Comunidades de Prática e Saúde: Uma introdução ao tema

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Saberes Editora Av. Santa Isabel, 260 Barão Geraldo | Campinas, SP Telefone: +55 19 3288 0013 www.sabereseditora.com.br [email protected] comunidade_capa_01.indd 1

COMUNIDADES de PRÁTICA e SAÚDE

Francisco A. Loiola é professor da Universidade de Montreal (Québec, Canadá). Tem um PhD em psicopedagogia pela Université Laval (Québe, Canada), um mestrado em educação pela Universidade Federal do Ceará (Brasil). Trabalhou 13 anos na Universidade Federal do Ceará, no campo didática geral e didática do ensino superior. Apoiado na análise da atividade real do trabalho segundo a perspectiva da ergonomia de tradição francesa, desenvolve pesquisas sobre a atividade docente através da implantação e validação de dispositivos pedagógicos visando o desenvolvimento de competências pedagógicas no âmbito do ensino superior. Nesse sentido, trabalha igualmente na consolidação de uma rede de valorização do ensino em contexto universitário através da supervisão de estagiários universitários através do programa Regroupements stratégiques financiado pelo FQRSC - Fonds de recherche sur la société et la culture (2012-2017).

Este livro traz a Teoria Social da Aprendizagem e Comunidades de Prática, de Etienne Wenger, para o debate no meio acadêmico e profissional em saúde do Brasil. É uma leitura indispensável para estudantes e acadêmicos que se debruçam sobre a gestão de serviços e a educação para profissões da saúde, além de altamente indicado para todos os profissionais da área da saúde coletiva.

Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Francisco Antonio Loiola

Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, brasileira, médica, mestre em saúde pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em medicina na área de pediatria pela Universidade de São Paulo em 2006. Atualmente é superintendente da Escola de Saúde Pública do Ceará. Possui estágio de pós doutorado na Faculdade de Ciências da Educação na Universidade de Montreal, Quebéc, Canadá. É professora adjunta da UFC e coordena o Laboratório de Pesquisas em Ensino e Gestão do Conhecimento, da Educação e do Trabalho na Saúde, projeto financiado pela CAPES por meio do Edital Pro-ensino na Saúde.

COMUNIDADES de PRÁTICA e SAÚDE uma introdução ao tema

organizadores

Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Francisco Antonio Loiola

autores

Ana Ecilda Lima Ellery Cecília Borges Flávia Ribeiro Gastão Wagner de Sousa Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Mariana Dorso Sonia Rioux

COMUNIDADES de PRÁTICA e SAÚDE Uma introdução ao tema O termo “Comunidades de Prática” foi cunhado em 1991 pelos pesquisadores sociais Jean Lave e Etienne Wenger, que o definem como grupos de pessoas engajadas em práticas sociais que apresentam desafios, preocupações ou mesmo paixões compartilhadas, levando-as a compartilhar interesses comuns na busca de conhecimentos, a fim de partilhar processos de aprendizado. A Comunidade de Prática tem sido empregada mais enfaticamente como referencial teórico e prático nas áreas da Educação e da Administração, nas quais apresenta um conteúdo mais expressivo de experiências que priorizam desde a valoração necessária aos métodos de formação de recursos humanos e a melhora do desempenho organizacional, até a preocupação com os processos que enfatizam a aprendizagem social de estudantes diretamente envolvidos na prática pedagógica em ambientes escolares. Particularmente no Brasil, a ideia foi menos explorada no domínio de conhecimento da Saúde. O Workshop “Comunidades de Prática e Saúde”, realizado com a participação de Etienne Wenger, foi composto em formato de livro com o objetivo de trazer ao público de trabalhadores e acadêmicos da saúde as experiências e discussões sobre o conceito Comunidades de Prática, que pode nos servir de parâmetro para processos de aprendizagem social na área da saúde e indicar soluções conceituais e aplicadas para as transformações sociais que almejamos dentro do SUS.

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Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – CRB-8ª / 5283 C739  Comunidades de prática e saúde: uma introdução ao tema / organizadores: Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, Francisco Antonio Loiola -- Campinas, SP: Saberes Editora, 2014. 1. Sistema Único de Saúde (Brasil) 2. Saúde pública - Brasil. 3. Políticas públicas. 4. Qualidade de vida. 5. Comunidades de Prática I. Barreto, Ivana Cristina de Holanda Cunha. II. Loiola, Francisco Antonio. CDD - 614.0981 - 300.18 - 613.71 Índice para Catálogo Sistemático: 1. Sistema Único de Saúde (Brasil) 2. Saúde pública 3. Políticas públicas 4. Qualidade de vida

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Organizadores Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Francisco Antonio Loiola Autores Ana Ecilda Lima Ellery Cecília Borges Flávia Ribeiro Gastão Wagner De Sousa Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Mariana Dorso Sonia Rioux

Comunidades de Prática e Saúde: Uma introdução ao tema

1ª edição

EDITORA

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Comunidades de Prática e Saúde: Uma introdução ao tema

Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto & Francisco Antonio Loiola (organizadores) Copyright © by Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto & Francisco Antonio Loiola Copyright © da Edição 2014: Saberes Editora Editores: Lenir Santos Luiz Odorico Monteiro de Andrade Projeto gráfico e editoração: CaMaSa Revisão: Jaciara Lima

EDITORA

Av. Santa Isabel, 260 - sala 05 Barão Geraldo - Campinas - SP - CEP 13084 012 Tel: +55 19 3288 0013 www.sabereseditora.com.br [email protected] Direitos Reservados. Nos termos da Lei que resguarda todos os direitos autorais é proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive através de processos de gravação ou fotocópia, sem permissão por escrito do autor e do editor. Impresso no Brasil Printed in Brazil 2014

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Apoio

• Secretaria de Gestão Estratégia Participativa - Segep/Ms



• Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde - Segts/Ms



• Instituto de Estudos Pesquisas e Projetos da Uece - Iepro



• Rede Interdisciplinar de Pesquisas e Avaliação em Sistemas de Saúde - Ripass



• Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Ceará - Cosems

Financiamento da edição

• Projeto Pró-Ensino na Saúde



• Edital Capes 024/2010

Financiamento da impressão

• Carta Acordo OPAS/IEPRO

Apoio técnico-administrativo

• Ana Luisa Almeida Melo



• Maria Verônica Almeida de Oliveira

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Sumário

Prefácio.................................................................................................9 Introdução..........................................................................................19 Primeira Parte: As bases da teoria social da aprendizagem....................25 Da Aprendizagem Social às Comunidades de Prática..................25 Entrevista com Etienne Wenger..................................................49 Segunda Parte: Estratégias, Métodos e Ferramentas para promoção da aprendizagem social no campo da saúde ........................................97  étodo Paideia: Conceitos e estratégias de operacionalização M em serviços de saúde...................................................................97 Sistema Saúde Escola................................................................116 Terceira Parte – Limites e possibilidades do conceito Comunidades de Prática..........................................................................................133  ultivar comunidades de prática enquanto condição de C possibilidade para a construção de projetos interprofissionais...134  alanço das contribuições e limites atribuídos às Comunidades B de Prática (CPS) na área da saúde ............................................154 Bibliografia........................................................................................171

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Prefácio Francisco Antonio Loiola

O diálogo entre a educação permanente, colaboração interprofissional e comunidades de práticas na saúde se impõe como uma necessidade atual e inadiável. Como explicar esse imperativo? Seria porque as equipes de Saúde da Família realizam ações que não produzem bens, mas serviços que são processados, em grande parte, por um trabalho imaterial? Seria porque as ações e interações que constituem as relações entre organizações, equipes, profissionais e pacientes adquiririam uma autonomia deliberada, intencional e dirigida por processos colaborativos? Seria porque, finalmente, tomamos consciência de que o SUS sofre de uma subutilização das competências profissionais e da lentidão na implantação de uma rede de colaboração inserida efetivamente nas práticas cotidianas? Uma constatação parece evidente: a noção de Comunidade de Prática

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(CoP) como categoria analítica e transformadora provoca a atenção de muita gente, sobretudo no campo de práticas na saúde. Na medida em que as pessoas participam, se envolvem e se mobilizam realizando ou elaborando projetos, trocando impressões, opiniões e intenções, inevitavelmente elas tendem a aprender a se adaptar uns aos outros e ao contexto circundante. Juntas, as pessoas são levadas a aprender a colaborar coletivamente, a produzir práticas que evoluem e a estabelecer relações sociais que perduram. São exatamente essas práticas que se tornam o coração da comunidade e contribuem para transformá-las em um empreendimento coletivo. O termo Comunidade de Prática é o mais apropriado para designar esse fenômeno. A Escola de Saúde Pública do Ceará em parceria com o Laboratório de Pesquisas em Ensino e Gestão do Conhecimento, da Educação e do Trabalho na Saúde, da UFC, decidiram contribuir para o estudo dessa noção oferecendo o presente livro como introdução, pretexto e instrumento reflexivo, tendo em vista aprofundar o diálogo sobre os desafios na consolidação do SUS. Assim, os artigos e as sínteses que compõem esse livro visam propor indagações, articulando pontes teóricas e práticas na condução da formação de profissionais no e para o SUS. Na apresentação desta edição Ivana Barreto lembra que “o nosso Sistema Único de Saúde é o maior sistema público de saúde do continente e tem como princípios a universalidade, integralidade, acessibilidade e igualdade”. No entanto, Barreto afirma igualmente que “o princípio da equidade, defendido pelo Movimento de Reforma Sanitária, não está contemplado na Constituição brasileira de 1988 e nem na lei orgânica de saúde”. Esse desafio, que precisa ser melhor compreendido e internalizado pela sociedade brasileira, associa-se à fragmentação das práticas e saberes e 10

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à supervalorização social e cultural das tecnologias duras na saúde. O que fazer para revalorizar a prática clínica? O que fazer para gerar e consolidar a necessidade da estruturação e integração de redes de serviços de saúde, do fortalecimento do trabalho em equipe, da colaboração interprofissional e interinstitucional? Em que medida a prática social, a aprendizagem organizacional, a ação coletiva e a identidade individual e coletiva podem se articular para proporcionar uma aprendizagem capaz de superar tensões e divisões, gerando negociações de significados relativos à ação? Este livro é uma contribuição à busca de respostas e de novos fazeres. Os textos aqui publicados resultam diretamente das conferências pronunciadas e dos debates realizados durante o Workshop “Comunidades de Prática e Saúde”, realizado em Fortaleza, estado do Ceará, Brasil, no período de 17 a 19 de maio de 2011. Participaram do evento mais de 180 pessoas oriundas de quase todos os estados brasileiros. Esse encontro foi organizado em estreita colaboração entre a Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará, a Organização Pan-americana da Saúde, o Laboratório de Pesquisas em Ensino e Gestão do Conhecimento, da Educação e do Trabalho na Saúde da UFC, o Ministério da Saúde e o Instituto de Estudos, Pesquisa e Projetos da Universidade Estadual do Ceará. O livro está estruturado em três partes e é composto de 6 (seis) capítulos. A primeira parte aborda particularmente as bases da teoria social da aprendizagem, fundamento do conceito Comunidades de Prática; a segunda parte é dedicada à descrição e reflexão de experiências práticas de intervenção e de pesquisa no campo da saúde, que visam à integralidade, à universalidade, à busca da equidade e à incorporação de novas tecnologias, saberes e práticas. A terceira parte é a síntese dos 11

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debates realizados em duas mesas redondas sobre limites e possibilidades do conceito de Comunidades de Prática. O evento contou com a participação de Etienne Wenger, pesquisador mundialmente conhecido como sendo o criador da Teoria Social da Aprendizagem, um quadro conceitual no qual o engajamento em práticas sociais é concebido como o processo fundamental da aprendizagem. Com efeito, Wenger (1998) propõe uma teoria de aprendizagem que emerge da hipótese seguinte: o engajamento em uma prática social é o processo fundamental através do qual aprendemos e evoluímos como seres humanos. Tudo começou depois da publicação e da boa recepção do livro Situated learning: legitimate peripheral participation, de 1991, em que Etienne Wenger é co-autor de Jean Lave. Sete anos depois, em 1998, Wenger lançou o livro Communities of practice: learning, meaning and identity, e passou a desenvolver trabalhos em torno do conceito de Comunidades de Prática. Wenger (1998; 2005) conseguiu colocar em evidência e melhor desenvolver essa teoria a partir de um estudo de caso, ou seja, a gestão de reembolsos em uma companhia de seguros de saúde dos EUA. Com esse exemplo, Wenger tenta mostrar a ligação entre o trabalho individual e o trabalho em grupo, criando, assim, o que podemos chamar de “memória coletiva”. É interessante notar que os agentes da empresa mencionada no estudo de caso desenvolveram uma prática que lhes permitia realizar suas tarefas cotidianas de maneira satisfatória, o que constitui em si uma CoP. Importa mencionar que, todavia, uma comunidade de prática não se reduz a propósitos instrumentais. Refere-se a conhecer, mas também a estar junto, dando significado à vida e às ações de cada membro, desenvolvendo identidade (Wenger, 1998). Como 12

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observa Schommer (2005, pp. 111) “nem toda comunidade define-se pelas práticas que compartilha, assim como nem toda prática está inserida no âmbito de uma comunidade específica. Um bairro, por exemplo, é frequentemente chamado de comunidade, mas usualmente não se constitui enquanto comunidade de prática”. Nessa perspectiva, nas CoP, as pessoas são ligadas umas às outras pelo envolvimento concreto em atividades ou práticas comuns, engajadas mutuamente num empreendimento coletivo, orientadas por um senso de propósito comum (Kimble e Hildreth, 2004). Assim, o “fazer” prático se define como integrante de um contexto histórico e social que lhe dá a estrutura e a significação do que é realizado. Aqui, a concepção de prática inclui igualmente o explicito e o tácito. Ora, o que é tácito é em geral considerado normal e, assim sendo, se integra no todo, desaparecendo. O tácito deixa de ser normal, natural, quando o tornamos explícito para os outros. Nesse sentido, as CoP constituem contextos privilegiados que permitem a expressão do senso comum através de um engajamento mútuo. Em outras palavras, as comunidades de prática colocam em evidência o caráter social e negociado do implícito e do tácito da vida cotidiana. Para melhor conhecer o significado da noção de Comunidade de Prática, a leitura do primeiro capítulo do presente livro é um excelente começo. Nele, Flavia Ribeiro e Ivana Barreto buscam compreender e explicar não somente a origem desse enfoque, mas também seus fundamentos epistemológicos. As duas autoras resgatam a história da teoria, salientando inicialmente a contribuição original de Jean Lave e Etienne Wenger, através do artigo seminal Situated Learning: Legitimate Peripheral Participation, publicado em 1991, 13

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pela Cambridge University Press. Adotando uma linguagem simples e direta, Flavia Ribeiro e Ivana Barreto não somente explicam em que consiste a Teoria da Aprendizagem Social enquanto fundamento epistemológico do enfoque das comunidades de prática, mas vão um pouco mais longe quando estabelecem uma relação desta última com o interacionismo histórico-dialético de Lev Vygotsky. A leitura deste capítulo é uma excelente introdução a um quadro conceitual que permite abordar a noção de aprendizagem sob a perspectiva de um processo social da participação, o que implica na ênfase às interações sociais que propiciam oportunidades de aprendizagem individual e organizacional. A busca de compreensão do sentido das Comunidades de Prática continua no segundo capítulo. A entrevista realizada com Etienne Wenger é muito esclarecedora. Através de uma longa conversa informal e aprofundada sobre a história da construção do conceito Comunidades de Prática, Etienne Wenger descreve com muita simplicidade como ele tentou e continua tentando dar sentido e significado ao que seria a teoria das Comunidades de Prática. É possível perceber e compreender, através dos diversos exemplos que aparecem na conversa, que o foco principal da Teoria Social da Aprendizagem é a aprendizagem como resultante da participação social. O centro são as pessoas enquanto integrantes ativas de comunidades sociais com as quais constroem identidade, como forma de ação e de pertencimento, que contribui para definir quem são e o que fazem (Wenger, 1998). É interessante notar, todavia, que Wenger não tem a pretensão de englobar tudo o que pode ser dito sobre aprendizagem ou substituir outras teorias. A leitura da entrevista nos permite constatar igualmente que a teoria que enfatiza as comunidades de prática 14

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não pretende ser uma receita, ou uma pedagogia, mas um guia para orientar a reflexão: o que observar, que dificuldades esperar e como abordar certos problemas. O terceiro capítulo inicia a segunda parte do livro. Mariana Dorso e Gastão Wagner, da Universidade de Campinas, apresentam o Método Paideia. Trata-se de um método de gestão do trabalho que tem como pressuposto a construção da democracia organizacional e que tem como objetivo “aumentar a capacidade de análise e intervenção” dos coletivos. Os autores descrevem o Método Paideia como uma concepção ampliada de gestão. Para tanto, a ideia é incentivar a participação dos sujeitos tendo em vista uma gestão compartilhada (cogestão), para que as pessoas possam pensar e reorganizar seus processos de trabalho. Pensado inicialmente para ser aplicado no contexto das organizações de saúde, o Método Paideia pode se aplicar tanto à política, ao planejamento ou à gestão. É interessante notar que existem similitudes entre o enfoque da Teoria das Comunidades de Prática e o Método Paideia, na medida em que este último pode ser aplicado em contextos de formação, de educação, ou em qualquer prática profissional que lide com pessoas. No capítulo quatro, encontramos a reflexão sobre o conceito de Sistema de Saúde Escola. Nesse texto, Ivana Barreto aborda um dos ideários mais importantes das lutas da reforma sanitária brasileira: tornar a rede pública de saúde uma rede de ensino-aprendizagem no exercício do trabalho. Trata-se, aqui, de uma das mais nobres metas formuladas pela saúde coletiva no Brasil. Nessa perspectiva, Ivana Barreto argumenta e defende o conceito de Sistema de Saúde Escola como uma estratégia que utiliza a educação permanente como uma intercessão educação/atenção na área de saberes e de práticas 15

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em saúde. Nesse terreno, a relação e o prolongamento tempo/ carreira/especialidade, tradicionalmente associado à educação contínua ou permanente, cede lugar a uma concepção onde se prioriza a educação dos profissionais de saúde como ação finalística (e não meio) em espaços para educação contextualizada e o desenvolvimento profissional. É interessante notar que as características do Sistema de Saúde Escola (gestão participativa; estímulo à colaboração interprofissional, interorganizacional e interinstitucional, entre outras) nos remete diretamente ao conceito de Comunidade de Prática, na medida em que o envolvimento concreto em atividades ou práticas comuns, engajadas mutuamente num empreendimento coletivo, orientadas por um senso de propósito comum, definem o espírito, a ideia e as produções concretas do que se denomina Sistema de Saúde Escola. No quinto e último capítulo, encontramos dois artigos que são frutos de exposições em mesa-redonda, onde foram apresentadas sínteses de pesquisas ou meta-análises, com uma avaliação crítica de material já publicado. Os temas geradores da mesa-redonda foram formulados em termos de desafio. Como cultivar Comunidades de Prática enquanto condição de possibilidade para a construção de projetos interprofissionais? Quais são os limites e possibilidades do conceito Comunidades de Prática? No sentido de reproduzir e registrar o ambiente fértil de troca de experiências e pontos de vista que impactaram o evento, apresentamos as sínteses das intervenções. Ana Ellery (2012) apresentou os principais resultados de sua tese de Doutorado. Sua pesquisa estudou as relações interprofissionais na produção do cuidado na Estratégia Saúde da Família (ESF), explorando condições de possibilidades que facilitam o trabalho interprofissional. A autora considera 16

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haver potencial nas equipes da ESF para a aprendizagem na prática, possibilitando o trabalho em colaboração, a despeito dos conflitos e divergências inerentes às relações humanas e, mais especificamente, às interprofissionais. Assinala Ellery que o diferencial de uma CoP não é a harmonia nem a ausência de conflitos, mas a capacidade dos profissionais reconhecerem a existência dos mesmos, naturais em um espaço democrático, e aprenderem a lidar com eles. O diferencial não é, ainda, a uniformidade, mas o respeito à diversidade e ao exercício da pactuação de interesses e objetivos nem sempre convergentes. Os estudos de Ellery mostram que, apesar dos profissionais de saúde terem sido formados hegemonicamente na lógica da profissionalização (para reservar saberes, práticas e poder), a vivência nessa equipe de trabalho, organizada como uma Comunidade de Prática, favorece a construção de projetos interprofissionais. Este processo, contudo, é permeado de conflitos e de contradições, pois os profissionais estarão sempre vivenciando a contradição entre reservar poder e saber (lógica da profissionalização) e a necessidade imperiosa de colaborar com os colegas da mesma profissão e com os de categorias profissionais diferentes. Contudo, num ambiente de trabalho onde sejam fomentados o diálogo, a pactuação, o compartilhamento de repertórios, que são marcas de uma comunidade de prática, estas contradições serão melhor trabalhadas, favorecendo, assim, o desenvolvimento de projetos interprofissionais. Rioux e Borges (2013) fizeram um balanço apresentando avanços e limites atribuídos às Comunidades de Prática interprofissionais no campo da saúde. Considerando o interesse crescente pelas Comunidades de Prática no campo da saúde, as autoras fazem um balanço crítico sobre as experiências que se inspiram nesta abordagem. Com base nas pesquisas sobre 17

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as experiências de Comunidades de Prática desenvolvidas no setor saúde, apresentam um balanço dos seus avanços e limites, com base, principalmente em dois estudos: um realizado em 2009 (Li, Grimshaw, Nielsen, Judd, Coyte, e Graham, no qual foi feita a análise de treze experiências de Comunidades de Prática no setor da saúde; o segundo estudo, de Greenfield, Travaglia, Nugus e Braithwaite (2007), analisa a experiência de 79 Comunidades de Prática, sendo a maioria delas também no campo da saúde. Com base em Greenfield et al. (2007), consideram que as Comunidades de prática contribuem para um processo de aprendizagem ativa e não passiva, o que está fortemente vinculado às interações, ao compartilhamento entre os pares de diretrizes ou protocolos (guidelines), oriundos de resultados comprovados de pesquisa, e às evidências, oriundas do pensamento e da experiência dos próprios profissionais (mindlines), assim como à reflexão partilhada. Esta última vinculada à coordenação, ao tempo e ao espaço que são necessários a esse compartilhamento. Considerando, portanto, que a presente obra, resume estudos de valiosos profissionais, pesquisadores e professores engajados na reflexão sobre Comunidade de Prática, estamos certos da sua contribuição para a discussão desta temática na saúde. Como assinalam Rioux e Borges, há um interesse crescente pelas Comunidades de Prática no campo da saúde, considerando a complexidade das organizações que prestam cuidados neste campo, como também do processo saúde, doença e intervenção, que exige a colaboração entre os profissionais. Desta forma, as contribuições aqui presentes fomentarão o necessário diálogo entre educação permanente, colaboração interprofissional e comunidades de práticas, visando contribuir na construção do Sistema Único de Saúde. 18

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Introdução Dialogando sobre a educação permanente e comunidades de práticas na saúde Ivana Cristina Holanda de Cunha Barreto

A proposta da Escola de Saúde Pública do Ceará de promover um encontro entre profissionais do campo da saúde, pesquisadores e demais protagonistas para discutir a relação entre educação permanente e Comunidades de Práticas na saúde foi uma maneira de promover o diálogo entre diversos atores engajados na consolidação do SUS. Esta proposta obteve o apoio da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, por meio da Carta Acordo OPAS e IEPRO para promoção do Workshop “Comunidades de Prática e Saúde”, em maio de 2011 e para impressão desta publicação. A edição do presente livro contou com o financiamento do

