Comunicação, ruralidades e soberania alimentar: um estudo sobre a Feira Orgânica da Leopoldina (Rio de Janeiro-RJ/Brasil)

June 12, 2017 | Autor: P. da Veiga Borges | Categoria: Comunicação Social, Ruralidades
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COMISIÓN: 4.4 - Información, Comunicación y Desarrollo: miradas desde lo local TÍTULO: Comunicação, Ruralidades e Soberania alimentar: um Estudo Sobre a Feira Orgânica da Leopoldina (Rio de Janeiro-RJ/Brasil)

Autor: Ma. Patrícia da Veiga Borges Institución: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) País: Brasil Correo electrónico: [email protected] Síntesis curricular: Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC/UFRJ).

RESUMEN: Este trabalho versa sobre a relação entre comunicação, ruralidades contemporâneas e soberania alimentar na cidade do Rio de Janeiro (RJ/Brasil), apresentando um cenário e uma experiência: a Praça Marechal Maurício Cardoso, localizada entre os bairros de Olaria e Penha, na Zona Norte da capital fluminense; e a Feira Orgânica da Leopoldina, pequeno mercado de alimentos organizado por moradores da localidade e por produtores rurais da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O texto descreve como se organizam e são tecidas as relações na/da/por meio da feira, como se vinculam seus atores sociais e como algo em comum é partilhado a partir da proposta de produção de alimentos nas bases da agroecologia. Trata-se não somente da venda e do consumo de mercadorias, mas sim da oportunidade de convivência entre grupos sociais distintos e da circulação de ideias divergentes em um espaço público da cidade. Com os relatos de observação, parte da pesquisa em curso, surge um questionamento: pode a comunicação, entendida como atividade humana vital atravessada pela midiatização do social, produzir ruralidades? O interesse geral do estudo, ainda em desenvolvimento, é compreender como os modos de ser do “rural” coexistem entre campo e cidade. Palabras clave: Comunicação; Comum; Feira Orgânica da Leopoldina; Rio de Janeiro; Ruralidades.

1. Introdução Este texto apresenta parte de uma pesquisa, ainda em desenvolvimento, realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)1 que tem como tema a comunicação e o “mundo rural” 2. Ao se debruçar sobre localidades3 distintas do estado do Rio de Janeiro, a investigação lança a seguinte questão: como são produzidas as ruralidades e em que medida a comunicação contribui para esse processo? O objetivo geral do trabalho, dentro de uma perspectiva comunicacional e relacional (SODRÉ, 2014), é compreender como se dão a convivência e as vinculações na vida contemporânea e, a partir disso, como se pode identificar e interpretar as noções de “rural” e os processos de “ruralidade” que surgem entre as pessoas.

Intitulada provisoriamente “Para uma compreensão do ‘rural’: comunicação e ruralidades entre campo e cidade”, a referida pesquisa teve início em março de 2013 e apresentará seus resultados finais até março de 2017. 2 Considerando a multiplicidade de sentidos que a palavra “rural” pode ter, preferiu-se usar aqui o termo “mundo rural”, escrito propositalmente entre aspas. Ao longo do trabalho, porém, dar-se-á preferência ao uso do termo “rural”, para fins de melhor conceituação e compreensão. 3 As localidades são espaços delimitados onde as trocas acontecem, as fronteiras se entrecruzam, as pessoas circulam e as formas de vida possuem aspectos diversos (CARNEIRO, 2012). Ou seja, espaços que não são definidos pelos seus limites políticos e oficiais, mas sim pela sua territorialidade e pelas relações ali estabelecidas, podendo ser uma praça, uma rua, um bairro, um distrito, um município etc. Na pesquisa que aqui se apresenta, se leva em conta o trabalho de observação em duas localidades: a Praça Marechal Maurício Cardoso, na cidade do Rio de Janeiro, onde se realiza a Feira Orgânica da Leopoldina (tema deste artigo); e o município de Rio das Flores, localizado na região do Médio Paraíba, onde são realizadas festas tradicionais, se vive do turismo e se guarda a memória do passado agrário-exportador-escravista brasileiro. 1

