Comunicação e Política: a sombra de Dionísio sobre as eleições presidenciais de 2006 no Brasil

June 13, 2017 | Autor: Artur Roman | Categoria: Comunicacion Social
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Comunicação e Política: a sombra de Dionísio sobre as eleições presidenciais de 2006 no Brasil Artur Roman [email protected] Consultor em Comunicação Organizacional Pós-Doutor em Sociologia - Sorbonne - Paris Doutor em Ciências da Comunicação - ECA/USP. Mestre em Linguística - UFPR. Resumo A partir de uma reflexão sobre mudanças acontecidas na maneira das pessoas viverem e se relacionarem na Pós-Modernidade, este artigo tem por objetivo: a) analisar a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, nas eleições presidenciais de 2006 no Brasil; e b) discutir a repercussão dessas mudanças na forma de se fazer política atualmente, e os impactos decorrentes nas estratégias de comunicação dos candidatos com os eleitores. Destacamos a importância, nesse novo contexto histórico, da estética discursiva nos processos de comunicação e seus reflexos nas campanhas políticas e nos resultados das eleições. As interpretações aqui propostas são inspiradas especialmente nas obras do sociólogo francês Michel Maffesoli. Palavras-chaves: comunicação, política, pós-modernidade, tribalização. Resumen A partír de una reflexión sobre los cambios ocurridos en la manera que las personas viven y se relacionan en la Posmodernidad, este artigo tiene como objectivo: a) analizar la victória del candidato Luiz Inácio Lula da Silva, en las elecciones presidenciales del 2006 en Brasil; e, b) discutir la repercussión destes cambios en la forma de se hacer política, y, especialmente los impactos decurrientes en la estrategia de comunicación de los candidatos con los electores. Podemos destacar la importancia, en este nuevo contexto historico, de la estética discursiva en los procesos de comunicación y los reflejos en las campañas políticas y en los resultados de las elecciones. Las interpretaciones acá propuestas son inspiradas especialmente en las obras del sociólogo franc ês Michel Maffesoli. Palabras clave: comunicación, política, Posmodernidad, tribalización Abstract By questioning the changes occured in people's way of life and their relationships in postmodernity, this article has two main objectives: a) to analyse the victory of candidate Luiz Inácio Lula da Silva, in the 2006 presidential elections in Brazil; b) to discuss the influences of those changes on the way of making politics nowadays, and their impacts on the communication strategies used by the candidates towards the

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voters. We emphasize the importance of discursive aesthetics in the process of communication and its reflexes in the political campaigns and in the elections' results, within this new historical context. The interpretations proposed here are inspired specially by the works of Frech sociologist Michel Maffesoli. Key words: communication, politics, postmodernity, tribalization Introdução As mudanças vividas pela civilização ocidental a partir da segunda grande guerra (final dos anos 40 do Século XX) desencadearam alterações importantes no conjunto de valores construídos socialmente nos últimos cinco séculos. Denominado de Modernidade líquida (BAUMAN, 2001), Hipermodernidade (LIPOWETSKI, 2004) ou Pós-Modernidade (LYOTARD,1998), há em comum entre os pensadores a aceitação de que os valores da sociedade ocidental, desenvolvidos nesse período histórico, são suficientemente diferentes daqueles do passado, para reconhecermos o tempo presente como uma nova era. A Modernidade, que se desenvolve a partir do século XVI, tem como principal característica o rompimento com os referenciais medievais e a negação do passado. A Pós-Modernidade, porém, não rompe e não nega. Transcende, amplia, recupera, faz releituras, funde, aglomera. A Pós-Modernidade agrupa organicamente elementos arcaicos e contemporâneos e aproxima conceitos antagônicos, integrando-os polifonicamente. Pós-Modernidade significa possibilidades e não restrições. A partir de uma reflexão sobre mudanças acontecidas na maneira das pessoas viverem e se relacionarem na Pós-Modernidade, este artigo tem por objetivo: a)analisar a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, nas eleições presidenciais de 2006 no Brasil1; e b) discutir a repercussão dessas mudanças na forma de se fazer política, e, especialmente os impactos decorrentes nas estratégias de comunicação dos candidatos com os eleitores. Destacamos a importância, nesse novo contexto histórico, da estética discursiva nos processos de comunicação e seus reflexos nas campanhas políticas e nos resultados das eleições. As interpretações aqui propostas são inspiradas especialmente nas obras do sociólogo francês Michel Maffesoli, referenciadas no texto e descritas na bibliografia. Maffesoli propõe uma metodologia em que o objeto, sobre o qual nos debruçamos para estudo, seja percebido também em seus aspectos frívolos e emocionais. Ou seja, devemos lançar os olhos a tudo aquilo que o Positivismo condenou no exercício da ciência, o que implica reconhecer a complexidade da realidade e a importância do senso comum em seu estudo, além da aceitação de que 1