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Projeto Pró-Ensino na Saúde — Edital 24/2010 da CAPES, por meio do Laboratório de Pesquisas em Ensino e Gestão do Conhecimento, da Educação e do Trabalho na Saúde. O SUS é o maior sistema público de saúde do continente e tem como princípios a universalidade, a integralidade, a acessibilidade e a igualdade. O princípio da equidade, defendido pelo Movimento de Reforma Sanitária, não está contemplado na Constituição brasileira de 1988 e nem na lei orgânica de saúde, sendo ainda uma conquista a ser feita pelos movimentos sociais que defendem a redução das iniquidades em saúde no Brasil. Muitos sanitaristas defendem que, para encontrar o equilíbrio social, o Estado deve investir mais recursos públicos na parcela da população menos privilegiada. Além desse desafio de natureza estrutural, deparamo-nos frequentemente com enormes problemas como o da descentralização dos serviços, para fazer chegar a todos essas políticas. Por outro lado, a pressão do mercado que cada vez mais aumenta os custos da saúde, o envelhecimento populacional que resulta no aumento da prevalência de problemas de saúde mais complexos como as doenças crônicas e degenerativas, associada à epidemia de violência em curso no Brasil, acabam por exigir do setor da saúde um elevado padrão na sua forma de organização e atuação. Essa exigência recai sobretudo sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), responsável pela atenção à saúde de cerca de 150 milhões de brasileiros ou 75% da população total do país. Conjuntamente a esses desafios no cenário brasileiro, associa-se a fragmentação das práticas e saberes e a supervalorização social e cultural das tecnologias duras na saúde. Nesse aspecto, vemos surgir cada vez mais o abandono da prática clínica. Os planos de saúde, inclusive as cooperativas médicas, que adotam o 20

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Introdução

modelo da especialidade, estão tendo hoje graves problemas financeiros, porque esse modelo da especialidade encarece muito a assistência e não resolve os principais problemas do coletivo e, além disso, levam ao aumento da iatrogenia. Como superar esse modelo fragmentado de cuidado em saúde? O que fazer concretamente para superar esses desafios? O que fazer para que o sistema funcione de forma que todos tenham acesso à atenção integral? Tudo indica que a resposta reside na melhora do acesso à atenção primária e que esta coordene o sistema de saúde, para que os cidadãos que necessitem da atenção mais especializada possam ter acesso a ela. Mesmo com o advento necessário e bem-vindo de todas as tecnologias na saúde, acreditamos que o melhor meio para a população acessar o serviço de saúde é pela porta de entrada da atenção primária e da urgência e emergência, onde se encontram os profissionais generalistas que podem direcionar o cidadão para o tipo de atendimento adequado às suas necessidades. Estudos mostram que 85% dos problemas serão resolvidos na atenção primária de saúde e aqueles que necessitarem serão encaminhados para um serviço especializado (Starfield, 2002). Neste aspecto, para superar os desafios relacionados à organização da prática profissional com a crescente especialização profissional, em especial no interior da categoria médica, a necessidade da estruturação e integração de redes de serviços de saúde, do fortalecimento do trabalho em equipe, da colaboração interprofissional e interinstitucional se impõem como necessidades atuais e inadiáveis. Neste cenário de saúde os programas de Residências Multiprofissionais em Saúde da Família são parceiros 21

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importantes do SUS, pois são os espaços educacionais onde o profissional mais vivencia o sistema e tem a possibilidade de internalizar os valores e o modo de fazer saúde pública a partir de um vínculo afetivo com a população que precisa e utiliza esse sistema de saúde. Temos no mundo inteiro e, particularmente, nas Américas, ferramentas conceituais e práticas incontornáveis baseadas em princípios orientadores pautados em valores que possibilitam ações coletivas sob o eixo da integralidade. Podemos citar alguns exemplos: a noção de gestão participativa, a colaboração interprofissional, a concepção de educação permanente e a noção de comunidade de prática. A expressão “Comunidade de Prática” é atribuída aos pesquisadores sociais Lave e Wenger (1991), que as definem como organizações informais naturalmente formadas entre praticantes de dentro e de fora das fronteiras de organizações formais. O Workshop “Comunidades de Prática e Saúde”, realizado com a participação de Etienne Wenger foi uma oportunidade de compartilhar uma reflexão atenta sobre o potencial do conceito e sua relação com o conhecimento (seja cultural, seja especializado) poder e aprendizagem. Como observam Lave et Wenger (1991:98, tradução nossa): “Uma comunidade de prática é uma intrínseca condição para a existência de conhecimento, não apenas porque ela providencia um suporte interpretativo necessário para dar sentido à sua herança. A participação na prática cultural na qual qualquer conhecimento ocorre é um princípio epistemológico de aprendizagem. A estrutura social de sua prática, suas relações de poder, e suas condições para legitimação definem possibilidades para a aprendizagem.”

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Introdução

A ideia de compor um livro com o resultado do Workshop resultou da intenção de trazer ao público de trabalhadores e acadêmicos as experiências e discussões sobre o conceito Comunidade de Prática, que pode nos servir de parâmetro para processos de aprendizagem social na área da saúde e indicar soluções conceituais e aplicadas para as transformações sociais que almejamos dentro do SUS. Portanto, este livro visa: • Colocar em evidência a teoria da Comunidade de Prática e articulá-la dentro do possível com a complexidade do campo da saúde; • Compreender como a dinâmica das Comunidades de Práticas na saúde pode facilitar a colaboração entre as profissões da área da saúde e melhorar a qualidade dos serviços; • Refletir sobre as condições da participação dessas Comunidades na gestão dos serviços e sistemas de saúde; • Fazer as inter-relações entre formulações sobre a comunidade de prática e os conceitos produzidos por autores brasileiros, como por exemplo, o Método da Roda, a Gestão Participativa e Sistema Saúde Escola.

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Primeira Parte: As bases da teoria social da aprendizagem Da Aprendizagem Social às Comunidades de Prática Flavia Ribeiro Ivana Cristina Holanda Cunha Barreto

A Comunidade de Prática tem sido utilizada como referencial teórico e prático mais enfaticamente nas áreas da Educação e da Administração, nas quais apresenta um conteúdo mais expressivo de experiências que priorizam desde a valoração necessária aos métodos de formação de recursos humanos e a melhora do desempenho organizacional, até a preocupação com os processos que enfatizam a aprendizagem social de estudantes diretamente envolvidos na prática de ensino pedagógico em ambientes escolares.

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Os trabalhos no setor da saúde sobre a constituição e finalidades das Comunidades de Práticas são menos expressivos, principalmente, no que se refere ao âmbito nacional. Os trabalhos nessa perspectiva denotam mais experiências em outros países, como Reino Unido e Canadá. Essas experiências têm enfoques, no geral, sobre novas compreensões dos processos formativos dentro de profissões como a medicina e a enfermagem e, ainda, sobre a otimização do trabalho humano no campo da saúde. Entretanto, antes de darmos ênfase explicativa aos conceitos que definem as Comunidades de Práticas, recorreremos a sua sustentação epistêmica que aborda a aprendizagem social como inerente aos fenômenos humanos de gerir o conhecimento e transformá-lo dentro dos próprios processos de aprendizagem mergulhados no cotidiano, nos quais estamos inseridos dentro da prática social. A Teoria da Aprendizagem Social A teoria da aprendizagem social tem pontos em comum com o interacionismo histórico-dialético, cuja principal contribuição origina-se de Lev Vygotsky ao debruçar-se sobre a forma como ganhamos maturação ao desenvolvermos o conhecimento do mundo e de nós mesmos. Esse autor ganhou ênfase dentro da Educação e da Psicologia Social, e apontou para o fato de que o aprendizado vem antes do desenvolvimento humano, pois não apenas construímos o conhecimento a partir de um processo maturado do desenvolvimento humano, mas antes de tudo interagimos com o outro. Além do mais, não interagimos apenas com o outro particular, mas também o outro coletivo, mediatizados pela cultura. Vygotsky não nos deixou práticas de ensino 26

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que pudessem direcionar e aplicar suas contribuições nos processos de aprendizagem para escolares ou outras esferas de aprendizado, no entanto, sua influência é extremamente valorizada, por trazer à tona a possibilidade de inclusão dos ditos “alunos especiais”, excluídos dos âmbitos de ensino e que foram por muito tempo considerados inaptos a aprenderem e se desenvolverem no mundo social. Assim sendo, na teoria da aprendizagem do ser social, o mundo é uma grande oportunidade de se desenvolver junto aos outros e (re)criar novos conhecimentos à medida que aumentamos nossa participação no mundo. E, nesta concepção de humano, reconhecemos dentro desse aporte teórico a importância do ser social oriundo da categoria do trabalho e da atividade de atuar sobre a vida circundante e formar a si mesmo enquanto aprendiz da e na prática social. Há de se considerar que dentro do pensamento vygotskiano “o verdadeiro curso do desenvolvimento não vai do individual para o socializado, mas do social para o individual” (Vygotsky, 1987, p. 18). Sendo assim, é relevante pensar esta afirmação dentro dos processos formativos, em especial aqueles com adultos. Mas o que vem a ser “social” para esse autor? Social não quer dizer interpessoal e nem interação social significará tudo o que existe no mundo. As atividades humanas são os produtos sociais dentro do desenvolvimento histórico-cultural e não apenas meras interações sociais. (Holzman, 2002). Assim sendo, a preponderância do aspecto social não vem dissociada de seu papel no desenvolvimento humano a partir do modo de produção histórico e cultural do conhecimento. As ações pedagógicas na coletividade dentro do ensino configuram-se como mediações estabelecidas pelas relações 27

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entre as diversas interações entre educador e educandos, entre educandos, entre educadores, e entre educador e educandos com o conhecimento. Assim sendo, o ambiente de trabalho e de aprendizado torna-se o espaço social de aprendizagens para todos os sujeitos nele inseridos. Logo, ainda segundo Vygotsky, o humano apresentará em sua matriz dois níveis de desenvolvimento que trarão mais uma vez a afirmação de que o homem é, em si mesmo, um potencial, e que na interlocução de uma práxis dialógica ele ultrapassará os níveis de estagnação de seu aprendizado, e por meio de sua linguagem, será capaz de reconstruir sentidos ou imitar seus grupos e alcançar e superar suas necessidades. (Rego, 2011) Os níveis de desenvolvimento humano postulados por Vygotsky abordam, num primeiro momento, o nível de desenvolvimento real, referente às conquistas já efetivas e consolidadas pela pessoa. Neste nível já há uma independência da pessoa com relação aos outros ou ao próprio desempenho de sua práxis. Comumente, este é o único nível no qual se avalia e se considera as competências de uma pessoa em particular, seria como o produto final do desenvolvimento daquele humano. Entretanto, Vygotsky extrapola sua teoria quando afirma por meio de seus experimentos que há um segundo nível de desenvolvimento nas pessoas que precisa ser considerado, reconhecido e valorizado. Neste caso, ele o chamou de nível de desenvolvimento potencial, que diz respeito às capacidades em vias de serem construídas. Há aqui a necessidade de auxílio do outro, ou seja, a outra pessoa torna-se fundamental para execução de determinadas tarefas que ainda não foram incorporadas pelo sujeito do aprendizado. Portanto, essas tarefas serão mediadas 28

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através do diálogo, da colaboração entre aprendizes e seus mestres, da imitação, da experiência compartilhada e das pistas ou sinais que lhe serão fornecidas. Para Vygotsky, este nível é um melhor indicativo do desenvolvimento mental da pessoa do que aquele que ela consegue executar sozinha. A distância entre esses dois níveis de desenvolvimento é denominada de zona de desenvolvimento proximal, ou seja, onde fica possível, dentro dessa perspectiva, delinear projeções do desenvolvimento da pessoa e gerar e reformular novas estratégias pedagógicas para o aprendizado, assim como orientar possíveis limites dos sujeitos quanto ao seu aprendizado no mundo. Portanto, vemos aqui elaborações na área da educação que não excluem os sujeitos das possibilidades embrionárias de se desenvolverem e gerarem maturações de funções capazes de se tornarem competentes. No entanto, algumas interpretações diversas do conceito de zona de desenvolvimento proximal têm sido utilizadas por teóricos da aprendizagem. Uma é aquela exposta acima, mas que enfatiza que a zona é a distância de um sujeito a sós na busca do aprendizado e aquele momento que não consegue realizar determinadas tarefas sozinho e irá necessitar do apoio de pessoas mais experientes para executá-las de forma adequada, esperando-se que mais tarde o sujeito possa desempenhar a tarefa sozinho. Outra interpretação mais “cultural” dirá que ele é a distância entre o conceito cultural fornecido pelo contexto sócio-histórico, que em geral tornou-se conhecido através do ensino, e a experiência cotidiana dos sujeitos, ou seja, quando os conceitos científicos e os conceitos cotidianos se fundem e alcançam uma maturação. As críticas que Lave e Wenger apontam nestas duas interpretações do conceito de zona de desenvolvimento 29

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proximal seria de que ambas apresentam um enfoque mais individualista de aquisição da aprendizagem com leves nuances de sociabilidade e de internalização dos traços culturais (Lave e Wenger, 1991). Uma terceira interpretação sobre o conceito é mais valorizada pelos autores, pois aborda uma visão mais “coletivista” ou “social” da distância conferida na zona de desenvolvimento proximal. Pois, segundo definida por Engestrom (1987), a zona de desenvolvimento proximal seria a distância entre as ações cotidianas dos indivíduos e a forma historicamente nova da atividade social, que pode ser gerada coletivamente como uma solução para o duplo vínculo potencialmente inserido nas ações cotidianas. Neste caso, há um potencial a se extrapolar para além das estruturas de ensino pedagógicas, abordando a possibilidade de transformação social através das mudanças relacionais entre novatos e veteranos dentro de uma prática compartilhada (Lave e Wenger, 1991). Aprendizagem Situada: participação periférica legítima A aprendizagem é um aspecto inseparável e integral da prática social, que, por sua vez, advém de um contexto de interações e é mediada pela diversidade de perspectivas de seus coparticipantes. Ou seja, a aprendizagem estaria situada em formas de coparticipação e não na mente das pessoas. Dentro da perspectiva da aprendizagem situada, a pessoa, a atividade e o mundo se constituem mutuamente uns aos outros, derrubando a visão de um corpo de conhecimento factível sobre o mundo (Lave e Wenger, 1991). Uma má interpretação do termo situada seria considerá-lo dentro das conotações de localismo, limitadas a um tempo 30

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e a tarefas determinadas. Este conceito insiste em trazer o conhecimento para dentro das circunstâncias presentes e não desconectá-lo, como forma abstrata da realidade da qual se participa no mundo. Portanto, a prática social é o fenômeno gerador primário do qual a aprendizagem é um de seus aspectos integrais. Para estes autores, dessa forma, será dentro desta prática social que o aprendiz adquirirá certos talentos a partir de seu engajamento concreto no processo cotidiano com outras pessoas, que podem ser referências em determinados domínios de conhecimento (Lave e Wenger, 1991). Nesse contexto, define-se que, dentro de uma comunidade, a aprendizagem será percebida através de uma posição de participação periférica legitimada, que colocará a posição dos aprendizes para alcançar gradualmente uma participação plena dentro da comunidade. Este posicionamento dependerá da trajetória de aprendizagem de cada indivíduo. No entanto, o conceito “participação periférica legitimada” deve ser considerado em sua totalidade de compreensão, subdividindo-se em três partes isoladas, pois cada palavra que compõe o conceito dentro dessa perspectiva de aprendizagem é fundamental para a sua totalidade. Assim sendo, a participação periférica legitimada define que a implicação de seus membros se dará por sua trajetória de participação dentro da comunidade, o desenvolvimento de suas identidades e as formas de filiação de seus atores. As trajetórias de participação, que serão destrinchadas mais adiante, poderão levar – ainda que não necessariamente – participantes periféricos legítimos a estágios de participação plena na comunidade de aprendizado ou de prática. Esta manobra ou movimento gerado dentro dos grupos são essenciais para sua constituição e manutenção, pois proporcionam desdobramentos nas trajetórias de aprendizagem e alimentam seus pares 31

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por meio de atritos, tensões, descobertas e compartilhamentos mútuos (Lave e Wenger, 1991; Wenger, 1998). Além disso, os autores colocam que as posições periféricas de participação estão em posições de empoderamento, o que as tornam legítimas na comunidade e que muitas vezes podem refletir potência ou impotência ao possibilitar ou impedir a articulação e o intercâmbio entre as comunidades de práticas. Portanto, o termo participação periférica legítima está mais perto de uma perspectiva analítica do que de uma teorização. Ela não deve ser vista como uma abstração, pois sua intenção é de explorar as relações concretas onde habitam as riquezas das interconexões em termos históricos, através do tempo e das culturas e nem deve ser vista como uma estratégia prescritiva pedagógica ou uma técnica de ensino (Lave e Wenger, 1991). Embora este quadro teórico não tenha a intenção de fazer-se como estratégia ou técnica de ensino, ele pode fornecer indícios relevantes sobre os processos comuns inerentes na produção de pessoas mutantes em comunidades de prática em permanente transformação. Estas estruturas e reproduções de comunidades de prática são historicamente construídas e apresentam aspectos conflituosos, sinergéticos das relações entre seus membros e necessitam serem decifrados a fim de se compreender as formas de participação periférica legitimada ao longo do tempo. Para tanto, prestar atenção às biografias dos seus membros e do coletivo, como maneira de analisar as participações dentro de uma comunidade de prática, em um itinerário que é trilhado desde a entrada de novatos até estes se tornarem veteranos, das relações entre veteranos e entre novatos. Seguindo-se este caminho, as relações puramente díades entre professor e aluno são quebradas, para incorporar-se uma maior riqueza de participações na comunidade de prática que assume muitas formas de relações entre seus participantes. 32

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Portanto, há tensões e conflitos nos processos de aprendizagem que envolvem comunidades de práticas, há relações não apenas cooperativas, mas também competitivas que intensificam as transformações de identidades. E, neste caso, a aprendizagem nunca é puramente um processo de transmissão e assimilação, mas oriunda também de desejos, tensões e motivações que darão futuro próprio às comunidades de prática, para estas nos debruçaremos a seguir. Comunidades de Prática É antiga a necessidade de compreender como se configura a aprendizagem nos grupos sociais, cujo mote remete ao engajamento e ao compromisso entre as pessoas por meio de algo que os interessem. As comunidades de práticas existem há muito tempo. Na Roma antiga já se reconheciam corporações de diversos profissionais que trocavam entre si conhecimentos ou práticas de seu domínio. Na década de 1920, mais precisamente em 1921, o filósofo japonês Nishida propôs o conceito de Ba, que se refere ao contexto no qual o conhecimento é compartilhado, criado e utilizado. Neste espaço se dão múltiplas interações que podem surgir em indivíduos, grupos de trabalho, equipes de projetos, círculos informais e temporários. Ba é um lugar existencial onde seus participantes compartilham e criam novos significados a partir das interações nas quais mudanças podem ocorrer no ambiente e nas pessoas (Mäkäräinen-Suni & Hong, 2011). Comunidade de Prática (CdP) enquanto conceito atual foi cunhado pelos pesquisadores J. Lave e E. Wenger (1991) e melhor aprofundado por este último pesquisador e antropólogo organizacional Etienne Wenger (1998) que traz em sua episteme a teoria da aprendizagem social, da qual nos 33

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debruçamos anteriormente sobre seus conceitos principais e raízes dentro do pensamento da sociologia e psicologia. Assim sendo, a CdP diz respeito a grupos de pessoas engajadas em práticas sociais e que apresentam problemas, preocupações ou mesmo paixões compartilhadas e que as levam a interesses comuns na busca de conhecimentos, agindo de maneira a partilhar processos de aprendizado (Wenger, 1998). Portanto, esta perspectiva aposta na formulação de que a aprendizagem não é um processo individual – que ocorre na mente da pessoa e que tem um começo e um fim almejado – e que esteja desvinculada de nossas práticas diárias, ou que, fundamentalmente, seja apenas o resultado de quem ensina. Assim sendo, descontextualizar a pessoa, deportando-o do mundo por ele conhecido e vivido, não necessariamente o tornará mais focado ou interessado e nem gerará um aprendizado menos árduo ou mais significativo para as pessoas em seu cotidiano. Diante das falácias nos processos de aprendizagem fora dos âmbitos do agir significativo dos sujeitos, Wenger nos provoca a refletir sobre as seguintes indagações: como é possível adaptar-se a uma perspectiva diversa da qual nos habituamos como ato de aprender se colocássemos os sujeitos dentro de suas próprias experiências vividas de participação no mundo? Como seria se assumíssemos que o aprendizado é como uma parte de nossa natureza humana como comer ou dormir, tão inerente ao nosso viver? E se considerássemos que aprender é fundamentalmente um fenômeno de ordem social que simplesmente reflete nossa essência social como humanos capazes de gerar conhecimento? (Wenger, 1998) Portanto, o foco principal apresentado é reconhecer a aprendizagem como participação social dentro de uma prática social. Neste caso, entende-se que a participação não se 34

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restringe ao engajamento em eventos locais, em determinadas atividades e com determinadas pessoas, mas sim como um processo mais amplo em que os participantes em comunidades sociais são capazes de gerar identidades que estejam consonantes a estas mesmas comunidades. Quando tocamos na palavra participação nos referimos não apenas àquilo que nós fazemos, mas também em quem nós somos e como nós interpretamos o nosso fazer no mundo (Wenger, 1998). Dessa maneira, concebe-se que os processos de aprendizagem estão dentro da esfera social e que os participantes das comunidades de prática estão envolvidos e comprometidos em aprender conjuntamente no objetivo de melhorarem ou de adquirirem novos conhecimentos, compartilhando práticas, saberes e inovações, ressalvando que o conhecimento só se garante mediante apropriação da própria pessoa (Moser, 2010). É importante frisar que há diferenças significativas entre CdP e trabalhos em equipes, pois este último arranjo tem por finalidade metas a serem atingidas e funções divididas entre seus participantes para o alcance das metas. Nas CdP o futuro da comunidade está nas mãos de seus participantes que se engajam em torno de preocupações e paixões compartilhadas por seus membros que traçarão projetos comuns na negociação e pactuação mútuas. Existem três dimensões fundamentais na configuração das CdP que interconectadas mostram aspectos cruciais para perceber como seus membros migram e traçam seu percurso de desenvolvimento ao longo da vida da comunidade. São elas: projeto em comum, repertório compartilhado e engajamento mútuo. O repertório compartilhado permite que seus membros sejam introduzidos nas comunidades e possam perceber suas histórias e os momentos de contá-las, que criam o elo de 35

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compartilhamento de uma linguagem, posturas, símbolos, instrumentos que possam ser compreendidos por aquele grupo. Este compartilhamento levará à negociação de significados que acontece a todo o momento e dependerá de duas forças emergentes: a participação, através das experiências concretas da prática de seus participantes que darão vivacidade a construção de conhecimentos significativos na comunidade e a reificação, por meio da construção compartilhada de produtos, ferramentas, instrumentos, conceitos que trarão sustentabilidade à própria prática. No engajamento mútuo vê-se a prática concreta e não uma possível abstração. E não se espera nas interações uma homogeneidade de membros e nem de consensos exclusivamente dentro de uma comunidade de prática, mas sim uma diversidade que possa manter o sentido de pertencer ao lugar, ganhar corpo em seus desafios, tensões e colaborações. O projeto comum gera uma energia social em prol de uma finalidade que seja compartilhada e traga a concretude e inovação dos conhecimentos que irão surgindo neste objeto comum. Este aspecto do projeto comum pode muitas vezes criar o sentimento de solidariedade e responsabilidade coletivas, mas longe de ser um contrato permanente, traduz-se mais em forma de relação processual com pactuações recorrentes que vão sendo estabelecidas ao longo do caminho. Dentro dessas comunidades ganham destaque, portanto, identidades e suas trajetórias e biografias, suas fronteiras e limites, seus aspectos de negociação, estratégias e ação. Nesse sentido, planejar e agir se interpenetram profundamente a ponto de ser difícil distingui-los. A dialogicidade implicada como forma das interações sociais a que remete Paulo Freire (2011), na forma de uma linguagem mediadora dos processos de significação sobre 36