Vale destacar que por “rural” se entende uma “categoria operatória” (REMY, 1989)4. Ou seja, uma noção que carrega consigo sentidos diversos relativos ao uso do espaço; um ponto de partida para se compreender formas de vida elaboradas nesses espaços, mediante necessidades e recursos distintos. Isso implica em conceber a ruralidade como “um processo dinâmico de constante reestruturação de elementos da cultura local com base na incorporação de novos valores, hábitos e técnicas” (CARNEIRO, 1998, p. 61). Em outras palavras, trata-se de um entendimento do “rural” baseado na produção humana, material e imaterial, considerando as particularidades de determinado lugar, sua história e o modo como as pessoas negociam seus sentimentos de pertença e suas identidades (CARNEIRO, 1998; 2008; 2012). A ruralidade dá sentido à existência de um “mundo rural” seja no campo, seja na cidade. E a noção de “rural”, por sua vez, é um elemento em constante elaboração que depende de uma série de fatores, entre eles, a relação entre as pessoas, o uso do espaço, os entendimentos criados a partir desse espaço e, por que não acrescentar, a realização de um “trabalho de imaginação” 5 entre as pessoas, motivado pela convivência e pela

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Para Jean Remy, o meio é uma entidade coletiva que mobiliza seus componentes e com isso é capaz de produzir algo comum. O que sustenta a existência e as reivindicações oriundas dessa realidade é o que os atores sociais consideram como seu próprio ambiente. “As pessoas constituem suas questões em torno de certa imagem que têm do rural” (REMY, 1989, p. 265). 5 Segundo Arjun Appadurai (2004), o que define o mundo contemporâneo, juntamente com as estruturas, os organismos e as delimitações territoriais, é a circulação. Assim sendo, em tempos de intensas trocas simbólicas, fluxos informacionais ultravelozes e veiculação cotidiana de imagens, as experiências se desenvolvem a partir de novos e imprevisíveis desdobramentos. Tal situação tende a dar um papel singular à

circulação (APPADURAI, 2004). É nesse ponto que a pesquisa aqui apresentada atua e se insere no campo científico da comunicação. Neste artigo, será descrita a situação empírica vivida até o momento em uma das localidades estudadas: a praça Marechal Maurício Cardoso, localizada na Avenida Leopoldina Rego, entre os bairros de Olaria e Penha, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro (RJ/Brasil). Ali há uma infinidade de eventos sendo realizados todos os dias, a maioria por empenho dos próprios moradores dos arredores. Um deles é a Feira Orgânica da Leopoldina, pequeno mercado local integrado ao Circuito Carioca de Feiras Orgânicas6 que oferece alimentos produzidos nas bases da agroecologia7 e acontece aos sábados

