Comunicação e Campo da Saúde

July 26, 2017 | Autor: Adriano Rodrigues | Categoria: Leitura Sintomática, Comunicação E Saúde, Experiência Moderna
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Palestra de abertura do ano letivo do mestrado em Comunicação e Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, em 25 de Março de 2015.
Apresentei mais demoradamente este processo em Rodrigues 2011.
Embora haja testemunhos da prática da dissecação de cadáveres já na Antiguidade, de um edito de Frederico II de 1240 obrigar a escola de Nápoles a introduzir em seu currículo o treinamento prático de anatomia, de, em 1316, ter sido publicado um manual sobre autópsia, foi a partir do Renascimento, sob a influência do pensamento dos humanistas, que os estudos anatómicos tiveram maior incremento e a Igreja acabou por tolerar a dissecação de cadáveres. Esta prática não esteve apenas associada à investigação e à formação médica. Artistas, como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e Rafael, praticaram com assiduidade a dissecação de cadáveres para o estudo da estrutura do corpo humano. O maior anatomista da época foi o médico flamengo André Vesalius (1514-1564), tendo publicado o resultado das suas descobertas, em 1543, em De Humani Corporis Fabrica. Entre continuadores de sua obra estão Gabriele Fallopio, célebre por seus estudos sobre os órgãos genitais, os tímpanos e os músculos dos olhos, e Fabrizio d'Acquapendente, a quem se ficou a dever a descrição das válvulas das veias e a construção, em Pádua, do Teatro Anatômico.

Recordemos que foi só no século XIX que se começou a implantar as redes de água canalizada e de esgotos. O sabão, apesar de ser conhecido desde a Antiguidade, era considerado um produto de luxo e só começou a ser produzido em larga escala no século XIX. O papel higiénico só começou a ser produzido em rolos, pela Scott Paper, em 1877. A indústria dos desodorizantes modernos só começou em 1907 e foi só nos anos 50 do século XX que apareceu a primeira escova de dentes plástica.
A COMUNICAÇÃO E O CAMPO DA SAÚDE

Adriano Duarte Rodrigues

Introdução
Quero agradecer aos colegas do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, pelo convite a proferir esta palestra de abertura do curso de mestrado em Comunicação e Saúde e de assim ter a oportunidade de conhecer o vosso trabalho e, deste modo, repensar questões que têm a ver com domínios fundamentais da nossa experiência.
As minhas reflexões acerca da relação da comunicação com o domínio da saúde partem do princípio de que esta relação não tem a ver apenas com uma visão muito comum da comunicação e que consiste em considerar a comunicação como um instrumento de promoção de campanhas sanitárias ou, em alternativa, como procura de soluções para resolver os problemas suscitados pela relação dos profissionais da saúde, em geral, e dos médicos, em particular, com os pacientes e a população. Acerca desta visão instrumental da comunicação um dos problemas mais abordados costuma ser o da relação ambivalente entre o discurso especializado do campo da saúde, por definição esotérico porque reservado aos membros acreditados do campo, com o discurso de vulgarização científica, de natureza exotérica, de que se alimentam os media, aberto ao público não especializado. O ponto de partida da minha reflexão é o de que as relações da comunicação com a saúde não têm propriamente a ver com esta isão instrumental, mas têm sobretudo a ver com a natureza da própria experiência da saúde.
A experiência da saúde
A relação da comunicação com a saúde é suscitada, antes de mais, porque da experiência da saúde só termos consciência quando a perdemos, quando ficamos doentes. Por outras palavras, da saúde só temos consciência negativa; é a essa consciência negativa da saúde damos o nome de doença. Era o que Gadamer afirmava:
A doença, esse fator de perturbação, torna presente, até ao limite da impertinência, a nossa corporeidade, essa corporeidade que quase passa desapercebida quando não experimenta uma perturbação. Surge aqui uma primazia sistemática da doença a respeito da saúde. (...) Mas o que é o bem-estar senão um ocupar-se de si mesmo, de modo a estar aberto e pronto para tudo? (Gadamer 1997: 76)

Podemos por isso dizer que a saúde consiste na nossa total disponibilidade para realizarmos as atividades em que nos envolvemos e que ocupam completamente a nossa consciência, que a ocupam de tal modo que não temos consciência de termos saúde. Não temos consciência do nosso organismo encarado como um todo ou de cada uma das suas partes quando funcionam normalmente. Só temos consciência que temos fígado, coração, rins quando estes órgãos deixam de funcionar ou quando o seu funcionamento se torna deficiente. Ter saúde é, por conseguinte, não termos consciência do nosso corpo, quer do organismo como um todo, quer de cada uma das suas partes ou dos seus órgãos. Como podemos comunicar então aquilo que não temos sequer consciência?
