadas)”. As primeiras figuras artificiais que imitavam seres animados, como Frankenstein, eram retratadas como ameaças aos humanos nas ficções do século XIX. Havia uma relação ambígua de medo e curiosidade pelo que o outro poderiam trazer para a equação da vida cotidiana. A apreensão e o temor pela possibilidade de falta de controle do homem sobre as máquinas é, portanto, um sentimento extremamente latente na sociedade contemporânea, em grande parte gerada pelo imaginário coletivo das ficções científicas. Em um contexto em que não mais se diferencia o homem do outro e este outro se aproxima cada vez mais das características humanas levantam-se questionamentos não só relativos à relações de poder e controle mas também de privacidade, ética, vigilância e responsabilidade. O sujeito contemporâneo ocidental é capaz de se estarrecer frente à possibilidade do pós-humano, pois foi criado em uma cultura de temor da inovação tecnológica. O outro, o inexplicável, o monstro, a nova tecnologia – como valores simbólicos – geram uma relação ambígua de terror e fascinação. Enquanto, por um lado, o sujeito contemporâneo está em busca de experiências de conexão mais imersivas e naturais, reina também em seu imaginário a visão distópica e dicotômica de homens lutando contra máquinas, autômatos e andróides, construída em sua mente por longos anos de exposição a obras culturais de ficção científica. Por isso, ao analisarmos as relações homem-tecnologia em ambientes de ubiquidade computacional precisamos ter em mente estas problemáticas que emergem da discussão do sujeito pós-humano e dos objetos providos de inteligência artificial. Isso se faz necessário, principalmente, ao abordarmos a questão da computação vestível. Isso por que, mesmo que esta modalidade de computação ubíqua não reconfigure a organicidade do homem, faz parte de uma categoria de tecnologias que codificam o corpo e alteram a relação deste não só com o ambiente ao seu redor mas com si mesmo. É preciso ter em mente as problemáticas do sujeito pós-humano e o imaginário coletivo dos ciborgues quando pensamos na aplicabilidade e experiência de uso desta nova modalidade de dispositivo tecnológico na sociedade contemporânea. Os pontos acima levantados nos fazem questionar quais são as  

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implicações desse estreitamento de fronteiras e relações de poder para a experiência de uso dos dispositivos computadorizados embarcados em objetos. Além disso, como estas novas modalidades de dispositivo computacional e relação homem-computador reconfiguram a experiência de uso de dispositivos digitais e a disciplina de design das experiências de uso destas interfaces.

3.3

Experiência de uso de computadores vestíveis Retomando os conceitos das modalidades de dispositivos que compõe os

ambientes de ubiquidade computacional, podemos dizer que a computação vestível possui tanto uma dimensão pervasiva - pois está embarcada em um objeto e comunica-se com seu ambiente - quanto hipermóvel, pois se desloca junto com seu usuário pelo espaço. Espaço este que, como demonstrado anteriormente, não está mais restrito a limitações territoriais, mas é permeado por uma camada informacional ubíqua e está embarcado por objetos capazes de decodificar essas informações e se comunicar através dessa camada. Podemos dizer, portanto, que atualmente existimos em um espaço de informação, mais do que em um espaço territorial. A computação vestível, por sua vez, estando acoplada ao homem e sendo portátil, programável e customizável, cria um espaço pessoal de informação do usuário portador do dispositivo computacional vestível (MANN, 1998). Vimos no capítulo anterior que os objetos, mesmo antes de estarem embarcados por dispositivos computacionais, sempre possuíram uma dimensão morfológica – da sua matéria – e uma dimensão informacional – da sua forma, função e significado. Isso não é diferente no que se refere às roupas e objetos vestíveis como óculos, relógios, chapéus, etc. Pelo contrário, longe de sua função original (cobrir a nudez, corrigir deficiências, administrar o tempo), as roupas e acessórios vestíveis vêm ganhando diferentes formas e funções ao longo da história, sendo representantes simbólicos, inclusive, do espírito de cada geração (RANOYA, 2012). Genevieve Bell, diretora de pesquisa em experiência do usuário da Intel, em entrevista à revista MIT Technology Review, esclarece que já temos utilizado tecnologias vestíveis há muito tempo na história humana (por exemplo, armaduras, espadas, óculos, relógios de pulso) e ao analisar o uso destas tecnologias vestíveis  

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constatou que se enquadram basicamente em duas funções: Um delas é literal, funcional. (As tecnologias vestíveis) estão fazendo algum tipo de trabalho que estenda nossa fisicalidade ou alcance. A outra função é simbólica, o que elas dizem para as outras pessoas. [...] Relógios de 200 anos atrás diziam ‘Não somente eu tenho dinheiro para comprar um dispositivo deste, como eu acredito em pontualidade (MIT TECHNOLOGY REVIEW, 2013, tradução nossa).

A novidade da computação vestível, portanto, não reside no fato das roupas e acessórios passarem a ter uma dimensão informacional, mas sim desta dimensão estar codificada digitalmente, se comunicar com os demais objetos do ambiente e ser capaz de mensurar e potencializar as capacidades do próprio corpo humano através da leitura, análise e comunicação destas informações tanto para o próprio usuário, quanto para os objetos ao seu redor. Por mais que as tentativas de aplicação comercial da computação vestível sejam recentes, suas origens científicas datam antes mesmo do período de estudos das interfaces gráficas e sistemas operacionais dos computadores pessoais. Vannevar Bush, criador da ideia de “memex”, um dispositivo que armazenaria registros, livros e documentos facilitando o acesso à essas informações e predecessor do hipertexto e da world wide web, já visionava em seu estudo “As We May Think” que pudéssemos acessar as informações do “memex” através de uma pequena câmera em nossas cabeças. Nos anos 60, Ed Thorp e Claude Shannon inventaram um computador portátil do tamanho de um pacote de cigarros, que podia ser carregado para dentro de cassinos e prever as apostas em roletas. Nos anos 80, Steve Mann, ainda no colegial, começou a utilizar seu wearcomp, uma mochila equipada com um computador conectado a um capacete com uma câmera fotográfica, um dispay visível para um de seus olhos e um teclado com cabo que podia ser segurando e digitado com uma única mão. A partir deste aparato, Mann desenvolveu pesquisas com outras formas de computação vestível como óculos, denominada Eyetap, roupas e calçados. Mann fez parte do grupo de pesquisa de computação perceptível do MIT MediaLab ao longo dos anos 90 que se autodenominavam “The Borg”, precursor do atual grupo de pesquisa em wearable computing da mesma instituição. Em 1998, com base em suas experimentações, Mann apontou que existiriam  