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e no mundo, não busca necessariamente o consenso, mas proporciona um ambiente propício para a aprendizagem, para o pensar junto problematizado. Ou seja, não apenas para analisar um problema, mas para compartilhar compreensões e tornar resolutivas estas compreensões na construção e operacionalização de atos em conjunto. Assim sendo, a aprendizagem englobará componentes que sempre se interpenetram, mas que compõem como uma orquestra sinfônica certa harmonia ao abarcar aspectos que trarão 1) significado aos seus participantes, ou seja, que refletem os sentidos da experiência vivida; 2) a prática que reflete sobre os aspectos sócio-históricos e que sustenta o engajamento da ação dos sujeitos que envolvem repertórios comuns, ferramentas, histórias, métodos – ou seja, as atividades de aprendizagem que serão orquestradas de diversas formas, como projetos, e-mails, listas virtuais e reuniões presenciais quando necessário; 3) a comunidade é que irá refletir as configurações sociais onde se imprime as marcas nos grupos e é importante haver um sentimento de comunidade, pois este tocante fornecerá uma forte base de intercolaboração entre seus membros; e 4) por último, mas não necessariamente nessa ordem, as identidades que formarão e darão as marcas singulares nos processos e que consequentemente se recriam com as histórias pessoais e coletivas (Wenger, 1998). Cabe reforçar que as atividades pactuadas na participação da comunidade formam uma ecologia de interações que agregam valores em diversos níveis e, além de sua finalidade instrumental de criação e compartilhamento de conhecimentos, tais atividades fortalecem a presença da comunidade na vida de seus membros e reforçam o senso de pertencimento e identidade que serão a sustentação da aprendizagem coletiva e das atividades colaborativas. 37

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É necessário salientar novamente que para que haja uma comunidade de prática é preciso haver um domínio. Deve existir um tema específico que mova as pessoas, ou seja, uma parte profunda da identidade pessoal dos indivíduos pertencentes à comunidade de prática e um meio para expressar o trabalho de sua vida. Estes aspectos afetivos envolvem os participantes em certa comunidade de prática. Não se trata de um interesse desinteressado ou desmotivado, há uma forte implicação de seus membros no processo. Portanto, cabe considerar que ao termo CdP corresponde uma unidade, pois nem toda comunidade define-se pelas práticas que compartilha, assim como nem toda prática está inserida no âmbito de uma comunidade específica. Cada CdP possui um domínio de conhecimento que lhe é próprio, que constitui o cerne de sua identidade (Wenger, 1998). Assim sendo, as comunidades de amigos ou de pessoas que participam de chats em comunidades virtuais não são comunidades de prática. Esses grupos virtuais têm interesses comuns ou simples afinidades, ao passo que as comunidades de prática devem possuir identidade definida pelo domínio ou área de interesses partilhados ou compartilhados e elas estão embasadas nas práticas das pessoas (Lave e Wenger, 1998, p. 99). Portanto, o que determina e identifica essas comunidades é a implicação que faz com que seus participantes estejam comprometidos com o assunto e que, por conseguinte, devem ter um domínio nessa área que os distingue dos membros ou dos participantes de outras comunidades abertas que não exigem essa competência e domínio do tema de que tratam. Como relatam os autores é fundamental que os participantes desenvolvam vários recursos como instrumentos, documentos, rotinas, vocabulário e símbolos que de certo 38

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modo traduzam os conhecimentos acumulado por essas comunidades (Lave e Wenger, 1998). Por essas comunidades os membros se tornam capazes de realizar projetos colaborativos em que os conhecimentos são produzidos por eles coletivamente, pois há um sentimento de criação e de apropriação do conhecimento. E este conhecimento não surge como mais uma informação a ser acumulada, mas sim com algo contextualizado e vivido. Mas também é importante frisar que as CdPs não substituem as estruturas organizacionais formais, como os departamentos, cujos propósitos são finalizar determinados produtos ou metas de produção. No entanto, as CdPs podem servir de pontes entre as fronteiras formais nas instituições internas, já que as comunidades estão conectadas com a aprendizagem a fim de aumentar o conhecimento coletivo e a confiança profissional daqueles que também atuam nas estruturas formais (Snyder e Wenger, 2010). As comunidades de práticas agregam três valores fundamentais: acesso ao conhecimento existente, a troca de conhecimentos e criação de novos conhecimentos. Gerar possibilidades de disseminar estes conhecimentos dependerá muitas vezes de uma aprendizagem informal através de conversas, contação de histórias, tutoriais, lições e até piadas aprendidas pela experiência vivida. Entretanto, por outro lado, a aprendizagem informal dependerá de relações de confiança nas quais é possível contar com apoio. Portanto, a confiança no grupo é um aspecto fundamental, mas isso não significa que não ocorram atritos entre seus membros. Dentro deste sentido, os atritos ou limites são também aspectos importantes de se ressaltar no que tange aos sistemas de aprendizagem que se desenrolam dentro das comunidades e 39

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que são fundamentais para a evolução da aprendizagem dentro dos grupos. Os limites, muitas vezes traduzidos como tensionamentos ou atritos, são as oportunidades de aprendizagem, pois colocarão as competências e as experiências de seus membros em divergências. A interação limite é geralmente ser exposto a uma competência estrangeira. Estes podem ser os momentos potenciais para que uma aprendizagem se dê e novas trocas de conhecimento ocorram nas comunidades, se houver uma justa medida entre as tensões, pois se houver uma coincidência ou um grande distanciamento entre a competência e a experiência o aprendizado não ocorrerá (Wenger, 2010). Percebemos que processos de problematização entre os membros podem ser dispositivos que geram atritos desafiantes para a aprendizagem, como algo que faça uma intersecção de interesses, ou o engajamento aberto com as diferenças reais entre seus membros ou, ainda, a suspensão de julgamentos a fim de que o grupo exponha suas competências e limites. Ainda, nesta tensão podem-se gerar formas de traduzir os diversos repertórios para que competência e experiências de fato interajam. Quando se reforça a ideia de que limites e comunidades são recursos de aprendizagem auspiciosos, vemos também suas potenciais dificuldades, pois uma CdP que apresenta uma competência crítica pode tornar-se refém de sua história, com seus membros isolados, defensivos, fechados e somente orientados para seu próprio foco. Por outro lado, os limites podem ser fontes de divisões, fragmentação, separação, desconexão e mal-entendidos. No entanto, quando são unidas as perspectivas da comunidade com seus limites vemos um enorme potencial surgir para a aprendizagem, pois podem gerar inovadoras possibilidades de conhecimento. 40

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Dentro desse processo se pode vislumbrar uma paisagem social complexa surgir de suas fronteiras a partir das práticas compartilhadas. Assim sendo, as texturas de continuidades e descontinuidades dessa paisagem são, a priori, definidas por sua prática e não pela instituição ou por filiações de outra ordem. Em segundo lugar, esta paisagem será um entrelaçamento entre os limites ou fronteiras da paisagem e suas periferias. (Wenger, 2010) Quando reforçamos a ideia de que identidade e prática apresentam uma profunda ligação, é porque ocorre um envolvimento entre seus membros, capaz de gerar um reconhecimento entre eles e a prática implicará uma negociação de formas de ser nesse contexto, ou seja, uma negociação de identidades. Essas negociações podem ser definidas de diversas maneiras. A identidade pode ser entendida como uma experiência negociada, ou seja, definimos quem somos pelos caminhos que experimentamos. Também podemos definir a identidade como membros da comunidade, isto é, somos a partir do que nos é familiar ou desconhecido. Ou, ainda, identidade pode ser aprender nas trajetórias de onde estivemos e para onde estamos indo. Mais ainda, podemos nos definir como a conciliação das nossas diversas formas de participação. Por fim, na negociação de novas formas locais de pertencer a constelações mais amplas, manifestamos nossos estilos e discursos mais amplos. Vale salientar que a identidade não é um objeto concluso, um núcleo primordial da personalidade, mas um constante vir-a-ser. Tampouco é algo que se alcança em determinado ponto de maturação, pois ela sempre exigirá (re)negociações durante o curso de nossas vidas. 41

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Quanto mais passamos por participações na vida, mais nossas identidades geram trajetórias, tanto dentro quanto entre as CdPs. Portanto, nossas identidades são fundamentalmente temporais (não confundir com noção linear do tempo) e em curso constante, construídas nos contextos sociais e na interação de trajetórias múltiplas, convergentes e divergentes. O termo trajetória não implica necessariamente um caminho fixo, um destino ou um curso passível de ser previsto, mas é um movimento contínuo com dinâmica própria e que tem certa coerência através do tempo. No contexto de CdPs pode haver vários tipos de trajetórias (Wenger, 2010): • Trajetórias periféricas: por opção ou por necessidade nunca levam os participantes a uma participação plena na comunidade. No entanto, podem proporcionar um tipo de acesso à comunidade e a sua prática que pode ser significativo o suficiente para contribuir para a identidade. • Trajetórias de entrada: participantes recém-chegados com uma perspectiva de se tornarem futuramente membros plenos na sua prática, ou seja, sua identidade é investida em planos futuros, embora sua prática ainda seja periférica. • Trajetórias internas: a formação da identidade não termina com a adesão plena, pois a evolução da prática continua com novos eventos e novas demandas, novas invenções e novas gerações, havendo a possibilidade de renegociar novas identidades. • Trajetórias de fronteiras: encontram seu valor na abrangência de fronteiras que ligam as CdPs. Sustentar uma identidade através das fronteiras é um delicado desafio. 42

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• Trajetórias de saída: levam os participantes para fora de uma comunidade. E esta também envolve o desenvolvimento de novos relacionamentos e de encontrar uma posição diferente em relação a uma comunidade e ver o mundo e a si mesmo de novas maneiras. O processo de aprender tem íntima ligação com a identidade, pois permite uma entrega na dimensão temporal ao incorporar o passado e o futuro no próprio processo de negociação do presente. Assim, colocamos o nosso compromisso em prática nesse contexto temporal e simultaneamente lidamos com situações específicas, participando de histórias de certas práticas e envolvidos em nos tornarmos determinadas pessoas neste processo. Esta experiência de aprender traz significado aos acontecimentos e são percebidas como extensão do self (ser)da pessoa (Wenger, 2010). Nesse sentido, pode-se conceber que há a oportunidade de se encontrar uma aprendizagem significativa, capaz de criar um senso de trajetória que nos torna capaz de discriminar o que importa e o que não funciona, o que contribui para nossa identidade e o que permanece marginal para nós. Os momentos de aprendizagem e maneiras de participação são definidos pelo envolvimento que asseguram, assim como por sua localização dentro da trajetória. Por exemplo, uma participação periférica poderá vir a ser central para a identidade pessoal, porque conduz a algo significativo (Lave e Wenger, 1991). Por fim, dentro dessa perspectiva, uma comunidade de prática será um campo de trajetórias possíveis e assim uma proposta de uma identidade. Identidades estas dentro de um campo de passados possíveis e de futuros possíveis que são tudo o que existe para seus participantes, não apenas 43

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testemunhar, ouvir falar e contemplar, mas também se engajar e criar (Wenger, 2011). Nessa caminhada conjunta, os participantes podem ouvir dos mais experientes da comunidade os exemplos vivos de suas trajetórias possíveis e nesta movimentação os recém-chegados se envolverem com seu próprio futuro. Este bailado vem na forma de narrativas e dos movimentos entre mestres e aprendizes cada qual com suas bagagens e com suas histórias para contar. Além disso, a prática em si traduz essas trajetórias e cria maior sentido ao processo de aprender (Wenger, 1998). Breves considerações sobre o cultivo de comunidades de prática na saúde Ao nos depararmos com os cenários de prática na área da saúde e as vicissitudes enfrentadas no cotidiano de seus serviços por usuários, familiares e comunidade, nos indagamos como estão os espaços de saúde de trocas de práticas compartilhadas também nas esferas da intersubjetividade vivenciadas por aqueles trabalhadores da saúde que lidam com humanos na grande parte do seu fazer. Quais são as comunidades de práticas que permeiam os espaços da saúde e possibilitam a ressignificação do trabalho por seus profissionais que em última instância se renovam a cada dia em suas práticas e em suas identidades? Há possibilidade de surtir uma aprendizagem social dentro desses cenários potentes e mutantes que permeiam intuitivamente as trocas contínuas de saberes, colaboração entre seus pares, relações entre mestres e aprendizes? Tantas indagações não podem paralisar as ações potenciais na formação profissional permanente no qual se baliza o SUS, e para tanto, propomos a reflexão de como amparar 44

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as práticas concretas vivenciadas pelos trabalhadores com as perspectivas analíticas aqui apontadas ao nos debruçarmos sobre os conceitos de aprendizagem situada e comunidades de práticas. Em um estudo realizado na Inglaterra, comparando serviços do Sistema Nacional de Saúde inglês à recente experiência do Programa Centro de Tratamento do Setor Independente (Independent Sector Treatment Centre (ISTC) programme), Turner et al. (2011) observaram que as comunidades de prática dos médicos podem ter efeitos positivos e negativos com relação à inovação das organizações de saúde no sentido de beneficiar os usuários do sistema. No Sistema Nacional de Saúde inglês, as comunidades “profissionais” com base em diferentes especialidades clínicas foram identificadas como mediadores significativos de processos de aprendizagem organizacional e mudança gerencial. Isso sugere que a mudança organizacional representada pelo Programa Centro de Tratamento do Setor Independente provavelmente dependa da adesão de comunidades profissionais. No entanto, esta hipótese se altera, uma vez que a importância da gestão estratégica na definição das práticas das comunidades é reconhecida. Usando o trabalho de Mintzberg (1989) sobre as formas organizacionais como referência, Turner et al. argumentam que as organizações de saúde vinculadas ao Programa Centro de Tratamento do Setor Independente desfrutam de uma diferente relação com os médicos, porque neutralizam o poder das comunidades profissionais associados com o Sistema Nacional de Saúde, o que tem efeitos positivos e negativos sobre a inovação. Bates (2000) mostra por meio de um estudo etnográfico de uma empresa do Sistema Nacional de Saúde inglês como barreiras culturais entre grupos profissionais diferentes impedem relações produtivas no interior do hospital. O tribalismo mina 45

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a cooperação, dado que os diferentes grupos profissionais competem por recursos e defendem seus próprios interesses. O individualismo impediu a responsabilidade social, uma vez que os profissionais médicos eram raramente questionados porque flutuavam em torno da organização independentemente, sem prestar contas a ninguém. O conservadorismo impede a inovação, dado que os clínicos compartilhavam culturas defensivas, que se opunham a mudança para proteger os interesses dos seus membros, mesmo quando isto significava deixar a organização e seus clientes em segundo lugar. Promover a educação, o trabalho e a colaboração interprofissionais são caminhos a seguir para colocar os usuários e as famílias em primeiro lugar no Sistema Único de Saúde. Como características das comunidades de práticas, percebemos no dia a dia do SUS algumas possíveis identificações como: relações interprofissionais harmoniosas e cooperativas, mas também tensas e conflitantes; recorrentes engajamentos mútuos na concretização de atividades comuns; uma circulação de informações, que nem sempre flui com agilidade e articulação; poucos preâmbulos nas conversações em grupos de profissionais que apresentam um sentimento de confiança já instaurado; determinados estilos de ser, histórias e piadas partilhadas que podem revelar um sentimento de pertença à prática. No entanto, certas fragilidades ainda despontam e apontam contra o cultivo das comunidades, como: engajamentos que não levam a uma responsabilização coletiva; dificuldade em pactuações de projetos comuns; pouco reconhecimento do que os outros participantes sabem, do que podem fazer e como podem contribuir no projeto comum; enorme soterramento de reificações como instrumentos e 46

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protocolos que não surgiram de uma negociação de seus membros; considerável desmotivação ou pouca paixão como energia que move a participação no grupo. Mas, mesmo diante desses desafios, é importante reconhecer que trajetórias de vida e de prática social emergem a todo instante dentro dos locais de trabalho na saúde e renovam identidades e criam muito mais conhecimento do que temos nos escritos da academia científica. Facilitar espaços de aprendizagem sem remeter seus trabalhadores à desvinculação de sua prática, pois será ela que tornará significativas as interações sociais, é considerar que a aprendizagem é inerente à essência humana e que passa primordialmente pelo social antes de ser apropriada como atributo individual. Portanto, a experiência partilhada entre os profissionais respeitando estes momentos como cruciais para o desenvolvimento e exposição de competências, mas que necessitam estar nas mãos de coordenação desses mesmos profissionais para que pactuações se efetivem e ganhem sentido de existir. A facilitação de comunidades de práticas através de mediadores que se comprometam a trazer aos grupos seus aspectos potenciais que não precisam ser homogêneos, mas que em sua diversidade percebam a importância da aprendizagem como foco de crescimento pessoal e coletivo. Neste caso, aprender também é cuidar de si e de suas visões de mundo, e se transformar nesse percurso de convivência com colegas que estão no mesmo barco. E por fim, não perder de vista a possibilidade de crescimento que a comunidade pode trazer, ao possibilitar que grupos de profissionais possam, ao se reconhecerem, aprender conjuntamente por meio das oficinas pré-capitalistas que mostravam o ofício dentro de uma relação entre veteranos 47

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e novatos ou mestres e aprendizes, e ampliando os processos entre aprendizes e aprendizes, que rompem a lógica piramidal de aprendizagem, mas tornam possível que os participantes se apropriem de sua trajetória e daquilo que pode ser renovado em sua prática de saúde. As comunidades de práticas não precisam ser enaltecidas e nem difamadas, elas apenas precisam ser reconhecidas como algo pertencente a nós, para que esse reconhecimento seja também valorizado nos serviços e instituições de saúde, cujas necessidades também seriam as de tornar seus espaços como potências para sucedê-lo de novas experiências e conhecimentos em suas áreas de domínio.

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Entrevista com Etienne Wenger PRIMEIRA PARTE – Da Aprendizagem Situada à teoria das Comunidades de Práticas ESP: Bom dia, Etienne! WENGER: Bom dia! ESP: Gostaríamos de iniciar, pedindo que apresentasse a trajetória inicial de seu trabalho na criação da teoria das Comunidades de Práticas. WENGER: Estive trabalhando durante vinte anos sobre aprendizagem e vou tentar passar sobre as intenções dessa teoria, o que nós estamos tentando fazer e também vou levar vocês junto comigo na minha jornada conceitual e apresentar alguns conceitos que ainda estão sendo trabalhados nessa teoria. A expressão “Comunidade de Prática” foi inventada mais ou menos há vinte e cinco anos. Eu estive trabalhando com um antropólogo, pesquisador do Instituto de Aprendizagem privado para criar programas de pesquisa interdisciplinares em aprendizagem. Depois escrevemos um relatório oriundo de uma pesquisa sobre a educação nos Estados Unidos da América. Esse instituto de pesquisa estudou através do João Celebrano, que era o Diretor do Centro de Pesquisa, e ele convenceu a fundação mantenedora a ter a missão de repensar a aprendizagem. Dessa forma, eu fui convidado para esse instituto e foi maravilhoso ver esses grandes estudiosos de diversos campos de conhecimento estarem ali estudando a aprendizagem, e divergindo entre si, porque havia diferenças conceituais de antropologia, sociologia, linguística, educação... Foi muito interessante presenciar essas pessoas “discutindo”, argumentando por suas disciplinas e sobre o que era repensar a aprendizagem. Depois observar que muito rapidamente as discussões se reduziram. Portanto, eu vim de uma comunidade científica onde normalmente nós vemos que a aprendizagem é um sistema de formação que se oferece e depois este sistema constitui 49

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a organização de uma estrutura. Vocês percebem que esta não era uma estrutura compreensiva da ciência para um antropólogo? Ou seja, nós compreendemos que a aprendizagem é um campo social sobre os significados da sociedade. O sentido e o processo do trabalho nesse instituto possibilitaram a observação do que ia se tornar a nova teoria sobre o processo da aprendizagem, olhando os limites de cada disciplina. Às vezes, havia discussões bastante emocionais entre pessoas do grupo! Você sempre pensa que os professores sabem o que estão fazendo na sua totalidade: “Ah, eles já viram e já sabem tudo!”. O interessante nesses professores importantíssimos foi vê-los questionando o que eles estavam afirmando como aprendizagem. Viam-se muitas vezes eles ficarem defensivos com suas descobertas! Mas o que nós estávamos tentando fazer era dizer: “Muito bem! Se nós assumimos que o aprender é uma experiência humana, que tipo de teoria nós vamos produzir se nós assumirmos principalmente que o ser humano é um ser social?” Assim nós fomos refletindo sobre o aprendizado, não para colocar a aprendizagem em tudo, mas para criar uma teoria moderna da aprendizagem. Assim, mesmo que a aprendizagem seja, frequentemente, conceitualizada como a relação entre o professor e o estudante, quando estudamos com mais profundidade sobre a aprendizagem percebemos que muito da aprendizagem não se situa nessa interação entre o professor e o aluno. Pois, o professor é uma figura muito impositiva para que um estudante possa realmente inquiri-lo. Em geral os estudantes vão inquirir outros estudantes. Então ao descrever os tipos de currículos que nós vimos naquela comunidade foi interessantíssimo nós chamarmos aquilo de comunidade de prática. ESP: O que é uma Comunidade de Prática? WENGER: Eu vou contar uma pequena história pra ilustrar o que nós estávamos tentando viver naquele momento: Eu estava na casa de um amigo meu para jantar e esse amigo, de repente, pegou uma taça de vinho e bebeu. Bebeu e daí ele perguntou: “O que você acha disso?” Eu não conheço muito sobre o vinho e eu não queria dar minha opinião, não sou um “expert” e eu acho que os vinhos mais baratos são melhores. Olha só! Tem alguma coisa errada comigo quando se pensa assim, não é? Que os mais 50

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baratos são os melhores, então ele diz “Etienne, essa aqui é uma garrafa de um vinho muito bom!” E esse amigo meu tem o hobby de provar vinhos. Ele costuma ir com seus amigos provar vinhos e discutir sobre eles. Eu estava muito impressionado porque ele é um conhecedor, e ele começou a descrever o porquê de aquela garrafa ser de um vinho muito bom. Para mim era um universo muito novo sobre o qual ele estava falando porque para mim era apenas uma garrafinha, mas para ele, aquela garrafinha continha um líquido que era uma sinfonia harmônica onde se cruzavam os gostos do morango, da pimenta e do chocolate. E como nós estávamos com a mente muito calma e pudemos sentir todas aquelas coisas que nós podemos sentir sem saber, eu viajei na imagem daquele conhecimento e comecei a achar que realmente eu podia imaginar o morango em algum lugar, eu podia imaginar esses aromas que vão mais além da minha imaginação, e eu disse: “Isso é interessante porque é o que nós estamos tentando perceber com a teoria! Por que qual era a diferença do que ele pensava do vinho em relação ao que eu pensava?” Era o mesmo vinho, mas ele era membro da comunidade onde beber vinho era perfeitamente compreensivo e eu não era um membro dessa comunidade. Esta realidade produzia a diferença de sentidos entre nós dois. ESP: Seria isso o que separa uma Comunidade de Prática? WENGER: Exatamente, estas diferentes formas de perceber e sentir um fato, ou uma ação, como o que as diferentes pessoas sentem ao beber um tipo específico de vinho, é o que separa os membros de uma Comunidade de Prática (CdP) de provadores de vinho (sommelliers) para os não membros desta CdP. Isso era o que existia para dividir esse limite entre um membro da comunidade com um membro de fora. Ou seja, não era um limite pra me fazer sentir estúpido, mas eu não tinha participado daquela comunidade até aquele momento; então nossas experiências eram muito diferentes sobre aquele contexto. Eu compreendi naquele momento que o meu nariz tinha que ser “treinado”, então eu utilizei essa história nas minhas palestras e as pessoas vinham contar outras experiências. Não é pelo nariz, mas o aroma do vinho que tem “um tipo de nariz no vinho”. Eu aprendi então, que o vinho era antigo, e também aprendi que o vinho branco tinha todo um 51

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conceito que era muito interessante! Vejam que até entendia as palavras, mas mesmo sabendo das palavras, eu muitas vezes, não compreendia nada. ESP: Por que mesmo sabendo das palavras que aquele grupo usava você não conseguia compreender? WENGER: Porque eu não havia tido as mesmas vivências que os membros da CdP de provadores de vinho! Ou seja, vocês podem aprender o vocabulário, vocês podem falar muito bem, mas se vocês não compreenderem a vivência daquilo, vocês não apreenderão o significado. E eu posso afirmar até hoje que eu ainda não conheço muito a vivência do vinho porque eu não me integrei a esse clube. Era fantástica a maneira como eles descreviam o vinho, e eu pensei: “Nossa, seria show poder fazer isso!” Mas eu sabia que se eu quisesse fazer como eles eu teria de dispensar muito tempo na companhia daquelas pessoas, tomando muito vinho e realmente entendendo, vivenciando como as pessoas que falam de vinho daquela maneira. Mas eu não fiz isso! Por que eu não fiz? Porque eu tinha que participar daquelas reuniões todos os meses... Eu pensei: “Não, não vou! Isso não sou eu.” Tenho muitas outras coisas para fazer e decidi deixar isso quieto. ESP: Seria esse o sentido de uma Comunidade de Prática? WENGER: O que eu estou tentando descrever pra vocês com tudo isso? Eu estou tentando dar um sentido, um significado do que a teoria das CdP pode trazer. Pois essa teoria situa o significado no centro daquilo que é o aprendizado ou aprendizagem. Quando realizamos e olhamos para a aprendizagem vemos quanto significado tem que se levar em conta. Se você fosse um aprendiz de costureiro teria uma técnica de costurar que poderia ser compreendida através dessa comunidade de costureiros e de alfaiates. Assim, a importância do significado como o fundamento do aprendizado é que se olharmos hoje as nossas escolas vemos que elas fazem com que nós extraiamos o conhecimento do mundo, ou seja, nós ensinamos a técnica das coisas e esperamos que os estudantes façam certo, não é? Mas nessa teoria das Comunidades de Práticas, as negociações de significados são fundamentais, ou seja, é um aspecto vital da aprendizagem. Eu lembro que uma vez 52