As eleições para presidente no Brasil se deram em dois turnos. Do primeiro turno (01.10.06), participaram sete candidatos. Do segundo (29.10.06), participaram os dois mais votados: Geraldo Alckmin (PSDB), pela oposição, e Luiz Inácio “Lula” da Silva (PT), candidato à reeleição e vencedor das eleições.

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o consenso conflituoso na pesquisa científica, por ser reducionista, deve ser substituído pelo dissenso harmônico. (MAFFESOLI, 1998b) Maffesoli chama a atenção para o “o desengajamento político” (MAFFESOLI, 1996, p.16), como uma característica dos tempos atuais. De fato, os grandes movimentos de massa no Brasil não são mais conduzidos por mobilizações políticas e sim por disputas esportivas, eventos musicais e dançantes ou pelas igrejas neopentecostais. Essa realidade convida os estudiosos a novas análises interpretativas e indica aos políticos a necessidade de um novo posicionamento diante dos eleitores. Embora não se pretenda trazer soluções para esse esvaziamento da política, as reflexões aqui produzidas poderão indicar alguns temas que deveriam preocupar especialmente as assessorias de comunicação de candidatos a cargos eletivos. Estamos propondo neste artigo que a nova relação que os eleitores desenvolvem com os políticos será melhor entendida se forem incorporados referenciais analíticos que reconheçam a existência e o significado social das tribos pós-modernas, configuração contemporânea da nova socialidade que se desenvolve hoje, conforme proposto por Maffesoli, e que será discutida no artigo. “Do ponto de vista da modernidade burguesa, as novas tribos são ‘inatuais’, mas, nem por isso, menos reais, nem deixam de se difundir, pouco a pouco, no conjunto societal” (MAFFESOLI, 19981, p.207). O desinteresse generalizado pelas formas tradicionais de participação política acabou por valorizar o ato de votar. Democracia ficou reduzida a campanhas políticas em época de eleições. Como resultado, as campanhas se glamourizam e se sofisticam, passando a depender de vultosos investimentos, com recorrentes envolvimentos de seus financiadores em corrupção e negociatas. Escândalos são, infelizmente, incômodas notas de rodapé sempre presentes na história da república no Brasil. Este artigo, porém, não discute a dimensão ética desses eventos, e sim a sua dimensão estética. Não pretendemos, tampouco, substituir as pertinentes análises sobre as eleições feitas a partir de referenciais da economia e da ciência política. Desejamos sim propor novos desafios analíticos para a área de comunicação política, especialmente quando os referenciais tradicionais de “esquerda”, “centro” e “direita” não são mais suficientes para a compreensão da complexa movimentação política no Brasil e na América Latina. A nova socialidade e as tribos urbanas Segundo Maffesoli, “a Pós-Modernidade é feita de um conjunto de retalhos totalmente diversos que estabelecem entre si interações constantes feitas de agressividade ou de amabilidade, de amor ou de ódio, mas que não deixam de constituir uma solidariedade específica que é preciso levar em conta” (MAFFESOLI, 1996, p.16). Essa solidariedade deve ser pensada dentro da nova socialidade que se