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três modos operacionais no novo paradigma de interação homem-computador da computação vestível: constância – o fluxo de informações é ininterrupto e não depende do acionamento de um dispositivo; ampliação – o computador deveria servir de ampliador do intelecto humano, uma vez que a computação não é a ação principal, mas sim, é realizada enquanto o homem faz outras coisas; mediação – o computador vestível iria encapsular o homem para servir como mediador de sua realidade a fim de criar filtros de informação de acordo com desejos de privacidade. Mann (1998) afirma que a computação vestível não monopoliza a atenção do usuário, não é restritiva, permite que o usuário faça outra atividade enquanto utiliza o dispositivo, é perceptível pelo usuário, controlável, atenta ao ambiente, pode ser usada como meio de comunicação, está constantemente disponível e é extremamente pessoal. Em outras palavras, o dispositivo computacional vestível pode ser diferenciado dos demais dispositivos computacionais ubíquos pelos seguintes aspectos: [...] deve ser usado enquanto o usuário está em movimento; deve ser usado enquanto uma ou ambas as mãos estão livres, ou ocupadas com outras atividades; existe dentro de um envelope corpóreo do usuário, isto é, não deve estar meramente ‘atachado’ ao corpo, mas tornar-se parte integrante do vestuário do usuário; deve permitir ao usuário manter controle; deve exibir constância, isto é, podendo ser constantemente avaliável (BASS, 1997 apud DONATI, p. 28).

Já abordamos neste trabalho a natureza pervasiva e constante dos dispositivos computacionais vestíveis, analisaremos agora, portanto, os outros dois modos operacionais sugeridos por Mann: mediação e ampliação de sentidos. A computação vestível tem o potencial de diminuição das fronteiras do “real” e “virtual” através da construção de uma realidade “mediada” (MANN, 1998), possibilitando tanto a sobreposição de informações virtuais à camada do real, criando assim uma realidade aumentada, quanto a diminuição das cargas informativas do real, criando uma “realidade diminuída”. Diferente da realidade virtual, os dispositivos de computação vestível não produzem experiências de imersão em uma realidade simulada, mas produzem uma realidade potencializada pela aproximação e programação da camada de informações virtuais no “real” através dos dispositivos computacionais vestíveis. Donati (2005, p. 80) ressalta esta visão ao alegar que Os sistemas vestíveis, uma vez inseridos no cotidiano, contrapõem-se a esta situação da realidade virtual, colocando o corpo orgânico como parte integrante das relações espaciais e sociais que se organizam a partir de

 

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diferentes referências conforme as requisições correntes do usuário. A tentativa nestes dispositivos é tornar tudo "sensorialmente compartilhável", podendo ser não apenas visível, mas também audível e táctil. Formaliza-se então a ideia de um "corpo ampliado" que não pretende tomar-se radicalmente antagônico ao orgânico, por mais sofisticada que seja a tecnologia incorporada, mas antes reconhecê-lo distinto e não estranho ao biológico.

Além da constância e mediação, os dispositivos computacionais vestíveis permitem a ampliação dos sentidos humanos. Conforme descrito anteriormente, a computação vestível não presume a reconfiguração biológica do homem através de implantes, mas representa uma das formas de codificação do corpo humano através de tecnologias digitais que potencializem suas capacidades, não necessariamente suprimam suas limitações e suplantem sua condição de obsolescência. Desta forma, o acoplamento de dispositivos computacionais vestíveis ao corpo humano figura como forma de aperfeiçoamento e expansão da cognição e ergonomia humana. Esta incorporação e acoplamento, mesmo que não reconfigurem o biológico, “evocam a composição de outro “corpo”” (DONATI, 2005, p. 84). Segundo Donati (2005, p. 84) “este corpo que se coloca como a hibridação entre corpo e tecnologia” e, como diz Stelarc (1999, p. 52) “[...] precisa ser reposicionado, do reino psíquico, do biológico para a ciberzona da interface e da extensão - dos limites genéticos para a extrusão eletrônica”. O corpo humano, até então agente que dependia de dispositivos de entrada de dados e manipulação indireta para uma exploração representacional do ciberespaço, passa a ser a própria interface com este espaço de informação. Isto reconfigura completamente os paradigmas de interação homemcomputador estabelecidos até então. Segundo Steve Mann (1997, p. 31), [...] com computadores tão próximos como as camisetas nas nossas costas, interação vai se tornar mais natural. Isso vai melhorar nossa habilidade para fazer tarefas computacionais tradicionais enquanto em pé ou andando, fazendo com que os sistemas computacionais do futuro sejam como um segundo cérebro. Um computador que está constantemente atento ao nosso ambiente pode desenvolver consciência contextual, inteligência perceptiva e a habilidade de ver pela perspectiva de seu usuário a fim de assisti-lo em suas atividades do dia-a-dia.