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eu estava ajudando a minha filha com alguns problemas da escola, ela olhou para mim e disse: “Você está achando isso interessante?” Eu respondi: “Sim!!” Ela nunca tinha encontrado alguém que pudesse achar que a matemática tivesse um significado interessante no mundo! Para ela foi uma surpresa! ESP: Logo, a vivência não está separada da aprendizagem? WENGER: Muitas vezes falamos da aprendizagem completamente separada da vivência e aí nós perdemos a habilidade de reforçar essa vivência na aprendizagem. Então, quando digo significável eu não estou dizendo em termos de teoria e sim como vivência. Se vocês pensam numa expressão como ferramenta, por exemplo, no caso do vinho, se você pensar em “nariz do vinho” pode começar a vivenciar aquele aroma, mas essa expressão é parte da prática e não é uma coisa que meu amigo inventou naquela noite ao falar de vinho. É uma parte da prática social que ele estava expressando para mim. Então muito do que nossa prática social se ocupa é criar ferramentas para dar significado às palavras. Assim sendo, a expressão “nariz do vinho”, por exemplo, é um desses instrumentos que as práticas criaram durante todos esses anos. Mas é também o caso de que essas práticas são propriedades das comunidades sociais e isso é muito importante porque se você é um estudante e quer escrever sua dissertação, você entra em uma comunidade e essa comunidade vai pedir a você para escrever um capítulo de literatura. Por que nós fazemos isso? Porque nós queremos que vocês realmente possam participar e contribuir para nossa sociedade de literatura científica. Então existirá um processo social pelo qual vocês farão uma apresentação diante de um comitê e o comitê avaliará, se você for aprovado, passa a integrar mais efetivamente a comunidade. ESP: Dessa forma, de quem é o conhecimento adquirido nessas comunidades? WENGER: O conhecimento é uma demonstração clara daquilo que nós chamamos de conhecimento no mundo, e é propriedade das comunidades que vêm caminhando juntas para decidirem o que conta em termos de dados para uma boa explicação sobre os dados do conhecimento. Quando dizemos que o conhecimento 53

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é propriedade das comunidades também dizemos que serão elas que levarão como herança os seus problemas. Por exemplo, se o seu orientador não gostar tanto do seu trabalho as coisas ficarão muito mais difíceis no seu Mestrado ou Doutorado. ESP: Por que essas comunidades podem fazer tanta diferença na aprendizagem do conhecimento? WENGER: Porque algo essencial é a questão da identidade. Eu queria enfatizar essa noção de identidade para vocês compreenderem como a aprendizagem e o conhecimento funcionam no mundo. A identidade é muito importante na teoria das comunidades de prática. Se você decidir que eu não sou um membro da comunidade de testadores de vinho, porque eu tenho que usar o que eu sou como um filtro para decidir a minha responsabilidade no meu aprendizado, eu digo que hoje eu ainda não sei qual é realmente o objetivo do “nariz do vinho” e eu não me sinto mal em dizer isso. ESP: Por que não investiu a sua identidade na comunidade de Provadores de Vinho? WENGER: Porque eu realmente só entendo um pouquinho daquela comunidade, pois pertenço a outras. Se algumas pessoas me perguntam: “Você leu esse livro importante?” e eu digo que não, bom eu fico meio chateado de dizer, porque eu sou parte de uma comunidade científica importante. Quando investimos naquilo que a gente é, isso nos torna responsáveis pela forma de conhecimento e pela administração do que nós somos. É uma parte importante de como nós sabemos o que nós sabemos! ESP: Como entender a aprendizagem a partir dessa teoria? WENGER: Em termos fundamentais, a perspectiva dessa teoria é a definição do que nós chamamos de Comunidade de Prática. Pense em uma comunidade de prática como uma parceria em apreender ou em uma parceria com alguém que já sabe alguma coisa que seja, por exemplo, cuidados médicos/enfermagem, imaginem uma pessoa que já sabe algo sobre tal assunto. Então você pode ter uma parceria com essa comunidade que já conhece 54

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algo e partilhar o desafio de aprender e interagir regularmente com novas tecnologias. ESP: Quem são as Comunidades de Práticas? WENGER: Nós temos novas formas de comunidade e parcerias que podem ser estabelecidas assim como uma rede, uma web, ou o cientista globalizado. Isso é muito mais rápido do que cartas antigas que levavam sete dias para chegar ao seu destino. O que quero dizer, é que hoje é muito mais rápida a informação. Por outro lado, eu também quero especificar que essa teoria é aplicável também, por exemplo, para gangues de ruas que estão tentando sobreviver e vender suas drogas com maior sucesso, assim como o é para um grupo de enfermeiros tentando ajudar seus pacientes ou, ainda, para engenheiros desenhando edifícios para abrigar as pessoas. Logo, é um conceito aplicável de maneira muito universal, não somente para o aprendizado profissional, mas para todos os tipos de aprendizagens no mundo. Esse conceito foi criado como uma forma de organizar a aprendizagem em todos os tipos de lugares. Temos até empresas brasileiras como a Petrobras que usam esse sistema. ESP: Por qual tipo de necessidade as pessoas se integrariam a uma Comunidade de Prática? WENGER: Quando vocês perguntam para membros das comunidades por que se implica em serem membros, é isso o que você escuta: “É porque ajuda!” Ou seja, se eu tenho um problema, eu posso pedir ajuda a minha comunidade. E vou contar para vocês uma história de como agimos: ouvir um pouco as histórias de cada um, interagir com colegas ou colegas de outro departamento, pode aumentar o horizonte das possibilidades ou também atualizar. Os campos têm tantas inovações que sozinho você não consegue atualizar tanta informação, mas sim tendo uma comunidade focalizando no que é importante para as pessoas iguais a você. Por exemplo, tinha uma comunidade de advogados no Ministério de Finanças na Austrália e estavam atuando como comunidade de prática e pesquisando em finanças, eles examinaram um procedimento ditado pelo governo e depois decidiram que a aplicação não estava adequada. Então, como uma comunidade, eles realmente tentaram 55

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modificar o procedimento em questão. Porque a comunidade esperava uma modificação e foi essa estratégia na organização, pois, cada indivíduo não podia ter tido toda essa visão. ESP: As Comunidades de Práticas fundamentam a aprendizagem a partir da prática? Wenger: Sim, isso é bem verdade! Porque essas comunidades precisam de certo nível de formalidade, porque a aprendizagem é baseada numa experiência real da prática das pessoas. Talvez no mundo inteiro as pessoas possam falar suas experiências como pacientes, por exemplo, como eles falam com os médicos essa habilidade de expressar a sua experiência real na prática. Usar aquilo como a fundamentação para a aprendizagem requer uma liberdade para interagir. Vocês não sabem por que a teoria vai preparar o currículo e ensinar na sequência, mas quando tem-se a prática como fundamentação você precisa de um nível de flexibilidade, de interação que vai fazer com que a prática seja trazida à tona. Então se você disser: “Ai, eu tenho medo da morte.” E como vivência a expressão: “Eu vou falar com meu médico amanhã”? Então vai ter momentos que eu vou dizer “eu preciso de ajuda pra fazer isso” não somente como ter uma ideia abstrata na cabeça, mas mesmo quando existem as competências que são muito formalizadas, existem organizações que vão organizar essa teoria que ainda necessitam funcionar como esse diálogo informal entre os pacientes. ESP: O dinamismo da prática nos leva para uma aprendizagem da improvisação? WENGER: A prática é muito dinâmica. É a maneira de estar no mundo e que eu não gostaria de chamar de improvisação, pois ela precisa de envolvimento. Os sistemas educacionais têm almejado ver a prática como uma aplicação da teoria, mas eu acho que a realidade, por exemplo, do atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) é muito mais do que um compromisso, é um envolvimento com a situação na qual se pode mudar a teoria. Dessa forma, todas as experiências passadas serão utilizadas como informação, mas esse envolvimento com o dia a dia é muito dinâmico. Se considerarmos a variável tempo não podemos aceitar o conceito de 56

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que a prática é uma aplicação da teoria. Se fosse assim, se iria para a faculdade se formar e depois utilizar o aprendizado na prática. Mas na realidade não é bem assim, pois as coisas estão mudando o tempo todo. Você precisa de parceiros para a aprendizagem em toda a sua vida e não ter somente uma aprendizagem individual. É importante, seja lá o que você for, um doutor, um médico, uma enfermeira, uma assistente social ter parceiros de aprendizagem para compreender o que você quer dizer, compreender o conceito de confiança. É preciso confiança para realizar a prática como um sistema de aprendizagem. No começo estavam falando de coisas mais de fora, mas depois com confiança se começa a falar sobre as salas de aula e depois mais de seu mundo. Alguns pesquisadores canadenses desenvolveram o conceito “a loja de experiências”. Então o conceito de falar vem ajudar na sua prática e é tão dinâmico porque os problemas são sempre novos. ESP: Sobre o seu conceito de identidade, gostaríamos de entender se ele é pessoal e subjetivo ou se ele se conforma com a prática das Comunidades de Prática criando novas identidades, ou ainda, se esse processo é dinâmico sempre retornando para a pessoa? WENGER: Muito boa pergunta. Quando eu falo de identidade eu não estou falando sobre uma identidade-núcleo, ou seja, como uma cebola que você tira a casca e chega ao seu íntimo. Eu estou falando da construção de coisas que você realmente está interessado e em coisas que te são familiares como essa prática. É uma vivência e uma maneira de estar no mundo que é construída pela identificação com a prática, sendo reconhecido como um membro de uma CdP. Por isso é que a identificação é um fator tão importante da prática, porque é o que você se interessa por aquilo, com o que você se identifica e é naquilo que você vai investir e que vai te motivar a aprender mais. Eu diria que os problemas como nossas escolhas tem a ver com o fato de que a identidade não entra no processo curricular, ou seja, não é parte do currículo tradicional de aprendizado discutir a identidade, estimular, convidar o aprendiz a refletir sobre a sua identificação com o objeto de aprendizado, e por este motivo muitas vezes este objeto não vai ganhar significado para o estudante. 57

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ESP: As Comunidades de Práticas devem ser institucionalizadas ou não? Se for possível, como é que poderíamos institucionalizar as Comunidades de Práticas? WENGER: Essa é uma pergunta bem delicada. Uma Comunidade de Prática como um processo espontâneo precisa ser autodirigida, autoquestionada e envolver as conversações e interações informais. A dificuldade que se apresenta é que até podemos institucionalizar a ideia das Comunidades de Prática, mas não aquilo que acontece dentro delas. As organizações podem ter um comitê de institucionalização, mas terão que aceitar que institucionalizarão grupos e sistemas sobre os quais eles não terão controle da dinâmica interna. Inicialmente, quando eu fiz a minha pesquisa eu suspeitava muito da institucionalização das comunidades de prática, pois eu achava que não era possível esta relação. Mas eu vi algumas organizações fazerem muito bem e outras muito mal, e eu vi também que é possível fazer parte da cultura de uma organização a presença de uma ou mais Comunidades de Prática. No entanto, a organização teria que ter primeiramente compreendido e discutido com seus colegas para apoiar essas comunidades. Algumas organizações têm até alguns patrocinadores que não tem relação de gestão com a comunidade, e sim, um diálogo com a comunidade. Assim, para as organizações agirem de maneira adequada, se desejam que existam CdP no seu interior, teriam que implantar esses diálogos horizontais e não relatórios tradicionais que nós bem conhecemos como são. Onde as pessoas criam parcerias horizontais entre os participantes e também confiança de que eles são participantes sérios, não haverá necessidade de relações verticais. Então a ideia da institucionalização é muito importante e bem delicada, e nem todas as organizações conseguiram aceitar de maneira adequada o que é uma Comunidade de Prática, mas é possível institucionalizar a ideia. Observamos que algumas organizações fazem de maneira mais formal que outras, por exemplo, algumas propiciam que seus diretores tenham uma Comunidade de Prática entre eles, pois percebem que por causa do trabalho, eles precisam de um tempo para se organizar e para isso eles têm duas horas que estão dirigidas para esses comitês de prática. Vemos neste exemplo que é muito institucionalizado, mas o que acontece nessas duas horas dependerá deles. Em uma institucionalização mais flexível, talvez 58

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não se pense nesses termos, mas se você levar a sério é bastante revolucionária essa ideia! ESP: As instituições geralmente apresentam processos mais verticais. Como fica a aprendizagem nesses contextos? WENGER: As organizações construíram processos verticais onde se estuda, se desenvolve procedimentos para formalizá-los, mas depois os integrantes dessas instituições ficam inseguros na sua prática. Essa posição é bastante vertical em termos de aprendizagem, e de repente as organizações dizem “não” aos participantes, mas por outro lado, a ideia de Comunidade de Prática coloca o conflito entre conservar aquilo que eles querem e confiar nesse novo conhecimento. Por muito tempo a organização assumiu que não existia conhecimento na prática, por isso essa visão vertical tornou-se a maneira de fazer as coisas. Achavam que a prática estava só implementando a teoria, e vendo a prática apenas como improvisação. Não, ela (a prática) precisa de uma grande habilidade e de conhecimento para acontecer. Vemos que as políticas podem não captar isso. Então você começa a pensar que aprender é uma parceria horizontal entre os participantes e repito que isso é bastante revolucionário! Existem algumas organizações que compreendem isso e outras não. É uma transformação lenta, porque também, no caso do setor da saúde, a vida das pessoas pode estar em risco, ou seja, é bastante difícil porque se você verticaliza você tem mais ou menos certeza de que as pessoas não vão morrer, mas ao mesmo tempo os participantes estão envolvidos nessa participação. Você pode envolver o teu participante nessa compreensão mútua com a teoria da comunidade de prática, que para mim esse é o valor da teoria, porque de alguma maneira o que eu estou dizendo todo mundo sabe de alguma maneira ou de outra, mas ter uma linguagem e uma maneira de falar e legitimar pode fazer uma grande diferença. A diferença que isso faz nas instituições é que quando as coisas se transformam em legítimas, por exemplo, outro hospital, outras personalidades, outras autoridades, existe uma valorização da contribuição do conhecimento. Comunidades de Prática têm estado por aí desde o começo da humanidade, não é uma reinvenção da roda. As pessoas aprenderam dessa maneira por séculos e séculos, mas para apresentar essa linguagem na maneira 59

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que as instituições reconhecem o seu valor, nós nunca vimos antes e eu acredito que seja onde a teoria é importante. ESP: Para onde esta Teoria das Comunidades de Práticas está se dirigindo? WENGER: Por exemplo, eu estava com uma amiga que é advogada que tinha muitos livros no seu escritório e ela disse, ao apontar para sua biblioteca: “Está vendo? Isso é o corpo do conhecimento na minha profissão!” Eu retruquei: “Meu Deus é incrível que a profissão seja tão codificada em tantos livros!” Ao mesmo tempo eu pensei: “Ah, do ponto de vista da minha teoria isso não é o corpo de conhecimentos, isso é só um monte de livros.” Não que os livros não sejam importantes! Eu amo livros e tenho muitos também, portanto, não tenho nada contra livros, mas é engraçado como as pessoas pensam que se leu um livro já se sabe tudo a respeito de algo. Isso não é verdade! Eu já falhei na minha prática como todo mundo, eu vi muitas pessoas fazerem o seu trabalho e o trazendo para as Comunidades de Prática muito melhor do que eu; então pensar que “livros” são o corpo do conhecimento é um erro, eu acho. É um erro porque se você está na universidade você não pode colocar esses livros na cabeça das pessoas e dar um certificado. Vemos que um diploma é uma maneira fácil de graduar as pessoas. ESP: Como surgiram seus questionamentos? WENGER: Esse livro surgiu sobre um questionamento que ocorreu especificamente na Inglaterra, na Universidade Livre, que é especializada em criar um currículo muito bom. Eles investem milhões para a criação e depois na aplicação desse currículo. Vejo que isso é um negócio e não realmente o que eu chamaria de um corpo de conhecimento. Um corpo de conhecimento é um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que se aplica na vida real e os livros não estão na vida real. Eles têm um aspecto do conhecimento, mas não são o corpo de conhecimento, ao menos na forma como eu caracterizo a aprendizagem do ponto de vista de que aprender é uma tensão entre as competências definidas socialmente e a experiência pessoal. Imagine se eu decidisse aprender aquela coisa do “nariz do vinho”, eu iria ter que frequentar reuniões com 60

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os provadores de vinho todos os meses, eu iria expor a minha experiência sobre o vinho para os outros participantes desta comunidade de prática, comparar com as competências daquilo que eles falam e depois de algum tempo eu iria mudar a minha experiência até que eu pudesse dizer “é isso o nariz do vinho”! Então a competência está levando ao aprendizado, mas pode ser de outra maneira. Se você é um estudante muito bom, a sua experiência vai levar à sua competência, ou se eu leio uma dissertação essa dissertação tem que me dizer alguma coisa nova, ela vai mudar um pouquinho a minha maneira de pensar e mudar o que eu compreendo sobre essa competência no meu campo. Então existe essa tensão! Havia um tempo onde a expressão, por exemplo, “o nariz do vinho” não existia na Comunidade de Prática dos provadores de vinho, alguém trouxe essa experiência (as papilas nasais). Dessa forma, a percepção, a vivência de um membro da comunidade compartilhada com o grupo, é uma forma de trazer uma experiência que não existia e mudar a competência da comunidade, ou seja, é um equilíbrio muito tênue entre experiência pessoal e a competência definida socialmente. ESP: Somos influenciados por uma prática ou por muitas práticas? WENGER: Você deveria pensar na prática como uma maneira muito dinâmica por sua essência, mas nós também deveríamos perceber que em qualquer profissão o corpo de conhecimento é bastante complexo, porque não têm só uma prática envolvida e, sim, as várias práticas envolvidas que formarão o que eu chamo de um cenário de prática. Pense na sua profissão, você tem que fazer uma pesquisa lidando com gestão, outros com política, ouvimos pessoas do governo que o papel deles é criar políticas, pessoas envolvidas com pacientes, outras envolvidas com estatísticas, etc. Então nós precisamos de um corpo do conhecimento da sua profissão que seja mais bem compreendido no cenário das práticas e não de uma só prática. Assim, a sua aprendizagem dependerá de entrar nesse cenário e colocar-se exposto às diferentes práticas e essas diferentes práticas esperam que tenham um efeito na sua habilidade de aprendizagem de conhecimento. As diferentes práticas que influenciam aquilo que um profissional faz quando vê um paciente em consulta, por exemplo. Se você quer ser um bom 61

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profissional você vai representar para a pessoa todo um cenário de prática. É isso que faz de vocês profissionais, que tenham um relacionamento significativo com esse cenário e saibam o que fazer. Será isso que refletirá toda a habilidade de conhecimento desse cenário. ESP: Existe tensão dentro desse cenário de prática? WENGER: Esse cenário não é um lugar muito tranquilo e pacífico, onde todo mundo concorda com todo mundo. Como ilustração, podemos pensar que nós deveríamos fazer o exame X para esse paciente, e o governo diz: “Faça o exame Y!”, mas a pesquisa diz: “Olha, esse exame não vai trazer um resultado muito confiável” e o paciente diz: “Eu quero o exame X”, e a gerência diz: “Não, nós temos que economizar, esse exame não vai funcionar.” Ou seja, existe uma dança no meio desse cenário, porque se tem que decidir naquele momento de envolvimento para aquele paciente o que é o melhor. É uma dança profissional incrível de envolvimento! Não é só um currículo que decide o que fazer. Será o contexto real onde existem todos esses limiares de prática distinta, quando e onde se terá que decidir o que fazer, por exemplo, para aquele paciente naquele exato momento. Então não é que o mundo vá se tornar mais simples, mas na verdade que ele vai se tornar mais complexo, porque vão existir outras variáveis e você vai ter que buscar perceber as nuances, se deveria fazer mais isso ou aquilo, o que te ajudará na forma como exercer seu sentido de habilidade. Vemos que o mundo está se tornando mais complexo em termos de conhecimento social, o universo não é mais uma unidade exclusiva de conhecimento e nós temos que reconhecer isso para formar nossos profissionais. ESP: Como devemos formar os profissionais? WENGER: Ser um profissional não é somente implementar o currículo da sua universidade na vida, mas sim ser um participante ativo nessa dança complexa de escolher no que prestar atenção e no que investir na sua identidade profissional. Algumas pessoas perguntam para mim: “Você leu esse livro de tal e tal autor?” Tem tantos livros que eu deveria ter lido, mas não tem jeito de eu ler todos os livros, temos que fazer escolhas porque a vida é curta e 62

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o mundo complexo. Muito da minha aprendizagem administrará a minha identidade, logo, onde investir a minha pessoa, o meu tempo, é uma dança incrível, pois o processo de se tornar um ser humano que pode ser confiável para fazer isso ou aquilo é incrível. Como eu vou estabelecer a minha pessoa como alguém que vai contribuir com alguma coisa significativa para o mundo? Sei que é bastante complexo. Eu penso que quando olhamos o mundo moderno tem alguma coisa acontecendo de muito significativo, pois o cenário para a participação e para as habilidades sociais está se tornando mais complexo e o efeito da perspectiva social é que o projeto de se conhecer é mais um projeto da pessoa atualmente. As pessoas podem dizer: “Eu estou me deslocando do mundo social para o individual.”, por exemplo. O aspecto coletivo do conhecimento pode parecer até mais importante do que no passado. Eu tenho um primo médico que me diz: “Existem dez pessoas no mundo que compreendem o que eu estou fazendo.”, mas este tipo de Comunidade de Prática à qual pertence meu primo são definidas de maneira muito específica. Ao mesmo tempo, eu acredito que a sua participação através do mundo do conhecimento está dependendo mais de você mesmo do que no passado, porque a trajetória que cada um de nós constrói no mundo complexo tem mais peso nas nossas próprias decisões do que tinha no passado. É um testemunho bastante forte, mas isso é importante para compreender. Ou seja, se você vivesse numa pequena cidadezinha da Suíça, você interagiria com uma comunidade mais restrita e tiraria um pouco o peso da própria identidade, pois a comunidade construiria muito desse papel para definir sua identidade. ESP: Educar é permitir reconstruir nossas identidades? WENGER: Como eu estava dizendo antes, aprender é um caminho que vai entre muitas comunidades e fontes de conhecimento. Acredito que as nossas escolas somente compreenderam esse deslocamento da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento. Então nós estamos só arranhando a superfície desse significado para a educação e para a valorização profissional. Pois a continuação da educação é um deslocamento muito profundo, porque se você pensar em como nós nos encontramos com nós mesmos nesse mundo, nós não podemos ser tudo, ou seja, um pes63

