\'Comunidade de Segurança\' ou \'Comunidade de Não-Guerra\'? Uma Análise dos Padrões Regionais de Segurança na América do Sul

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Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) 5º Encontro Nacional

'Comunidade de Segurança' ou 'Comunidade de Não-Guerra'? Uma Análise dos Padrões Regionais de Segurança na América do Sul Thiago Babo1 Camila Braga2

Paper preparado para o V Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais, a ser realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre os dias 29 e 31 de julho, 2015.

Working Paper. Favor não citar sem a autorização prévia dos autores.

Belo Horizonte 2015 Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais – NUPRI/USP. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais – NUPRI/USP. E-mail: [email protected] 1

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Resumo: Nos últimos anos, presenciamos um desenvolvimento considerável do aprofundamento da cooperação regional entre os países da América do Sul. De forma ainda mais significativa, este processo passou a considerar áreas que outrora não frequentavam as pautas de cooperação sul-americana, como questões de segurança e defesa – principalmente com a criação do Conselho Sul-americano de Defesa, em 2008, dentro do aparato institucional da União das Nações Sul-americanas (UNASUL). Um dos motivadores do crescimento desta cooperação, se não o principal, fora a participação massiva das nações da região na operação de paz das Nações Unidas no Haiti, a MINUSTAH. Em resposta a estes desenvolvimentos, por conseguinte, muitos pesquisadores da região passaram a se utilizar do conceito de ‘comunidade de segurança’, desenvolvido inicialmente por Karl Deutsch, para compreender a atual situação da região. Grande parte destes trabalhos, contudo, apresentaram uma baixa reflexão teórica acerca da ideia de Deutsch. Desta forma, inserido neste debate, este trabalho procura compreender em que medida podemos considerar a existência de uma comunidade de segurança sul-americana. Iremos argumentar a incompatibilidade do uso do conceito de ‘comunidade de segurança’ para se compreender a realidade da região. Para tal, nos utilizaremos, principalmente, de uma reflexão teórica em torno do trabalho de Deutsch, juntamente com fatos empíricos que possam colaborar com nosso argumento. Palavras-Chave: Comunidade de Segurança; Comunidade de Não-Guerra; América do Sul; UNASUL; Cooperação sul-americana.

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Introdução – Seria a América do Sul uma Comunidade de Segurança?

Nos últimos anos, ao menos desde meados da primeira década do século XXI, estamos presenciando o crescimento exponêncial de interpretações, dentro da academia brasileira e sul americana de Ciência Política e Relações Internacionais, sobre a natureza das relações de poder existentes na região da América do Sul (as vezes extrapolada até a América Latina), que buscam se aproximar à ideia de ‘comunidade de segurança’, cunhada nos anos 50 do século passado. Podemos, sem exitação, explicar esta recente apropriação do conceito de ‘comunidade de segurança’ para compreender a região sul americana, através de dois momentos: (i) a “revitalização” realizada por Emanuel Adler e Michael Barnett, no final dos anos 90, propondo uma leitura própria do construtivismo americano para os trabalhos iniciais sobre ‘comunidades de segurança’; e (ii) as consequências para a política internacional da região proporcionada pelo crescimento das interações internacionais entre os países da América do Sul após o início do comando brasileiro na operação de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti, a MINUSTAH, durante o primeiro semestre de 2004. O conceito de ‘comunidade de segurança’ fora desenvolvido, durante o início dos anos 50, no âmbito do Centro para Pesquisa em Instituições Políticas Mundiais, sediada na Universidade de Princeton, Estados Unidos da América. Neste período, liderado pelo Prof. Richard W. Van Wagenen, o Centro de Pesquisa realizou “um grande inquérito sobre a evolução das comunidades políticas, como uma contribuição prática para a compreensão e solução dos problemas fundamentais que acompanham os esforços da humanidade para estabelecer uma organização internacional pacífica nas condições contemporâneas” (Deutsch, 1954: p. viii). Embora a conceptualização de ‘comunidade de segurança’ tenha aparecido primeiramente em uma obra de Richard Van Wagenen, em 1952, fora através das contribuições oferecidas por Karl Deutsch, um dos principais pesquisadores do Centro para Pesquisa em Instituições Políticas Mundiais, que a ideia adquiriu uma maior maturação intelectual, influenciando, consideravelmente, o início dos estudos sobre integração regional – que apareceram numa tentativa de compreender o processo europeu de integração. Todavia, a ideia de ‘comunidade de segurança’ de Deutsch não resultou em uma ‘linha de pesquisa’ considerável no debate das relações internacionais durante o período da Guerra Fria, principalmente devido ao seu caráter inovador. Os pesquisadores preocupados com a política internacional apresentaram inúmeras dificuldades em utilizar a linguagem da comunidade política para compreender os fenômenos internacionais. Essa dificuldade acabou por prejudicar a compreensão da possibilidade de uma comunidade política internacional em imprimir segurança internacional.