Outro pesquisador do grupo “The Borg” nos anos 90 que vale ressaltarmos foi Thad Starner. Enquanto Mann focou seus estudos de computação vestível nas possibilidades do processamento e projeção de imagens através de uma câmera atrelada a um capacete, Starner também passou grande parte de sua vida utilizando um sistema de computação vestível, mas sua finalidade principal era fazer anotações através do teclado de uma mão só e recuperar essas informações  

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quando necessárias, através do software de memória aumentada chamado “Remembrance Agent” que projetava as informações em um display disposto na frente de um de seus olhos. O computador vestível de Starner não possuía uma câmera e, ao invés de carrega-lo em uma mochila, seu computador estava atrelado a um cinto. Depois de inúmeras iterações, esse protótipo deu origem a Lizzy, projeto de computação vestível do grupo de pesquisa em wearable devices do MIT MediaLab. Alguns anos depois, Starner foi contratado pelo Google como consultor técnico do Project Glass, que daria início à tentativa da empresa de massificação de um dispositivo de computação vestível em forma de óculos. Para Starner (2001), os computadores vestíveis serviriam como "controles remotos pessoais" que interagiriam com os demais dispositivos computacionais do ambiente, sendo programados e controlados pelo seu usuário. Em ambientes de ubiquidade computacional, os computadores vestíveis representariam, portanto, as interfaces que moldariam o espaço pessoal de informação do indivíduo. Segundo Starner (2001, p. 47), [...] a introdução de janelas, ícones, menus e ponteiros de mouse na metáfora de desktop da GUI providenciaram uma maneira de mediação entre as aplicações do computador pessoal e o usuário. Similarmente, os computadores vestíveis vão providenciar uma interface consistente para objetos aumentados computacionalmente no mundo real.

Temos visto diversos itens de indumentária serem acrescidos de dispositivos computacionais nos últimos anos, tais como os relógios de pulso e óculos, porém não é objetivo deste trabalho mapear as diversas modalidades de computação vestível da atualidade. Como novas tecnologias sendo introduzidas no mercado, acreditamos que a apropriação social irá demandar iterações tecnológicas que acabariam por deixar datados os pontos levantados neste trabalho, caso sua proposta

fosse

identificar

as

limitações

tecnológicas

destes

dispositivos.

Gostaríamos de concentrar nosso foco justamente no questionamento não de sua dimensão morfológica, mas de sua dimensão informacional – sua função, significado e valor simbólico na sociedade contemporânea. Pois mesmo que estes novos formatos de hardware sejam produzidos por empresas tecnológicas de extrema importância no cenário socioeconômico contemporâneo, não se pode esperar que meramente o poder cultural e influência destas empresas sejam suficientes para garantir a adoção em massa destes dispositivos nos próximos anos. Ainda além,  

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ousamos dizer que, mesmo que estes dispositivos tivessem o melhor desempenho tecnológico e configurações ergonômicas, se sua aplicabilidade de uso no cotidiano não for relevante para o usuário comum o potencial da computação vestível não será alcançado. Para responder esta questão precisamos pensar não somente nos aspectos de desenvolvimento tecnológico destes novos dispositivos (como tem sido o foco das pesquisas em computação vestível até agora), mas também compreender quem é o sujeito contemporâneo que irá utilizar essa nova tecnologia, quais são as necessidades latentes que não têm sido supridas pelas tecnologias vigentes, quais são suas expectativas e anseios com relação à essas novas tecnologias, qual é seu repertório

cultural

com

relação

ao

uso

de

determinados

dispositivos

e,

principalmente, para quais tarefas ele irá utilizar essa nova tecnologia. Norman (1999) defende que, para que as tecnologias da informação sirvam o consumidor comum, as empresas de tecnologia precisam deixar de serem movidas por características tecnológicas e passar a serem orientadas às reais atividades daqueles que usam seus dispositivos. Suas preocupações deveriam ser menos a respeito dos fatores tecnológicos de seus dispositivos e mais dos fatores humanos e uso destes dispositivos no cotidiano. Este ponto aborda justamente muitos dos questionamentos que tem sido feito aos computadores vestíveis com relação à sua diferenciação dos smartphones. Muitas das aplicações dos dispositivos vestíveis poderiam ser realizadas perfeitamente através de um smartphone. O que levaria, portanto o usuário a preferir um hardware ao outro? Para Norman (1999), enquanto em um primeiro momento o que importa para os early adopters das tecnologias vestíveis são seus features tecnológicos, para que esses dispositivos se tornem mainstream eles precisarão demonstrar para o usuário comum como estes dispositivos se diferenciam de todos os outros já existentes e como irão agregar valor às suas tarefas do cotidiano. O que usuário comum irá utilizar como critério de decisão para a adoção do dispositivo tecnológico não será necessariamente a qualidade e inovação tecnológica, mas sim a potencialidade daquele dispositivo mudar a sua vida. Para a antropóloga e diretora de pesquisa em experiência de usuário da  

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Intel, Genevieve Bell, os dispositivos vestíveis “não se tornarão populares enquanto não ficar claro como suas características técnicas podem efetivamente melhorar a vida das pessoas” (MIT TECHNOLOGY REVIEW, 2013). Tanto Starner quanto Mann passaram grande parte de suas vidas vestindo computadores de forma desconfortável e limitadora à suas tarefas cotidianas. Como engenheiros de computação e pesquisadores, aturaram o estranhamento e a falta de compreensão das pessoas ao redor em prol do conhecimento e experimentação científicas para o desenvolvimento do hardware do computador vestível. O usuário comum, porém, estaria disposto a adotar uma nova tecnologia que muda tanto seus paradigmas de uso, pelo simples fato de ser uma tendência tecnológica? Além disso, uma vez demonstradas as problemáticas do pós-humano, como o sujeito contemporâneo reage a esses dispositivos, uma vez que remetem à iminência dessa quebra de fronteiras entre o homem e a máquina? Serão as experiências proporcionadas pelos dispositivos de computação vestível suficientemente convincentes e confortáveis ao ponto de fazer com que o usuário comum releve seus preconceitos e anseios com relação à esse tipo de tecnologia que remete ao ciborgue e ao pós-humano?   Longe de adentrarmos em análises futurísticas, gostaríamos de propor que a partir da compreensão deste sujeito contemporâneo, suas expectativas e anseios com relação à computação vestível, faz-se necessário o desenvolvimento de um pensamento sistemático e multidisciplinar que designe, com intencionalidade, a aplicabilidade destes dispositivos vestíveis ao cotidiano do usuário comum e projete sua experiência de uso para que sua apropriação sociocultural efetivamente aconteça. Somente uma abordagem de projeto orientado ao usuário, não à tecnologia, poderá designar as experiências de uso destes novos dispositivos vestíveis a fim de que sejam realmente relevantes e gerem novos significados na sociedade contemporânea. No próximo capítulo nos propomos a refletir de maneira não exaustiva a respeito de como esta prática de projeto pode ser feita considerando o novo cenário da computação ubíqua.