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quisador, um praticante, um elaborador de políticas e um formador de opinião, pois o processo com o qual nós aprendemos como localizar a nós mesmos nesse mundo ainda é bem incompreendido. Porque um bom sistema de educação deveria habilitar essas três categorias: imaginação (possibilidades, imagens do mundo, imagens do passado e futuro, imagens de si mesmos), engajamento (compartilhar histórias de aprendizagem, relacionamentos, interações), alinhamento (discursos, estilos, coordenação de pontos de vistas). Eu vou contar uma historinha para expressar o que eu quero dizer do processo de imaginação, envolvimento e alinhamento. Havia um turista e ao lado da estrada tinham pessoas batendo e esculpindo em pedras. O turista perguntou ao primeiro escultor. O que você está fazendo? O primeiro escultor disse: eu estou misturando a areia ao cimento para unir as pedras e construir uma parede. O turista repetiu a pergunta a um segundo escultor, que disse: “Eu estou fazendo uma pedra de 20cm por 50 por 30, tem que ser exatamente essa dimensão porque tem que caber naquela construção e tem que seguir as instruções exatas.” Ao repetir a pergunta para um terceiro escultor, esse respondeu ao turista: “Eu estou construindo uma catedral!”. Você pode ver como é importante para cada um ter as três dimensões de maneira adequada, porque se você não sabe como fazer isso na prática você pode não conseguir seguir as instruções e você pode não contribuir para esse projeto. Por outro lado, se você não sabe o que você está fazendo e onde isso vai ser aplicado, você pode não receber algumas instruções, pode cometer um erro e se você ler as instruções você diz “isso não pode estar certo, eu estou construindo uma torre e essa pedra está pequena” e se você não sabe, não compreende, não tem uma imaginação do quadro geral você será incapaz de fazer um julgamento daquilo que é importante. Então esses três elementos são muito importante para qualquer sistema de educação. ESP: Estar em comunidade gera aprendizado, mas também existem barreiras como resistências na cooperação entre os praticantes. Como lidar com estas resistências que aparecem nos grupos? WENGER: Eu acho que todas as questões da resistência acontecem em muitos níveis e muito delas tem a ver com a moral 64

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de aprender que nós temos na nossa cabeça, ou seja, a ideia de que você só pode aprender quando está em um contexto especial como a sala de aula, por exemplo, que é um dos níveis. Eu acho que mudar o discurso é parte de como a resistência pode ser quebrada tanto na prática dos participantes como da organização dos processos. Ao mesmo tempo, na minha experiência, vejo que é quando os participantes realmente se envolvem uns com os outros e acreditam que o conhecimento que eles têm será valorizado. Portanto, essa é a mágica que acontece, pois ela transforma a realidade. Eu não quero minimizar a importância da resistência, mas também quero dizer que quando as pessoas têm o gosto pela participação, pela aprendizagem em parceria, em desenvolver um sentido de si mesmo como participante e como isso inspira, vemos o quanto isso se torna algo enriquecedor. Então eu acredito que nós temos as duas coisas de alguma maneira, nós sabemos que se diz que o aprendizado acontece na prática e na interação, mas nós temos também que legitimar para poder libertar nossa energia. Eu acredito que ambos acontecem com a mesma intenção. Claro que não quero tomar a prática de uma maneira romântica porque ela pode ser muito difícil, cheia de estereótipos com velhas ideias. Mas o que eu quero dizer é que, a não ser que você tenha um contexto na prática para fazer sentido daquilo que você quer construir com seu trabalho vai se tornar muito mais difícil, porque se é verdade que você tem que administrar aquilo que você é através de modulações do seu relacionamento com as fontes de aprendizado isso pode ser muito complicado em si mesmo. Portanto, aquilo que nós estamos compreendendo por meio dessa estrutura de aprendizagem que é a importância daquilo que nós chamamos de novos espaços de aprendizagem social com seus novos limiares. Eu estava conversando com alguém e dizendo que ao mesmo tempo em que está tentando abrir novos espaços para parceria no aprendizado, nesses cruzamentos também existem limites de envolvimento. ESP: A prática abre sempre novos espaços e limites, mas como lidar com seu dinamismo e com as pesquisas científicas? WENGER: Por exemplo, é como ser um bom médico de família em algum bairro de Fortaleza, e na sua prática vemos que não existe política que possa prever que ele precisa se envolver com o contexto 65

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e com o parceiro para construir esse contexto. E vejo que a pesquisa tem que estar baseada nessa busca de conhecimentos da prática social. Eu sei que os pesquisadores não gostam quando eu digo isso, mas eu acho que a pesquisa é uma entrada para a prática e não quero dizer que é uma prática determinada, pois a determinação de uma prática tem que estar nas mãos do participante envolvido. Isso é muito difícil porque nós vivemos em tempos de abordagens científica na saúde e eu tenho todo o respeito pela ciência, mas às vezes ela evita a prática. Claro que eles (pesquisadores) fazem práticas sociais nas quais tomam decisões dinâmicas: “Ah, nós temos que levar esses dados em consideração.” Esse diálogo entre as práticas é muito importante, mas esses diálogos são horizontais e não verticais. Nós temos um exemplo muito bom de prática na atenção primária e também uma nova política sobre a discussão de como encontrar os dados estatísticos na população. Esse meu colega está estudando o que acontece com essa prática porque eles estão atuando e, essa parceria horizontal quando tem uma política que vem do sistema vertical, nesse grupo, tem uma negociação muito linda que acontece nessa translação. Ou seja, eles dizem: “Nós não vamos implementar a política simplesmente, pois a realidade é muito mais complexa e, às vezes, os protocolos verticais que apresentam os números adequados e a descrição de uma comunidade de prática sobre o contexto de negociação da pesquisa, em termos de servir aos pacientes, nem sempre são iguais.” Então é muito delicado porque, às vezes, quando temos esse encontro de pesquisadores e participantes de práticas, pode existir divergências entre os dois, mas esta disputa não é necessária, desde que se reconheça que existe mais de uma dimensão para o conhecimento e se respeite as diferentes dimensões. Então se você olha no mundo de hoje, o conhecimento é verticalizado e horizontalizado muito rapidamente, e nós desenvolvemos esse instrumento de pesquisa e dizemos: “É isso que funciona.” Entretanto, nós devemos ter outros procedimentos para ter certeza de que os praticantes vão fazer aquilo que a pesquisa encontrou para controlar a prática, nós temos que reconhecer as Comunidades de Práticas, nós temos que reconhecer essa prática horizontal entre o paciente e o médico e a negociação do que o meu conhecimento significa para o outro, isto é, devemos nos aproximar do que o outro está sentindo. Há uma 66

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maneira significativa de construir o conhecimento, pois eu posso até implementar aquilo que o pesquisador encontrou nas suas pesquisas, mas existem evidências crescentes de que os membros de mais sucesso tem esse envolvimento com seus pacientes e reconhecem as habilidades que esse paciente está trazendo para ele. Vemos que muitas vezes, quando se verticaliza tudo, acaba não existindo espaço para negociações. E o que estou querendo dizer é que nós temos que compreender que o conhecimento e a prática têm que negociar entre si, pois eles têm que estar no processo de dimensão horizontal. A dificuldade é que nós não compreendemos esses dois processos que coexistem e que necessitam um do outro. Frequentemente os cientistas dizem “Não é possível, nós fizemos toda a pesquisa, produzimos as evidências e agora como aquele que pratica não vai aplicar nossos resultados?” Por exemplo, na Inglaterra eles verticalizaram o ensino profissional tão fortemente que os professores entraram em greve e diziam: “Não queremos mais ensinar esses conceitos para dizer tal coisa e ensinar todos os dias dessa maneira.” Esta forma de agir da comunidade científica é verticalizada. ESP: Conhece alguma experiência pelo mundo na qual o governo consegue facilitar o desenvolvimento da prática no dia a dia das pessoas nas comunidades como os agentes comunitários de saúde no Brasil, mesmo não sendo dentro dessas redes de pesquisas oficiais? WENGER: Quando me contaram sobre a experiência dos agentes comunitários de saúde eu fiquei surpreso, porque eu até então não tinha ouvido falar e achei incrível. Porque o reconhecimento da habilidade de conhecimento que eles (ACS) têm acumulado e realmente trocar o que se pode aprender através desses agentes que aprenderam com as comunidades, eu acredito que teríamos que ver o que eles precisam para melhorar no seu trabalho. Tem muitos contextos nos quais os governos realmente acrescentaram a essas comunidades, mas não nesse contexto. Conheço um governo que tem uma iniciativa utilizando o formato dessas comunidades de práticas, eles têm uns tipos de agentes, mas é entre as comissões. Aqui no Brasil, eu não sei se esses agentes de saúde estão isolados no contexto, mas seria muito importante que 67

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eles fossem reconhecidos, pois aquilo que eles sabem tem muito valor para se criar um fórum, por exemplo. Eu não estou falando que seja na internet, mas que seja no contexto no qual eles possam ser reconhecidos como uma troca importante. Vemos sempre a necessidade de se verticalizar as comunidades, alinhando isso com aquilo, pois é como se tentasse lidar com o que é abstrato e isso é muito difícil. Mas já é um grande passo do governo ter reconhecido a função do agente comunitário no Brasil. ESP: É fácil ou difícil introduzir a experiência das Comunidades de Prática nas organizações? WENGER: Muitas organizações tiveram muito sucesso nisso aqui no Brasil; e eu não sei por que os brasileiros são praticantes como nos outros países. Acima de tudo vocês gostam uns dos outros, então isso é um sinal muito bom. Algumas pessoas dizem em algumas culturas “isso não vai funcionar” e eu suspeito um pouco disso, é muito interessante. Eu tenho uma hipótese sobre isso e vou dizer qual é: a cultura da prática é quando os praticantes se envolvem uns com os outros e os elementos culturais têm que se tornar menos importantes. Eu vi isso acontecer e tenho essa suspeita de que os outros estudos de cultura são importantes no começo, mas quando o praticante se envolve com o outro, existe uma energia tão grande, que não importa se é no Japão ou no Brasil, quando você toca essa identidade do praticante e isso vem à superfície, alguma coisa acontece. Os japoneses não queriam fazer parte da comunidade internacional porque eles estavam bastante preocupados em se expressar e normalmente eles faziam isso só entre eles mesmos, mas do momento que eles se tornaram confiantes, eles se uniram à comunidade internacional. Isso realmente deve ser levado em conta. Nós estamos acostumados a expressar as nossas práticas e quando a gente fica confiante podemos entrar na comunidade internacional sem medo.

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SEGUNDA PARTE – As interfaces entre gestão do conhecimento e Comunidades de Prática nas organizações ESP: As Comunidades de Práticas podem ajudar em um desenho de construção do sistema de saúde como o brasileiro? WENGER: De fato, as Comunidades de Práticas não são soluções para o problema, mas podem ser uma disciplina de se levar à prática, à experiência e à identidade do que é utilizado na prática e de maneira séria na construção do sistema. ESP: Qual a relação entre CdP e Gestão do Conhecimento? WENGER: Muitas organizações que implementaram as Comunidades de Prática na Gestão do Conhecimento, estão de fato, pelo menos aqueles que têm sucesso, aplicando as Comunidades de Práticas como uma disciplina ao conceito da Gestão do Conhecimento. Mas acontece de muitas pessoas não fazerem essa disciplina e pensarem que Gestão do Conhecimento é uma maneira de selecionar e criar os conhecimentos e base de dados. No entanto, não aplicam a disciplina de envolver os praticantes no processo de Gestão do Conhecimento dos quais eles necessitam. De alguma maneira, ao levarmos as Comunidades de Prática de maneira séria, os praticantes estarão na melhor posição para a gestão do conhecimento que eles necessitam e que utilizam na sua prática. Se quiser transformar o sistema, as Comunidades de Práticas são um meio de se assegurar que as implicações da prática do desenho sejam compreendidas e refletidas pelos próprios praticantes. Então, se ela [na pessoa na Ivana] quer fazer isso, aquela disciplina vai pedir, vai requerer a ela e a seus colegas, o asseguramento de que o processo do desenho do sistema é significativo ao praticante, de tal maneira, que ele pode se comprometer com o processo de transformação do sistema. Será que eu me expliquei bem?! Muitas organizações geralmente redesenham o sistema lá na matriz e depois repassam aquele desenho às outras unidades. Às vezes, as pessoas ficam cansadas de outras iniciativas. Por exemplo, a cada cinco anos tem um novo diretor e novas iniciativas que se desdobram a toda a organização, e as pessoas dizem: “Ah! Eu vi 69

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muitas dessas iniciativas e sobrevivi a elas, mas eu não me envolvi com elas, eu não as levei como um compromisso.” As pessoas tem que estar comprometidas na gestão participativa de alguma maneira. E pensar nas Comunidades de Práticas é uma maneira de pensar como as pessoas podem se envolver, pois a gestão das capacidades é que faz com que o sistema possa funcionar da maneira como ele deveria funcionar. ESP: Como se dá o desenvolvimento na prática de uma CdP? WENGER: Vejam que em diferentes organizações, empresas, eles desenvolveram diferentes comunidades e apoiaram diferentes comunidades. Por exemplo, a Caterpillar é uma organização que desenvolveu comunidades de uma forma na qual eles têm a fragmentação em pequenas comunidades, que giram em volta de pequenos problemas, como se fossem a roldana nesses tratores e que também retiram terra. Nesse exemplo, eles têm pequenos equipamentos e parte dos seus equipamentos é onde existem as Comunidades de Práticas, que falarão de problemas específicos. Outro exemplo, na Petrobras as comunidades são maiores, com equipamentos maiores e mais importantes. Então, as comunidades que têm problemas maiores formam comunidades maiores. A Gamble tem comunidades que eles chamam de comunidades profissionais. Estas são comunidades que tem um ciclo de vida muito grande. Aquelas empresas que desenham fraldas ou trabalham com bioquímica apresentam funções muito importantes. Então, eles têm Comunidades de Práticas sobre a profissão de bioquímica. Existem Comunidades de Práticas que focalizam tecnologias específicas como, por exemplo, o uso de um ejetor de tinta. Outras comunidades focam problemas de negócios colocando um organizador ali no salão de exposição de seus produtos. Então, as comunidades giram em torno de diferentes aspectos, das capacidades que são necessárias, de diferentes expectativas nesses diferentes tipos de comunidades. As comunidades profissionais têm ciclos de vida muito longos, pois as pessoas permanecem ao longo de suas carreiras. Assim sendo, essas comunidades pedem uma formação, para saber que há os novatos, e apresentam geralmente uma identidade profissional. Nas comunidades técnicas, as pessoas podem pertencer por muito tempo ligados a essas comunidades, ou apenas por um tempo curto enquanto estão aplicando a tecnologia. 70

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No Canadá, existe uma organização de saúde sem fins lucrativos, ligada a algumas especialidades, por exemplo, oncologia e exames afins. Então essas comunidades vão se certificar que todo mundo aplicando corretamente, a comunidade vai desaparecer. Também existem comunidades locais focando uma população de uma área específica para se assegurar que esta população tenha serviços oncológicos mesmo se não há número suficiente de cirurgiões nessa especialidade. Eu estou falando de exemplos para tornar mais concreta a noção das comunidades e mostrar com clareza que as Comunidades de Práticas vêm a ser uma maneira de administrar as capacidades de uma organização. Assim como ver que existem diferentes maneiras de realizar esse conceito, desde pequenas comunidades, como a Caterpillar, até grandes comunidades. Outras organizações utilizam as comunidades para criar outras conexões, ou seja, novas conexões entre as pessoas. Por exemplo, esse controle em Atlanta utiliza as comunidades como uma maneira de envolver as pessoas em diferentes níveis do governo. Assim, uma Agência Federal, que tem esse controle e necessita envolver pessoas em outros níveis de governo, utilizam as Comunidades de Práticas. ESP: Quais são os recursos dentro de uma CdP? WENGER: Nas Comunidades de Práticas se desenvolve um vocabulário que vai criar um grau de uniformidade entre as pessoas. Dessa forma, ao desenvolver esse valor de Comunidades de Práticas, há uma tentativa de aproximar as pessoas, pois não importa onde se trabalhe, é possível estarem juntos, participando dentro da comunidade. Podemos perceber que de diferentes maneiras, o conceito das Comunidades de Práticas se torna uma disciplina que engaja praticantes no desenvolvimento de algumas capacidades. E de fato se preocupando e se assegurando que essa capacidade estará ali contida. ESP: Para quem serve a CdP? WENGER: A comunidade serve a ambos, à pessoa e à organização. Eu estava trabalhando em uma companhia automotiva e estava falando com as pessoas da organização e vejam que interessante: quando se está desenhando veículos, é muito importante 71

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desenhar as peças de maneira muito segura para assegurar a venda aos clientes. Assim sendo, uma atividade que essa comunidade estava fazendo era realmente ver o produto dos competidores. Essa comunidade tomou a responsabilidade de pegar uma parte do trabalho dos praticantes para ter certeza que aquele equipamento estava bem desenhado na sua organização ou se estava bem concebido. O desenvolvimento de uma importante capacidade como essa, levava em conta os próprios praticantes. Nesse caso, eles vão aplicar o conhecimento que irão adquirir com a sua equipe. Mas também há a comunidade para desenvolver as coisas que você vai precisar para trabalhar bem com a sua equipe fora da comunidade. Ou seja, usa-se dois chapéus, um da equipe que se trabalha e outro das Comunidades de Práticas as quais pertencem. Dessa forma, a aprendizagem vai de um para o outro. Absorve-se o conhecimento que se adquiriu na comunidade e aplica na sua equipe, e vice-versa, se pega o conhecimento que é da sua equipe, quando inventa soluções, e troca com sua Comunidade de Prática. ESP: Quando você coloca que a Comunidade de Prática vai se definir como uma disciplina, eu queria que você falasse do disciplinar. Pois vejo que ela entrará em um campo de conceito epistemológico. E se adentrar nesse campo como é que faremos para o desenvolvimento dessa Comunidade de Prática acontecer, tanto no campo da pesquisa, dos processos avaliativos, mas também da atenção e da formação, no que diz respeito aos conceitos, ferramentas e estratégias. WENGER: Bem, como disse anteriormente, as Comunidades de Práticas são o veículo para compartilhar o conhecimento. Para mim, eu não tenho certeza se isso é a melhor maneira de enxergar as comunidades. Você coloca pessoas aqui em uma sala e você diz: “Bom, vamos compartilhar nosso conhecimento.” E aí?! O problema, vendo as comunidades dessa maneira, é que há uma tendência a ver como um problema operacional na organização. Então, vamos encontrar pessoas para compartilhar o conhecimento. Eu acho que o que está faltando para as comunidades da prática, é uma questão estratégica e não operacional. É uma questão de por que as Comunidades de Práticas? Quais são as comunidades que nós necessitamos? É estratégico? É por que envolve a discussão? Para 72

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onde estamos indo com essa organização? Quais são as capacidades que ela necessita? Então, eu penso nas comunidades não somente como: “Ah! Vamos compartilhar conhecimento.” Penso além! Vamos desenvolver as capacidades que necessitamos para realizar a estratégia da organização. E para mim, esse conhecimento compartilhado não é para ser visto no campo operacional e sim no estratégico. E é por isso que não está dando certo. Temos que atrair a atenção das pessoas que estão desenvolvendo as comunidades. Precisamos perceber qual é a estratégia e vejo: “Aí, nesse contexto, pensando sobre essa visão do sistema de saúde por inteiro, aí as comunidades fazem sentido, como uma abordagem estratégica para desenvolver as capacidades necessárias.” Para mim, isso seria muito estimulante no sentido de pensar esse projeto e como aplicar essa disciplina. Porque, é claro, se você está desenhando veículos parece muito óbvio, ou qual estratégia tem que ser aplicada, será que necessitará de alguém que desenhará partes de motores muito bem. Quando eu estava fazendo isso estava surpreso, porque eu tinha uma Comunidade de Prática só no setor de limpa para-brisas. Então, tem pessoas que levam a vida inteira pensando os limpadores, qual é a borracha melhor para utilizar, que pode funcionar no verão, no inverno, qual é o ângulo que tem que ser colocado. Então, no veículo, será quase como se o produto dissesse para vocês quais são as capacidades que vocês vão necessitar. Mas no caso do SUS, por exemplo, é muito sutil a compreensão de que tipo de comunidades vocês vão necessitar para realizar a estratégia. Já tem comunidades bem estabilizadas e outras onde existem problemas, mas a abordagem da disciplina em pensar como criar locais bem significativos para fazer com que essa transformação seja realizada. É muito interessante pensar um projeto de criação de comunidades para este caso. Porque algumas dessas comunidades já se sabe o que precisa, algumas nem se sabe ainda o que vai precisar, algumas vão ser inventadas pelos próprios praticantes e vai ser um diálogo muito interessante entre a organização e entre os praticantes, em termos de como é que se realiza essa estratégia, como é que se conduz essa estratégia. ESP: Então, a CdP como campo estratégico coloca o sujeito como protagonista do seu fazer? WENGER: Sim, é importante a disciplina de aprender juntos. Em termos de atividades que as pessoas se envolvem em conjunto, 73

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contrariamente ao espaço, simplesmente. Nós comentamos ontem, eu vi muitos espaços abertos, vazios, e que ficaram vazios porque as pessoas não pensaram quais eram as questões que elas queriam discutir e que tipos de atividades realmente evoluem sobre essas questões. Eu vou falar sobre o apoio que se requer para essas comunidades, para que essas comunidades tenham sucesso. As pessoas estavam me perguntando se isso funcionaria no Brasil, e eu acho que mais importante que nós podemos compartilhar as histórias locais e que sejam histórias de sucesso ou de fracasso, não importa. Então, para as pessoas, para os universitários, eu quero me assegurar que eles estão entendendo que as Comunidades de Práticas são muito diferentes de si. Vocês têm aqui, por exemplo, alguém que é um provedor de conhecimento e outro que é recipiente de conhecimento. ESP: Como é a relação de aprendizagem dentro das CdPs? WENGER: Em uma Comunidade de Prática o que você tem, são praticantes descobrindo e explorando como é que eles podem agir em suas práticas. Existe naturalmente uma negociação daquilo que “será que o que eu sei é significativo para aquilo que você sabe?!” Ou seja, a minha experiência é significativa para a sua experiência?! Por exemplo, “trocando histórias” é uma atividade muito importante para as comunidades. Quando você me conta o que você fez com o seu paciente na terça-feira, por exemplo, eu digo: “Ah, isso é muito interessante como solução!” Eu posso observar como seria importante para eu ouvir essa experiência. Então, nós estamos explorando um ao outro, como parceiros de aprendizagem. É porque estamos descobrindo as histórias que têm sentido na nossa prática. Assim sendo, as características das comunidades em geral é o currículo que leva ao conhecimento. Nas Comunidades de Práticas serão as práticas que impulsionam o aprendizado. Perguntas do tipo, “eu tive esse tipo de paciente, o que eu deveria fazer?!” Dessa forma, o impulso se utiliza da prática em si mesma. As Comunidades de Práticas são um sistema de conhecimento, onde a prática é o currículo do estímulo ao aprendizado. Nesse caso, somos orientados por uma ação, um caso, ou um conjunto de casos concretos para gerar o conhecimento pelo conhecimento. Geralmente, o professor assume que o que 74

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ele vai ensinar para vocês é algo significativo. Nas Comunidades de Práticas se negocia o que é significativo com as pessoas que se envolvem umas com as outras. “Quem é você e como nós podemos nos comunicar de maneira que exista esse processo de negociação entre as partes? Como vai funcionar essa troca prática do conhecimento?” Normalmente os relacionamentos de poder são muito verticais, pois tem um professor que dará um exame ou uma prova para vocês. E as comunidades têm um relacionamento mais horizontal, no entanto, isso não significa que todos sejam iguais. ESP: Na CdP os praticantes não precisam ser iguais para estabelecerem uma relação horizontal? WENGER: Em uma comunidade você tem diferentes pessoas com diferentes poderes. Você tem pessoas com muita experiência versus novatos e, por exemplo, a sua voz, como veterano, será muito mais significativa do que a voz dos iniciantes. Apesar de pensar que em uma comunidade é muito importante ouvir as vozes com muita seriedade. Tem vozes que são ouvidas e outras que não são ouvidas, mas é importante ouvir! Você não tem uma hierarquia de posição ou de posicionamento. O poder em uma comunidade é definido, tanto, por quanta experiência você tem e pelo quanto você pode contribuir para o conhecimento, e com o quanto de energia você se coloca na comunidade. Se você se envolver, você ganha poder na comunidade. Quando se usa a Comunidade de Prática, as pessoas pensam que porque é uma comunidade é o paraíso e todo mundo se ama e não tem problemas entre as pessoas. Não é verdade! Nós usamos a comunidade para que se constitua uma prática, para que seja a parte em comum entre as pessoas, ou seja, é o poder da voz, é o poder da autoridade e das experiências. Esse é o tipo de relacionamento de poder que funciona em uma comunidade, não o poder pessoal. ESP: Como você pensa a problemática do aprendizado? WENGER: A disciplina das Comunidades de Práticas é algo que se pode aplicar em circunstâncias nas quais não há a intenção de construir uma Comunidade de Prática. A aprendizagem baseada na resolução de problemas faz com que isso seja mais ou menos uma comunidade, não dentro de sala de aula. Eu vi professores 75