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Esta incapacidade de se pensar a segurança através de uma perspectiva comunitária consiste em um reflexo do entendimento do sistema internacional como anárquico, levando os Estados a buscarem vantagens sobre suas contrapartes, em um sistema de soma zero, em ações de auto interesse e autoajuda. Sendo assim, torna-se impensável, para estes pensadores, a ideia “de que atores possam compartilhar valores, normas e símbolos que proporcionem uma identidade social, e que se envolvam em diversas interações, em inumeráveis esferas, que reflitam interesses de longo prazo, reciprocidade difusa e confiança (...)” (Adler; Barnett, 1998b: p. 3). Com o término da Guerra Fria, juntamente com crescimento de processos de regionalização ao redor do globo, Emanuel Adler e Michael Barnett compreenderam a necessidade de se pensar a “nova” realidade internacional através da herança deixada por Karl Deutsch e seus colegas de pesquisa. Para se diferenciar do trabalho original, Adler e Barnett buscaram introduzir elementos próprios do constutivismo (americano3), como veremos mais adiante, realçando elementos como o compartilhamento de normas e instituições (formais/físicas) entre os Estados nacionais. Na coletânea organizada pelos autores (Adler; Barnett, 1998a), um dos capítulos empíricos fora dedicado a compreensão da América do Sul como uma ‘comunidade de segurança’ – conceito já afastado dos trabalhos iniciais de Deutsch e cia. Neste estudo, Andrew Hurrel, responsável pelo caso sul americano, irá afirmar a possibilidade de se encontrar a emergência de uma ‘comunidade de segurança’ na região. Seguindo a estrutura teórica exposta por Adler e Barnett – e, de forma curiosa, deixando de lado o estudo de Hurrel – intelectuais brasileiros e sul americanos passaram, cada vez mais, a utilizarem a ideia de ‘comunidade de segurança’ para compreender as dinâmicas políticas da região. O grande ‘reagente’ deste fenômeno, sem dúvida alguma, fora o crescimento da cooperação entre os Estados sul americanos como consequência da liderança brasileira na MINUSTAH. O desenvolvimento considerável desta cooperação regional fora acompanhada pelo aprofundamento dos arcabouços institucionais da região, chegando ao seu ápice com a criação da União das Nações Sul-americanas (UNASUL), em 2008. Ademais, a cooperação sul americana passou, desde então, a considerar áreas que outrora não frequentavam as pautas de cooperação sul-americana, como questões de segurança e defesa – principalmente com a criação do Conselho Sul-americano de Defesa, em 2008, no âmbito da UNASUL. Através do ‘afrouxamento’ e ‘enfraquecimento’ teórico proposto por Adler e Barnett (Ditrych, 2014), juntamento com o avanço da cooperação institucionalizada entre os países da América do Sul, a região passou a ser caracterizada, por muitos, como uma ‘comunidade de segurança’ (Diamint, 2010; Kernic & Karlborg, 2010; Leite, 2015; Magalhães, 2010; Pion-Berlin & Trinkunas, 2007; Souza Neto, 2013; entre muitos outros).

Em parte da literatura das Relações Internacionais, comum, principalmente, entre pesquisadores europeus, a caracterização ‘construtivismo americano’ se dá para identificar aqueles pensadores construtivistas, dentro das Relações Internacionais, que se aproximam fortemente de teorias neoliberais institucionalista – bem representadas pelos trabalhos de Robert Keohane e Joseph Nye.