 

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4.

NOVOS PARADIGMAS DE DESIGN DE EXPERIÊNCIA DE USO PARA

UBIQUIDADE Antes de adentrarmos efetivamente em como esta nova modalidade de dispositivo tecnológico irá afetar as práticas da disciplina de design de experiência de uso, precisamos declarar, primeiramente, que acreditamos ser esta a disciplina que melhor se propõe a esse pensamento sistemático e multidisciplinar a respeito das possibilidades de uso destes novos dispositivos para o cotidiano do usuário comum. Não devido à suas práticas e metodologias atuais, mas principalmente devido à sua abordagem – através do pensamento sistêmico – e seu objetivo primordial – a experiência fluida de interação do usuário com um produto ou serviço. Primeiramente, o design é "uma área voltada, historicamente, para o planejamento de interfaces" (CARDOSO, 2010, p. 234). Em outras palavras, o design é a disciplina que ordena e projeta as interações entre homens e artefatos, estruturando-as a fim de conferir significado e forma a objetos. Essa prática se dá através do pensamento sistêmico, ou seja, ao invés de se isolarem os fatores como em outras formas de pensamento científico, o designer “visa gerar alternativas [...] sua meta é viabilizar uma solução e não garantir a reprodutibilidade do experimento” (CARDOSO, 2010, p. 243). Para Donald Norman, o design é a "adaptação intencional do ambiente para satisfazer necessidades individuais e sociais" (2013, p. 150). Portanto, longe de residir no domínio puramente estético, o design é [...] mais do que uma ideia a posteriori, colada à produção industrial para facilitar o marketing. Existem claramente mais questões no design além de servir para conter e seduzir. Num sentido mais amplo, o design desempenha um papel metafórico, traduzindo benefícios funcionais em modalidades cognitivas e sensoriais (DE KERKCHOVE, 2009, p. 172).

Com o surgimento dos computadores pessoais e das interfaces gráficas, a disciplina do design passou a abranger não somente o projeto do artefato físico em si, mas também as interações que se dariam no ambiente representacional das interfaces gráficas destes artefatos, dando origem ao campo de estudo de interação humano-computador (HCI) que abrangia disciplinas tais como design de interface, design de interação, usabilidade e arquitetura de informação. Em suma, dentro da prática de desenvolvimento de software, a interação humano-computador visava estudar os fatores humanos e projetar interações mais simples e fáceis de serem  

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aprendidas e replicadas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que o design era a disciplina que projetava os periféricos que viabilizariam a manipulação direta dos computadores pessoais, como o mouse e o teclado, também era a disciplina que projetava como estaria disposta a informação nas interfaces gráficas e como seria a interação dos usuários com estas. Inclusive, devemos ressaltar que a popularização dos computadores pessoais só foi possível devido à criação de interfaces e configurações visuais que mediassem a interação do usuário comum com o computador. Segundo Cardoso (2010, p. 207), “do ponto de vista de difusão social, a rede é um fenômeno tanto de design quanto de informática”. Como evolução destes conceitos, surgiu a disciplina de user experience design (UX) ou design de experiência de uso, como temos chamado neste trabalho. Esta disciplina tem em comum com as disciplinas que compõe a interação humanocomputador (HCI) o fato de ter sua prática centrada no ser humano, não na tecnologia. Porém, o design de UX difere das disciplinas anteriores por ter como objetivo a redução da fricção entre a tarefa a ser realizada e a tecnologia que será utilizada para realiza-a (seja esta tecnologia digital ou não) (BULEY, 2013). Em resumo, o design de UX projeta as “formas de fazer” para melhor se moldarem e adaptarem aos “fazeres” do usuário através de um produto. Como já dito neste trabalho, o homem não se distingue de sua técnica e o sujeito contemporâneo tem buscado uma experiência de conectividade mais ubíqua através de seus dispositivos computacionais. A proposta da computação ubíqua é que cada vez mais os dispositivos tecnológicos estejam invisíveis ao usuário e dissolvidos nos planos de fundo de suas atividades cotidianas. Para que isso efetivamente aconteça os usos destes objetos computadorizados precisam ser projetados tendo como foco as tarefas para as quais servirão. Como Norman (1999) defende, as empresas de tecnologias digitais precisam passar a projetar com foco nas necessidades dos usuários ao invés do desenvolvimento tecnológico por si só. Por mais que as tecnologias tenham seus significados efetivamente incorporados pela cultura somente após sua apropriação social, somente o design de seus usos poderá garantir que não sejam rejeitadas antes mesmo de serem utilizadas. O design de experiência de uso se faz ainda mais necessário em ambientes de ubiquidade computacional onde interagem sujeitos humanos e não humanos.  