A saúde tem também a característica de depender do funcionamento equilibrado do corpo, da adequada conexão de todas as suas partes ou dos seus órgãos, o que tem como consequência a definição da doença como perda deste equilíbrio, quer por excesso quer por deficiência. Podemos distinguir, de acordo com este critério, as patologias provocadas pelo excesso de funcionamento dos órgãos, como, por exemplo, os distúrbios oncológicos ou o hipertiroidismo, das patologias provocadas pelo deficiente funcionamento dos órgãos, como, por exemplo, a diabetes.
Para fazer sentir esta noção de equilíbrio que caracteriza a saúde, Gadamer utilizou uma comparação que me parece elucidativa:
Todos sabem – e no meu caso é uma inesquecível recordação de infância – o que foi aprender a andar de bicicleta. É uma experiência surpreendente comprovar, assim que se aprende, que tudo é muito mais fácil do que no momento anterior, quando nos agarrávamos desesperadamente ao guiador. De repente, estabelece-se o equilíbrio e, então, tudo acontece por si – e quando, mais tarde, vemos os jovens deslocar-se a toda a velocidade em bicicleta, com os braços cruzados sobre o peito. Esta imagem serve para ilustrar o facto de que, evidentemente, a móvel escala do esforço e do alívio pertence ao normal do homem; e, por isso, considero que os valores médios têm um lado muito perigoso também na prática da medicina. Em todo o caso, é evidente que existe aqui uma ampla escala de variabilidade. A questão fundamental é a seguinte: qual é essa escala de variações, e que existe nela de contínuo e de ruptura? (Gadamer 1997: 150)

A noção de equilíbrio é, por conseguinte, fundamental para entender a experiência da saúde. Platão, no diálogo Fedro, atribui a Sócrates a comparação da medicina, a arte de curar, com a retórica, a arte de fazer discursos, fazendo notar que, tal como o bom médico é aquele que sabe encontrar a dose do remédio apropriada a cada caso, assim também o orador é aquele que sabe encontrar as palavras apropriadas a cada um dos interlocutores:
Sócrates: Parece, meu caro amigo, que Péricles foi, entre todos, o que mais se distinguiu na arte da retórica!
Fedro: E porquê?
Sócrates: Todas as artes importantes devem basear-se na pesquisa e na meditação da Natureza, pois é daí que parece advir-lhes essa natureza sublime de pensamento que nelas se encontra, a par da perfeição. Péricles assim procedeu, juntando aos seus dons naturais os dons acima referidos. Teve a grande felicidade de conhecer Anaxágoras um homem deste quilate, pois se dedicou à investigação da física, estudou a natureza do espírito e a carência do espírito e transplantou-as para a sua arte retórica, de que tirou grande proveito.
Fedro: Que pretendes dizer com isso?
Sócrates: Com a arte retórica passa-se mais ou menos o que se passa com a medicina.
Fedro: Então como?
Sócrates: Tanto em uma como em outra cumpre efetuar a análise de uma natureza: na primeira, a análise da natureza do corpo e, na segunda, a análise da natureza da alma. Tem de se levar isto em conta se, de acordo com a arte, e não só pela prática empírica e pela rotina, quiseres dar saúde e vigor a um e à outra, ministrando remédios e alimentos a um e infundir na outra as tuas convicções, de modo a torná-la virtuosa, mediante os discursos e a argumentação honesta. (Fedro 270, a-b)

A lição mais importante de Sócrates parece ser, por conseguinte, a da íntima relação entre a experiência da saúde e a experiência da linguagem ou, se preferirmos, entre o funcionamento do corpo e o funcionamento da alma. Creio que esta relação é particularmente importante para entendermos a natureza psicossomática da maioria das doenças.