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O objetivo deste paper é questionar exatamente esta interpretação, procurando, assim, compreender em que medida podemos considerar a existência de uma ‘comunidade de segurança’ sul-americana. Nossa hipótese, conforme procuraremos demonstrar nas próximas páginas, consiste em negar a possibilidade de se entender a região através do aparato conceitual da ‘comunidade de segurança’. Por fim, iremos argumentar que um outro conceito criado por Deutsch, o de ‘comunidades de não-guerra’ (‘no-war communities’), apresenta maior aproximação com a “realidade” sul americana. Dessa forma, estruturaremos nossa argumentação da seguinte forma: (i) primeiramente iremos levantar alguns pontos importantes da contribuição original realizada por Karl Deutsch e seus colegas sobre a existência de ‘comunidades políticas internacionais’; (ii) em seguida, devido a importância que o entendimento de Adler e Barnett sobre ‘comunidades de segurança’ teve nos interpretes da região sul americana, iremos apresentar as mundanças e fragilidades desta leitura construtivista; (iii) por fim, ao concluir, buscaremos demonstrar a necessidade de se compreender a região através do conceito de ‘comunidade de não-guerra’ devido a existência de mecanismos de balança de poder na região. Vale ressaltar que este (working) paper constitui-se como uma primeira reflexão (muito mais “teórica”) acerca da temática aqui exposta e que será aprimorado, tanto em seu caráter teórico, quanto em seu levantamento empírico, ao longo do desenvolvimento da pesquisa.

As Comunidades Políticas Internacionais no pensamento de Karl Deutsch

Durantes os anos 50, Karl Deutsch (1912-1992) realizou duas importantes contribuições sobre os estudos acerca dos processos de sociabilização para além das fronteiras nacionais. Em 1954, Deutsch publicou a obra “Political Community at the International Level: Problems of Definition and Measurement” que buscava apresentar as origens da comunidade política no “ocidente” e problematizar a possibilidade de se pensar tais comunidades no âmbito internacional. Alguns anos depois, em 1957, Deutsch liderou4 a publicação “Political Community and the North Atlantic Area: International Organization in the Light of Historical Experience”, resultado de uma longa pesquisa histórica realizada pelo Centro para Pesquisa em Instituições Políticas Mundiais, que buscava entender a existência de um tipo específico de ‘comunidade política internacional’, as ‘comunidades de segurança’. Nas palavras do autor (Deutsch, 1957: p. 3), “realizamos este inquérito como uma contribuição para o estudo de possíveis formas pelas quais os homens, algum dia, poderão abolir a guerra”. Desta forma, a pesquisa ali conduzida tinha por objetivo compreender “como os homens podem aprender a agir em conjunto para eliminar a guerra como uma instituição social?”.

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A pesquisa se caracterizou pela existência de inúmeros estudos de casos, sendo Deutsch o responsável pela realização das generalizações possíveis de serem aferidas.

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A ideia de ‘comunidade’, para o autor (Deutsch, 1954: 33), está conectada a existência de altos níveis “significantes” de transações e, consequentemente, comunicações entre indivíduos – o que impossibilitaria a existência de uma ‘comunidade’ entre pessoas que possuem baixa interação. As ‘comunidades políticas’, por sua vez, são entendidas como o resultado de uma interação política constante entre grupos sociais, sendo que tal contato dá-se tanto por meio de algum mecanismo de coerção, como pela existência conjunta de práticas, na população, de complacência. Dessa forma, Uma comunidade política pode ser definida como uma comunidade de transações sociais, caracterizada tanto pela coerção, como por uma complacência. Neste sentido, é uma comunidade de pessoas em que as instituições comuns, ou coordenadas, para a tomada de decisões, bem como sua execução de comandos, são complementadas por hábitos de consentimento suficientemente difundidas e previsíveis que garantem, de forma bem sucedida, a coerção nos demais casos onde não há um consentimento (...) (Deutsch, 1954; p. 40).