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Nestes novos ambientes, há o grande risco de confusão das relações de poder e controle entre homem e máquina, de sobrecarga de informações, de má interpretação na comunicação entre os sujeitos humano e não-humano. Afinal, por mais que o homem esteja sendo computadorizado e os computadores estejam sendo humanizados, a comunicação entre eles ainda é não é algo natural e, segundo Norman (1999), para que a comunicação efetivamente aconteça é necessário haver um terreno em comum sob o qual possam acontecer as trocas de informações e o homem e máquina não possuem naturalmente esse terreno em comum. Como vimos anteriormente neste trabalho, este terreno comum são as interfaces projetadas para os artefatos. A primeira mudança de paradigmas para o design de experiência de uso surge a partir do momento em que as interfaces se deslocam puramente de sua configuração gráfica para adentrarem em configurações multimodais. Atualmente, devido à característica de concentração frontal e disposição de informações em telas dos dispositivos digitais atuais, as práticas de design de experiência de uso de produtos digitais tem se concentrado em proporcionar a melhor experiência visual para o usuário, através da organização de seu conteúdo, feedback visual em tela, etc. Com a emergência de novos dispositivos tecnológicos que não demandarão a concentração frontal do usuário, precisaremos começar a projetar experiências que utilizem outros aspectos sensoriais do usuário e sejam mais discretas, porém também mais assertivas. Os projetos de experiência de uso precisarão garantir que os fluxos de informação que serão trocados entre os dispositivos do ambiente sejam capazes de compreender semanticamente o que está acontecendo naquele contexto a fim de garantir uma relação homem-computador relevante e significativa. Ao invés de uma preocupação meramente visual com a disposição de informações em telas, os designers precisarão projetar fluxos de informação. Outro paradigma que precisa ser revisto na prática do design de experiência de uso é que o processo de sistematização do pensamento e projeto de experiências é feito atualmente com base somente nas necessidades do usuário. O surgimento de ambientes embebidos de objetos providos de inteligência artificial faz com que a prática do design de experiência de uso também tenha que considerar o ponto de vista da máquina. Não como outrora, do ponto de vista de receptor ou de objeto a ser utilizado, mas como um agente inteligente e sujeito que atua no  

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ambiente. Não mais podemos projetar interações somente com foco no sujeito humano, precisamos também prever e projetar a experiência para os sujeitos nãohumanos, os objetivos providos de inteligência artificial que também interagem com os ambientes do cotidiano. Mais além, com a proposta da computação ubíqua de tecnologias calmas que não demandam a atenção principal do usuário, o projeto para uma boa experiência de uso passa a depender muito mais de sujeitos nãohumanos que também estejam compreendendo seu ambiente e estejam, de sua forma, tendo uma boa experiência do que necessariamente dos sujeitos humanos. Isso por que, grande parte da programação do ambiente passará a naturalmente se realizada pelos computadores, não pelos usuários. Frente a isso, não podemos deixar de nos perguntar como acrescentar ao centro do projeto os sujeitos nãohumanos sem desvalorizar a experiência e autonomia do sujeito humano? Como vimos anteriormente, a própria cultura contemporânea, denominada cibercultura, está firmada na premissa do controle do homem sobre sua natureza e suas tecnologias. A teoria cibernética e o imaginário coletivo do sujeito contemporâneo ocidental não permitem a possibilidade de desapropriação do controle por parte do homem. Como calibrar, portanto, a distribuição de papéis nestes ambientes, garantindo assim tanto uma boa experiência para o usuário quanto para a máquina? Donald Norman (2013, p. 152), ao refletir a respeito de ambientes embebidos por objetos inteligentes ressalta a complexidade do cenário atual e a importância do design ao dizer que [...] estamos sob a ameaça de tempos confusos e excitantes, perigosos e agradáveis, de interações visceralmente excitantes do ponto de vista comportamental, satisfatórios e reflexivamente agradáveis. Ou talvez, não estejamos. O sucesso disso vai depender do design das coisas futuras.

Nos primórdios da computação ubíqua, Weiser e Brown (1996) defendiam que as tecnologias digitais tinham que desaparecer no plano de fundo das ações humanas, não demandando mais a atenção total de seu usuário e tornando-se assim tecnologias calmas. Porém, isso não significaria total autonomia para as tecnologias, mas sim, a intercalação entre o engajamento do centro da atenção humana – no qual o homem está no controle – com a atenção periférica – no qual somente há uma relação mais sensorial.

 

50  

Donald Norman (2013) em seu livro “Design do Futuro” reforça o pensamento de que o relacionamento entre o homem e os objetos autônomos deve ser de simbiose. Ele alega que este relacionamento se dá através da articulação e negociação

de

três

níveis

de

processamento

de

informação:

visceral,

comportamental e reflexivo. As máquinas, através de suas estruturações lógicas são capazes de um processamento visceral (por exemplo, identificar um perigo) e de uma atitude comportamental em resposta a essa percepção (evitar este perigo). Porém o pensamento reflexivo e abstrato, capaz de formular possibilidades não constantes e lógicas ainda é inerente ao homem, que também é capaz de atuar no nível comportamental dependendo de seu processamento reflexivo. Por conta deste nível de processamento não ser facilmente previsível, mensurado e analisado é importante que as máquinas sejam delegadas de controle somente quando o homem não estiver com seu processamento reflexivo acionado. Isso por que é mais difícil pra as máquinas captarem percepções psicológicas humanas e preverem suas ações, pois seus sensores são limitados e só podem mensurar, calcular, prever e analisar aquilo que lhe é físico e tangível. As máquinas só se tornam mais capazes de entender emoções e formulações complexas ao ponto que os próprios humanos a alimentem com possibilidades semânticas de informações (mesmo assim, sem conseguir mapear toda a complexidade do intelecto humano). Os projetos de experiência de uso para ambientes de ubiquidade computacional precisam, portanto, criar experiências de simbiose onde tanto o homem e máquina são beneficiados, sem nenhum dos dois exercer controle total sobre o outro. As relações de simbiose são aquelas nas quais há a "fusão de dois componentes, humano e máquina, na qual a mistura é frutífera e suave, a resultante colaboração excedendo o que cada um é capaz de fazer sozinho" (NORMAN, 2013, p. 26). As possibilidades de uso dos computadores ubíquos precisam respeitar o desejo de autonomia do homem para alguns assuntos, enquanto delega outros para as máquinas. Donald Norman (2013) alega que, por mais que as máquinas e o humanos estejam cooperando em um ambiente de ubiquidade computacional, há coisas que os humanos fazem bem e outras que as máquinas fazem bem. Por exemplo, para as máquinas, neste momento, é muito fácil formular um pensamento lógico, sistemático e com atenção a detalhes, porém é muito difícil estruturar emoções e, mais além, ler  