Para entendermos melhor o que acabo de referir permitam que faça uma rápida digressão etimológica. O termo medicina vem do indo-europeu, de um étimo com a raiz md-. Desta raiz derivaram, nas línguas indo-europeias, duas modalidades de vocalização que deram origem aos étimos med e mod e que encontramos, nos termos portugueses, no primeiro caso, dos termos medida, médio, médico, medicina, medicamento, e, no segundo caso, nos termos modesto, módico, moderno. Emile Benveniste (1969: 123-132) assinala aquilo que estes termos têm em comum, fazendo salientar que todos os termos que derivam da raiz indo-europeia md- referem processos, ora de restabelecimento de uma situação perturbada ou desregrada, ora a paragem de processos excessivos, dos processos a que os Gregos dão o nome de hybris, e que são, por conseguinte, des-medidos, susceptíveis de atentar contra o equilíbrio, tanto no domínio da saúde, como nos domínios da justiça ou do governo. O médico é, por isso, o profissional que intervém no domínio da saúde, para frear o desregramento no funcionamento do organismo, tal como o juiz intervém no domínio da justiça para restabelecer o equilíbrio ou a ordem no funcionamento do corpo social ou como o político intervém para restabelecer o equilíbrio ou a ordem no funcionamento da violência. O saber médico não é, por isso, apenas uma ciência, mas uma techné, um saber prático de aplicação, uma sophrosyne, uma prudência ou um bom senso, tendo em vista intervir no restabelecimento da saúde, da ordem ou do equilíbrio no funcionamento do organismo, equilíbrio perturbado por um funcionamento desregrado ou desmedido de um ou de vários dos seus órgãos.
A este propósito gostaria de referir uma terceira característica da experiência da saúde: a sua natureza relativa. A deficiência do organismo ou de cada um dos seus órgãos é maior ou menor, sendo evidentemente a morte o seu limite ou o seu ponto de não retorno. Por isso, na sua sabedoria, o povo costuma dizer que enquanto há vida há esperança. O horizonte limite da vida é a falência última do organismo, o que confere à experiência da saúde uma relação especial com o enigma da vida, com a experiência da impossibilidade de uma experiência imanente da morte própria e, por esta via, com o domínio transcendente do religioso, da experiência limite que escapa a qualquer possibilidade de explicação racional. O saber disciplinar, de que se alimenta a legitimidade racional do campo da saúde, pode evidentemente explicar a morte a partir das causas fisiológicas que a provocam, mas não possui propriamente os recursos para explicar a relação dessas causas com a experiência da morte que delas derivam, pela simples razão de que a morte própria é impensável, uma vez que escapa a qualquer experiência humanamente possível. É por isso que, na sua sabedoria, o povo costuma dizer que nunca ninguém veio do outro mundo para nos dizer em que consiste a experiência da morte, apesar das inúmeras tentativas, até agora improváveis, de associar essa experiência às supostas reminiscências dos estados de coma.
A natureza ambivalente da comunicação do experiência da saúde e da doença
Esta impossibilidade de experienciar a situação limite do funcionamento do organismo, a morte, e a sua relação com o estado terminal estão, no entanto, já presente, de algum modo, na impossibilidade da experiência autêntica da doença e, por inerência, da consequente natureza problemática da sua comunicação. O odontólogo não experiencia a dor de dentes do paciente que, no entanto, espera do seu tratamento a terapêutica apropriada para o seu mal nem o paciente, apesar de por vezes experienciar a dor inerente à falência do funcionamento do organismo, tem a experiência clara da doença de que a dor é o sintoma. A experiência do sintoma não corresponde, por conseguinte, à experiência da doença que corresponde a esse sintoma.
Como estamos vendo, a comunicação do campo da saúde, apesar de ser um processo simbólico, de mobilizar todo o conjunto das convenções de vez que criadas e impostas pelo próprio campo da saúde, convenções de que depende a constituição da sua própria identidade, é também um processo sintomático.
Para assegurar o processo simbólico da sua manifestação, o campo da saúde mobiliza o seu corpo social acreditado, constituído pelo conjunto dos seus agentes acreditados pela aquisição de competências disciplinares específicas, organizados de acordo com um sistema estritamente hierarquizado, em função do lugar que cada um dos seus membros ocupa na pirâmide que tem no seu cume o valor da vida.