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aplicarem a mesma disciplina no seu ensino. E vi uma professora que era uma escritora, estava ensinando literatura inglesa, então ela queria um espaço fora da sala de aula para que os estudantes pudessem criticar até o trabalho uns dos outros. Não apenas ela fez isso, mas ela colocou o seu trabalho também na comunidade para ser criticado. Dessa forma, além de ser uma professora, ela era uma copraticante e ela queria também a crítica dos outros participantes. Os estudantes amaram este espaço mais do que as aulas e continuaram a comunidade mesmo depois que o curso já tinha terminado. Eu vejo que é possível aplicar a mesma disciplina em locais onde não se tem Comunidades de Práticas formais. Ou seja, a disciplina da aprendizagem horizontal. ESP: Como se fazem parceiros de aprendizagem? WENGER: De alguma maneira as Comunidades de Práticas são um tipo de relacionamento pessoal. Por exemplo, eu me casei em setembro e pergunto: “por que você se casa? Casa-se porque você reconhece alguém como um parceiro”. Eu disse: “Muito bem! Eu vejo em você o potencial de alguém para vivermos em conjunto”. Nós não deveríamos levar essa analogia longe demais, mas de alguma maneira as Comunidades de Práticas são algo assim também. É descobrindo a outra pessoa como um parceiro de aprendizagem, não o rumo da sua vida, mas de aprendizagem! Algumas coisas que nós sabemos sobre o relacionamento se aplicam às comunidades. Por exemplo, as pessoas podem pensar “amor à primeira vista”, mas na maioria dos casos você realmente não sabe se aquela pessoa é uma pessoa para ser seu parceiro a vida toda. Você investe um pouco de tempo e algum engajamento para isso. As Comunidades de Práticas são tratadas um pouco assim, pois você não está certo e não está seguro se você quer ir longe com aquela comunidade. Você se envolve para explorar a possibilidade e ver se você pode vir a ser um parceiro dentro da comunidade. As Comunidades de Práticas são, de alguma maneira, diferentes de uma equipe. Em uma equipe você está junto, tem objetivos e um plano de trabalho. E quanto mais o objetivo e o plano de trabalho são definidos, mais a equipe terá sucesso. Por outro lado, nas Comunidades de Práticas são as tentativas que importam. Você não pede um engajamento muito grande no início, 76

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você deixa as pessoas acharem a valorização e se engajarem um com o outro ao longo do tempo. As pessoas vão encontrando a valorização e criando nesse engajamento. Dessa maneira, é um processo de evolução do que você teria dentro de uma equipe ou, ainda, em uma unidade de trabalho. A arte de desenvolver uma Comunidade de Prática, para aqueles de vocês que vão adotar, tem a ver com o valor que vocês podem encontrar na criação da energia social. Eu digo que essas pessoas são artistas sociais. É quase como aquelas pessoas que se apresentam um para o outro para se casarem e criarem um relacionamento. Então, se expressa o valor do aprendizado em conjunto! Pense em uma comunidade e no desenho dessa comunidade como uma evolução. A mesma coisa que acontece em um relacionamento que progride e desenvolve e você se apaixona é por causa do “narizinho daquela pessoa”. Claro que não é bem assim na Comunidade de Prática, mas será porque você reinventa o seu relacionamento dentro dela. ESP: Como é se reinventar dentro de uma CdP da qual é participante? WENGER: Quando se trabalha com as Comunidades de Práticas, entra-se em um processo de renovação da comunidade, onde se reflete o que foi feito e o que ainda pode ser feito. Nós reinventamos a comunidade da mesma maneira que um relacionamento pessoal se reinventa por si mesmo, ou seja, é para durar muito tempo. Mas, como nos relacionamentos, as comunidades também terminam, pois elas não são feitas para durar para sempre, é por isso que a analogia com o casamento não funciona. Algumas pessoas têm, realmente, encontros durante seis meses, mas não pensam que isso vire casamento. Mas nessas Comunidades de Práticas as analogias são bastante perigosas, mas por que então eu estou usando essa analogia se nós sabemos muito sobre os relacionamentos? Pois nós também sabemos que os relacionamentos são difíceis e que eles, às vezes, não funcionam. Sabemos que, quando eles têm sucesso, é uma coisa linda para viver! Mas também sabemos que o envolvimento daquilo que nós somos profundamente tem que ser utilizado. A mesma coisa com as comunidades! Quando elas funcionam, elas são únicas. Por exemplo, se pensa que engenheiros são isolados, mas quando eles 77

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estão juntos e na mesma sintonia, eles realmente têm uma energia incrível. Esse envolvimento, realmente, é muito importante! ESP: Quais poderiam ser os passos para se começar uma CdP? WENGER: O primeiro passo é que devemos conversar muito com as pessoas, sem hesitar, perguntando-lhes como gostariam de fazer ou se gostariam de ter uma liderança no funcionamento da comunidade. Iniciar realmente em um processo social de muitas conversas e trocas. Será muito importante encontrar lideranças internas. Fundamentalmente, eu diria, que se você está começando uma Comunidade de Prática e você não é membro dessa comunidade, um critério chave para saber se você vai ter sucesso ou não é se você consegue encontrar alguns membros da comunidade que querem se juntar a você e tornar factível. Se você não conseguir não vai funcionar, porque uma comunidade não pode acontecer do lado de fora, tem que ser do lado de dentro. É como um relacionamento novamente: você tem dois amigos, eles não se conhecem, mas um terceiro reconhece como seria um casal fantástico. Você pode convidá-los para jantar e apresentá-los e não vai dizer exatamente porque os convidou. Mas isso seria legal para que eles pudessem conversar um pouquinho, e tenha o vinho certo e a música certa quando você os convidar. Estou usando uma analogia um pouco difícil, mas de alguma maneira, se você tem responsabilidade de iniciar uma Comunidade de Prática e você não é um membro, tem que gerar uma circunstância na qual essa Comunidade de Prática funcione. A comunidade somente pode acontecer quando os membros se descobrem um ao outro como parceiros de aprendizagem ou quando os membros se engajam e se estimulam com esse processo, ou seja, engajar um com o outro como parceiros na aprendizagem. Assim sendo, encontre pessoas que vão trabalhar com vocês e indique lideranças e traga questões para a comunidade. Há uma diferença importante da sala de aula e as Comunidades de Práticas. Em uma sala de aula, o professor está lá para ensinar os estudantes. E os melhores líderes não são aqueles que vão ensinar os outros, mas aqueles que vão aprender por si mesmos. Os melhores líderes vão querer que a comunidade seja necessária para eles mesmos, 78

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então é por isso que se precisa dessas trocas, para encontrar esse ponto em comum. Nesse caso pensarão: “Muito bem, como nós começamos?! Que tipo de atividades engajará essas pessoas para trocarem entre si?!” Há alguns anos, eu estava entrevistando o meu pai, porque ele já estava chegando ao final de sua vida. E ele estava me dizendo que quando ele conheceu minha mãe, ele a levou a um museu. Podemos imaginar esse senhor bem idoso, perto do final de sua vida, dizendo que se ele a levasse em um cinema ou em um concerto, eles somente ficariam sentados ali. A coisa boa de um museu é que se troca e se fala sobre a pintura e se descobre melhor entre si. Essa é uma técnica para os encontros, porque se precisa explorar a química existente. Quando se desenha um processo de lançamento, é possível compreender como habilitará as pessoas a se conhecerem entre si. Será que é resolvendo algum problema, ou alguma questão? Ou ainda, será que eles têm a leitura de um estudo, ou a discussão sobre uma pesquisa? É importante entender o quê esse encontro vai permitir para que as pessoas se descubram entre si. Eu estava fazendo uma pesquisa de uma comunidade de advogados em uma empresa internacional muito grande. Esses advogados estavam lidando com a propriedade intelectual. Fazer esse tipo de pesquisa sobre a propriedade intelectual é uma coisa bastante problemática e complexa, porque outras empresas se beneficiarão dessa pesquisa também e há de se considerar a população local e os governos. Os pesquisadores não gostam de lidar com isso por conta da complexidade do problema. No mundo inteiro estavam estudando sobre a formação dessa comunidade. Dessa forma, essas reuniões entre advogados, no seu princípio, eram não falar mais daquilo que se necessita e realmente não trocar nada que possa se voltar contra você. Eu achei que essa comunidade não ia ter muito sucesso, mas me lembro que, no final do segundo dia, alguém estava dizendo que havia um problema com a palavra “confidencial”. Quando eles colocavam “confidencial” em um contrato, eles tinham um problema com isso. A partir desse momento, eles começaram a discutir a utilização da palavra “confidencial” em diferentes contratos. E de repente, 79

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eu fiquei muito contente, pois sabia que essa comunidade tinha começado realmente, porque eles se estimularam tanto com essa conversa que eles ficaram debatendo por longo tempo. Eu pensei: “esse pessoal realmente descobriu a parceria da aprendizagem”. É importante na comunidade que as pessoas vissem e reconhecessem o valor dela e quisessem mais. Essa conversa era estimulante intelectualmente, mas muito prática, porque eles tinham que utilizar o tema “confidencial” de uma maneira adequada. Eu tive muita sorte, porque eu não tinha planejado isso, mas era o tempo certo de troca para que eles vissem o valor dessa parceria de aprendizagem que conseguiram alcançar. Mas, às vezes, não acontece assim. Às vezes, faço certo, às vezes, não. É uma arte! E nós temos que aprender através da experiência que, às vezes, funciona e, às vezes, não. Não posso ensinar uma receita segura, na qual vocês ponham uma farinha, água e algo mais e já aparecerá uma comunidade. Não tenho essa receita. Eu fico suspeitando das pessoas que falam disso como uma receita. ESP: É possível haver CdP em instituições de ensino superior? WENGER: Claro, em nossas instituições de ensino, é possível haver Comunidades de Práticas entre os professores. É possível aplicar a disciplina da aprendizagem horizontal e há diferentes maneiras de aplicar essa perspectiva em uma instituição de ensino. Algumas instituições pensam em desenvolver Comunidades de Práticas, como estão pensando em desenvolver na Saúde Pública. Assim, talvez, exploraremos muito mais a relação entre a prática e a aprendizagem no futuro, porque eu acredito que quando nos aproximarmos do nosso século a possibilidade de que tem muita aprendizagem acontecendo no mundo e não somente nas universidades, poderia ser que esse relacionamento da universidade com o mundo tivesse de mudar, mas esta é outra questão. Eu acho que, nas próximas décadas, realmente, o foco dessas instituições de aprendizagem do mundo mudarão bastante. ESP: Você colocou que PBL é uma espécie de Comunidade de Prática usada dentro das escolas. No Reino Unido e na Holanda, eles têm utilizado grupos de aperfeiçoamento da prática para educação 80

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permanente nos médicos de família. O conceito de Comunidade de Prática é coerente com esse tipo de experiência? WENGER: Sim, é isso exatamente o que eu estava falando. Eu estive há duas semanas na Universidade de Hong Kong, e eles lentamente estão começando a utilizar a aprendizagem baseada em problemas através da prática, ou seja, aquilo que torna significativo para as pessoas. Não é mais um exercício, mas sim fazer algo significativo para o mundo. Eles querem que esta aprendizagem seja parte do currículo integralmente e não somente uma coisa à parte. Eles começaram com engenharia e depois arquitetura. Há escolas em todas as aldeias na China. Essas transformações estão acontecendo em termos progressivos, e as instituições estão explorando essas visões orientadas pela prática. Eu não sei por que nossa civilização desenvolveu essa coisa de separar a prática da teoria. Alguém me disse que foi por causa dos gregos, pois os escravos ficavam com trabalho braçal e os cidadãos faziam a teoria. Mas é interessante o fato que nós tenhamos separado essas duas coisas. Eu estava trabalhando com uma Escola de Saúde em Manchester e estava olhando na perspectiva das Comunidades de Prática. Nessa escola, depois de dois anos de teoria, os estudantes de medicina iam para os hospitais. Assim, é estranho de ver, depois de dois anos de um curso dificílimo com os exames, eles chegam ao hospital, sendo esta uma experiência muito temerária para eles, e nesse caso, as enfermeiras sabem muito mais do que eles na prática. Eu não sei por que fizemos a separação ao ensinar primeiro a teoria e depois se voltar para a prática. Talvez o interessante fosse transitar de um para o outro de uma maneira mais significativa e construtiva. Não sei por que nós adoramos tanto essa teoria assim. Eu escrevi alguns livros sobre Comunidades de Práticas, e as pessoas falam comigo: “Meu Deus, você sabe muito porque você escreveu um livro”. Eu elaborei uma teoria, eu sou bom em conceituar coisas, só isso. Mas não quer dizer que eu seja melhor do que vocês seriam para liderar uma comunidade. Portanto, é uma coisa muito estranha que temos essa adoração a esse tipo de conhecimento. E deixamos de reconhecer o conhecimento dos que praticam. Ao pensar, de alguma maneira, que as Comunidades de Prática sejam revertidas para tal. Eu não estou falando mal de 81

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teoria, pois eu sou um “teórico”, eu adoro teoria! Não tenho nada contra teoria, mas a teoria é somente um par de óculos. E esses óculos não leem por você, eles apenas ajudam a ver o mundo em uma perspectiva melhor. Mas a visão tem que ser pelo praticante e a teoria não dirá o que se tem que fazer. Se a teoria dissesse o que fazer, teríamos que suspeitar dessa teoria. Mas voltando à formação médica, uma de suas atividades é de ler conjuntamente os estudos de pesquisa e colocar na sua prática. Tem que ter um processo de gerir, para que a teoria seja significativa para a prática. É muito interessante na escola médica começarmos a pensar em como inter-relacionar a teoria e a prática de uma maneira que crie uma identidade para a classe. Vemos que se tem todo o conhecimento na cabeça, mas não se tem a identidade de médico ainda. ESP: Em que contexto você começou a se relacionar com o conceito, quando e em que momento da sua vida começou a construí-lo e a praticá-lo? WENGER: Há duas semanas, eu fui para uma série de seminários na Universidade de Hong Kong, mas eu já havia vivido em Hong Kong há 35 anos, por um período de três anos e lecionava francês na Aliança Francesa, lembro-me de como viver em Hong Kong trouxe um conceito de identidade na minha vida. Porque, quando eu cheguei a Hong Kong, era muito jovem e estava tentando fugir da Suíça da minha família para me tornar eu mesmo. Foi interessante porque eu comecei a interagir com os chineses e só elaborei essa concepção mais tarde, mas o que compreendi foi saber o que significa ser uma pessoa culturalmente definida. Porque aprendi que aqueles chineses eram a sua família. Foi interessante descobrir que a família era uma parte do que eles eram. Eu pensei naquele momento: “Agora eu tenho esse conceito.” Você me perguntou como surgiu o interesse em identidade. A identidade é aquilo que nós somos e não é definido no absoluto, mas sim pelo contexto social no qual nós nos engajamos. Quando nós começamos a aprender, somos aprendizes desenvolvendo uma identidade como um membro da comunidade e, ao ser parte dessa comunidade, a comunidade que você é.

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Eu estava trabalhando com alguns professores e eles me disseram como as Comunidades de Prática os lembravam do porquê se tornaram professores. Assim pergunto: “Por que as escolas fizeram as pessoas esquecerem o porquê quiseram se tornar professores?” Por causa da institucionalização. Mas, para mim, o valor está em me engajar com meus colegas falando sobre a prática. Seria redescobrir o motivo de querer ser um professor. Um engenheiro me falou o seguinte sobre isso: “antes que houvesse Comunidades de Prática entre nós engenheiros, eu tinha dois relacionamentos com a organização. Um: eu tinha um projeto; dois: eu estava em uma lista de espera. E eu ia de um para outro. Agora que tenho a Comunidade de Prática, tenho um abrigo e uma possibilidade de expressar aquilo que eu sou como engenheiro.” Dessa forma, acredito que descobrir um parceiro de aprendizado na vida tem muito a ver com a sua identidade, ou seja, com aquilo que você é. Aprender é significativo e transformará a sua identidade. Transformará você na sua essência. Com os teóricos, eu digo que você não está chegando ao ponto, pois está colocando o currículo na cabeça das pessoas, e ensinar é transformar aquilo que os estudantes estão se tornando. Aprender é vir a ser certa identidade, é muito profundo! Meu filho, no final da escola, concluiu o segundo grau e, nos EUA, é o momento quando você está pronto para ir à universidade. O problema com as escolas, normalmente, é que o aluno não está interessado em nada. Se o aluno fica muito interessado em algo, provavelmente, não terá boas notas em todas as matérias e não poderá ir para a universidade, e eu pensei: “Mas o que nós fizemos?! Nós criamos uma instituição onde, por quatro anos, os adolescentes não são permitidos a estarem interessados em nada.” É um desastre! Porque a minha experiência mostra que no nosso mundo, as pessoas que fazem boas contribuições são aquelas que investem e estão interessadas em algo, em mudar a sua identidade por aquilo que eles acreditam. Nós criamos uma instituição que ensina a coisa errada, ou seja, só para obedecer aquilo que é esperado. É preciso ter boas notas em todas as suas provas. Isso é a pior coisa! Nós precisamos desenvolver, neste século, algo de diferente.

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ESP: Dentro das organizações, em que medida não há uma expropriação brutal da criatividade e da força de trabalho das pessoas, na medida em que a produção intelectual não é reconhecida como tal? A fim de reconhecimento através de publicações, por exemplo? WENGER: Você está certa! Realmente é um ponto muito interessante. Eu acredito que, nos EUA e em muitos outros países, se você é um trabalhador assalariado, a tua produção pertence à organização para a qual você trabalha no seu contrato. Essa é a maneira como as coisas são feitas. É interessante que eu não fui confrontado ainda com esse problema. Algumas comunidades em que se reconhece o pessoal como colaborador, não tem tido o problema de propriedade intelectual no sentido formal. Fico surpreso, porque eu pensei que teria mais no mundo acadêmico, onde as pessoas precisam ter o seu nome associado a uma ideia e se segue a carreira porque o nome está associado a esta ideia. Mas no mundo em que trabalhei e no lugar onde estou trabalhando, não encontrei esse problema. As pessoas querem saber como fazer o seu trabalho, e se as comunidades podem ajudá-las a fazer o seu trabalho. Isso é o que eles querem e é no que estão interessados. É uma identidade social complexa, mas eu nunca vi um problema de propriedade intelectual prejudicar o engajamento na comunidade. Eu estou falando sobre a minha experiência, né?! ESP: Como se estabelecem as hierarquias nos contextos organizacionais nas quais podem estar inseridas as CdPs? Elas podem servir como voz deliberativa ou apenas consultiva às organizações? WENGER: Existe um questionamento complexo do relacionamento dessa comunidade com a organização formal. Eu vejo que, quando existe seriedade na organização sobre o questionamento em termos dos funcionários da sua organização e dos membros para se engajar com Comunidades de Prática, você vai ter que ouvir a sua voz. É interessante porque as comunidades, frequentemente, não querem autoridades verticais, elas querem que sua voz seja ouvida apenas. Eu me lembro de certa vez em uma grande organização em que estava interagindo com a Comunidade de Prática, eles estavam nervosos porque a gestão tinha feito uma aquisição de outra companhia, no domínio relacionado com essa 84

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comunidade, e eles não foram consultados. Eles estavam dizendo: “nós temos uma comunidade que já existe há muitos anos, que tem muitos recursos, por que eles não nos perguntaram o que nós pensávamos dessa aquisição?! Eles não nos disseram o porquê de eles não nos deixarem fazer a decisão!” Não, não era isso que eles estavam querendo, pois eles queriam ser só uma CdP e não queriam o poder para ser uma entidade vertical. Mas o que eles queriam era uma troca, e nós vimos que uma das melhores coisas que a gestão poderia fazer para a comunidade era questioná-los em sua opinião sobre as coisas. Sim, você está certa, num certo nível de maturidade, as comunidades querem ter uma voz na organização. Dessa forma, a organização tem que estar pronta para se engajar com a comunidade, o que difere de dar a ela o poder e a autoridade. A Comunidade de Prática é uma nova disciplina para muitas organizações, ou seja, aprender a se engajar com as pessoas em um relacionamento que não é somente controle, ou então “eu deixo você fazer o que você quiser”. Engajamento, compromisso e, realmente, envolvimento. Sim, eu acredito que em um contexto de uma organização, é importante fazer com que a gestão compreenda o valor do que se está fazendo. No Canadá e no Reino Unido, por exemplo Eu tenho um exemplo de uma pessoa que estava construindo uma comunidade para esses praticantes. Ela tinha que ter uma troca com o supervisor de cada membro para convencê-los de que era uma boa ideia ter a Comunidade de Prática para as pessoas que estavam em transição. Por exemplo, entre ser uma enfermeira e a prática em enfermagem, ou uma auxiliar de enfermagem para a enfermagem. Esse aspecto requer muito trabalho no sentido de fazer a conexão entre uma organização formal e uma Comunidade de Prática, de tal maneira que a comunidade possa contribuir e fazer bem seu trabalho. Já falamos aqui de institucionalização da CdP sem institucionalizar a gestão macro e micro da organização. ESP: A relação entre Comunidade de Prática e Gestão Participativa traz a importância de ouvir as pessoas que estão na ponta e o que estão fazendo. Gestores não precisam concordar em tudo, ou nem sempre é possível fazer o que elas demandam ou pedem, mas é fundamental negociar. Uma instituição só funciona, realmente, 85

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se existe espaço para essas negociações. Por exemplo, uma Escola de Saúde Pública como essa tem diversas equipes de trabalho onde é preciso negociar e ouvir todos os participantes. Quais são as dimensões das CdPs como uma teoria social de aprendizagem? WENGER: Eu gostaria de trazer o sentido sobre as dimensões das Comunidades de Prática como uma disciplina social da aprendizagem. A disciplina social da aprendizagem é uma noção chave. Vamos olhar alguns elementos da disciplina da parceria da aprendizagem. Se você imagina os diferentes processos que se realizam, você visualiza a prática dentro da aprendizagem, e essa é uma pergunta bastante importante para as comunidades. Um amigo meu, por exemplo, estava desenvolvendo uma Comunidade de Prática, de fotojornalismo, no Reino Unido. Eles não queriam ter um fórum porque falar não era realmente importante para trazer a prática para dentro. Eles queriam ter uma plataforma de fotos, porque eles poderiam mostrar as fotos e as pessoas poderiam comentar. Para eles, era uma maneira de trazer a prática de todos para dentro do espaço de aprendizagem e da conversação. Na saúde, vocês têm que pensar: “Como é que nós trazemos a nossa prática para dentro do aprendizado? Seria trazendo o paciente, vídeos, histórias? Como trago minha prática para dentro da comunidade?” A comunidade não significa acordo, pelo contrário, quando dizem que há muito acordo em uma comunidade, então devemos estranhar. Porque uma das doenças da comunidade é o que nós chamamos de um pensamento de grupo, seguindo como cordeirinhos. Outro processo que exploramos é criar um tipo de autorrepresentação. Por exemplo, no Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas criaram fóruns que, quando a discussão finaliza, eles pedem a um jornalista que coloque um sumário e um resumo da discussão. É importante desenvolver essa prática de dar uma representação do aprendizado da comunidade. Outro processo que nós achamos importante são estratégias que a comunidade criou para lidar com perguntas repetitivas e não fazer o grupo perder a energia com respostas repetitivas. Nesse caso, para membros novos na comunidade dissemos: “Dirija-se à base de dados e veja a resposta que foi dada para perguntas frequentes, e se você não se resignar com a resposta, volte.” Assim, as pessoas não vão repetir sempre as mesmas perguntas. 86