A ideia de ‘comunidade política’ utilizada por Deutsch apresenta forte semelhança à concepção de ‘sociedade’ apresentada pela sociologia desde o século XIX. A necessidade da criação de instrumentos coercitivos fora compreendida por grande parte do debate sociológico deste período como a característica definidora das sociedades modernas, em contraposição às comunidades. A contraposição destes dois modelos ganha uma definição solene realizada por Ferdinand Tönnies (2001: p. 52): enquanto na (Gemeinschaft) ‘comunidade’ as partes encontram-se unidas, apesar de tudo que as separa; na (Gesellschaft) ‘sociedade’ as partes permanecem separadas, não importando tudo que os une. Mecanismos coercitivos são necessários para unir estas partes que, caso contrário, não permanecerão juntas. Contudo, a existência de uma ‘comunidade política internacional’ não é capaz de garantir a eliminação, ao menos em um considerável período de tempo, da guerra enquanto prática recorrente na política internacional. A exclusão da guerra entre as partes desta ‘comunidade política’ só se torna possível caso haja a expectativa de que eventuais disputas sejam resolvidas sem o uso da força. Assim sendo, a ideia de uma guerra entre as unidades da comunidade deixa de ser esperada, tanto pela elite política, quanto pelas populações, e torna-se algo improvável. Quando uma ‘comunidade política’ é capaz de construir tal sentimento, temos, irá afirmar Karl Deutsch, uma ‘comunidade de segurança’. ‘Comunidade de Segurança’ fora definida (Deutsch, 1954: p. 33; 1957: p. 5) como um grupo de indivíduos que tornaram-se suficientemente integrados; sendo integração o processo pelo qual este grupo fora capaz de construir um sentimento de comunidade, de pertencimento, e que tal percepção fora acompanhada da constituição de instituições e práticas, formais e/ou informais, altamente consolidadas e difundidas entre as unidades da comunidade, originando assim o estabelecimento de uma expectativa de mudança pacífica nas relações entre as partes. “A comunidade de segurança, portanto, é aquela em que existe uma garantia real de que os membros da comunidade que não irão lutar entre si, fisicamente, mas irão resolver suas diferenças de alguma outra forma” (Deutsch, 1957: p. 5). 6

Para Deutsch, uma comunidade de segurança surge através de um processo de integração regional caracterizado pelo desenvolvimento de “fluxos transnacionais, entendimentos compartilhados e valores transnacionais” (Deutsch, 1957: p. 58). Os fluxos transnacionais caracterizam-se, nessa comunidade, através de interações regulares e, não necessariamente institucionalizadas entre os governos nacionais e membros da sociedade civil dos respectivos países. Assim, as interações entre as partes da ‘comunidade de segurança’ acarretariam na criação de expectativas de confiança na mudança pacífica dos comportamentos dos atores, levando ao entendimento de que eventuais disputas entre os Estados da comunidade sejam resolvidos por meios opostos ao da força, ou seja, da guerra. Contudo, Deutsch irá afirmar que uma ‘comunidade de segurança’ não se define, somente, pela ausência do conflito armado entre as partes, mas também pela criação de uma identidade compartilhada, um sentimento de pertencimento comum. Deutsch irá apontar para a existência, principalmente, de duas espécies de ‘comunidades de segurança’: (i) ‘comunidade de segurança amalgamada’, quando duas ou mais unidades políticas, previamente independentes, unem-se em uma unidade política única, com um governo comum; (ii) ‘comunidade de segurança pluralística’, quando há a permanência da independência formal das unidades políticas. De forma sistemática, após o estudo de inúmeros casos de integração e fragmentação de Estados, Deutsch irá afirmar que uma ‘comunidade de segurança amalgamada’ depende da existência de nove condições essenciais, ademais, elenca mais três condições que podem vir a se tornarem essenciais. Entre as do primeiro grupo, encontramos as seguintes: (i) a mútua compatibilidade entre os principais valores; (ii) uma forma distinta do modo de vida; (iii) a expectativa de um fortalecimento de laços e/ou ganhos econômicos; (iv) um aumento considerável das capacidades políticas e administrativas; (v) um crescimento econômico superior – comparado ao esperado antes da criação da comunidade; (vi) relações inquebráveis de comunicação social entre as partes, tanto geograficamente como socialmente – entre os territórios e os mais diversos grupos sociais; (vii) um crescimento da elite política; (viii) a mobilidade de pessoas por toda comunidade; (ix) uma multiplicidade de faixas de comunicação e transações. Nas do segundo grupo, podendo ser essenciais, temos: (x) uma retribuição dos fluxos de comunicação e transações; (xi) um intercâmbio das funções dos grupos sociais; (xii) uma considerável previsibilidade mútua do comportamento. A partir destas categorias elencadas, Deutsch irá afirmar que o sucesso de uma ‘comunidade de segurança pluralística’ depende da existência de três condições: (i) a mútua compatibilidade entre os principais valores; (ii) a capacidade dos atores políticos das unidades da comunidade em apresentar uma resposta rápida as necessidades políticas sem o uso de instrumentos coercitivos; (iii) uma considerável previsibilidade mútua do comportamento. Assim, ao analisarmos as condições necessárias para o sucesso de ambos os tipos de comunidade de segurança, amalgamada e pluralística, podemos destacar o aspecto essencial da identificação de valores compartilhados entre as partes pertencentes à comunidade. 7

