Comunicação e participação nos jogos digitais

June 3, 2017 | Autor: F. Garcia de Carv... | Categoria: Digital Games, Social and Cultural Participation, Game Studies
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Comunicação e participação nos jogos digitais Communication and participation in digital games M a rcelo Sim ão

de

F l áv i a G a r c i a

Va s c o n c e l l o s 1

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C a r va l h o 2

Resumo: As novas mídias trouxeram efeitos marcantes sobre a sociedade e sobre o campo da Comunicação, exigindo adequação de teorias e métodos. Jogos digitais talvez sejam os que mais carecem de métodos de análise. Nosso objetivo é discutir como determinadas peculiaridades dos jogos digitais afetam a produção dos sentidos dos jogadores. Jogos são compostos por elementos representacionais (conteúdo ficcional) e procedimentais (regras) e estudiosos sugerem que a Participação é sua característica essencial, dado a instância ativa do jogador. Participação ocorre em três domínios: Interpretação (apreensão da experiência), Reconfiguração (manipulação do jogo) e Construção (acréscimo ou alteração de elementos estruturantes do jogo), podendo assumir um caráter hegemônico, oposicional ou negociado na produção dos sentidos. Este conceito fundamentou um método de análise aplicado aqui em um evento coletivo ocorrido em um jogo online. Atos dos jogadores foram caracterizados e analisados segundo os três domínios da Participação nos jogos digitais, tornando possível identificar a produção dos sentidos e diferentes formas de uso da mídia. Concluímos propondo um grupo de diretrizes para orientar a análise da Comunicação nos jogos digitais.

Palavras-Chave: Jogos digitais. Produção dos sentidos. Participação. Métodos. Abstract: New media have brought remarkable effects on society and on the field of Communication, requiring adaptation of theories and methods. Digital games are perhaps those most in need of analytical methods. Our aim is to discuss how certain characteristics of digital games affect the production of the senses by the players. Games consist of representational (fictional content) and procedural elements (rules) and scholars suggest that Participation is their essential characteristic, given the active instance of the player. Participation takes place in three domains: Interpretation (apprehension of experience), Reconfiguration (game manipulation) and Construction (addition or alteration of structural elements of the game), and may take a hegemonic, oppositional or negotiated aspect in the production of the senses. This concept grounded a method of analysis applied over a collective event occurred in an online game. Acts of the players were characterized and analyzed according to the three domains of participation in digital games, making it possible to identify the production of meanings and different forms of media use. We conclude by proposing a set of guidelines to guide the analysis of communication in digital games.

Keywords: Digital games. Production of meaning. Participation. Methods. 1.  Doutor em Ciências, Fundação Oswaldo Cruz, [email protected]. 2.  Mestranda em Ciências, Fundação Oswaldo Cruz, [email protected].

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INTRODUÇÃO Novas Mídias S NOVAS mídias digitais trouxeram efeitos marcantes sobre a sociedade e sobre

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o campo da Comunicação, exigindo a criação, transformação e refinamento de teorias e métodos capazes de se adequarem ao novo cenário. Houve um esforço interdisciplinar para compreender os novos meios que frutificou na evolução de metodologias de análise anteriores e na criação de novas modalidades. Dentre os integrantes do grupo das novas mídias, talvez sejam os jogos digitais os que ainda mais careçam de métodos de análise. Apesar de já em 2007 a indústria de jogos ter ultrapassado a cinematográfica em termos de faturamento (“GROWTH... ,” 2008) e de em 2011 o Brasil já contar com 35 milhões de jogadores registrados (“GAP CLOSING... ,” 2011), há uma desproporcionalidade, com ainda pouca pesquisa realizada sobre jogos digitais em comparação com sua presença disseminada na sociedade e na cultura (BOGOST, 2007). Parte desta carência talvez possa ser explicada pela sua história ainda recente de quatro décadas e pela demora da academia em passar a considerar jogos digitais um objeto de estudo, retirando-os da classificação simplista de produtos para crianças sem maior relevância cultural. Uma outra razão complementar, entretanto, é o fato de os jogos digitais serem constituídos por uma multiplicidade de elementos de outras mídias, como texto, áudio, imagens, animação e vídeo. Juul (2011) classifica jogos como objetos “meio-reais”, compostos de uma parte representacional fictícia (a história, os cenários, os personagens, etc.) e outra que é real e deve ser seguida a risca (as regras que determinam o desenrolar do jogo). Nos jogos digitais estas regras são codificadas em procedimentos, tornando-os objetos dinâmicos que respondem aos atos do jogador (BOGOST, 2007) e esta estrutura multifacetada acaba por gerar uma complexidade significativa tanto para sua construção quanto para sua análise acadêmica. Não obstante, sua relevância enquanto espaço de comunicação nos leva a buscar meios de análise mais adequados à sua natureza. Este trabalho objetiva contribuir com esforços para análise desta mídia, levando em conta sua característica procedimental como parte integral do processo comunicativo que se entrelaça à participação do jogador, que interpreta, reconfigura e constrói novos sentidos a partir do que lhe é apresentado pela execução do jogo digital. Iniciamos discutindo a procedimentalidade nos jogos digitais e a teoria correspondente, a retórica procedimental. Apontaremos também as limitações desta para uma compreensão do potencial comunicacional da mídia, sugerindo o conceito de Participação como característica essencial dos jogos digitais. Conduziremos então uma análise de dois eventos marcantes ocorridos em diferentes jogos digitais que possibilitará identificar diferentes formas de uso da mídia, sugerindo novas compreensões sobre os jogos digitais e a cultura que os rodeia. Por fim, concluiremos com um grupo de diretrizes para orientar a análise da Participação nos jogos digitais.