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Esse último processo que nós encontramos e que é saudável para uma comunidade, é que haja uma pausa e realmente se distancie para perguntar: “O que está acontecendo?”, “Como é que nós estamos realmente indo?”, “Como é que nós estamos nos comportando?” Vou mostrar que pequenos grupos formados na comunidade que desenvolvemos efetivaram uma liderança, o processo de reflexão e o autodesenho. Vocês entendem a ideia do autodesenho? A comunidade está autodesenhando o seu sistema de aprendizagem. Assim, é importante encontrar formas de engajar os outros no desenho da comunidade. Esses são processos que terão que prestar atenção, se estiverem no processo de facilitador de uma Comunidade de Prática. ESP: Como combinam os aspectos do domínio de uma CdP e a entrada de novos membros? WENGER: Há três aspectos da disciplina de aprendizagem social. A primeira é a ideia de domínio, ou seja, para onde a comunidade está se dirigindo e o que essa comunidade quer a ela própria? Por exemplo, eu estava em uma comunidade de pacientes com uma doença rara. Um dia, alguém postou no quadro de discussões que ia deixar a medicina ocidental e utilizaria suco de beterraba como terapia. E é interessante que só esta postagem criou uma crise de identidade na comunidade. Algumas pessoas achavam, e isso aí o público pode ver, que se alguém seguia a sua ideia e pudesse vir a óbito, isso seria muito irresponsável! A comunidade começou a debater a possibilidade de cisão da comunidade. Todo esse questionamento de qual é o domínio crítico, e o porquê? Para criar a mudança que se quer, talvez necessite ter comunidades em domínios diferentes e que, nesse caso, não são naturais, não são tradicionais, entende? A Comunidade de Prática se forma ao redor dos domínios, pois isso fará com que progridam em vez de repetir o que já vinham fazendo. Isso vai exigir alguma perseverança para compreender que tipo de domínio permitirá aos praticantes se engajarem com a sua iniciativa. É um desenho muito delicado e difícil, mas você pode imaginar o que eles são. Outro aspecto da disciplina de aprendizagem social é a comunidade em si mesma. Ou seja, quem deveria participar e quem não deveria participar. Temos que nos perguntar: “que outras vozes 87

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nós necessitamos?” Eu estava trabalhando com um grupo e eles tiveram uma discussão sobre se os gestores deveriam fazer parte dessa comunidade ou não. O domínio era um sistema financeiro do Leste da Europa e eles vinham mudando do comunismo para o capitalismo em termos de sistema de gestão. Foi interessante porque as pessoas estavam dizendo: “Sim! Mas nós temos que ter nossos gestores presentes, porque se eles não entenderem o que nós queremos fazer, nós nunca poderemos mudar esse sistema.” Outras pessoas disseram: “Não! Nós não podemos ter os gestores aqui, pois se os gestores estão do meu lado eu tenho que ficar quietinho em termos de prática, não posso nem falar abertamente os problemas que eu estou enfrentando.” Então, você pode ver que essa comunidade estava aplicando a disciplina social da aprendizagem dizendo: “que vozes necessitamos e qual é o efeito dessas vozes na habilidade deste grupo em termos de parceria na aprendizagem?” Eu creio que isso é muito bonito, esse questionamento de quem deveria ser um membro dessas comunidades para maximizar o potencial da aprendizagem. É isso que eu quero dizer, os pacientes deveriam ser membros dessas comunidades, será que os gestores, os ministros, os políticos, porque há necessariamente mudança na troca de experiências e saberes dependendo de quem está envolvido. Se você está cultivando uma comunidade, tem que dizer qual é a cognição do domínio que vai maximizar o potencial de aprendizagem, pois essa é uma pergunta muito importante. Finalmente, o foco na prática é também uma parte importante da disciplina para não deixar essa troca flutuar, mas realmente se ancorar nas questões que precisamos fazer. Então, o que nós temos aqui, se levarmos a sério esse processo, é uma perspectiva social nas capacidades de aprendizagem. Então, vocês que constroem currículos e formam uma disciplina cognitiva, precisam “ler os ossos e depois os músculos”. ESP: Que tipos de atividades como aprendizagem você viu surgir nas CdPs das quais participou? WENGER: É parte de uma disciplina social compreender que tipos de atividades as pessoas podem aprender em conjunto. E eu comecei a listar aquilo que eu vi as comunidades fazerem. Uma dimensão é: aprendendo através de e aprendendo com. Essa 88

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dimensão descreve os processos daquilo que nós podemos aprender um com o outro e de nossas práticas. E nesse aspecto do modelo, as pessoas tendem a ter problemas um com o outro, por exemplo: “Vamos ler estudos juntos e negociar o significado disso?”, pois nessas atividades as pessoas aprendem umas com as outras, e as comunidades fazem ambos. Por outro lado, na dimensão vertical, as atividades mais informais que não requerem uma estrutura integral para acontecer, como notícias ou um fórum de discussão, não requerem uma intenção de aprender juntos. E além disso, tem atividades que requerem uma intenção de aprendizagem em conjunto. No caso da saúde, um exemplo seria olhar a taxa de mortalidade em alguns procedimentos e em diferentes hospitais e perceber a seguinte questão: “Esse é melhor hospital que outro? O quê eles estão fazendo diferente do outro?” Frequentemente, esta visão é feita para formar um posicionamento. Na comunidade não se faz esse posicionamento, pois não se dá nota, mas se gera relacionamentos entre os participantes e isso requer muita confiança entre eles para se engajar em uma atividade. As pessoas vão ver a sua roupa suja: precisam priorizar os dados, coletar os dados em avanços, torná-lo bem estruturado para as comunidades lerem através disso. Essa é a dimensão vertical da aprendizagem, ou seja, também estão aprendendo com recursos externos. Nada afirma que todo o conhecimento que eles precisam se encontra somente no interior da comunidade. Algumas comunidades vão procurar informações e conhecimentos no exterior, como pontes, que são os limites da comunidade. ESP: O que são os limites da CdP? WENGER: Ao Falarmos de limites, eu lembro que alguém aqui me disse: “No Brasil, as pessoas têm essa coisa de se agrupar e os outros ficarem de fora, fazer grupinho, né?” Eu acho que isso é bom e ruim ao mesmo tempo. É bom porque vocês formam um sentido de identidade, mas ficar em grupinho não é muito bom para uma comunidade. Uma comunidade para ficar assim tem que estar aberta. É importante assegurar que se tem a conexão com grupos e pessoas fora da sua comunidade. Denotar conexão fará também que você sinta uma identidade com o outro, mas não tanto que o exterior fica para fora, portanto, é um ponto bastante delicado. 89

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Voltando a complementar minha fala sobre as atividades da CdP, primeiro tem-se a troca de histórias e documentos. Segundo, tem-se os pedidos de ajuda dos outros membros que se engajam com toda a comunidade em um processo de aprendizagem. Porque o que nós descobrimos é que o fator de sucesso crítico para uma comunidade seria o que eu chamaria de empuxo para o conhecimento. Você publica as melhores práticas ou um documento, mas compartilhar conhecimento é quando um membro traz um problema sobre a mesa e as pessoas levam para si. Então, isso é uma importante família de atividades. O terceiro é: fazendo sentido em conjunto, em consenso. É uma atividade que tem muito sucesso e que chamam de debate. Você põe metade da comunidade de um lado, a outra metade do outro lado. E cada lado argumenta. É uma maneira de compreender uma situação ou lendo uma pesquisa juntos e trazer o seu sentido. Em quarto lugar, tem a ver com a produção de artigos, documentando uma prática, resolvendo problemas e escrevendo suas soluções. Quinto, criando padrões, como quando você compila diferentes hospitais e encontra o melhor. Dessa maneira se cria um padrão para a comunidade de aprendizagem. Número seis, as atividades têm a ver com aquelas mais tradicionais na aprendizagem, como workshops, eventos, seminários, trazendo um palestrante para a comunidade, coisas mais tradicionais em termos de aprendizagem em conjunto. E a última, visitas ou viagens de campo, por exemplo, aos nossos hospitais, etc. Agora vocês podem ver que essas coisas se tornam bastante concretas, e é isso que, ontem, eu me perguntava: “Se vocês pensam em abrir um espaço, vocês já pensaram nas atividades? Quais atividades vocês precisam construir?” Assim, se começa a pensar a aprendizagem social de uma maneira muito concreta, com um conjunto de possibilidades que lhe permitam pensar o quê esse grupo precisa agora, qual é a melhor atividade entre essas. Nenhuma comunidade faz isso tudo ao mesmo tempo. É como uma palheta de diferentes cores para o pintor. ESP: Como é que você consegue realmente identificar esse conjunto de atividades sendo realizadas de uma forma mais ou menos organizada nas comunidades que acompanha ou elas simplesmente acontecem? Existem papéis que procuram desenvolver 90

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essas atividades em algum caminho, ou simplesmente sistematizar algumas experiências que aparecem? WENGER: Muitas dessas atividades que nós observamos já estão amadurecidas. Dizem que quando a gente treina pessoas para serem facilitadores, são muito úteis essas possibilidades e todo esse amplo leque de possibilidades, porque as comunidades vão querer fazer mais isso e outras mais aquilo. Também, não é que você escolha quatro dessas para a sua comunidade e a sua comunidade vai progredir. No começo da comunidade, quando se tem pouco engajamento, propomos atividades de trocas de experiências. E quando as pessoas estão mais engajadas se pode progredir para atividades mais complexas. Então, eu diria que isso é parte da artística da liderança das comunidades e que não se pode realmente levar todas essas atividades ao mesmo tempo para que a comunidade progrida em um mesmo nível. Mas as atividades que estão mais embaixo requerem mais estrutura. Se quiserem maximizar a aprendizagem através dessas atividades, então é bom decidirem juntos os avanços. “A gente deveria fazer isso ou aquilo?”, pois é por isso que se necessita de uma liderança na comunidade que entenda o domínio e que faça esses arranjos acontecerem. ESP: Qual a sua opinião sobre Comunidade de Prática em ambientes muito institucionalizados? WENGER: Primeiro, eu não estou dizendo que todos os grupos deveriam ser Comunidade de Prática, especialmente quando você está lidando com negociações políticas profundas. Eu diria: “Não! Isso não é Comunidade de Prática, mas sim um comitê ou uma força de trabalho, mas não uma é Comunidade de Prática.” O que estão fazendo é negociando a utilização do orçamento e se estamos abertos nós vamos perder a habilidade de negociar. Eu acredito que o grupo tem que se perguntar a seguinte questão: “é útil para nós nos vermos como Comunidade de Prática e nos engajarmos nesses tipos de atividades?” Eu creio que você também esteja perguntando: “É possível ter uma Comunidade de Prática entre instituições quando políticas estão envolvidas na instituição?” E a resposta para essa pergunta é: “Sim!” Mas você tem que se 91

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assegurar que, se possível, a proposta esteja focalizada na prática e não na política. Você não pode proteger completamente a Comunidade de Prática, mas ela não é uma entidade política em si mesma, é uma parceria de aprendizagem. Eu vi, até no contexto militar, ótimas Comunidades de Práticas, apesar da hierarquia. O que importa é se você compreende a diligência dos praticantes. Às vezes, funciona até melhor porque tem mais respeito, até um general já foi um soldado e ele sabe em qualquer nível de hierarquia ter bons conhecimentos e sabe que tem aprendizado para ser conquistado. O que nós estamos falando é: Mas qual é o relacionamento da hierarquia com a prática? Entre as instituições, essas Comunidades de Prática podem servir às instituições se seu domínio for importante. Eu estava falando com o produtor de vídeo daqui do evento, o Roberto, e nós estávamos falando sobre Los Angeles, onde a indústria cinematográfica tem, com certeza, muitos tipos de instituições. Nesse caso, a aprendizagem começa quando o cameraman inclui o processo de aprendizagem entre muitas diferentes instituições e em diferentes campos. Algumas Comunidades de Prática se desenvolvem melhor no interior de instituições, é mais fácil de estar aberto no interior de uma empresa, pois estão todos trabalhando em um mesmo sistema, do que em termos de competição. Se vocês têm diferentes instituições participando da Comunidade de Prática, então aparecem forças competitivas que serão barreiras do domínio. Mas, em si mesmas, as noções de Comunidades de Prática não tem nada a ver com esses limites organizacionais, têm a ver com o domínio que permite que eu aprenda com você e você comigo. Para você, por exemplo, quantas Comunidades de Prática espera ver acontecer e que vão estar dentro da organização, ou em outras organizações, será diferente do domínio e do potencial de aprendizagem que você quer criar. Você também estava falando de diversidade, como eu disse, ter muita coisa homogênea dentro de uma Comunidade de Prática é um perigo. Alguma diversificação é importante para sustentar o processo de aprendizagem. Diversificação não quer dizer que as pessoas não se falam, ou se não vamos ter um problema, isso é o que acontece com essas novas comunidades que estão se criando em termos de limites cruzados para que possam conversar. E talvez vocês tenham esse problema na sua interdisciplinaridade, na sua equipe interdisciplinar, porque a característica dos trabalhadores 92

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sociais é que, às vezes, não sabem muito bem em quem confiar para ajudar um paciente. Assim, você precisa começar a pensar que tipos de atividades seriam melhores. Por exemplo, eu estava trabalhando com uma Comunidade de Prática, entre pessoas que intencionalmente estavam juntas em grupos diversos, eram políticos, pesquisadores, e precisavam de certo tempo para saber o que eles precisariam aprender um com o outro. Então, os políticos quando disseram: “Eu não quero uma comunidade de apoio, eu quero uma comunidade em que eu possa dizer o que eu tenho que dizer em cinco minutos, porque é tudo o que eu tenho.” Então, foi interessante rever toda a comunidade e esta dizer: “Como nós vamos explicar o que queremos em cinco minutos?” Porque é importante que trabalhemos juntos, pois esse tipo de coisa é para quando as pessoas podem se engajar interdisciplinarmente, senão será muito difícil. Quando observo o meu trabalho de dez anos atrás, vejo que sempre me pediam para começar Comunidades de Prática com grupos que tinham o mesmo background, por exemplo, enfermagem cardiológica, etc. Agora, já começou a aumentar o interesse em Comunidades de Prática interdisciplinares e isso é bem mais difícil de fazer, porque as pessoas não sabem se elas querem realmente fazer parcerias com outras pessoas ali. Os pesquisadores dizem: “Eu tenho que escrever meus estudos, como é que eu vou falar com você, praticante? Você não faz nada pelo meu trabalho.” E aí os praticantes dizem: “Você fala muitas palavras, eu quero saber o que você vai fazer depois.” Será que essas pessoas podem ter uma troca significativa?! ESP: Quais dessas atividades são mais efetivas no caso específico da aquisição de novos conhecimentos? Se você está propondo a CdP para adquirir novos conhecimentos, mesmo em termos de conteúdos, qual você acha que é a chave e quais são as atividades mais importantes para impulsionar, digamos, para estimular esse aprendizado de conteúdos? WENGER: As atividades de avaliação não estão incluídas nesse modelo, porque essas são atividades de aprendizagem e não de gestão. Então, você necessita avaliar o que a comunidade fez, né? Eu acredito que nós não temos tempo para fazer isso hoje, mas nós temos um marco para avaliar as comunidades, esse marco 93

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está disponível na web e eu posso dar a direção, pois tem todo um marco que nós avaliamos como que a comunidade está fazendo a diferença na prática. Acredito que tanto faz se a comunidade cria algo novo ou só compartilha o que já existe. Eu não faria essa diferença tão grande. Vamos dizer o seguinte: uma atividade prática, de casuística, e nós vamos todos trabalhar em uma casuística ou em um estudo de caso juntos. Quem sabe o que acontecerá quando as pessoas discutirem o caso e tentarem saber o que vão fazer com ele? Vocês vão recombinar a história e dizer: “Não! Mas tente isso!” Outra pessoa diz: “Você deveria tentar isso, porque neste caso isso funciona melhor.” Isso é novo, é antigo, pode ser ambos, porque está construído naquilo que nós já fizemos e naquilo que nós estamos desenvolvendo em novos casos. Então, eu não avaliaria a comunidade tanto naquilo que se produziu de novo, por exemplo. É mais importante avaliar se a comunidade fez alguma diferença em termos das capacidades de desempenho. Ou seja, se você soubesse o que nós sabemos, nós seríamos uma organização muito melhor, então, para a pessoa que não sabia, é novo. Se for novo para toda a comunidade ou só para quem não sabia, eu não colocaria isso como um objetivo. A comunidade pode até ter uma coisa nova, mas que não é útil, por exemplo. Então, o marco da avaliação que foi desenvolvido, é como coletar histórias, como fazer a conexão entre as atividades da Comunidade de Prática e mudar o seu desempenho. É isso que você deseja avaliar, em vez de dizer se a Comunidade de Prática fez uma diferença na habilidade dos praticantes ao fazer bem à sua prática. ESP: Nas organizações atuais, a organização de saúde é uma das que se baseia no conhecimento e são organizações complexas e, queira ou não, têm-se equipes que são interprofissionais, e queiramos ou não, elas foram constituídas pela necessidade e pela complexidade dos problemas, porque um profissional isoladamente não consegue atender às necessidades dos pacientes e das famílias sozinho. Como seria pensar em formar Comunidades de Prática entre esses diferentes profissionais?! WENGER: Eu não sei se eu estou fazendo a situação parecer mais complexa do que é, mas eu gostaria de enfatizar que o nível da Comunidade de Prática que é uma disciplina, e então seria útil 94

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As bases da teoria social da aprendizagem

perguntar: “Onde a nova abordagem para o que você precisa em termos de saúde tem que se originar e qual é a noção de equipe?” Uma equipe tem que cumprir uma tarefa, eles não são parceiros de aprendizagem, pois o relacionamento em uma equipe é mais uma coordenação do que o processo de aprendizagem. Então, em uma equipe típica e eu não sei o quanto vocês têm que aprender de cada um ou só coordenar. Ou seja, se você vai construir uma casa, o eletricista e os outros diferentes operários não terão que ser parceiros em aprendizagem, eles necessitam se coordenar e terem um relacionamento de coordenação dos seus trabalhos. No seu caso, você também está desenvolvendo uma nova prática, seria interessante saber se é útil aplicar nessas equipes a disciplina da Comunidade de Prática. Primeiro tem que se perguntar apenas se é útil ou não criar a Comunidade de Prática. Mas seria muito interessante imaginar que se os psicólogos que estão trabalhando nessa equipe têm que ajudar esse novo profissional, ou se os médicos podem perguntar: “que tipo de parceria você precisa para fazer isso melhor?” Isso talvez possa ser disciplinar, interdisciplinar, e essa pergunta vem somente para o desenho, mas não é o caso, pois se todas as equipes deveriam, não significa dizer que todas as equipes têm que ser Comunidade de Prática. Muitas vezes funcionam muito bem sem todo esse aparato e eles podem coordenar as atividades de uma maneira perfeita para cumprir com sua tarefa. Eu acho que as Comunidades de Prática são mais perguntas do que respostas. Pois, se é um grupo que deveríamos desenvolver, deveria procurar no exterior e no interior da Comunidade de Prática uma aprendizagem melhor. Tudo isso é útil aplicar ao grupo. Se você me perguntar: “Uma família é uma Comunidade de Prática?” Eu não posso responder isso, pois é uma coisa abstrata. Algumas famílias vão operar como uma Comunidade de Prática e outras, não. Em alguns casos, você poderia me perguntar: “Uma família deveria ser tratada como uma Comunidade de Prática?” Talvez uma terapia fosse muito útil para ver uma família como uma Comunidade de Prática e talvez engajá-las como uma Comunidade de Prática e refletir em um tipo de prática que eles tenham realizado. Mas é uma questão pragmática, se uma família é uma Comunidade de Prática ou não. Seria útil vê-la assim? E começar a usar todo esse aparato e a disciplina que eu estou apresentando para o grupo, que se chama família. 95

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Segunda Parte: Estratégias, Métodos e Ferramentas para promoção da aprendizagem social no campo da saúde Método Paideia: Conceitos e estratégias de operacionalização em serviços de saúde Mariana Dorso Gastão Wagner

O Método Paideia foi proposto pelo professor Gastão Wagner e articula uma rede de conceitos, de arranjos e de dispositivos para viabilizar a democratização da gestão nas organizações. Os arranjos “Equipe de Referência” (Campos, 1999), o conceito de “Clínica Ampliada” (Campos, 2003; Campos,

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2007) e o instrumento “Projeto Terapêutico Singular”, são alguns elementos propostos pelo Método Paideia e o Apoio Institucional (Campos, 2003) é uma ferramenta para aplicar o método junto aos grupos e coletivos nas organizações.

Toda esta rede conceitual e operativa, Paideia, parte de uma crítica à racionalidade gerencial hegemônica, que é um modo de ver as organizações de saúde que focaliza muito a administração financeira e dos insumos. A concepção do Método Paideia se inspira em alguns saberes que vêm do campo da política, da gestão, da psicanálise, da pedagogia e da análise institucional, para compor uma concepção ampliada de gestão. Além da administração financeira e de recursos e insumos, os objetos da gestão incluem também os aspectos políticos, pedagógicos e subjetivos nos processos de trabalho. Então, a gestão deve estar implicada com a produção de saúde, ou seja, a gestão tem a ver com a clínica, tem a ver com a saúde coletiva e com os modelos de atenção. Não se pensa aqui na gestão separada da clínica nem na clínica separada da gestão. É importante pensar essas duas instâncias juntas. Além disso, a gestão também deve estar implicada com a democratização das instituições, com a distribuição de poder nas organizações nas equipes de trabalho. A gestão tem a ver com a circulação do poder e do saber, do conhecimento. Além do aspecto técnico e político, a gestão envolve um aspecto que é pedagógico: como fazer para que os saberes sejam compartilhados entre os diversos profissionais que estão trabalhando em uma equipe, por exemplo? E ainda, fazer gestão também implica produzir algum efeito sobre a subjetividade, ou seja, os objetos de investimento dos profissionais, as motivações, o que gera ou não prazer no trabalho, os valores, a cultura dos profissionais. O objeto de investimento é um conceito da psicanálise, que é um objeto no qual o sujeito investe algum afeto. 98

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Então, qual o sentido de trabalhar naquela dada instituição, com aquele grupo de pessoas, produzindo aquilo que o grupo está se propondo a produzir? Produzir saúde junto com as pessoas produz, ao mesmo tempo, alguma satisfação nos profissionais? É importante refletir sobre o sentido do trabalho: para que se trabalha? Trabalha-se para alcançar três objetivos diferentes. Primeiro, trabalha-se para os outros. Quando trabalham, as pessoas produzem algum valor de uso para terceiros, no caso da saúde, os profissionais trabalham para produzir saúde para os usuários. Segundo, cada um trabalha para si mesmo, para assegurar sua existência, construir significados para a vida, enfim, para a realização pessoal no campo profissional. E terceiro, as pessoas trabalham também para reproduzir a própria instituição e as condições de trabalho, quer dizer, a organização tem que permanecer no tempo. Então, há diferentes interesses em torno desses três objetivos, que muitas vezes são geradores de conflito, quer dizer, há forças tensionando a cada momento para um dos lados desse triplo objetivo. E em uma equipe interdisciplinar, com diferentes tipos de inserção e de formação, com diferentes profissionais, em geral, há graus diferentes de conhecimento e de poder circulando, há diferentes paradigmas atuando. Toda essa heterogeneidade implica sempre na existência do conflito. Então, a gestão precisa assumir a existência desse conflito e trabalhar com ele, em vez de buscar somente os consensos. É óbvio que se deve procurar construir consensos, mas não se pode depender só da possibilidade da existência deles. É importante construir espaços coletivos em que as pessoas possam sentar para conversar sobre o trabalho, possam elaborar algo que seja comum, que faça alguma ligação entre elas. Espaços em que as pessoas possam lidar com as diferenças e construir 99