imaginação que, por sua vez, extrapola as vivências espaço-temporais, alcançando um “vir a ser”. No exílio ou em seu território, as pessoas se reinventam com base em imagens e informações, comumente, obtidas a distância, por meio de vivências midiáticas. 6 O Circuito Carioca de Feiras Orgânicas é uma rede de comercialização formada, atualmente, por 15 mercados. Foi criado em 2010 e oficializado em 2012 pelo Decreto de Lei n° 35.064. Fruto da mobilização de produtores rurais que se denominam neorrurais (FERREIRA, 2013), o Circuito é regulado pela Prefeitura Municipal, por meio da Secretaria Especial de Desenvolvimento Econômico e Solidário, e gerenciado por três entidades da sociedade civil: AS.PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia; Associação dos Produtores Biológicos do Rio de Janeiro (ABIO) e Essência Vital. Essas organizações acompanham o processo de transição agroecológica (termo é usado por agrônomos, biólogos e ecologistas para anunciar que aos poucos o produtor rural deixa de trabalhar à maneira da agricultura moderna/convencional e passa a usar técnicas que não poluem o ambiente e não modificam a composição química dos alimentos) do produtor rural e lhe fornecem um certificado que garante que seus alimentos foram cultivados de forma natural, sem fertilizantes químicos e nem agrotóxicos. O embrião do Circuito foi gerado em meados de 1980, por meio de articulações feitas entre pessoas que deixaram a vida na cidade para viver no campo (por isso neorrurais), arriscaram plantações de leguminosas, frutas e hortaliças, fizeram experimentos biológicos com a terra (deixando de usar agrotóxicos e fertilizantes químicos, ou seja, abandonando um padrão convencional ou “moderno” de agricultura) e depois retornaram à capital para distribuir sua produção, primeiro em supermercados e, em seguida, em uma feira improvisada no bairro da Glória (FERREIRA, 2013). 7 Forma de produzir que se popularizou nos anos de 1980 com as crises ambiental e de abastecimento assistidas mundialmente. Pode ser definida como “...um novo enfoque científico, capaz de dar suporte a uma transição a estilos de agriculturas sustentáveis e, portanto, contribuir para o estabelecimento de processos de desenvolvimento rural sustentável” (CAPORAL, 2004, p. 8).

desde 31 de maio de 2014. Oriundos de municípios relativamente próximos ao Rio de Janeiro, tais como Itaboraí, Magé (ambos na Região Metropolitana) e Petrópolis (localizado na Região Serrana), seus comerciantes são produtores rurais, em maioria moradores de pequenos sítios, cuja rotina intercala a lida no campo e na cidade. Seus consumidores, por sua vez, são moradores dos bairros Penha, Olaria, Bonsucesso, entre outros, que aos poucos se aproximam e tornam-se fregueses, muito embora não sem conflito. Aqui se descreve como as pessoas tecem suas relações em torno do tema da soberania alimentar8, mote da feira e de todo o Circuito, e também para além dele. De antemão, se entende que há entre a praça e a feira algo em comum partilhado pela comunicação9. No Rio de Janeiro, cidade que abriga em torno de 6,4 milhões de pessoas10, onde problemas relacionados a moradia, mobilidade, distribuição de renda, violência, desemprego, entre outros, estão longe de uma resolução justa, é reconhecida, desde a década de 1980, uma mobilização cada vez mais intensa em torno da proteção ao meio ambiente, do consumo consciente, da produção biológica e da soberania alimentar11. Há

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O direito dos povos de escolher o que produzir, de que modo cultivar a terra e o que escolher como alimento, independentemente das injunções de um mercado internacional (CHONCHOL, 2005). A agroecologia é uma proposta que permeia esse longo debate. 9 Conforme está no segundo tópico deste trabalho, a comunicação é compreendida como uma atividade humana vital atravessada pelos processos de midiatização (SODRÉ, 2014). 10 População estimada e atualizada pelo IBGE, conforme as informações contidas no portal @Cidades: Acesso em: 15. jun. 2015. 11 Mobilização de cunho global, conforme aponta Carneiro (2012) ao se referir ao valor que a natureza passa a ter para o “rural” a partir dos discursos ambientalistas da década de 1970.

uma volumosa lista de entidades sem fins lucrativos, associações, cooperativas, redes e movimentos sociais que articulam formas de comercialização de alimentos com o propósito de desviar o consumidor da rota dos hipermercados e privilegiar, assim, o contato direto com os produtores (FERREIRA, 2013). A partir disso, quando se observa o funcionamento e o vaivém de pessoas no Circuito Carioca de Feiras Orgânicas, se percebe as ideias circulando no ar, pairando em torno de novas possibilidades de se viver o “rural”, uma vez que essa é uma demanda da atualidade, no campo e na cidade. Assim, esse artigo se justifica.