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e prever as emoções humanas. Para Norman (2013), portanto, as máquinas autônomas não precisam ler as mentes e tentar prever as ações de seus usuários, antes, precisam aprender com suas interações e deixarem-se serem programadas quando necessário a fim de auxiliarem o homem naquilo que lhe for necessário. Para

que

as

relações

homem-computador

em

ambientes

de

ubiquidade

computacional sejam naturais e harmoniosas é importante que elas sejam, primeiramente, projetadas e, segundo, que os propósitos de cada um dos sujeitos sejam delineados de acordo com suas potencialidades e capacidades, respeitando a relação de simbiose entre eles. Nesta relação de simbiose entre homem e máquina, é importante que os dispositivos tecnológicos respeitem a parte que lhe for designada para cooperar com a boa experiência do ambiente. Com papéis definidos e relações projetadas, o computador pode exercer seu papel como tecnologia calma, sem se aproveitar das informações decodificadas do ambiente e do próprio corpo humano para fazer interferências que acabem por atrapalhar as atividades do homem. Assim também o homem, uma vez sabendo o que é esperado do computador, pode realizar suas atividades próprias, sem interferir naquelas que são responsabilidade de seus computadores embebidos nos objetos do cotidiano. O computador vestível, como demonstrado anteriormente, tem papel de demarcação de espaço pessoal de informação nos ambientes de ubiquidade computacional. Como tecnologia acoplada a seu corpo, o computador vestível será uma das formas pelas quais o homem será mensurado pelo ambiente e se comunicará com os demais sujeitos inteligentes, podendo ser o “controle remoto” através do qual o usuário programa e interage com o ambiente de ubiquidade computacional. Porém, os computadores vestíveis remetem ao repertório cultural dos ciborgues e essas imagens trazem consigo algumas preocupações ao usuário comum. Darmour (2013) propõe que para que a computação vestível seja efetivamente utilizada pelo usuário comum é preciso que os dispositivos sejam projetados para serem belos, periféricos e significativos. Por serem itens da indumentária, os dispositivos vestíveis não podem ser simplesmente funcionais, eles precisam também serem confortáveis, trazerem significado ao seu uso e também  

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serem estéticos. Este último item é principalmente relevante no que se refere à indumentária pois já sabemos que as roupas e acessórios vestíveis não são utilizados meramente por seus aspectos funcionais (muito pelo contrário, muitos itens da indumentária são desconfortáveis e disfuncionais, mas ainda assim utilizados). A indumentária carrega consigo um poder simbólico que está muito atrelado à própria personalidade do sujeito. Portanto, além de funcionais, os dispositivos vestíveis precisam significar algo para aquele que o utiliza e para aqueles que interagem com eles. O desafio aqui é como desprender o valor simbólico

dos

ciborgues

dos

dispositivos

vestíveis,

muitas

vezes

usado

pejorativamente. Em seu livro “The Invisible Computer”, Norman (1999) propõe que os dispositivos computacionais deveriam ser information appliances, isto é, serem projetados para uma função específica, tornarem-se assim invisíveis e serem capazes de se comunicar com o ambiente. Ele delineia então três axiomas para o design de information appliances que são aplicáveis para o design de experiência de uso para computação vestível e ubíqua, são eles: simplicidade, versatilidade e “agradabilidade”. O uso dos objetos embebidos de processadores computacionais deve ser simples de usar e deve refletir a tarefa a qual são destinados. A tecnologia deve se tornar invisível ao passo que é projetada para uma tarefa específica. A tarefa, não a tecnologia deve ser o foco da atenção do usuário. Ainda, o uso destes objetos deve permitir a novidade e a criação de novos usos e “formas de fazer” a partir de sua apropriação. Por último e não menos importante, o seu uso deve ser agradável e prazeroso remetendo às suas emoções. Em publicação recente a respeito da experiência de uso de computadores vestíveis, Norman (2013) expressou sua preocupação com relação à intrusividade, distração e sobrecarga cognitiva que dispositivos vestíveis como o Google Glass podem gerar no usuário se suas aplicações forem mal projetadas e utilizadas. Segundo Norman (2013) o homem não é capaz de ser multitarefa sem prejudicar alguma das ações que está realizando. Se a informação apresentada ao usuário enquanto ele faz alguma outra atividade for relevante para a ação que está sendo executada, então o dispositivo tecnológico está expandindo a experiência e aumentando as possibilidades daquela ação especifica. Porém, se não for uma  