JOGOS DIGITAIS Procedimentalidade Jogos digitais são popularmente classificados como interativos, mas este termo é considerado por muitos estudiosos como problemático, devido à multiplicidade de

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sentidos que adquiriu ao longo dos anos. Muitos consideram os termos interativo e interatividade como parte de uma retórica de mercado objetivando representar os novos produtos eletrônicos como inovações revolucionárias. Seriam assim, termos irremediavelmente ideológicos e inviáveis para uso teórico (AARSETH, 1997). Na verdade a interatividade é consequência de uma característica ainda mais elementar dos sistemas informatizados que é a procedimentalidade. Segundo Murray (2003), programas de computador podem ser classificados como procedimentais por serem compostos de regras executáveis pela máquina. Jogos digitais são um caso particular dos programas de computador, sendo que o fato de permitirem a participação do jogador tornam sua procedimentalidade ainda mais evidente, mesclando-a com as ações executadas pelo jogador. Estas ideias fundamentaram a retórica procedimental, a primeira teoria sobre produção de sentido surgida no campo dos Game Studies, proposta por Ian Bogost. Segundo ele, embora possam conter texto, imagens e outras mídias, a forma primordial de os jogos digitais se expressarem e produzirem sentido é por meio de suas regras, codificadas nos procedimentos executados pelo computador. E é na interação com as regras (isto é, jogando o jogo), que o jogador produz sentido a partir de um jogo digital, o que leva Bogost a afirmar que o sentido de um jogo está contido nas suas regras (BOGOST, 2007). Embora a retórica procedimental tenha uma grande importância para o campo dos Game Studies, ela apresenta limitações. Assumir as regras do jogo como únicas responsáveis pelo sentido do mesmo desconsidera o papel do jogador e sua relação dialógica com o jogo, tornando o criador do jogo (o game designer) o emissor absoluto neste processo comunicativo e o jogador um receptor responsável apenas por cumprir os passos previamente determinados (FERRARI, 2010). As ações criativas do jogador, a maneira como este media os conteúdos representados no jogo, as formas como trabalha e reformula tal conteúdo, expressando-o em outras áreas de sua vida também não são tratadas pela retórica procedimental (SICART, 2012). Em última instância, tal ênfase em um suposto sentido absoluto determinado apenas pelas regras do jogo também revela uma visão transferencial do processo comunicativo, similar àquela proposta na teoria matemática da comunicação de Shannon e Weaver (1949), o que aprisionaria os jogos digitais a uma visão reducionista da comunicação (VASCONCELLOS, 2013).