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desenvolve na Pós-Modernidade e que transcende as simples relações racionais ou mecânicas que deram conta de definir as interações sociais na Modernidade. Vai além, portanto, das estruturas formais da sociedade. Aglutinando as pessoas de uma forma orgânica, mais espontânea, intensiva, e menos estruturada do que no passado, essa socialidade se desenvolve como um novo tribalismo. Conforme aprendemos com Maffesoli, o tribalismo sempre existiu, mas, atualmente, tem sua vitalidade exacerbada, integrando as massas a partir de outros referenciais tais como “o sentimento, a emoção, o imaginário, o lúdico, cuja eficácia multiforme não se pode mais negar, na vida de nossas sociedades” (MAFFESOLI, 1996, p.106). As novas tribos reconhecem a complexidade de uma realidade que é múltipla, mutável e diversa e são animadas por aquilo que é vivenciado no dia-a-dia, de modo orgânico, sob o primado da proxemia, do afetual e da razão sensível. A constituição de novas tribos urbanas responde às diversas imposições do meio ambiente social e desse meio ambiente natural específico que é a cidade contemporânea. Desse ponto de vista, a cidade pode nos levar à colocação de uma nova lógica social que pode desordenar inúmeras de nossas tranqüilizadoras análises sociológicas. A descrição daquilo que escapa à racionalização do mundo está em perfeita congruência com o não racional que mobiliza em profundidade as tribos urbanas (MAFFESOLI, 1998a, p.201).

Maffesoli denuncia, como um fenômeno da contemporaneidade, a não-adesão das massas às estruturas partidárias e a saturação do político. A socialidade que emerge na Pós-Modernidade, de fato, se caracteriza menos pelo engajamento partidário e mais pela emoção vivida nas interações tribais. Lula, para ser eleito, não dependeu exclusivamente do apoio de estruturas partidárias convencionais. Afinal, ele entra para a história, dentre outros feitos, por ter desestabilizado a direita e desestruturado a esquerda no Brasil. Lula foi eleito sim por tribos que se identificaram com a sua estética do acolhimento. O cimento da agregação, na expressão de Maffesoli, é composto pelo afetual e pelo sentimento de pertencer a um grupo. Maffesoli chama a atenção para importância dos sentimentos e das paixões coletivas para a vida em sociedade e alerta que “Os políticos mais atentos são os que, conscientemente ou de maneira instintiva, souberam tirar partido dessa situação. Desse ponto de vista, a gestão das paixões é certamente a arte suprema de toda boa política” (MAFFESOLI, 2005, p.27). Apesar de sua pouca escolaridade, que tanto irrita os diplomados, Lula mostrou possuir razão sensível para compreender essa nova lógica social. É possível afirmar que a capacidade que teve de desenvolver a proxemia com os eleitores e mobilizar a energia coletiva, catalizando-a em uma força imaginal, explica melhor sua vitória do que a militância política.

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De Teleologia para Presenteísmo A linha e a luz são duas metáforas explicativas da Modernidade. Especialmente a partir do Iluminismo, as ações do homem passaram a ser planejadas com vistas a atingir um objetivo estabelecido previamente. Esse ponto distante no tempo e espaço seria alcançado graças à aplicação do conhecimento racionalmente processado, que iluminaria a mente, tirando o sujeito das “trevas da ignorância”. Na Pós-Modernidade, essa teleologia perde força, substituída pelo epicurismo da vida cotidiana, que pode ser percebido no dia-a-dia, especialmente dos jovens da classe média, que abandonam seus frágeis empregos no mês de dezembro, quando iniciam as férias escolares. O projeto dessa geração não se estende muito além dos três meses de férias (dezembro, janeiro e fevereiro), quando gastarão o que conseguiram juntar durante alguns meses de trabalho no ano. Os discursos convencionais dos políticos não comovem esse eleitor. Embora não se possa afirmar que essa postura seja predominante na sociedade brasileira, ela é comum entre os jovens, independentemente da classe social a que pertençam. Mesmo aqueles que não podem assim agir, desejariam muito fazê-lo, pois o carpe diem é um componente do universo de valores sociais das tribos pós-modernas. Trata-se de um fenômeno de época incorporado ideologicamente que transcende às questões de classe, raça, situação econômica ou escolaridade e mesmo de faixa etária (MAFFESOLI, 1998a). As igrejas neopentecostais, que representam um importante movimento de massas no Brasil, já se deram conta disso, pois não prometem a salvação eterna. Oferecem sim soluções imediatas, ainda que através de rituais patéticos, para problemas concretos das pessoas que lotam suas igrejas. A insistência do candidato derrotado, Alckmin, em “olhar para o futuro”, como repetia em seus pronunciamentos, revela desconhecimento das expectativas das novas gerações. O “presenteísmo”, de que nos fala Maffesoli, é o sentimento predominante nas pessoas, que não se dispõem mais a suportar as agruras de hoje, enquanto aguardam improváveis glórias no futuro. A soteriologia, ou doutrina da salvação, reforçada pelas grandes religiões na Modernidade, e que atendia a ideologia prometeica do capitalismo, dificilmente mobiliza alguém na PósModernidade2, especialmente no Ocidente. A tribo não se projeta na distância ou no futuro, mas vive intensamente e efemeramente na concretude do presente. Uma proposta de desenvolvimento econômico para o país, com números e índices abstratos, por mais consistente que seja, certamente não mobilizará pessoas famintas mais do que a garantia de continuidade do Programa Bolsa Família3. Afinal, esta responde a necessidades imediatas e concretas. 2