2. Abordagem teórico-metodológica Quando se fala em comunicação, não se trata de entender um processo de transmissão de informação. Se está pensando tanto na partilha intersubjetiva de linguagem e vivências como no estabelecimento de uma ordem sociotécnica que, por meio de um complexo de instituições, aparatos e produtos, engendra as esferas sociais (SODRÉ, 2002; 2006; 2014). No contexto global, as mídias, ancoradas pela ideologia do mercado financeiro, estimulam trocas, produzem referências, criam uma ambiência própria e demandam, no fluxo do capital, uma forma de ser, um bios virtual (SODRÉ, 2002; 2006; 2014). Por outro lado, nas microesferas e no cotidiano, a comunicação acontece como relação e atividade humana vital. E na medida do seu desenrolar, um universo sensível

não explicitamente posto é tecido, podendo gerar o que há de mais próximo entre as pessoas: seus vínculos12. De um lado, então, está a midiatização ou “o funcionamento articulado das tradicionais instituições com a mídia” (SODRÉ, 2007, p.17). De outro, as relações humanas, atravessadas, mas não necessariamente assujeitadas, pelas tecnologias e pelas vivências midiáticas. Esses dois componentes se relacionam de forma ambígua de modo que o objeto de estudo da comunicação passa a ser o que resulta do convívio entre os sujeitos, atravessados pela ambiência tecnológica (SODRÉ, 2013). Assim sendo, quando se estuda comunicação, se está buscando compreender, no mundo contemporâneo, dois processos complementares: primeiro, o de por em comum as diferenças por meio do discurso, com ou sem o auxílio da retórica (processo comunicativo); segundo, o de interpretar os fenômenos constituídos pela ampliação tecnológica da retórica, isto é, a mídia, na sociedade contemporânea (processo comunicacional) (SODRÉ, 2007, p.18).

Nos termos de Sodré, a comunicação é um símbolo, um dispositivo “organizador” de tarefas, trocas, significados e objetos diversos – complementares e antagônicos (SODRÉ, 2014, p. 270 - 287). Tal símbolo demanda uma busca por novas formas de

“Vincular-se (diferentemente de apenas relacionar-se) é muito mais do que um mero processo interativo, porque pressupõe a inserção social e existencial do indivíduo desde a dimensão imaginária (imagens latentes e manifestas) até às deliberações frente às orientações práticas de conduta, isto é, aos valores” (SODRÉ, 2006, p. 93). 12

compreender os fenômenos sociais, ancorada no pensamento comunicacional, que se debruça sobre a midiatização e sobre a vinculação. Desta maneira, não se trata de estudar os “efeitos” e a “influência” das mídias no “mundo rural”, ao modo dos estudos funcionalistas estadunidenses que supervalorizavam a importância dos meios técnicos de transmissão de informação perante o social (SCHRAMM, 1967; LERNER et. al., 1972). O que se considera neste trabalho é que o “mundo rural” e as ruralidades possíveis estão em relação e em conflito com as mídias, reformulando-se e desenvolvendo-se com elas. Os procedimentos adotados na pesquisa são a descrição e interpretação das relações nas localidades visitadas. Tais tarefas se dividem em três etapas: exploraçãoobservação, realização de entrevistas, análise de dados e escrita de etnorreportagens13 (AMARAL FILHO, 2011). As entrevistas estão em andamento, de modo que não são apresentadas neste artigo. Como o trabalho está em processo, segue abaixo uma descrição da primeira etapa e sugestões parciais de análise.

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Conforme Nemézio Amaral Filho (2011), as etnorreportagens são textos expandidos sobre situações cotidianas, resultados de tempos longos de observação em uma localidade, cujo objetivo é apresentar modos de vida pouco explorados pelas mídias, bem como reapresentar, sem um olhar estereotipado, grupos sociais historicamente discriminados. Consiste em confrontar tanto a superficialidade do jornalismo convencional como a rigidez metodológica da etnografia. No caso deste trabalho, o que está sendo entendido como “minoria” é o próprio entendimento do “rural”, que em uma sociedade vista como quase que totalmente urbanizada tende ora a desaparecer dos discursos e das imagens, ora a ser reproduzidos de forma equivocada e romanceada.