Mas a comunicação da experiência da saúde e da doença não é um processo simbólico, mas sintomático. O processo simbólico do campo da saúde consiste na interpretação de símbolos convencionais que assinalam a presença e o funcionamento do campo, ao passo que a comunicação da experiência da saúde é um processo que consiste na leitura ou na interpretação de sintomas, de indícios provocados por dispositivos orgânicos que dão a ver ou sugerem as diferentes modalidades de funcionamento do organismo e que exigem, tanto da dos membros do corpo acreditado do campo da saúde, como do próprio paciente, uma competência hermenêutica específica. O problema da relação da comunicação com o campo da saúde, antes de ser uma questão de mobilização dos media em torno de políticas públicas no domínio sanitário é, por isso, uma questão antropológica e hermenêutica que envolve processos de objetivação discursiva de experiências subjetivas.
A constituição do campo da saúde no quadro da modalidade moderna da experiência
Gostaria agora de abordar uma das questões centrais suscitada pela constituição do campo da saúde no quadro da experiência moderna, a questão da natureza ambivalente e problemática da relação do discurso do campo especializado da saúde com o discurso destinado a ambientes mediáticos é uma relação, também considerado muitas vezes como discurso de divulgação científica.
Para evitar possíveis equívocos permitam que comece por esclarecer que por experiência moderna não entendo de maneira nenhuma a experiência de uma época histórica, mas uma modalidade da experiência que podemos encontrar em níveis, graus e com características evidentemente diferentes, em qualquer sociedade de qualquer época. Por experiência moderna entendo a experiência que apela para uma modalidade específica de racionalidade e que tem a ver com a procura de explicações causais para os fenómenos a partir da descoberta das regras e das normas que regulam o seu funcionamento. É impensável imaginar que alguma vez tenham existidos seres humanos desprovidos desta modalidade de racionalidade; por mais que recuemos no tempo, sempre encontramos manifestações desta procura de explicações imanentes tanto para os fenómenos do mundo natural, como para os fenómenos da vida social e da experiência individual.
Uma das principais características da experiência moderna é a fragmentação dos diferentes domínios da experiência e a consequente constituição de cada um desses domínios em campos sociais dotados de autonomia, assim como a autonomização das suas dimensões éticas e estéticas em relação à sua dimensão ontológica. É neste quadro que o domínio da saúde, ao se autonomizar e se impor como campo específico, estabelece com o domínio da comunicação, relações constitutivas específicas, de natureza ambivalente, que são prévias e condicionam os problemas inerentes à natureza dialogal da relação dos profissionais da saúde com os pacientes e a população.
A constituição do campo da saúde
A fragmentação dos diferentes domínios da experiência e a sua autonomização sob a forma de campos sociais não ocorreu de maneira repentina, de um dia para o outro, como resultado de uma decisão deliberada, mas como processo que se foi desenrolando, ao longo da história, com avanços e recuos, de maneira nem sempre pacífica. Podemos considerar que as etapas marcantes deste processo correspondem aos movimentos de esclarecimento que envolveram importantes rupturas, de que destacaria os movimentos do neolítico e das antigas civilizações da antiga Babilónia, do Egito e da Grécia do século IV antes de Cristo. Mais perto de nós este processo teve como momentos mais marcantes, no século XII, o movimento de constituição das Universidades e, no século XVI, o movimento humanista do Renascimento, momento em se deu a aceleração do processo de autonomização do campo da saúde, como aliás aconteceu igualmente noutros domínios da experiência, nomeadamente nos domínios da defesa, da justiça, da economia, da política e da ciência.
Creio não estar enganado ao considerar, como uma das práticas mais importantes para o desencadeamento, a aceleração e a promoção do processo de autonomização do campo da saúde, a generalização que ocorreu na Europa, sobretudo a partir do século XVI, da prática da dissecação de cadáveres. Uma das principais razões da importância que a prática da dissecação de cadáveres teve para a autonomização do campo da saúde tem a ver com o fato de representar uma ruptura, por vezes violenta, para com explicações transcendentes para os fenómenos da saúde e da doença explicações transcendentes de que se alimenta o domínio da experiência tradicional. Esta ruptura manifestou-se, por um lado, simbolicamente na violação dos tabus da apalpação, da manipulação e da dissecação dos corpos e, por outro lado, no objetivo de encontrar explicações causais para os fenómenos fisiológicos, em alternativa às explicações transcendentes de apelo a um ordem divina e aos tabus que daí decorriam. Recordemos que, no domínio da higiene, este tabu demorou ainda mais tempo a ser ultrapassado, uma vez que foi só no século XIX que as pessoas começaram a tomar banho nuas e que o banho regular se tornaria prática habitual.