Fica a sugestão de estudos sobre a presença ou não de um sentimento soteriológico entre os jovens muçulmanos que se auto-flagelam em ações terroristas. 3 O Bolsa Família é um programa governamental de ajuda em dinheiro para famílias pobres. Para receber o benefício de cerca de R$ 60,00 por mês, essas famílias se comprometem a manter seus filhos na escola e a cumprir cuidados básicos em saúde.

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De Fidelidade para Lealdade múltipla No estado do Maranhão, Lula recebeu apoio do PFL (Partido da Frente Liberal, de orientação ideológica conservadora). Na Bahia, o mesmo eleitor que deu seu voto a Lula e ao governador eleito do PT, elegeu para o Congresso o neto de Antônio Carlos Magalhães (PFL), estigma do que existe de mais conservador na política brasileira. Fernando Collor de Mello venceu Lula no segundo turno da eleição presidencial em 1989 e foi afastado da Presidência após processo de impeachment em 1992. Volta nestas eleições à vida pública, eleito Senador pelo Estado de Alagoas, manifestando explicitamente apoio ao candidato Lula. Maffesoli nos ajuda a entender essas aparentes contradições quando nos fala da “lealdade múltipla” que se desenvolve na Pós-Modernidade. Essa fidelidade volúvel dos eleitores e dos candidatos revela uma postura benevolente e despreconceituosa diante das possibilidades de vivência múltipla de experiências e de valores, não necessariamente compatíveis e coerentes. Afinal, a tribo, ao mesmo tempo, liga as pessoas e as deixa livres. O pertencimento não é absoluto: cada um pode participar de uma infinidade de grupos, investindo em cada um deles uma parte importante de si. Fidelidade múltipla, volubilidade e descartabilidade são componentes vivenciais da contemporaneidade e valem tanto para os hábitos de consumo, quanto para os relacionamentos pessoais e também partidários. Segundo Maffesoli, esse “borboleteamento” é uma das características essenciais da organização social que está se esboçando na Pós-Modernidade (MAFFESOLI, 1998a, p.202), e pode ser visto na migração de políticos entre as diversas siglas partidárias. Há algum tempo, os partidos políticos no Brasil vêm perdendo suas matizes ideológicas para se transformarem em aglomerados fisiológicos. E utilizamos aqui o adjetivo “fisiológico” sem juízo de valor, assumindo o interesse efêmero, circunstancial e imediato que leva os políticos a transitarem pelas siglas e se aglomerarem em tribos de interesses. Essas fusões (e com-fusões) são fenômenos próprios da Pós-Modernidade. É ilusão, portanto, esperar que se constituam partidos ideológicos como no passado, pois está ocorrendo uma tribalização dos partidos políticos. Para confirmar o caráter “fisiológico” das junções partidárias, basta acompanhar as articulações políticas que estão ocorrendo por conta da “Cláusula de barreira”4. Como compreender a fusão de partidos como PRONA, PL e PTdoB, utilizando-se dos referenciais tradicionais de análise do quadro político? Não cabe discutir a “identidade” de cada partido, mesmo porque, caso a tivessem, não é esta que os levaria a esse “ajuntamento”. O que os 4

Cláusula de barreira é o dispositivo legal que impede o funcionamento parlamentar ao partido que não tenha alcançado 5% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos 1/3 dos estados, com um mínimo de 2% do total de votos de cada um desses estados.