3. A praça, a feira e o comum A Praça Marechal Maurício Cardoso é parte de uma região conhecida como Grande Leopoldina14 e segue rente com a linha do trem15. Sua construção é do fim da década de 1960, quando a pavimentação pública transformou um antigo aglomerado de campos de futebol em área de lazer16. No formato não muito exato de um semicírculo, a praça possui árvores frutíferas, brinquedos para crianças, um posto policial, dois banheiros fixos, bancos, mesas para jogos de dama e um quiosque para eventos. Os moradores dos seus arredores, que usam o espaço para festas, apresentações artísticas, feiras e reuniões deliberativas, costumam definir essa praça como “um traço de união entre Penha e Olaria”17. O lugar também tem sido palco de lutas e controversas. Uma delas diz respeito à sua manutenção. Em 2011, foi dada a notícia, por parte de uma vereadora local18, que o local seria extinto, teria suas árvores cortadas, seus equipamentos públicos retirados e sua

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Microrregião da Zona Norte do Rio de Janeiro que reúne os bairros cortados pela antiga estrada de ferro da Leopoldina: Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil, Braz de Pina, Penha Circular, Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Manguinhos e Triagem. 15 A linha do trem é uma demarcação simbólica no imaginário social carioca e, desde o início do século XX, tem servido para designar os bairros que acompanham seu curso como “suburbanos”. Classificação, obviamente, questionável (MACIEL, 2010). 16 Conforme narram os moradores da localidade. 17 Frase repetida inúmeras vezes por um moradora da Penha reconhecido como um poeta local. 18 Rosa Fernandes (PMDB).

área aproveitada para a construção de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 19 . Contrariados, os moradores do entorno se organizaram, criaram a Associação de Amigos e Defensores da Praça Marechal Maurício Cardoso20 e produziram uma série de ações para impedir que a ameaça se cumprisse: passaram a se encontrar todos os dias para discutir a questão; fizeram circular um abaixo-assinado nas imediações; buscaram conhecer seus direitos, discutindo sobretudo a Lei Orgânica do Município21; convocaram a mídia carioca (jornais O Dia, Extra, O Globo, Rio Suburbano, emissoras TV Record e Band News) e encamparam o slogan “UPA sim, na praça não!”. O debate com o poder público durou dois meses, até que foram retirados os tapumes que cercavam a praça. Entre 2012 e 2014, para retratar a luta vivida e reiterar a importância da participação dos moradores nas atividades públicas, foram produzidas cinco edições de um jornal. Pouco sossegados, porém, os Amigos e Defensores da Praça ainda sentem a ameaça da UPA, que sempre é tema nas rodas de conversa. Deste modo, a ocupação do local tem sido encarada como uma disputa política.

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Órgão de saúde administrado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro que atua entre a atenção básica, a emergência e o atendimento hospitalar. 20 77 homens e 42 mulheres, conforme listagem publicada em outubro de 2012 na edição n° 1 do jornal de bairro feito pelos integrantes do Grupo. 21 O Artigo n° 235 da Lei Orgânica do Município determina que: “As áreas verdes, praças, parques jardins e unidades de conservação são patrimônio público inalienável, sendo proibida sua concessão ou cessão, bem como qualquer atividade ou empreendimento público ou privado que danifique ou altere suas características originais”. Texto completo disponível em: Acesso em 10 jan. 2014.