É importante sublinhar que esta ruptura para com as explicações transcendentes e estes objetivos racionais de encontrar explicações imanentes para os fenómenos fisiológicos estão diretamente associados ao processo de secularização do mundo da vida que caracteriza a experiência moderna. É um processo que apresenta dois aspetos complementares. É, por um lado, emancipação em relação ao domínio de legitimação religiosa das explicações nos diferentes domínios da experiência e, por outro lado, formação de novos mecanismos de legitimação dos discursos e dos comportamentos, fundamentados na observação empírica.
A criação, a imposição e a vigilância destes novos mecanismos depende da instituição de uma ordem específica de racionalidade, a ordem disciplinar. Esta ordem disciplinar corresponde, no domínio do saber, à formação das disciplinas científicas, em geral, e das disciplinas que integram o corpus disciplinar da medicina, em particular. Não admira, uma vez que é precisamente ao campo científico que a experiência moderna reserva a responsabilidade da instituição, da criação, da imposição e da vigilância desta ordem disciplinar e, em particular, de legitimação dos discursos e das práticas, isto é, das dimensões simbólica e pragmática do campo da medicina.
Ao reservar ao campo científico estas funções, a experiência moderna demarca-se da experiência tradicional, no quadro da qual é à sabedoria dos anciãos, à iniciação e à convivência entre mestres e aprendizes, no quadro das corporações profissionais, que compete a aquisição das competências para o exercício destas funções. É por isso que a aquisição do domínio da ordem disciplinar moderna é sancionada com o título de licença ou licenciatura, correspondente à autorização indispensável para o exercício da atividade de intervenção no domínio da saúde.
Para entendermos a força decorrente da imposição desta ordem disciplinar, reparemos que, a partir da autonomização do domínio da saúde como campo, qualquer intervenção neste domínio por um agente que não tenha sido acreditado pela habilitação apropriada e não tenha por isso obtido o diploma académico apropriado passa a ser alvo de sanções penais.
É muito importante recordar que a autonomização do domínio da saúde como campo consistiu na emancipação em relação ao domínio religioso, no quadro do processo de secularização do mundo da vida que caracteriza a experiência moderna, como aliás ocorreu no caso da autonomização dos outros domínios da experiência, em particular do domínio da justiça.
Entendemos melhor o processo de autonomização da experiência da saúde, que acabo de descrever nas suas linhas gerais, se tivermos presente que, no caso da experiência tradicional, todos os domínios da experiência estão entre si ligados pela sua inscrição na experiência do religioso, quer dizer numa ordem transcendente da qual recebem o princípio que serve de legitimação dos discurso e dos comportamentos, de explicação teórica dos fenómenos da saúde e de regras práticas que legitimam a intervenção clínica e a prática cirúrgica. É precisamente com esta inscrição no domínio religioso que a experiência moderna rompe, substituindo-a pela inscrição racional dos fenómenos observados, procurando para eles explicações causais, a partir da descoberta de regras ou, pelo menos, de regularidades que regulam o seu funcionamento.
Devo esclarecer que, ao falar de domínio da experiência religiosa, não me estou a referir a uma qualquer Igreja ou instituição religiosa particular, mas ao domínio das explicações transcendentes para os fenómenos naturais da vida e da morte, da saúde e da doença, para o funcionamento do organismo, explicações que ligam no mesmo processo, de maneira holística, todos os domínios da experiência. Tomo, por conseguinte, o termo religioso no seu sentido etimológico, como aquilo que religa entre si todas os domínios e todas as dimensões da experiência. Por exemplo, seguir as indicações do horóscopo decorre de uma visão religiosa, porque a averiguação das razões explicativas não decorrem da compreensão das regras que regulam os comportamentos, mas de princípios que os transcendem. De igual modo, dizer a uma criança que não é bonito portar-se mal releva de uma dimensão religiosa, porque confunde a dimensão ética e a dimensão estética, segundo a qual o que é bom é bonito e o que é mau é feio. Como estamos a ver, no quadro da experiência tradicional não existe nem autonomia nem do domínio da comunicação nem do domínio da saúde, assim como das dimensões ontológica, ética e estética dos discursos e dos comportamentos.