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aproxima é a “identificação” em torno de interesses imediatos. As parcerias são infinitas enquanto duram... De Indivíduo para Pessoa (Persona) Maffesoli chama a atenção para o fim de uma certa concepção de vida, fundada sobre o domínio do indivíduo e que se desenvolveu na Modernidade (MAFFESOLI, 1996, p.16). O indivíduo da Modernidade é átomo indivisível de um sistema no qual cumpre funções sociais unívocas, sérias e produtivas durante sua existência. Na nova socialidade que se desenvolve na Pós-Modernidade, ocorre uma dissolução do indivíduo, substituído pela pessoa, que, como tal, pode vivenciar vários papéis na mesma tribo ou em tantas outras. Os indivíduos constituem grupos contratuais, unidos pelo objetivo a ser alcançado, em uma dinâmica teleológica em que importa saber: o que faço eu? As pessoas, por sua vez, constituem tribos afetuais, unidas pela vivência imediata de emoções compartilhadas, em que importa saber: quem sou eu? Afinal, a pessoa, ou persona, sempre se apresentará com uma máscara, trocada de acordo com o enredo do qual faz parte na circunstancialidade daquele tempo e espaço. Nessa teatralidade efêmera, é possível a pessoa vivenciar inclusive a frivolidade, a inutilidade, a perda de tempo, a inconseqüência, condenadas e marginalizadas em um sistema constituído por indivíduos, em que se privilegiam atribuições a serem cumpridas e tarefas a serem desempenhadas com vistas ao atingimento de uma meta. O grande desafio na Modernidade para o indivíduo foi construir a sua identidade. A “lógica da identidade”, que se desenvolveu na Modernidade “repousava sobre a existência de indivíduos autônomos e senhores de suas ações” (MAFFESOLI, 1996, p.18). Já, a “lógica da identificação”, que é própria da PósModernidade, põe em cena pessoas com suas máscaras (personas) variáveis, que se solidarizam, na representação de uma peça em que se contentam apenas em ser coadjuvantes. É importante destacar que a “pessoa” (persona) maffesoliana vive uma relação contraditória e complementar, portanto dialética, com a massa e a tribo. Ao mesmo tempo em que se indiferencia na universalidade abstrata da massa, a pessoa se singulariza na concretude de suas relações e identificações particulares na tribo. No tempo das novas tribos, portanto, a opção por determinado candidato se deve menos à “lógica da identidade” e mais à “lógica da identificação”. Lula foi mais competente que seu adversário para estabelecer uma ligação emocional com os eleitores e fazer emergir uma identificação tribal com o que o candidato representava naquele momento histórico. A falta de um dedo, sacrificado quando operário, compõe a figura brasileira e “defeituosa” de Lula, com a qual se identifica uma parcela significativa da população, esquecida ou ignorada pela elite brasileira. A capacidade do candidato de promover uma ambiência mágica em torno de si e suscitar a adesão das pessoas não significa fidelidade, pois, como é próprio das