Participação Como forma de contornar estas limitações e complementar a retórica procedimental, diversos estudiosos propõem o conceito de Participação como a característica essencial dos jogos digitais, uma vez que neles o jogador, por definição, toma parte ativa e é capaz de influenciar o curso da partida ou mesmo dos eventos da história contida no jogo, diferente, por exemplo, de uma audiência que assiste a um filme de forma “passiva”. Assim, é na relação e ação do jogador sobre o jogo (composto tanto pelos seus aspectos representacionais quanto procedimentais) que o sentido se produz (RAESSENS, 2005). O conceito de participação é um discurso complexo, englobando uma retórica que advoga o progresso social a partir de avanços tecnológicos, uma crítica cultural em busca de reconfiguração das relações de poder, artefatos tecnológicos e seus efeitos na apropriação do usuário e nas dinâmicas sócio-políticas que resultam destes eventos. É,

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portanto, uma inter-relação entre três diferentes domínios: o domínio discursivo (popular, acadêmico, burocrático, legal, etc.), o domínio tecnológico e o domínio do público e do uso social (significando aquilo que os usuários de fato fazem com novas tecnologias). Em seu aspecto mais geral, participação pode ser entendida como um conceito para descrever cidadãos, consumidores, trabalhadores e funcionários públicos exercendo influência nos processos de organização política, consumo e produção (SCHÄFER, 2008). Na área da mídia, participação seria a capacidade do público de contribuir e influenciar o aparato de produção midiática. No que tange aos jogos digitais, a participação se manifesta primariamente nos atos singulares do jogador dentro jogo, os quais acabam por compor uma experiência individualizada que redunda em uma apreensão ativa da mídia. Tal participação guarda pontos em comum com o conceito mais amplo de participação social e da mesma forma envolve colaboração, disputas e conflitos que no contexto dos jogos ocorrem entre os jogadores, as regras do jogo e os criadores que as formularam e as fazem cumprir.

Domínios da participação Segundo Raessens (2005), os jogos digitais se caracterizam como uma cultura mediática participatória, o que implica dizer que eles facilitam ou promovem a participação do público. Tal participação do jogador ocorre em três domínios que, embora divididos para melhor compreensão, tendem a ocorrer de forma entrelaçada: Interpretação, Reconfiguração e Construção. Interpretação se refere à forma como o usuário, no caso o jogador, apreende a mídia dos jogos digitais. Ela guarda semelhança com a interpretação que ocorre em outras mídias, como televisão e cinema e, à semelhança delas, seu consumo é interpretativo e situado socialmente (RAESSENS, 2005). Neste processo podem ocorrer as três estratégias de leitura descritas por Hall (2005): leitura dominante ou hegemônica, a oposicional e a negociada. Respectivamente, estas estratégias descrevem formas de se ler um texto de acordo com a ideologia dominante, de lê-lo opondo-se a esta ideologia e negociando com a mesma em variados graus de adaptação. Reconfiguração se refere tanto à liberdade do jogador tem de explorar um jogo, escolhendo diferentes pontos de vista e atualizando o cenário, quanto à manipulação de elementos de jogo visando buscar alterações no sistema. Tal manipulação se dá segundo as regras previamente programadas pelos criadores do jogo digital, mas não obstante representam um espaço com potencial criativo para o jogador (RAESSENS, 2005). Talvez este seja o modo de participação mais típico dos jogos digitais. Construção é o acréscimo, pelos jogadores, de novos elementos ao jogo, originando uma experiência diferente ou mesmo um jogo completamente novo a partir do jogo original. Ela pode envolver alteração de elementos narrativos ou regras de um jogo, acréscimo de novos elementos, interfaces, sistemas ou funções e até o reaproveitamento de jogos digitais para outros fins além do entretenimento (RAESSENS, 2005). Embora Raessens só trate da Construção na forma de reprogramação de parte do código interno que compõe o jogo digital, é possível considerar que a mesma também possa ocorrer de outras maneiras, quando o jogador promove acréscimos e alterações ao jogo durante seu uso (desenvolvendo atividades diferentes das previstas pelos game designers) ou

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mesmo quando fora dele, em outros ambientes (criando produções culturais inspiradas no universo do jogo digital e compartilhando-as na internet, por exemplo) (VASCONCELLOS, 2013). Na seção da análise, demonstraremos com mais detalhes este nível de participação com exemplos concretos. Outra ressalva é que embora as estratégias de leitura (hegemônica, oposicional e negociada) sejam aplicadas por Raessens (2005) apenas ao domínio da Interpretação, queremos adiantar que elas também podem operar na Reconfiguração e Construção, conforme será visto mais à frente, quando procedermos à análise dos eventos ocorridos em jogos digitais.