Para qualquer um dos dois tipos de integração [seja o amalgamada, seja o pluralística], descobrimos a necessidade de haver uma compatibilidade dos principais valores mantidos, defendidos, pelas camadas relevantes de todas as unidades políticas envolvidas [no processo de integração] (Deutsch, 1957; p. 123).

Dito isto, devemos destacar dois elementos essenciais encontrados nos debates acerca da ‘comunidade de segurança’ que irão nos ajudar a melhor compreender a temática da pesquisa aqui apresentada. Primeiramente, uma ‘comunidade de segurança’ caracterizase, principalmente, pela existência de dois fenômenos, a saber, a presença de valores compartilhados entre as partes, e a criação (ou a existência prévia) de uma identidade comum, não conflitante com as identidades nacionais. As ‘comunidades de segurança’ seriam, assim, para Deutsch, um tipo possível de ‘comunidade política internacional’, porém não o único. Um outro tipo possível de ‘comunidade política internacional’, e anterior as ‘comunidades de segurança’, consistem nas ‘comunidades de não-guerra’ (no-war community). Neste caso, “o único comando que é esperado, e apoiado por sanções formais ou informais relativamente eficazes, é o comando para não recorrer à violência ou à guerra em grande escala na resolução de litígios”, porém, diferentemente das ‘comunidades de segurança’, “a possibilidade de guerra é ainda esperada e, em certa medida, as preparações para a guerra ainda são feitas” (Deutsch, 1954: p. 41). Dessa forma, a existência de uma balança de poder e, eventualmente, de uma corrida armamentista, são características deste tipo de comunidade. Voltaremos à ideia de ‘comunidade de não-guerra’ nas considerações finais deste working paper.

A leitura liberal de Adler e Barnett

Com o término da Guerra Fria, e com o crescente impacto de teorias construtivistas nos estudos das relações internacionais, Emannuel Adler e Michael Barnett (1998a) “revitalizaram” o conceito de comunidade de segurança, (re) afirmando a existência destas comunidades em nível internacional, além de demonstrar como as políticas de segurança são altamente moldadas por tais e que os Estados, que pertencem a tal comunidade, podem desenvolver uma disposição pacífica. A necessidade de se olhar, novamente, para a ideia de ‘comunidade de segurança’ cerca de quarenta anos depois dos trabalhos de Deutsch e cia., está relacionada ao uso deste conceito por oficiais da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e de alguns políticos ligados à Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), no pósGuerra Fria. Adler e Barnett (1998c: p. 30) irão apresentar uma estrutura teórica, fortemente influenciada pelo construtivismo, acerca das ‘comunidades pluralísticas de segurança’, que serão definidas quando os indivíduos de uma região transnacional composta por Estados 8