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relações tribais na contemporaneidade, as identificações são múltiplas, efêmeras, circunstanciais, não definitivas. O vínculo deve ser alimentado constantemente, pois será sempre frágil e fácil de ser rompido. As certezas são volúveis e as convicções descartáveis na Pós-Modernidade. De Ética para Estética A estética na Pós-Modernidade recupera o sentido que possuía esse conceito para os gregos na antiguidade clássica, e refere-se à vivência coletiva emocional de uma experiência prazerosa. Não se confunde, portanto, com a estética da Modernidade, que diz respeito à contemplação de uma obra de arte e à fruição individual do prazer estético decorrente dessa contemplação. A estética Pós-Moderna está comprometida com a “profundidade da aparência” (MAFFESOLI, 1996), pois, quando a efemeridade é privilegiada, a aparência ganha importância, pois as vivências são superficializadas. Não há tempo, tampouco interesse, para aprofundamentos e radicalizações, no sentido de ir à raiz. Não há preocupação com a substância, mas com a superficialidade imediata dos eventos e ações. É preciso aprender as regras desse jogo, em que se sabe que “as aparências enganam”, pois é assumida a sua precariedade e transitoriedade. Assim, entende-se o desinteresse por temas econômicos no debate político e a atratividade dos escândalos envolvendo políticos. As denúncias de corrupção possuem uma dimensão estética fulminante: é feio se envolver em corrupção. Não é, portanto, o envolvimento em atos ilícitos e ilegais o que mais ofende a opinião pública, e sim a sua dimensão estética e espetacular catalizadora das emoções. As várias acusações feitas a militantes do PT com relação à tentativa de se comprar um dossiê contra o candidato do PSDB ao governo do Estado de São Paulo, embora fartamente divulgadas pela imprensa, não arranharam a imagem do candidato Lula. No entanto, a simples divulgação de uma imagem na TV com os pacotes de cédulas de reais e de dólares, que seriam utilizados no pagamento do dossiê, caprichosamente amontoados e preparados de propósito para uma foto, repercutiu fortemente nos resultados do primeiro turno. Situação semelhante ocorreu com relação ao assessor de um político surpreendido no aeroporto com dólares guardados dentro da cueca. O patético da situação teve efeito estético mais significativo que as denúncias divulgadas na imprensa. A partir dessa lógica, há que se reconhecer que Lula inaugurou no debate político brasileiro uma estética discursiva pré-acadêmica e pós-moderna focada na musicalidade verbal e em cativantes imagens metafóricas. A fala de Lula deixa transparecer uma harmonia e um ritmo tributários às cantorias gravadas em seu inconsciente durante sua infância no interior nordestino. Assim, a sua expressão verbal se torna facilmente assimilável, especialmente para as pessoas de pouca escolaridade. O Presidente, ainda que não tenha amealhado diplomas - ou talvez por isso mesmo! - elabora um discurso envolvente, aprimorado desde os tempos de líder

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sindical em que falava para milhares de operários de cima da carroceria de um caminhão. Os bailes funks e as raves atraem mais jovens do que os comícios. Será que dançar não seria uma forma de participação política, mais de acordo com a lógica da Pós-Modernidade? Quem observa Lula nos palanques percebe seu constante movimento corporal. Lula dança no palco um ritmo comunitário, tribal e orgânico, ao som de sua própria voz: rouca, suja, imperfeita, errada, amigável, afetual, brasileira... De Prometeu para Dionísio Uma das estratégias utilizadas na campanha de Alckmin foi tentar desqualificar seu opositor, identificando-o com a precariedade, com a incompetência, com o mal. Durante as eleições, circularam na Internet mensagens relacionando políticos do PT ao crime organizado. Ora, as tribos pós-modernas reconhecem a inseparabilidade do bem e do mal, pois são guiadas por uma ética estetizada que relativiza a moralidade das práticas sociais. (MAFFESOLI, 1996). Aprenderam, portanto, a não exorcizar o mal, mas a integrá-lo em seu cotidiano. Especialmente entre os situados na liminaridade social, há uma tendência à identificação com o mal, com o errado, com o precário. Agrada apenas a uma minoria as propostas elitistas de remodelar o país, que trazem, sub-repticiamente, o desejo de promover a assepsia dos traços negativos de nossa cultura macunaímica. Esse desespero de parte da elite econômica e intelectual brasileira, que lamenta não ter nascido na Europa, aparece em expressões corriqueiras que demonstram menosprezo especialmente ao nordestino, ao baiano, ao negro, ao índio, e que mal escondem o desejo de se amputar os traços “negativos” constitutivos de nossa brasilidade. Toda a estrutura que encurrala, que expulsa, que exorciza seus elementos negativos corre o risco de uma catástrofe por reversão total, como todo o corpo biológico que encurrala e elimina seus germes, bacilos, parasitos, seus inimigos biológicos, corre o risco de matástase e do câncer, isto é, de uma positividade devoradora das próprias células, ou o risco viral de ser devorado pelos próprios anticorpos, que passam a não ter uso. Todo aquele que expurga sua parte maldita assina a própria sentença de morte. Eis o teorema da parte maldita. E não adianta perguntar se deve ser assim. É assim, e não o reconhecer é cair na pura ilusão (BAUDRILLARD, 1990, p.113 – destaque nosso).