Nesse esforço de defesa territorial, a praça passou a sediar a partir de 31 de maio de 2014 a Feira Orgânica da Leopoldina. Coordenada pela Associação dos Produtores Biológicos do Rio de Janeiro (ABIO) e mediada por grupos locais como os Amigos e Defensores da Praça e um coletivo de ativistas conhecido como Leopoldina Orgânica, a feira foi levada para a localidade depois de uma articulação entre o Fórum Permanente da Grande Leopoldina 22 e as entidades que gerenciam o Circuito. A necessidade de se implantar o mercado agroecológico no lugar foi o que mais se destacou no momento da definição desse objeto de estudo: há uma ameaça recorrente de acabar com a praça que incomoda em demasia os moradores dos seus arredores; de modo que a Feira foi vista por seus articuladores não somente como uma alternativa para manter o espaço ocupado, mas também como uma novidade que traria benefícios para o lugar em termos de alimentação, saúde e bem-estar, que contribuiria para o debate da soberania alimentar e que faria frente ao modelo convencional de produção agrícola vigente no país, o agronegócio23. A Feira Orgânica da Leopoldina é composta por oito bancas dispostas lado a lado, uma para cada produtor ou grupo de produtores rurais, que oferecem folhas frescas, frutas, leguminosas, raízes, verduras, ovos, frango caipira, sementes e processados (sucos, geleias, leite). Quando inaugurada, havia cerca de 12 sítios comerciantes. De maio de 2014

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Um espaço da sociedade civil para debater os problemas dos bairros que compreendem essa faixa da estrada de ferro. 23 Esse é um argumento usual entre os articuladores da feira.

a fevereiro de 2015, houve queda nas vendas e desinteresse por parte da população local. Isso fez com que alguns produtores mudassem de feira, partindo para outros bairros. Em maio de 2015, quando a feira completou um ano, uma grade festa foi feita na praça e novos feirantes foram incorporados ao mercado. Entre eles, um casal de agricultores e educadores ambientais que recuperaram um terreno na Serra da Misericórdia24 e cultivam plantas de alto teor nutritivo, tal como a chaya – conhecida como proteína vegetal de origem mexicana. A feira representou uma novidade para o comportamento local, uma vez que os consumidores estão acostumados a adquirir alimentos sem se preocuparem com sua origem ou o modo como foi produzido. Antes da feira, os moradores da região tinham como opções de compra duas grandes redes de supermercado que existem nas proximidades e ainda um vendedor ambulante de frutas e hortaliças que monta sua banca todos os dias em frente à praça, ao lado do Olaria Esporte Clube. Tanto o ambulante quanto os supermercados vendem seus produtos seguindo a tabela das Centrais de Abastecimento SA., ou seja, conforme uma tabela de preços nacional e, portanto, mais baratos do que na feira orgânica. Isso tem gerado polêmica entre os “leopoldinenses” e os sitiantes. Os primeiros dizem que é preciso reduzir o valor dos alimentos, uma vez que a comercialização é direta, sem atravessadores, e o poder aquisitivo da região não é o

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Localizada na Vila Cruzeiro, uma das favelas do Complexo do Alemão, situada ao lado do bairro da Penha.

mesmo de outros bairros da cidade que também recebem o Circuito Carioca de Feiras Orgânicas. Já os segundos argumentam que seus produtos possuem qualidade diferenciada, não são produzidos em massa, possuem custos mais elevados e por isso não podem ser vendidos como no sistema atacadista. Para ampliar a divulgação da feira, seus articuladores criaram uma página na rede social Facebook. Esta é usada basicamente para divulgar um evento que ocorre sempre no segundo sábado do mês, a Leopoldina Orgânica, uma espécie de festa realizada na praça e no horário da feira para atrair visitantes. Nessa ocasião, algumas bancas “especiais”, de artesanato e culinária, comparecem, como convidadas. Também são convidados para atuar nos dias de festa músicos e representantes de projetos sociais locais. Atuações externas como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Grupo de Monitoramento da Qualidade do Ar da Prefeitura Municipal também já visitaram a feira. Temas como reforma agrária e soberania alimentar também já foram discutidos entre os presentes. Os feirantes, contudo, dizem não gostar desses momentos de festa e debate público, uma vez que o sistema de som, em volume alto, atrapalha as suas conversas com a clientela. As relações na praça e na feira não são completamente harmônicas. Pelo contrário, são constituídas de uma certa tensão. Há disputas de poder, bem como choques entre gerações, gêneros e classes sociais. Porém, presume-se que disso é feito o comum. Esse