soberanos mantêm expectativas de mudança pacífica. Assim, estas comunidades podem ser “classificadas de acordo com a profundidade de confiança existente, a natureza e o grau de institucionalização de seu sistema de governo, e se residem em uma anarquia formal ou estão perto de transformá-la” (idem). A partir de tal formulação, os autores irão criar dois tipos ideais de ‘comunidades pluralísticas de segurança’: (i) ‘fracamente acoplada’ (loosely-coupled), cuja definição reside nos próprios elementos teóricos que caracterizam uma ‘comunidade de segurança pluralística’, conforme descrito acima; (ii) ‘fortemente acoplada’ (tightly-coupled), que caracteriza-se pela construção de arranjos de sistema de segurança coletiva e pela existência de um sistema de regras localizado entre um Estado soberano e um Estado regional, o que implica na criação de um sistema pós-soberano dotado de instituições comuns supranacionais, transnacionais e nacionais. A principal contribuição oferecida por Adler e Barnett encontra-se na criação de uma estrutura teórica de análise, organizada em três momentos analíticos sobrepostos (três “camadas”), capazes de compreender o desenvolvimento de uma ‘comunidade de segurança’. Em um primeiro momento, (i) faz-se necessário o entendimento dos fatores que proporcionam que os Estados possam orientar suas ações em direção a um outro Estado, assim, coordenando suas políticas; posteriormente, (ii) os elementos estruturais (poder e ideias) e do processo (transações entre as sociedades, organizações sociais e aprendizado social) devem ser analisados; por fim, (iii) como consequência destes dois movimentos anteriores, temos a criação de laços de confiança e a formação de uma identidade coletiva. A primeira camada analítica proposta pelos autores tem por função demonstrar que, como consequência de eventos endógenos e/ou exógenos, realizados pela ação da natureza ou controlados pela ação humana, os Estados passaram a orientar suas ações externas na direção de suas contrapartes, e buscaram criar elementos que proporcionaram a coordenação de suas políticas. Contudo, (...) não há expectativas que estes encontros iniciais e atos de cooperação possam produzir confiança ou identificação mútua; mas porque eles têm como premissa a promessa de interações mais agradáveis e mais numerosas, fornecem as condições necessárias para estas mesmas possibilidades (idem: p. 38).

Assim, a evolução destas interações proporcionam as condições necessárias para o desenvolvimento de novas relações sociais, de novos laços sociais. Como consequência, estas novas interações sociais entre os Estados começam a transformar o ambiente social. Sendo assim, a segunda camada analítica deve diferenciar as mudanças estruturais e processuais. As estruturas que sustentam o desenvolvimento de uma ‘comunidade de segurança’ referem-se ao poder e ao conhecimento. O poder, de acordo com os autores, tem a capacidade de determinar quais valores que irão constituir o sentimento de pertencimento a uma comunidade. 9

Em outras palavras, o poder pode ser um imã; uma comunidade formada ao redor de um grupo de Estados fortes cria expectativas que Estados fracos que são incorporados à comunidade serão capazes de aproveitar a segurança e outros potenciais benefícios que são associados com aquela comunidade (idem: p. 39).