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informação contextualizada, na realidade o dispositivo está prejudicando e distraindo a atenção do usuário daquilo que ele estaria tentando fazer. Em resumo, os dispositivos de computação vestíveis tem o potencial de expandir os sentidos e experiência do homem com o ciberespaço. Porém, ao mesmo tempo, podem ser extremamente intrusivos e dispersantes. Tudo irá depender, primeiramente, dos projetos de uso aos quais estes dispositivos serão aplicados e, segundo, das reais aplicações para as quais os usuários irão utilizá-los. Portanto, o design de experiência de uso para ambientes de ubiquidade computacional deve considerar experiências que envolvam a atenção periférica do usuário, através da utilização de outros sentidos que não somente a sua visão. Além disso, os projetos de experiência de uso devem considerar agora os computadores como sujeitos não-humanos que também contribuem para o processo de construção do ambiente e de suas relações. A experiência de interação dos sujeitos nãohumanos com o ambiente também deve ser projetada. Outro aspecto importante que precisa ser considerado nos projetos de design de experiência de uso para ambientes de ubiquidade computacional é a definição clara de papéis e responsabilidades do homem e da máquina nos ambientes, a fim de que se reduza as má interpretações e falhas de comunicação. É importante que tanto a mensuração quanto a comunicação de informações neste novo paradigma de experiência de uso sejam acordados entre homem e máquina através de um terreno comum construído através da construção gradual de confiança e respeito. É preciso que as máquinas mantenham uma “etiqueta”, sejam projetadas para não serem intrusivas e não parecerem controladoras. Assim como as relações humanas são complexas e demandam tempo para que intenções sejam conhecidas e reveladas, as relações dos sujeitos humanos e não-humanos deverá levar em conta essa construção de terreno comum sob o qual serão construídos seus relacionamentos. Quando tratamos especificamente de projetos para computação vestível percebemos que essa modalidade de computação ubíqua além de ser projetada para ser relevante, contextualizada e demandar a atenção periférica do usuário trazendo valor e significado para sua utilização, deve ter uma preocupação especial para que estes dispositivos sejam belos, simples de usar, versáteis e agradáveis  

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pois se tornarão parte indistinguível do homem, dizendo algo sobre ele para quem o vê e ajudando-o a navegar em meio à complexidade da realidade aumentada pelo ciberespaço que os ambientes de ubiquidade computacional proporcionarão.

 

55  

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A condição do ciberespaço e da cibercultura é de ubiquidade e

desprendimento espaço-temporal do acesso ininterrupto à rede digital. A sociedade contemporânea inserida nesta cultura demanda, portanto, por tecnologias de informação e comunicação que ofereçam experiências de uso consistentes a essa condição. O primeiro passo rumo à uma computação mais ubíqua foi a convergência de tecnologias analógicas específicas também em sistemas de informação digital e, por sua vez, em dispositivos computadorizados. Estes se diferenciam das demais tecnologias de comunicação analógicas por estabelecerem-se não somente como meios ou veículos de comunicação, mas também por firmarem um diálogo com o homem, seu usuário, através de processos interativos. Em outras palavras, por ser um meio autorreferente, a relação do homem com o computador não é ferramental, mas sim complexa e comunicacional, demandando processos de linguagem e significação. A fim de que esta comunicação entre homem e computador seja efetiva, é necessário a mediação dessa relação por interfaces digitais que sirvam como tradutoras da comunicação ou interação homem-computador. O computador pessoal possuía um modelo de interface digital gráfica e representacional baseada em metáforas do mundo “real”. Porém, mesmo com seus padrões de interface gráfica mais amigável, o computador pessoal falhou em conferir a experiência de ubiquidade que o ciberespaço e a cibercultura demandavam pois proporcionavam uma experiência limitada de acesso à rede e multifuncional construídas com base na concentração frontal, representação gráfica e imobilidade. O advento dos dispositivos computacionais móveis sinalizou o começo de um distanciamento do hardware e metáfora do desktop, porém não representou uma ruptura com os padrões convencionados de interface. Mesmo que tenha desprendido o dispositivo tecnológico de sua restrição territorial, ainda pautavam suas experiências na concentração frontal do indivíduo. Estes novos dispositivos computacionais inauguraram, sim, novos padrões de interface que utilizariam outros sentidos como o tato através do toque nas telas, porém, a grosso modo se apropriaram dos mesmos padrões de interface gráfica e linguagem dos computadores pessoais, a GUI e a hipermídia.  

56  

Além disso, a mobilidade dos smartphones e a disponibilidade ininterrupta de informações em qualquer lugar e a qualquer momento fez com que a relação homem-tecnologia se tornasse viciante e sobrecarregada. A própria tecnologia criada para suprir a necessidade de maior mobilidade criou uma nova necessidade: uma relação mais inteligente, leve e dialógica entre homem-tecnologia na qual a tecnologia se apresentasse de maneira mais calma e complementar às ações humanas. Em outras palavras, o homem passou a demandar “formas de fazer” que estivessem mais atreladas às tarefas especificas que desejava realizar. As interfaces gráficas baseadas em metáforas visuais foram essenciais para a história da microinformática, porém, ao passo que os formatos dos computadores começaram a se diversificar e a ser distanciar da forma tradicional de desktop, assim também as interfaces digitais precisavam se reinventar e encontrar novos padrões e experiências de uso. Os dispositivos computacionais ubíquos inauguram esta nova experiência de uso na qual o dispositivo tecnológico não é o centro da atenção humana na conexão com o virtual. Os ambientes de ubiquidade computacional são, portanto, ecossistemas

compostos

por

diversas

modalidades

de

dispositivos

computadorizados embebidos em objetos do cotidiano, muitos deles sendo invisíveis para o sujeito-humano. Com o embarcamento de processadores computacionais em objetos do cotidiano, a relação do homem com seus objetos e consigo mesmo é transformada. Os objetos, ou coisas, que outrora estavam ao nosso dispor para mera utilização passam a compor a rede de sujeitos providos de inteligência (mesmo que artificial), conscientes de seu contexto e atuantes na construção da teia de conexões e significados da camada informacional. As tecnologias digitais que, outrora demandavam uma manipulação direta com alta carga cognitiva, passam a estarem imersas no plano de fundo das ações do cotidiano, sendo muitas vezes nem percebidas pelo sujeito humano. A computação ubíqua muda também o paradigma de interfaces digitais uma vez que, primeiramente, é composta por dispositivos que não necessariamente tem suas interações baseadas em telas e representações visuais. Além disso, parte destes dispositivos não requererem sequer uma comunicação direta com o usuário final através de uma experiência de concentração frontal, mas sim comunicam-se  