METODOLOGIA Participação em Jogos Digitais Para tal análise, selecionamos uma sequência de eventos ocorrida em um jogo digital coletivo que ilustra os complexos processos de participação dos jogadores e como os sentidos são construídos de uma forma dinâmica e individualizada, muitas vezes à revelia das intenções originais dos criadores do jogo em questão. A análise se baseou em uma descrição detalhada realizada através de observação participante, que é parte de uma tese de doutorado no campo dos Game Studies. Tal análise fundamentou-se no conceito de Participação previamente detalhado, procurando determinar o domínio de participação mais marcante em cada evento e a estratégia de apreensão dos jogadores envolvidos. Estes achados foram considerados à luz da esfera representacional e procedimental do jogo propostas por Juul, a saber, a história ficcional que é apresentada ao jogador e as regras que estruturam o jogo. A seguir, apresentamos os eventos analisados junto à análise de cada um.

EVENTOS E ANÁLISE A Caravana em World of Warcraft Os eventos descritos ocorreram no MMORPG World of Warcraft. Massively Multiplayer Online Roleplaying Games (MMORPGs), às vezes chamados no Brasil de jogos massivos on-line, são jogos onde um grande número de jogadores toma parte em um mundo virtual de fantasia, agindo coletivamente por meio de avatares ficcionais que atuam em profissões como guerreiro, mago, sacerdote e assim por diante. Os personagens deste mundo ficcional são divididos em duas facções, a Aliança e a Horda, que estão em batalha constante, sendo que os jogadores podem alternar entre combater os personagens controlados por jogadores da facção rival ou apenas os monstros controlados pelo sistema do jogo. À medida que ganha experiência nestes combates, o personagem do jogador se torna mais poderoso, sendo este um dos objetivos do jogo (BLIZZARD, 2011). Em sua tese de doutorado, Marinka Copier (2007) descreve através da observação participante as aventuras de um grupo de jogadores especializados em realizar roleplaying dentro do jogo World of Warcraft. Roleplay é uma forma específica de se jogar MMORPGs. Enquanto a maioria dos jogadores controla seu avatar para vencer os desafios propostos pelo jogo, os que fazem roleplay também tentam interpretá-los como em uma improvisação teatral. Isso implica no jogador personificar o personagem ficcional usando

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um vocabulário mas rebuscado na sua comunicação com outros jogadores, reproduzindo maneirismos e até mesmo escrevendo detalhadas biografias do seu personagem. Copier acompanhou uma caravana organizada por membros do seu grupo de jogadores que partiria de uma metrópole no mundo ficcional passando por uma região erma e repleta de perigos. Cenas desta atividade seriam registradas por participantes e depois relatadas em uma espécie de jornal editado por eles e divulgado em um site do grupo. Copier descreve em detalhes os preparativos para a caravana, tanto os encenados no mundo virtual (organização de posições, coleta de suprimentos), quanto no mundo físico (combinação de horários com os vários jogadores, estabelecimento das “cenas” que seriam interpretadas, etc.), detalhando os múltiplos fluxos de comunicação entre os diversos participantes (COPIER, 2007). Os jogadores pesquisados por ela fazem extenso uso de um fórum sobre o jogo onde na véspera da viagem o líder do grupo publica os detalhes da caravana e a rota que seguiriam. Neste fórum, um outro jogador, que interpreta um personagem da Horda, a facção rival, sugere que seria um evento mais interessante se um grupo da Horda atacasse a caravana. O diálogo transcrito por Copier detalha o cuidado do jogador da Horda em obter a permissão do organizador da caravana para o ataque, frisando que não deseja estragar a diversão de ninguém. Com a anuência do líder da caravana, fica combinado o ataque. No dia marcado, os jogadores fazem um longo caminho, sempre encenando seus personagens e em determinado momento o ataque anunciado acontece. O confronto é uma mistura de interpretação, repleta de falas heroicas dos jogadores, combate realizado conforme as regras do jogo, com líderes organizando taticamente seus comandados e comentários no sistema de chat que existe no jogo, onde jogadores expressam suas impressões sobre o que está ocorrendo. Embora vitoriosos, muitos membros da caravana tombam no ataque. É importante destacar que em World of Warcraft não há “morte” permanente (apelidada em jogos digitais de permadeath). Um personagem “morto” em combate pode ser ressuscitado por outro personagem (normalmente um sacerdote) ou em último caso, ressurge como um fantasma no cemitério mais próximo, bastando que se dirija até onde seu “corpo” está caído para “ressuscitar”. Dessa forma, os jogadores interpretavam estas mortes no ataque à caravana como se os personagens estivessem momentaneamente desacordados. A exceção foi um deles que decidiu que sua caçadora, Evangeline, de fato “morreria” permanentemente no ataque, ou seja, seria retirada do jogo. O jogador avisou ao grupo pelo chat que Evangeline tinha sofrido “ferimentos fatais” e não teria salvação. Os demais jogadores, entendendo sua intenção, se alternaram para falar algumas palavras em homenagem à personagem morta, em um funeral improvisado e prosseguiram sua caravana, deixando o corpo caído de Evangeline para trás. Após o evento, o jogador apagou a personagem do jogo permanentemente.