Além disso, os resultados desta nova interação social são capazes de gerar mudanças significativas nas estruturas cognitivas dos Estados, proporcionando o desenvolvimento de entendimentos e significados compartilhados. No que tange mudanças processuais, o desenvolvimento de novas transações entre as partes – e aqui, assim como Deutsch, os processos de comunicação ganham relativo destaque – tem como consequência última transformações no aprendizado social (‘social learning’), ou seja, “na capacidade e na motivação de atores sociais em administrar e até transformar a realidade através da mudança de suas crenças do mundo material e social, assim como suas identidades” (idem: p. 44). Assim, devido às novas formas de interações sociais, mudanças processuais tem a capacidade de transformar os valores e entendimentos individuais e coletivos. A terceira camada de análise seria, diretamente, o resultado das transformações compreendidas nas duas primeiras; em outras palavras, as mudanças nas condições estruturais e processuais, uma consequência direta das modificações das interações sociais, tem a capacidade de desenvolver sentimentos de confiança mútua e a criação de uma identidade coletiva que, por sua vez, será responsável pela existência de expectativas de mudança pacífica. A confiança entre as partes, que irá preceder, necessariamente, o desenvolvimento de uma identidade comum, na visão dos autores, pode ser definida como “um fenômeno social e dependente da avaliação de que outro ator vai se comportar de maneira que são consistentes com as expectativas normativas” (idem: p. 46). Contudo, a interpretação proposta por Adler e Barnett apresentam algumas falhas. Primeiramente, vale a pena destacar que a inclusão das normas compartilhadas – e o destaque destas, em detrimento dos valores comuns – como um elemento definidor de ‘comunidades de segurança’ não é justificado em nenhum momento pelos autores. Cabe saber em que medida a existência de normas comuns às partes da ‘comunidade’ são imprescindíveis para a formação de ‘comunidades de segurança’. Em segundo lugar, a leitura apresentada pelos autores é fortemente Estadocêntrica, diferenciando-se, em muito, da leitura original de Deutsch. A negligência feita aos grupos sociais e as elites políticas, e a importância demasiada nas instituições internacionais formais/físicas, colaboram para o enfraquecimento do referencial teórico original. Em sua ênfase contínua sobre o papel das instituições, (...) Adler e Barnett, seus colaboradores e muitas outras pessoas que usaram o conceito recentemente, limitam suas investigações às instituições 10

formais (muitas vezes conchas vazias), prestando pouca atenção a outros sites e domínios em que as práticas sociais, potencialmente significativas, ocorrem” (Ditrych, 2014: p. 354).

Por fim, Adler e Barnett apresentam um padrão evolutivo das ‘comunidades de segurança’, composto, inicialmente, pela fase ‘nascente’, passando pela fase ‘ascendente’ e, chegando ao fim, na sua fase ‘madura’. Para não se estender muito no argumento, a fase ‘nascente’ se caracteriza quando Estados buscam a criação de organizações/instituições internacionais com o objetivo de coordenar de forma melhor suas relações e encorajar futuras transações. O que se assemelha, literalmente, à ideia de cooperação. E aqui se encontra um dos grandes problemas desta nova interpretação. Ao pressupor que uma cooperação na área de segurança é a condição necessária para a identificação de uma ‘comunidade de segurança’, Adler e Barnett acabam por tirar todo e qualquer significado do conceito de ‘comunidade de segurança’, pois “tudo” se torna uma ‘comunidade de segurança’. É exatamente por este afrouxamento teórico que os autores irão encontrar inúmeros casos de ‘comunidades de segurança’, tanto em todas as regiões do globo, como em casos bem mais controversos, como uma suposta ‘comunidade de segurança’ entre Israel e os EUA, ou entre a Austrália e o “Ocidente”. Além do mais, Uma fraca especificação do conceito, na interpretação construtivista, juntamente com (paradoxalmente) a dependência de instituições regionais formais, significa que a existência de uma comunidade de segurança é impossível de falsificar, e que não há nenhuma maneira de demonstrar que um projeto político com a ambição de construir uma comunidade de segurança falhou (Ditrych, 2014: p. 355).

É extremamente significativo que as intepretações sobre a possibilidade de se compreender a América do Sul como uma ‘comunidade de segurança’ tiveram origem do fortalecimento da cooperação e do aparato institucional entre os Estados da região.

Conclusão – A América do Sul como uma Comunidade de Não-Guerra

Resta-nos, agora, apresentar as considerações finais que possam colaborar com a hipótese aqui expressa. Devido ao caráter inicial deste working paper, buscamos levantar algumas reflexões teóricas sobre a ideia de ‘comunidade de segurança’ que, desde 2004, ao menos, passou a ser invocada por muitos intelectuais sul americanos para explicar as relações existentes entre os Estados da região. Baseando-se no arcabouço desenvolvido por Adler e Barnett (e sem apresentar nenhuma leitura crítica sobre tal), e ignorando o trabalho original de Deutsch e cia., estes 11