Após cada debate entre os candidatos, circulavam em profusão na Internet, mensagens ridicularizando os “erros de português” do candidato da situação. Os que obedecem, na oralidade, às regras da Gramática Normativa da Língua Portuguesa representam fração ínfima da população e dos eleitores. Divulgaram-se durante a campanha referências desabonadoras a Lula, como uma pessoa que deixou de trabalhar, após envolver-se com o movimento sindical. Se Prometeu é o herói mitificado do esforço laborioso, da produtividade

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e do progresso através da organização disciplinadora da energia humana, Dionísio, seu antagonista, simboliza uma realidade diferente, em que a inconseqüência e a irresponsabilidade são reconhecidas como instâncias constitutivas da natureza humana. A Modernidade é prometeica, evolutiva, perspectivística; muda-se para crescer, sempre em direção a algum objetivo traçado. A Pós-Modernidade é dionisíaca: não valoriza apenas a alegria, a festa, a solidariedade, mas reconhece a precariedade e a falibilidade humana. Atualmente, a identificação com o produtivismo prometeico pode não ser desejável para um candidato, especialmente quando se questiona o mito do desenvolvimento a qualquer custo, por conta da exaustão dos recursos naturais . Alckmin repetia que pretendia “arrumar a casa”, ou seja, por em ordem a bagunça dionisíaca instalada no governo por seu adversário. Maffesoli nos lembra que na Pós-Modernidade a desordem tem seu lugar no mundo e o excesso de regulação é potencialmente mortífero (MAFFESOLI, 2005, p.44). Conclusão A assessoria do candidato da oposição à presidência definiu que deveria ser utilizado o seu prenome “Geraldo” no lugar de “Alckmin”. O objetivo era torná-lo mais familiar para o eleitorado de baixa renda e baixa escolaridade. Ora, sabe-se que é comum entre as famílias da periferia social a escolha para seus filhos de nomes “sofisticados” de artistas estrangeiros! Mal disfarçadas por “criativas” campanhas publicitárias geradas em laboratórios do chamado “marketing político”, estratégias como essa podem estar denunciando a alienação de parte da elite econômica do país e dos intelectuais e profissionais que estão a seu serviço, com relação à lógica estética da grande maioria da população brasileira. O comportamento eleitoral do brasileiro nas últimas eleições demonstra coerência com uma socialidade dionisíaca que se desenvolve na PósModernidade. Dionísio representa um lado obscuro, escondido e camuflado das pessoas e das sociedades. Esse impulso dionisíaco, importante marco da contemporaneidade, deveria orientar não apenas os discursos dos políticos, mas especialmente suas ações. Aqueles que tiverem sensibilidade para tocar essa porção dionisíaca e mobilizar o sentimento tribal das pessoas terão mais possibilidade de sucesso na política. A decisão do voto do eleitor, afinal, se dá mais por identificação tribal do que por identidade partidária; mais por identificação com uma estética afetual do que pela identidade com um programa de governo. A análise aqui esboçada, embora circunscrita às eleições presidenciais no Brasil, poderia ser promissora também se aplicada nos resultados das últimas eleições presidenciais na Bolívia, Equador, Venezuela e Nicarágua. Mesmo reconhecendo as especificidades de cada um desses países, é possível perceber que as vitórias dos respectivos candidatos representam, a par de outros fenômenos não

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menos importantes de ordem política, econômica e social, o esgotamento dos discursos políticos convencionais, carregados de conteúdos desidentificados da realidade imaginal, vivenciada e sonhada pelas pessoas, na concretude de seus cotidianos. A nova forma de se fazer política, discutida neste artigo, sugere a primazia da razão sensível, que se expressa a partir de uma nova estética discursiva. Esta não pode ser confundida com “populismo”, sob pena de se reduzir a conceitos já esgotados a análise de um movimento complexo e dinâmico das massas, que se desenvolve na América Latina sob a sombra de Dionísio... -o- Referências bibliográficas Baudrillard, Jean. A transparência do mal. Papirus: Campinas, 1990. Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Lipovetsky, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004. Lyotard, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. Maffesoli, Michel. A sombra de Dionísio. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ______ No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996. ______ O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998a. ______ Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 1998b. ______ O instante eterno. São Paulo: Zouk, 2003. ______ A parte do diabo. Rio de Janeiro: Record, 2004. ______ A transfiguração do político. Porto Alegre: Sulina, 2005. -o- Dez/2006

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