No quadro da experiência tradicional não se coloca, por conseguinte, a questão da relação entre a comunicação e a saúde. São domínios que estão entre si estreitamente imbricados e que são explicados a partir de princípios transcendentes indiscutíveis porque herdados da tradição, da transmissão de uma Palavra que não é deste mundo e que apenas temos que aceitar como princípio delimitador daquilo que é possível dizer e dos comportamentos que é possível adotar.
O campo da saúde, como os outros campos sociais, continua evidentemente ainda hoje a guardar, na sua estrutura e no seu modo de funcionamento, marcas indeléveis, tanto desta origem religiosa como do processo de ruptura para com esta origem. Daí a natureza ambivalente da relação que o campo da saúde estabelece com o domínio religioso e com a experiência do mundo da vida. A sua estrutura hierárquica, a natureza reservada ou esotérica da sua simbólica, os seus rituais de funcionamento, a delimitação de espaços reservados próprios, os resquícios do pensamento mágico, próprio da experiência tradicional, como podemos observar ainda na sobrevivência dos fenómenos do efeito placebo (Ipstein 2010), a relação ambivalente com a sobrevivência das medicinas tradicionais e homeopáticas, o retorno regular das perspectivas sistémicas e holísticas de encarar a saúde e a doença são algumas das mais notáveis marcas desta sua relação ambivalente com o domínio do religioso. De fato, a atual valorização das medicinas alternativas, homeopáticas, da sabedoria secular não são mais do que manifestações da sobrevivência incontornável da experiência tradicional no nosso mundo da vida.
Não tenho tempo para abordar em pormenor todas as marcas da ambivalência da relação do campo da saúde com o domínio religioso. Vou, por isso, referir brevemente apenas algumas destas marcas. Começo por sublinhar a natureza formal da distinção das marcas simbólicas e dos espaços reservados do campo da saúde. Quando entramos num hospital, podemos facilmente identificar os diferentes agentes do campo, observando a diferenciação do vestuário, dos discursos e dos comportamentos. A bata branca e o porte do estetoscópio dos/das médicos/as contrastam com a bata azul dos/das enfermeiros/as. A natureza esotérica da escrita das prescrições, da chamada "letra de médico", contrasta com as formas de escrita das outras formas de discurso. A disposição e a sinalética do espaço do hospital é marcada por toda uma simbólica que o distingue dos outros espaços, tal como a disposição do tribunal, reservado ao funcionamento do campo da justiça, se diferencia dos outros espaços ou a disposição dos espaços de culto diferencia o espaço reservado do campo religioso e o distingue dos outros espaços.
Como vemos, ao autonomizar-se, o campo da saúde produz todo um conjunto de marcas simbólicas que o identificam, o diferenciam, o sacralizam e o impõem ao respeito dos não fazem parte do seu corpo acreditado. O processo da sua apropriação exclusiva por parte do seu corpo acreditado é feita ao longo do processo de aquisição das competências disciplinares próprias do campo.
A natureza ambivalente da comunicação do experiência da saúde e da doença
A impossibilidade de experienciar a situação limite do funcionamento do organismo, a morte, com o estado terminal está já presente, de algum modo, na impossibilidade da experiência autêntica da doença e, por inerência, da consequente impossibilidade da sua comunicação. O odontólogo não experiencia a dor de dentes do paciente que, no entanto, espera do seu tratamento a terapêutica apropriada para o seu mal nem o paciente, apesar de por vezes experienciar a dor inerente à falência do funcionamento do organismo, tem a experiência clara da doença de que a dor é o sintoma. A experiência do sintoma não corresponde, por conseguinte, à experiência da doença que corresponde a esse sintoma.
Como estamos vendo, a comunicação do campo da saúde é, antes de mais, um processo simbólico, uma vez que mobiliza convenções criadas pelo próprio campo da saúde para constituir a sua identidade, para afirmar, para impor e para vigiar o respeito pela sua ordem de valores e, no caso de essa ordem ser violada ou perturbada, sancionar essa violação ou essa perturbação, tendo em vista o seu restabelecimento. Para assegurar este processo simbólico o campo da saúde mobiliza o seu corpo social acreditado, constituído pelo conjunto dos seus agentes acreditados pela aquisição de competências disciplinares específicas, organizados de acordo com um sistema estritamente hierarquizado, em função do lugar que cada um dos seus membros ocupa na pirâmide que tem no seu cume o valor da vida.