intelectuais interpretaram a criação da UNASUL e, mais precisamente, de seu Conselho de Defesa, como um elemento constitutivo da ‘comunidade de segurança’ emergente na América do Sul. Esta leitura ‘liberal’, focada apenas nos aspectos institucionais das relações internacionais, acaba por ignorar questões altamente ricas e sensíveis a ideia de ‘comunidade de segurança’, conforme desenvolvida originalmente. O artigo de Danilo de Souza Neto (2013) é um exemplo interessante desta ‘onda’ de interpretes – o texto apresenta de forma detalhada o desenvolvimento das mais diversas instâncias institucionais (formais e físicas) criadas entre os Estados sul americanos como consequência do aumento da cooperação na região, após o início da MINUSTAH, mas ignora completamente questões associadas a identificação de valores e uma identidade comum. A problematização referente a identifiação de valores comuns e de uma identidade compartilhada na região se faz altamente necessária, caso queiramos nos preocupar com o referêncial da ‘comunidade de segurança’. Infelizmente, a operacionalização em torno da ideia de ‘valores compartilhados por indivíduos de uma região’ é um ponto altamente sensível na obra de Deutsch. Falta uma definição precisa. Muitos interpretes recentes costumam mostrar que um destes valores seria a propria ideia de ‘democracia’, e que Estados que compartilham da defesa da democracia apresentariam este pressuposto necessário para a identificação de uma ‘comunidade de segurança’. Tendemos a discordar de tais análises, uma vez que se levarmos a ‘democracia’ como um valor característico de uma ‘comunidade de segurança’ teremos que compreender o globo como uma grande ‘comunidade de segurança’, uma vez que praticamente todos os Estados defendem, ao menos em discurso, a democracia. Este valor compartilhado tem que ser algo muito mais específico, muito mais próprio e característico da região. Embora este working paper não busca se focar na dificuldade de se trabalhar com a ideia dos valores compartilhados, algo que iremos deixar para um outro trabalho, vale uma pequena anedota: o debate público que ocorrera na Dinamarca, durante os anos 60, sobre a possibilidade da adesão do país na Comunidade Europeia, focava muito na ideia de que a integração europeia representava valores da Europa continental que, por sua vez, se diferenciava, em muito, dos valores dinamarques, compartilhados entre os demais países nórdicos. Uma das preocupações existentes, para exemplificar, dava-se sobre o papel da mulher. Os dinamarqueses se preocupavam que os avanços na busca da igualdade de gênero alcançado na região nórdica estivesse ameaçado, caso o país entrasse na Europa integrada, uma vez que os países da Europa continental apresentavam uma visão mais machista sobre o papel da mulher na sociedade (Babo, 2015). Além da questão dos valores, os textos recentes que buscam compreender a América do Sul como uma ‘comunidade de segurança’, ignoram a questão identitária. A ideia de uma identidade (latino) americana sempre fora algo muito presente em alguns grupos da elite política dos países da região, primordialmente ligados à grupos mais à esquerda do espectro político. Contudo, tais ideiais ainda apresentam dificuldades em alcançar toda a elite política e grande parte da sociedade civil. Por fim, entendemos que a a região sul americana poderia ser melhor compreendida pela ideia de ‘comunidade de não-guerra’, conforme definida por Deutsch. 12

Concordamos com a ideia apresentada em alguns trabalhos (Mares, 2013, 2012; Villa, 2015, 2014; Villa & Weiffen, 2014) de que não podemos ignorar a existência de uma balança de poder entre os países da região. (…) uma série de tensões fronteiriças e diplomáticas têm acontecido nos últimos 15 anos que incluíram países como Nicarágua/Costa Rica, Guatemala/Belize, Nicarágua/Colômbia, Ecuador/Colômbia, Colômbia/Venezuela, Argentina/Uruguai e Bolívia/Chile. Estes desenvolvimentos têm o potencial para militarizar os conflitos territoriais, ideológicos e de recursos já existentes entre Estados vizinhos latino-americanos. Em outras palavras, padrões de comportamento que tendem para a prática de balança de poder ou de formação de conflito ainda permanecem vigentes nas relações contemporâneas de países latino-americanos (Villa, 2015).

A existência de uma balança de poder acabaria por “desqualificar” a existência de uma ‘comunidade de segurança’, uma vez que tais conceitos operam por pressupos distintos e conflitantes.

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