Análise dos eventos A partir do que foi discutido sobre os domínios de participação, podemos caracterizar todo o evento do planejamento da caravana até seu desfecho como um exemplo de

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Construção dos jogadores. Embora nenhum deles esteja adicionando nada à programação do código do jogo, o fato que seu esforço coletivo de roleplaying adiciona algo a World of Warcraft que não é de autoria dos game designers, mas que muda a experiência para eles. É como se sobre o jogo digital criado pelos game designers, os jogadores descritos por Copier acrescentassem uma nova camada para produção de sentidos. O esforço de todo o grupo para a construção do evento, incluindo a concordância em sofrer um ataque inimigo, sublinha o caráter coletivo que estas construções tendem a assumir. Uma outra instância de Construção é o registro da caravana que os membros estão fazendo da caminhada, que mais tarde se tornou uma página do site do grupo e parte integrante de sua história. Neste caso há também uma adição ao jogo digital por parte dos jogadores, mas esta se materializa em conteúdos criados e disseminados em ambientes externos ao jogo como sites, wikis, vídeos no Youtube e redes sociais. Desta forma tanto no evento planejado e executado quanto nos seus registros existe um acréscimo ao mundo virtual, a Construção pelos jogadores de uma história particular que se fundamenta (e algumas vezes sobrepõe) a história original de World of Warcraft conforme imagina pelos game designers. Sob o aspecto representacional, um ataque da Horda a uma caravana da Aliança se adequa perfeitamente à premissa e à ficção que embasa o jogo, constituindo portanto um exemplo de Construção sob uma leitura hegêmonica. Do mesmo modo, a “morte” definitiva da personagem adiciona um elemento trágico e heroico ao combate contra o grupo da Horda. A crônica do ataque à caravana passa a fazer parte da história do grupo sendo recontada em diversas instâncias através da narrativa dos participantes e do registro visual das cenas de batalha. Contudo, na esfera das regras a relação entre comunicação, participação e estratégias de leitura é bem mais complexa e podemos analisar novamente o evento desde seu início, agora tendo as regras do jogo como enfoque. Em primeiro lugar, a própria existência da caravana não traz nenhum benefício aos jogadores em termos de jogo. Não há nenhum avanço, objetivo ou vantagem em encená-la, os jogadores nada conquistam em termos de recompensa e, mal comparando, seria como um jogo de futebol onde um time apenas tocasse a bola sem tentar chutar para o gol. Este evento não aproxima os jogadores dos objetivos últimos do jogo e, neste sentido, viola uma convenção básica de jogos digitais e não digitais, que é a busca dos participantes pela vitória. Este é um exemplo de uma construção oposicional, ou seja, os jogadores acrescentam suas próprias regras particulares que superpõem as regras oficiais do jogo a fim de organizar um evento, conscientemente ignorando o objetivo maior do jogo que é avançar o poder de seus personagens. Similarmente, o ataque programado também viola a proposta das regras e também da ficção de World of Warcraft, que é a existência de duas facções em guerra constante. Inimigos não trocam informações sobre seus planos nem avisam de ataques iminentes e jogadores que se pautassem estritamente pelas regras do jogo jamais iriam conscientemente caminhar para uma emboscada. Aqui também há ainda uma desconsideração de uma das premissas que fundamenta as regras do jogo, embora esta combinação seja para organizar um ataque à caravana, portanto adequado ao aspecto ficcional do jogo.