Mas, ao contrário da comunicação do campo da saúde, a comunicação da experiência da saúde e da doença não é um processo simbólico mas sintomático. O processo simbólico do campo da saúde consiste na interpretação de símbolos convencionais que assinalam a presença e o funcionamento do campo, ao passo que a comunicação da experiência da saúde é um processo que consiste na leitura ou na interpretação de sintomas, de indícios provocados por dispositivos orgânicos que dão a ver ou sugerem as diferentes modalidades de funcionamento do organismo e que exigem, tanto da dos membros do corpo acreditado do campo da saúde, como do próprio paciente, uma competência hermenêutica específica. O problema da relação da comunicação com o campo da saúde, antes de ser uma questão de mobilização dos media em torno de políticas públicas no domínio sanitário é, por isso, uma questão antropológica e hermenêutica que envolve processos de objetivação discursiva de experiências subjetivas. É com esta questão que gostaria de terminar esta minha intervenção.
Os processos de objetivação discursiva da experiência da saúde: dimensões discursiva e técnica do campo da saúde
A constituição campo da saúde, além de decorrer, como vimos, de um processo de autonomização da experiência da saúde e da doença em relação ao domínio religioso, apresenta uma outra característica notável, o de autonomizar a sua natureza discursiva em relação à natureza técnica ou midiática da experiência da saúde. Ao contrário da experiência tradicional da saúde, de que o feiticeiro é o agente privilegiado e que associa entre si o efeito terapêutico à enunciação de determinadas fórmulas, a experiência moderna da experiência da saúde, tal como a que é instituída, no quadro da experiência moderna, pelo campo da saúde, dissocia a atividade discursiva da intervenção técnica. Embora a aquisição da disciplina que acredita o médico a intervir no domínio da saúde seja de natureza discursiva, a intervenção do médico não é discursiva, mas técnica, uma vez que consiste na utilização de dispositivos técnicos ou midiáticos. Esta autonomia das dimensões discursiva em relação à dimensão técnica não é, no entanto, absoluta, uma vez que, para as manifestações psicossomáticas da doença, as diferentes modalidades de psicoterapia continuam a utilizar os dispositivos da linguagem como dispositivos terapêuticos.
Permitam que conclua chamando a atenção para a natureza ambivalente do campo da saúde com a comunicação em geral e com os dispositivos midiáticos em particular. O próprio campo da saúde, devido à sua natureza técnica, mobiliza dispositivos midiáticos protésicos, destinados a substituir órgãos, e ortésicos, destinados a compensar o seu funcionamento deficiente, ao passo que a comunicação mobiliza dispositivos midiáticos da linguagem, discursos destinados tornar inteligíveis por todos os recursos disciplinares especializados do campo da saúde. A relação entre o campo da saúde e a comunicação é, por conseguinte, tensa e será sempre inevitavelmente problemática. Exige, tanto da parte dos agentes da comunicação como dos membros do corpo acreditado do campo da saúde um esforço de compreensão antropológica da experiência da saúde e da doença, da vida e da morte.




Referências:
Benveniste, E. (964) – Vocabulaire des Institutions Indo-européennes. Vol. 2. Pouvoir, Droit, Religion, Paris, Minuit.
Gadamer, H.-G. ( 1997) – O Mistério da Saúde, Lisboa, Ed. 70. (original: Uber die Verborgenheit der Gesundheit – Aufsatze und Vortrage, 1993).
Ipstein, I. (2010) – A Comunicação da Saúde e o "Efeito Placebo", in Comunicação e Saúde, in Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, 2010 (1), páginas 22-28.
Mauss, M. (1995) – Sociologie et Anthropologie, Quadrige, Paris, PUF (original: 1950).
Platão (1981) – Fedro, Lisboa, Guimarães Editores.
Rodrigues, A. D. (2011) – O Paradigma comunicacional. História e Teorias, Lisboa, ed. da Fundação Calouste Gulbenkian.






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