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com outros dispositivos ao seu redor, demandando somente uma atenção periférica do usuário. A problemática que temos nessa experiência de uso porém, é que ela também inaugura a possibilidade do homem não ser mais o único agente inteligente, ou sujeito, que toma grande parte das decisões nos ambientes digitais uma vez que passa a delegar parte delas para os objetos inteligentes ao seu redor. O computador passa de máquina manipulada para sujeito ativo no processo de significação e comunicação em ambientes de ubiquidade computacional. Ao passo que os dispositivos tecnológicos começam a ser providos de características humanas, tais como a compreensão semântica de ações, comunicação e execução de tarefas cognitivas, a distinção entre homem e máquina vai ficando mais nebulosa. Este novo homem mensurável, programável e que constitui uma relação de simbiose com as tecnologias da informação tem sido chamado também de “ciborgue”, pós-orgânico ou pós-humano. Este homem retoma a teoria do sujeito pós-humano em oposição ao sujeito cartesiano que marca o pensamento moderno. Além das discussões éticas oriundas das fronteiras do orgânico e da máquina, o que esse tema também nos indica é que a tecnologia não pode ser distinguida do homem, pois ao mesmo tempo que ela é criada por ele, ela própria o constitui e o transforma. O homem contemporâneo é produto de seu desenvolvimento tecnológico se considerarmos os impactos socioculturais do fogo, da roda, da alfabetização, da escrita, da eletricidade, etc. O pensamento dos filósofos pósestruturalistas já propunha que o homem era artifício de sua historia e linguagem, portanto, era constituído artificialmente através de suas técnicas. Assim, as tecnologias são fruto de uma evolução cíclica entre as necessidades latentes de uma sociedade e os novos desejos oriundos da reconfiguração sociocultural de uma nova tecnologia. O sujeito pós-humano, portanto não se distingue de sua técnica, como no pensamento humanista. Este sujeito contemporâneo ocidental, porém, é capaz de se estarrecer frente à possibilidade do pós-humano, pois foi criado em uma cultura de temor da inovação tecnológica. O outro, o inexplicável, o monstro, a nova tecnologia – como valores simbólicos – geram uma relação ambígua de terror e fascinação. Enquanto, por um lado, o sujeito contemporâneo está em busca de experiências de conexão mais imersivas e naturais, reina também em seu imaginário a visão distópica e  

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dicotômica de homens lutando contra máquinas, autômatos e andróides, construída em sua mente por longos anos de exposição a obras culturais de ficção científica. Por isso, ao analisarmos as relações homem-tecnologia em ambientes de ubiquidade computacional precisamos ter em mente estas problemáticas que emergem da discussão do sujeito pós-humano. Isso se torna ainda mais importante ao

abordarmos a questão da computação vestível pois, mesmo que esta não

reconfigure a organicidade do homem, faz parte de uma categoria de tecnologias que codificam o corpo e alteram a relação deste com o ambiente ao seu redor. É preciso ter em mente as problemáticas do sujeito pós-humano e o imaginário coletivo dos ciborgues quando pensamos na aplicabilidade e experiência de uso desta nova modalidade de dispositivo tecnológico na sociedade contemporânea. Como resposta ao problema central deste trabalho, vemos que os dispositivos de computação vestíveis tem o potencial de expandir os sentidos e experiência do homem com o ciberespaço, reconfigurando os padrões e paradigmas de experiência de uso de dispositivos tecnológicos. Porém, ao mesmo tempo, podem

ser

extremamente

intrusivos

e

dispersantes.

Tudo

irá

depender,

primeiramente, dos projetos de uso aos quais estes dispositivos serão aplicados e, segundo, das reais aplicações para as quais os usuários irão utilizá-los. Vemos que, para o usuário comum, somente os atrativos das configurações tecnológicas dos dispositivos vestíveis não serão suficientes para garantir a adoção e utilização destas novas tecnologias. É preciso que estas apresentem uma utilização que efetivamente mude e facilite a vida dos usuários. Estes dispositivos devem inaugurar novas “formas de fazer”, trazendo novos significados e relevância para a vida do usuário comum. Para tanto, faz-se necessário a prática consistente de design de experiência de uso para projeto das aplicações destas tecnologias no cotidiano do usuário. Essa prática, porém, precisa passar por algumas mudanças de paradigmas a fim de se adaptar à esse novo modelo de relacionamento homem-computador. Dentre as mudanças estão: 1) Passar a projetar as experiências também para os sujeitos nãohumanos embebidos no ambiente, mudando a abordagem até então praticada centrada tão somente no usuário; 2) Considerar nos projetos outras formas de  

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interação que não baseadas na concentração frontal e representação visual, pensando em como otimizar e garantir uma boa comunicação entre os diversos sujeitos do ambiente; 3) Estabelecer um terreno comum no qual as relações entre os sujeitos humanos e não-humanos possam ser programadas e ajustadas, tendo papéis e responsabilidades claras e definidas entre eles. O computador vestível, como modalidade da computação ubíqua, tem a possibilidade de delimitar o espaço pessoal do indivíduo nos espaços de informação dos ambientes de ubiquidade computacional. Segundo os pesquisadores de computação vestível, suas premissas são que estes dispositivos sejam periféricos e complementares à ação que está sendo realizada expandindo as possibilidades do real ao invés de distraindo o usuário de suas ações, sejam constantes e não necessitem de rituais de acionamento, sejam pessoais e configuráveis pelo usuário. Os computadores vestíveis tem o potencial de serem aliados do homem em sua navegação pela complexidade da realidade aumentada pelo ciberespaço que os ambientes de ubiquidade computacional proporcionarão, servindo como controles remotos pessoais que possibilitam a programação da interação que o homem deseja ter com os outros sujeitos do ambiente. Além dos demais pontos levantados nos parágrafos anteriores, que se aplicam à computação ubíqua, percebemos que os projetos de experiência de uso para computadores vestíveis precisam prever, além de relevância, contextualização, discrição e respeito, uma preocupação especial para que estes dispositivos sejam belos, simples de usar, versáteis e agradáveis. Como itens de sua indumentária, estes dispositivos não podem ser apenas funcionais, mas também significativos.

 

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