conceito pode ser definido, conforme apresentam Hardt e Negri (2009), como o conjunto de bens naturais (água, solo, biodiversidade etc.), culturais (culinária, festejos, produções artísticas, entre outros) e materiais (patrimônio histórico, cidades, territórios) cultivados, produzidos e partilhados pela humanidade. Bens estes que estão em constante disputa entre grupos, instituições e conforme interesses distintos. Sob outra perspectiva, como a apresentada por Esposito, o comum também pode ser entendido como o amálgama que permeia as relações e atrai as pessoas, para além de suas singularidades. É o impróprio, o resultado de uma disposição constitutiva do ser humano em partilhar afinidades e diferenças. É algo não necessariamente positivo, que sinaliza para uma falta a ser suprida; um dever, uma dívida (ESPOSITO, 2003, p.p. 21 a 31). Ao levar os sujeitos à inclinação e ao contato, ou seja, à comunicação, o comum redunda em uma condição de existência cotidiana. O que se analisa, até o momento, é que o comum entre a praça, a feira e as pessoas envolvidas nesse contexto está relacionado com a necessidade do bem-viver. Deste modo, o comum está nos alimentos e na praça, simbolicamente, mas também no deslocamento dos produtores rurais do campo para a cidade, na vontade de salvar a praça de uma inexistência, na infinidade de atividades planejadas pelos moradores da região. Isso é que faz os grupos se formarem, discutirem, planejarem atividades conjuntas e pautarem debates a respeito de temas como a soberania alimentar. Entre os sujeitos estudados,

nota-se um desejo, latente ou patente, de melhor convivência. A instalação da feira de alimentos orgânicos na praça Marechal Maurício Cardoso foi um arranjo para que a praça fosse ocupada e não se perdesse em seu propósito (atribuído pelos próprios moradores da região) de receber pessoas. Foi uma “luta”, como bem lembram os Amigos da Praça. Primeiro, para que o caráter de espaço público não fosse modificado pela administração da cidade. Em segundo lugar, para que os frequentadores do local pudessem se fazer ouvir. Terceiro, para que uma atividade fixa fosse instalada na praça, como forma de garantir seu uso. Essa luta, então, uniu vidas e pensamentos diferentes em torno de um objetivo em comum. Teria sido gerada, ainda que transitoriamente, uma comunidade, na medida em que houve um encontro entre as pessoas. Algum vínculo se formou por meio da necessidade de se manter, entre os bairros, um espaço de encontro. E é em relação que o comum é partilhado, novas ideias surgem, outras são abandonadas, a agroecologia perpassa o comércio de alimentos como “novidade”, ora é consumida, ora é refutada, as pessoas reelaboram sua visão sobre o campo e, assim, a ruralidade é produzida naquele espaço.

5. Considerações finais O que foi apresentado neste texto faz parte de uma pesquisa que se questiona sobre o “rural” no Rio de Janeiro contemporâneo e articula pesquisas empíricas no campo

e na cidade. Neste texto, foi descrito um dos cenários da investigação em busca de abordar o debate sobre a relação campo-cidade na perspectiva das ruralidades contemporâneas, questionando, desta forma, se a comunicação, como organizadora do social, produz ruralidades, e em que proporções. Para prosseguir, se lança uma hipótese geral, qual seja: a comunicação, por meio de sua condição ambígua, é capaz de produzir entendimentos sobre o “rural” que, por sua vez, contribuem para a reprodução de novas formulações, de modo que as experiências são (re)partilhadas e se tem, assim, algo entre a comunicação e o processo de elaboração das ruralidades, qual seja, o comum. Esse comum é cultivado na comunicação e nas ruralidades em processo – o que faz com que o “rural” siga existindo como elemento das relações e possibilidades de vinculação humana. Esse comum, na Praça Marechal Maurício Cardoso e na Feira Orgânica da Leopoldina, é o desejo de uma vida melhor. De modo que as pessoas, em relação, passam a buscar e a construir o seu próprio desenvolvimento.

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