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Desta forma, é possível entender isso como uma leitura negociada: os jogadores de ambas as facções combinam previamente fora do jogo um “ataque surpresa” (portanto indo além das regras), mas tal ataque, enquanto evento ficcional está perfeitamente integrado a World of Warcraft. Por fim, o elemento mais subversivo em termos de jogo é a decisão de um dos jogadores de deixar sua personagem “morrer” de fato, retirando-a do jogo. Em World of Warcraft é permitido a cada jogador ter vários personagens (embora só possa controlar um de cada vez) e não é incomum jogadores deletarem personagens que já não consideram interessantes para dedicar seu tempo a outros. Entretanto, estas escolhas tendem a ocorrer em um nível operacional fora do contexto do jogo. Muitos jogadores que fazem roleplay, entretanto preferem integrar a retirada de seu personagem do jogo a uma cena de morte heroica, criando um sentido maior para o que seria um ato corriqueiro em termos de administração do jogo. Embora existam jogos com permadeath, isto é, onde a morte implica na necessidade de se criar um novo personagem do zero, a opção dos game designers de World of Warcraft foi não penalizar os jogadores que por acaso não se saíssem bem em combates, de certa forma tornando a “morte” no jogo um evento corriqueiro. Desta forma, a morte definitiva de Evangeline sai da norma e se classifica como um ato de Construção e, se pelo aspecto representacional este ato assume uma perspectiva hegemônica, coadunando-se perfeitamente com uma batalha sangrenta, o fato de o jogador abdicar de retornar à vida com a personagem é oposicional em extremo aos fundamentos do jogo em questão. Uma evidência do quão marcante é este ato é a sequência de diálogos no fórum usado pelos jogadores, narrada por Copier. Por um lado, o jogador de Evangeline se mostra realizado com o fim nobre de sua personagem. Por outro, entretanto, os jogadores da Horda reclamam da sua atitude, sentindo-se como “assassinos” de Evangeline. Alguns acusam o jogador de usar a morte da personagem como forma de impingir à Horda a pecha de matadores. Já os integrantes da caravana acreditam que o ato foi uma forma poderosa de mostrar a todos a consequência dos atos dos seus personagens no jogo (COPIER, 2007). É possível ver como o ato de Construção conjunta dos jogadores não se limita aos eventos ocorridos no jogo, mas transborda para outros suportes e até para o mundo real nas conversas e encontros de jogadores. Diferentes jogadores envolvidos vão construir diferentes sentidos a partir de seus pontos de vista, muitas vezes entrando em conflito quanto à “correta” interpretação dos eventos. O que é relevante ressaltar é que se em World of Warcraft não houvesse a regra de permitir a ressurreição dos personagens, este debate não existiria. A morte de Evangeline seria um evento lamentado por seus companheiros, mas dentro do esperado. O jogador de Evangeline no entanto, criou sua própria versão de permadeath e a sobrepôs às regras originais de World of Warcraft, criando uma experiência nova para si e para seus companheiros e adversários. É esta regra do jogo que muda o caráter do evento, o que põe em evidência a necessidade de se avaliar a participação dos jogadores tanto no nível representacional quanto no procedimental.

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CONCLUSÕES Os jogos digitais, além de toda a riqueza de modos de representação que integram, apresentam dois complicadores para a pesquisa: seu aspecto procedimental, muitas vezes pouco óbvio ao observador e sua natureza participatória, que torna as ações do jogador determinantes no efeito final da mídia. Qualquer análise que pretenda entender como se processa a comunicação e como se produz sentido a partir destes jogos deverá avaliar estes dois fatores em conjunto com as diversas estratégias de representação usadas. Embora haja necessidade muitos refinamentos metodológicos sobre o tema, propomos como sugestões preliminares que uma análise de um jogo digital deve ocorrer ao longo de dois eixos principais, o representacional e o procedimental. O representacional tem muito em comum com a análise de mídias anteriores como o romance, quadrinhos ou cinema enquanto que o procedimental se preocupa em avaliar a interação do jogador com as regras, quais são os objetivos do jogo, quais estratégias são vencedoras, quais sistemas estão modelados sob a superfície e a ideologia que carregam. Nestes dois eixos, é importante avaliar os modos como o jogador participa, qual modo predomina (interpretação, reconfiguração ou construção) e como são construídos no jogo. Por fim, ao focar no uso dos jogadores, devemos tentar entender como eles participam dos diferentes modos, se seguem o caminho esperado do jogo, em anuência implícita com o projeto dos game designers, se violam estas expectativas por discordância das premissas do jogo ou ainda se negociam entre estas duas instâncias, dialogando continuamente com as regras e a ficção do jogo na elaboração de seu caminho. Concluindo, este é um trabalho preliminar, mas esperamos complementá-lo com novas e mais profundas abordagens de pesquisa para estudo dos jogos digitais, esta nova mídia de comunicação que, a despeito da sua curta história, já traz tantos desafios analíticos.

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