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um projeto comum de trabalho, considerando a existência dessas diferenças e dos distintos interesses ali presentes. E a aposta é que os sujeitos possam fazer um deslocamento dos seus interesses mais particulares, a fim de compor algo no coletivo, e para isso é preciso compor algum contrato, algum compromisso em comum. Então, a gestão que se propõe aqui seria uma gestão implicada com a produção de valor de uso, com a produção de saúde, mas também implicada com a produção dos próprios sujeitos trabalhadores, com a produção de objetos de investimento, de desejo, e com a produção de uma nova organização. A ideia é que apoiemos os coletivos a construírem objetos de investimento relacionados com a produção de valores de uso, ou seja, com o objeto de trabalho. Objetos de investimento que de alguma forma se aproximem do objeto de trabalho: como gerar mais satisfação com o trabalho que eu devo realizar nesta instituição? Na saúde, qual é o nosso objeto de trabalho? São as pessoas, a produção de saúde com pessoas. Por que eu escolhi ser psicóloga? Por que alguém escolhe ser médico? Por que alguém opta por fazer a sua formação, seu trabalho na área da saúde? Tem algo aí que nos move, uma motivação, e é preciso trabalhar com isso. E por quê? Porque quando a gente tem algum prazer fazendo algo, quando algo “faz sentido” para nós, diminui o grau de alienação que muitas vezes se produz nos ambientes de trabalho e estimula a ligação dos profissionais com a sua “obra”, a identificação com os resultados do trabalho. Esse modo de ver a gestão contém um paradoxo. Porque a ideia é incluir os sujeitos, estimular sua participação na gestão, estimular que coloquem um pouco de si mesmos na organização, no coletivo. Mas não dá para fazer isso sem considerar as diretrizes clínicas, políticas, alguns princípios 100

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éticos, por exemplo, os princípios do SUS, a ampliação da clínica, a democratização das relações, a interdisciplinaridade. Por um lado, a gestão precisa se basear em normas e métodos para o controle do trabalho, que são as diretrizes, os princípios. É preciso enfatizar a responsabilidade sanitária: há uma responsabilidade que aquele serviço precisa cumprir, um objetivo que precisa buscar atingir. Mas por outro lado, a gestão deve estimular certo grau de autonomia, de criatividade dos profissionais, para que eles possam empregar esforços com este objetivo. Retomando aquele triplo objetivo do trabalho – produzir valor de uso, a própria realização pessoal e a reprodução da instituição – enfatiza-se aqui a aposta na capacidade dos sujeitos de fazerem contratos, de fazerem combinações entre os próprios interesses e o interesse do coletivo de uma dada organização. O Método Paideia surge a partir dessa concepção, ou seja, uma concepção ampliada de gestão. A proposta do Método Paideia é tentar incentivar a participação dos sujeitos na gestão, construir uma gestão compartilhada (cogestão), para que as pessoas possam pensar e reorganizar seus processos de trabalho. Sendo assim, o método pode se aplicar à política, ao planejamento, à gestão – ele foi pensado inicialmente para ser aplicado no contexto das organizações de saúde –, mas ele também pode ser aplicado em contextos de formação, de educação, ou em qualquer prática profissional que lide com pessoas. Quando pessoas se juntam, se organizam para produzir algum objetivo em comum, podemos pensar em aplicar essa metodologia. Para que esse método? Para tentar analisar a dinâmica dos coletivos: como funcionam as equipes de trabalho quando se unem para trabalhar? Como elas estão se organizando em seu processo de trabalho? Mas, ao mesmo tempo, podemos fazer intervenções nessa dinâmica. Isto é, refletir e intervir. 101

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E como fazer isso? Como operacionalizar? Primeiro, é preciso juntar as pessoas num espaço coletivo: fazer rodas, reuniões em que todos tenham espaço de fala e participação. A roda é para que todos se vejam. Na roda, o apoiador vai estimular a emergência de temas que são relevantes naquele contexto. Pode ser um caso que a equipe está tendo dificuldade em acompanhar, pode ser uma situação problemática que a equipe está enfrentando. A partir da discussão e da reflexão coletiva sobre esse caso ou essa situação, o grupo vai construir uma análise, um diagnóstico, que deve englobar todas as variáreis envolvidas, toda a complexidade daquela situação. Essa análise deve proporcionar que o grupo construa novos sentidos e significados que possam orientar o agir concreto dos sujeitos, ou seja, o grupo deve passar da reflexão e da análise para um processo de intervenção, experimentar transformar aquela realidade (Campos, 2000). Vou retomar a operacionalização do apoio mais à frente, mas antes gostaria de enfatizar que essa proposta envolve lidar com as relações entre as pessoas de modo construtivo e dialético. “Dialético”, porque reconhece a existência da diferença entre as pessoas, de possíveis conflitos entre os interesses e as visões de mundo que estão em jogo no coletivo. Em vez de negar ou evitar as diferenças, é preciso lidar com elas, criando um espaço propício para que elas apareçam e possam ser trabalhadas. Inclusive as diferenças em relação ao apoiador. Fazer roda, horizontalizar as relações, não significa que todos sejam iguais: o apoiador se coloca como mais um no grupo, mas tem certa autoridade que o distingue dos demais. Há diferenças de poder, de implicação, teóricas etc., mas o que o Método Paideia propõe é colocá-las na roda. Então o processo é também “construtivo”, porque a ideia não é eliminar o outro, eliminar as diferenças, mas sim partir delas para construir 102

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pactos, fazer cogestão, construir a possibilidade do trabalho conjunto – apesar das diferenças (Campos, 2003). Sempre pensando na responsabilidade sanitária daquele serviço ou nos objetivos e na finalidade daquela instituição, daquele coletivo. Um conceito que é muito importante para o Método Paideia é o conceito de coprodução: coprodução dos sujeitos e das organizações (Campos, 2003). Nós todos somos fruto de quê? Como chegamos a ser o que somos agora? Somos resultado da nossa genética ou da educação que tivemos? Das nossas próprias ideias, dos nossos desejos, da nossa vontade ou do contexto econômico e social? A resposta é: de todas essas coisas! As quais incidem em nós em graus diferentes, claro. São dois planos, dois grupos de forças que exercem influência na construção dos sujeitos. Um plano que engloba os aspectos internos aos sujeitos, ou seja, que é particular e tem a ver com a nossa condição biológica, afetiva, nossos desejos e interesses. E outro plano que é universal aos sujeitos, que são os aspectos externos a nós: as instituições em que a gente está inserido (a escola, a família etc.), a nossa cultura, as necessidades sociais, o contexto em que vivemos. E a inter-relação entre esses dois planos se dá por meio da gestão, das nossas práticas sociais. E aqui eu estou entendendo a gestão como a gestão da nossa vida, ou seja, o que eu faço com essas influências internas e externas. A gestão da nossa própria vida se dá a partir da nossa condição biológica e afetiva, mas também das influências que recebemos do contexto. E é através das nossas ações, da nossa prática, que compomos nossa singularidade. Há todas essas influências, mas elas se conformam de uma maneira singular em cada sujeito a partir de sua ação no mundo. E em cada momento um aspecto pesa mais que outro. Ou seja, uma pessoa, num determinado momento, vai estar mais determinada pela sua genética ou pelo seu aspecto 103

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orgânico, por exemplo, alguém que sofre um acidente estará determinado, naquele dado momento, por limitações físicas importantes. Ou alguém que perdeu o emprego recentemente está influenciado fortemente por uma série de questões, que passam pela organização do mundo capitalista, por uma cultura que valoriza a produtividade, impõe competitividade, etc. E não só o sujeito é coproduzido, mas as organizações também são influenciadas por uma diversidade de aspectos que resultam numa certa dinâmica institucional, que também é sempre singular. Essa ideia de coprodução vai permear toda a rede de conceitos do Método Paideia, porque trabalharemos o tempo todo com essa mútua interferência. Na clínica, esse conceito é muito útil para entender a singularidade dos casos. A clínica trabalha com uma série de padronizações diagnósticas, mas é preciso olhar para o que há de singular em cada caso e compor propostas terapêuticas contextualizadas na vida do paciente: um Projeto Terapêutico Singular (PTS). E num processo de apoio a uma equipe também nos remetemos muito ao conceito de coprodução, não só para aplicar o PTS a um caso que estejamos discutindo, mas também para pensar as situações institucionais. Outra questão importante a destacar é que o trabalho em saúde é o exercício de uma práxis. Aristóteles dizia que há diferentes tipos de saber. Existe um tipo que é o saber técnico: uma técnica que se pode aprender e que se pode aplicar em situações diferentes. É como uma receita de bolo. A relação entre os meios e os fins já está determinada. Se eu quero fazer um bolo (fim) vou precisar de certos ingredientes e de uma sistemática para fazer (meios), mas tendo esses meios poderei seguir a receita do começo ao fim sem muitas interferências. O 104

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bolo pode sair meio molenga, mas será porque eu não segui os passos corretamente ou porque as condições de temperatura e pressão não estavam adequadas. Numa cirurgia, por exemplo, será necessário usar do saber técnico. Há uma receita de como fazer dado procedimento, e independentemente da situação, se eu não seguir a receita, algo vai dar errado. Já na clínica e na maior parte do trabalho em saúde não dá para pensar assim, porque estamos lidando com pessoas que têm desejos e necessidades distintas, que interferem no mundo, na relação com o profissional. Então, o profissional de saúde vai ter que refletir sobre cada caso e pensar como adequar todo o conhecimento acumulado, todos os padrões científicos nessa situação singular. Não dá para contar apenas com uma técnica, mas é preciso contar com um saber ético, ou seja, consultar a si mesmo: nesse caso, como devo proceder? Quando lidamos com pessoas e com o modo como elas organizam a vida, como cuidam de si mesmas, temos que nos perguntar sobre os nossos valores e exercer um pouco da prudência para poder tomar decisões. Isso faz com que o trabalho em saúde nunca possa ser desvinculado de um processo de singularizarão do conhecimento, das teorias. Naquela situação singular o que será mais importante fazer? E aqui eu volto para o conceito de coprodução. Pensar como o sujeito singular faz a gestão daquilo que lhe é interno e daquilo que lhe é externo, e temos que resgatar a todo o tempo essa singularidade para poder entender a situação. Quando se vai fazer um processo de Apoio Paideia, estar-se-á o tempo todo trabalhando os sujeitos e as instituições, nunca separados, porque eles estão se interproduzindo, um está interferindo no outro todo o tempo. O sujeito está produzindo a instituição e a instituição está produzindo o sujeito. Isso quer dizer que, num processo de Apoio, vai-se 105

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tentar produzir mudanças nas instituições, nas relações institucionais, mas ao mesmo tempo, também produzir mudança nos próprios sujeitos. O Apoio busca produzir efeitos institucionais, mas também efeitos pedagógicos, efeitos na subjetividade das pessoas. E se pretende-se buscar mudanças nos sujeitos, na sua concepção de saúde e doença, na sua prática de trabalho, será preciso mais que informações, conceitos e teorias. Está-se acostumado a pensar a educação a partir de uma metodologia de transmissão de informações e de conhecimentos. A concepção Paideia se baseia em uma crítica a esse tipo de método de ensino-aprendizagem. Para fazer esse tipo de transformação que se busca, ou seja, que os profissionais sejam mais reflexivos, que prestem atenção na singularidade, precisa-se desenvolver uma série de competências. São competências técnicas, que tem a ver com a aquisição de conhecimentos, mas também competências relacionais e políticas, que vão além de ter ou não informações sobre dado assunto. Trata-se de incorporar novas teorias, novos conceitos, mas também desenvolver processos de subjetivação. Esperamos que as pessoas mudem nesse processo. Ao mesmo tempo em que se produz conhecimento, se produz o próprio sujeito. E nesse sentido, é preciso um processo de aprendizagem que é próximo daquilo o que o artesão faz, que é o saber a partir de uma experiência, de um fazer. É por isso que num processo de Apoio a reflexão e a ação estarão sempre juntas. Refletir e fazer intervenções. Elaborar uma reflexão a partir da experiência, analisar, construir um diagnóstico, fazer propostas de intervenção, intervir e depois voltar ao grupo para avaliar o que foi feito. E novamente analisar, recompor o diagnóstico e fazer novas propostas de intervenção. Então estamos voltando à questão da operacionalização do Apoio Paideia. Como fazer? Para iniciar será preciso, 106

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claro, construir um espaço coletivo ou usar de espaços já existentes no serviço. O importante é que haja um espaço, uma roda, em que as pessoas possam falar de sua prática, trazer os problemas e criar caminhos diferentes. Então, o Apoio pode se dar no próprio serviço de saúde: o Apoio pode acontecer no espaço de reunião da equipe, em que o próprio gestor ou alguém da equipe exerce a “função apoio”, ou seja, usa de todo esse referencial para apoiar a equipe a analisar e intervir sobre as situações e sobre si mesmo. Ou pode ser um espaço especificamente preparado para o Apoio, o que denominamos de Apoio Institucional. Há um apoiador que é externo ao serviço de saúde e que vem apoiar a equipe com certa regularidade. O Ministério da Saúde está, atualmente, investindo muito nessa proposta, e hoje há vários apoiadores pelo Brasil afora. Mas o Apoio também pode se dar em outros espaços que não estão necessariamente dentro do serviço, como um processo de formação, cursos, curso de especialização, educação permanente, etc. Nesse caso, estamos fora do espaço físico do serviço, muitas vezes juntando profissionais com diferentes contextos de trabalho, mas sempre trazendo a prática concreta do serviço para ser analisada. Esses espaços coletivos devem ter certa regularidade para propiciar a construção de uma grupalidade, quer dizer, para falar sobre a prática e os problemas, é preciso desenvolver algum vínculo grupal, alguma relação de confiança, que permita que as pessoas não se sintam ameaçadas ao exporem suas dificuldades. Nesses encontros regulares, como eu já adiantei, o grupo deve partir de um caso, que pode ser um caso clínico, um problema de saúde coletiva ou uma situação institucional. Nós costumamos combinar que, a cada encontro, um ou alguns 107

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profissionais se responsabilizam por trazer um caso com o qual estão envolvidos e que, ao longo do processo de Apoio, resultará num Projeto Terapêutico ou num Projeto de Intervenção, a ser acompanhado por quem trouxe o caso para o grupo. Então o caso é apresentado e discutido pelo grupo, a fim de refletir-se sobre o que está influenciando a situação. Como a situação foi construída? Quem são os atores, quais seus interesses e como se inserem? Quais os afetos e poderes envolvidos? Aqui, alguns recursos teóricos podem ajudar a construção de uma análise ou de um diagnóstico sobre o problema, e é papel do apoiador ofertar esses recursos de acordo com a necessidade do grupo. Elaborado esse diagnóstico ampliado, é preciso pensar em propostas de ação para tentar interferir nesse contexto, e que vão ser levadas pelos responsáveis pelo caso para serem discutidas e realizadas em conjunto com os outros atores envolvidos (os usuários, a família, o restante da equipe, a comunidade, etc.). É importante que esse mesmo caso possa ser trazido novamente para a roda em outro encontro, para que as intervenções possam ser avaliadas e para que seja refeita a análise a partir dos resultados produzidos, buscando novas propostas de ação. O objetivo de todo esse processo é ampliar a capacidade reflexiva e analítica dos profissionais, bem como ampliar sua capacidade de agir e tomar decisões para transformar a realidade. E vejam que o tempo todo se trabalha o conhecimento, o poder e os afetos, as três dimensões em conjunto e sempre partindo de um caso ou uma situação prática e concreta. Tem algumas questões que eu gostaria de destacar sobre o papel do apoiador, que diferem um pouco do papel do “facilitador”. Assim como o facilitador, o apoiador tem um papel de fazer a mediação no grupo, de mediar a relação entre as pessoas, facilitar a dinâmica de trabalho e a constituição do 108

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grupo, considerando que os participantes devem exercer um papel ativo. Mas além de dar esse suporte à constituição da grupalidade, de produzir uma espécie de continência para que as pessoas possam se colocar, o apoiador também deve exercer a função de estimular o grupo para atingir seus objetivos. O apoiador sustenta e empurra, ao mesmo tempo, o grupo. Essa é uma marca importante do Apoio Paideia, e implica numa postura ativa do apoiador em oferecer ao grupo seu olhar externo, oferecer teorias, conceitos, diretrizes, outras experiências, que auxiliem a ampliar os campos de visão e, ao mesmo tempo, tragam o “princípio de realidade” ao grupo. Ou seja, há diretrizes, há uma política, há as demandas dos usuários, é preciso cumprir uma responsabilidade sanitária. E muitas vezes é preciso que alguém nos “lembre” disso e nos apoie com recursos, com instrumentos para buscar esses objetivos. Lembrem-se do que eu já comentei sobre o paradoxo entre o controle e a autonomia. Deseja-se que os sujeitos participem da gestão, sejam criativos, autônomos, mas sempre pensando que as organizações precisam produzir valores de uso, precisam cumprir com suas finalidades, e para isso é inevitável certo grau de controle. Então o apoiador trabalha concomitantemente com demandas e ofertas. Ele parte das demandas do grupo a ser apoiado: quais são os problemas, os pedidos, o percurso já trilhado por aquele coletivo? Mas, de acordo com as necessidades, e em cada momento singular, o apoiador trará suas ofertas, outros recursos que ainda não são familiares ao grupo, além de teorias, conceitos, diretrizes e políticas. Tudo isso funcionaria como um novo olhar, uma nova lógica, como um material que pode servir para impulsionar o grupo a movimentar-se, a responder aos objetivos que são socialmente esperados. Mas, o que é fundamental, é pensar tudo isso como 109

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“oferta”: o nome já diz, é um oferecimento, que pode ser aceito, negociado, negado ou modificado. Não é uma imposição e não se trata de despejar um tanto de conhecimento para o coletivo processar. É algo para ser discutido. Pois entendemos que as pessoas estão ali e podem exercer sua autonomia, inclusive para rejeitar a oferta do apoiador. É claro que há diferenças de poder em relação ao apoiador, então se coloca isso em análise, coloca-se na roda. Mas há certas coisas com as quais o grupo não poderá evitar se deparar e o apoiador vai fazer esse papel. Então o apoiador seria mais do que um facilitador, pois ele exerce algum grau de controle. Por exemplo, uma equipe que quer modificar seu processo de trabalho de um dado modo, mas existem diretrizes, existem os princípios do SUS e da clínica, os quais não é possível deixar de observar. Não é possível, por exemplo, que uma Unidade Básica resolva que só vai atender crianças, não é para qualquer lugar que se pode ir. E os conceitos e teorias que o apoiador traz na discussão de um caso, por exemplo, também funcionam como ofertas: são oferecimentos, de certa maneira de olhar, que são colocados no contexto do caso. Quando fazemos cursos de formação aplicando essa metodologia, damos poucas aulas teóricas preparadas a priori, mas vamos tentando oferecer os conceitos quando eles são necessários, quando podem ser úteis para entender ou lidar com dada situação. E é sempre uma escolha implicada: posso escolher essa rede de conceitos para explicar a realidade ou outra diferente. Temos trabalhado muito com discussão de casos, porque é um jeito muito potente de explicitar as práticas concretas, aproximar o discurso da prática. Da discussão do caso à análise ampliada, à definição de propostas e tarefas, à construção de projetos de intervenção, até a volta à análise, e assim por diante. E sempre trabalhando com problemas reais, da prática 110

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cotidiana dos profissionais. Como eu já comentei, isso não é uma coisa tão fácil de fazer. Expor a própria prática é expor nossas potencialidades, mas também nossos limites, o que não se sabe, o que não se fez, etc. Então precisamos construir um espaço protegido para que as pessoas possam se colocar. Esse trabalho depende da construção de uma grupalidade e a estratégia de discussão de casos tem sido muito potente nesse sentido. Pois além de explicitar as práticas, cada participante vai se identificando com as dificuldades do outro, vai trocando experiências, aprendendo com o caso do colega e quando vemos já não há mais tanta resistência em se expor, o grupo já construiu uma parceria, um apoio mútuo. Nosso grupo tem se inspirado no trabalho do Michael Balint, que foi um psicanalista inglês que propunha grupos de discussão de casos com os clínicos gerais do Sistema Nacional de Saúde da Inglaterra (Cunha, 2009). Trouxemos essa experiência e tentamos aproximá-la do Método Paideia. Balint trabalhava exclusivamente com casos clínicos e focando na relação profissional-paciente. Aqui, temos tentado, além dos casos clínicos, trabalhar com casos de gestão e de saúde coletiva e ampliamos o foco para pensar o trabalho em equipe, não só a relação médico-paciente. Além disso, não paramos na discussão do caso, na análise. Trabalhamos com reflexão e ação, ou seja, também envolve pensar as propostas de intervenção, o projeto terapêutico. E há uma diferença em relação ao que eu acabei de pontuar sobre o papel ativo do apoiador, que é de trazer ofertas. O trabalho de “supervisão” que Balint fazia (e que ainda hoje acontece, principalmente nos campos da psicanálise e da saúde mental) se centrava mais na análise do caso e das implicações do caso em si mesmo, não era tanto propositivo. Aqui, temos uma rede de conceitos que são ofertados como recursos para os sujeitos se organizarem. 111

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Temos investido na profunda imbricação da teoria e da prática, sempre partindo da problematização para a ação, construindo projetos terapêuticos, projetos de intervenção e procurando produzir, como eu disse efeitos tanto nas instituições, como nos sujeitos e em suas práticas. Então, da discussão de casos, é importante tirar núcleos de análise, temas que costumamos abordar com a ajuda dos conceitos e teorias que ofertamos. Por exemplo, da discussão de um caso, pode surgir a questão da ampliação da clínica, a questão do objeto de trabalho... Qual o compromisso social e a responsabilidade daquela equipe? Pensar que o objeto na saúde são as pessoas, então aquela equipe está trabalhando com a saúde ou com a doença? Pensar no processo de trabalho: que modelo de atenção está sendo proposto? Como está o trabalho em equipe, a questão da interdisciplinaridade, a questão da avaliação? Como fazer o acompanhamento dos hipertensos e diabéticos na Atenção Básica? A relação com as especialidades, com o hospital. Esses são exemplos de núcleos de análises. Esses aspectos trabalhados no Apoio (a discussão de casos, as ofertas teóricas, o levantamento e propostas de intervenção) não são “etapas” estanques, ou seja, não trabalha-se um item a cada encontro. Ao contrário, a cada encontro fazemos uma síntese de todos esses movimentos. A cada encontro se discute casos, se constrói diagnóstico, se propõe intervenção, se avalia o que já foi feito, se oferta outros modos de ver. É importante partir da construção partilhada de uma agenda de trabalho: qual é a frequência dos encontros? Quais os casos ou os temas que vamos discutir? Quem será o responsável a cada encontro? Então, se monta uma agenda. Mas vai ter momentos em que o grupo vai se atendo mais à reflexão e à análise, quer dizer, em dado momento vamos priorizar entender em maior profundidade a situação, pois ainda temos poucos elementos 112

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para pensar as intervenções. Em outros momentos será prioritário avaliar o que já foi feito, em outros, será hora de focalizar a discussão teórica. Mas em geral, nos encontros, o apoiador estimula que a princípio as pessoas reflitam, analisem o caso que foi trazido: quais são os determinantes? Quais os problemas? Como isso foi construído? Então é preciso primeiro entender o caso, o que está em jogo naquela situação, fazer uma análise mais aprofundada, um diagnóstico ampliado. Para depois passar para as propostas de intervenção. Tentar evitar que o grupo entre em um automatismo e vá logo sugerindo ações, pois esta é uma forma de evitar a reflexão, é muito mais fácil sair fazendo. É preciso interpretar as variáveis envolvidas no caso, pois isso dará muito mais potência e sentido às intervenções. Para essa interpretação, muitas vezes, além da observação e da narrativa das pessoas envolvidas, precisaremos buscar outras informações – documentos, textos, rever os dados epidemiológicos, trazer as normas e as diretrizes. Somente depois dessa rodada de análise é que podemos levantar propostas, metas e passar para uma dimensão mais operativa: levantar tarefas, os responsáveis pelos casos, que vão se envolver no Projeto Terapêutico (quando é um caso clínico) ou no Projeto de Intervenção (quando é um caso institucional ou um caso de saúde coletiva). E esses projetos devem ser sempre pactuados, com os envolvidos e com a equipe. No encontro seguinte ou mais adiante, é que o responsável pelo caso volta a apresentá-lo para analisar as tarefas que foram feitas, os limites, as potências que elas tiveram. Sempre a partir dessa avaliação se redefine o diagnóstico e o projeto. Então é como se pensássemos numa espiral: sempre passaremos pelos mesmos lugares – quer dizer, sempre iremos analisar, fazer diagnóstico, intervir, avaliar – mas sempre a partir de altitudes diferentes, 113

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atitudes de análises, de diagnósticos diferentes sobre as mesmas situações. O diagnóstico não é estagnado, ele vai mudando a partir das intervenções. E em todas as rodadas, em todos os encontros, procuramos trabalhar com as demandas no grupo, mas também com as ofertas do apoiador, tentando estimular a sua capacidade de análise e de intervenção. A questão do objeto de investimento também é um traço importante. Apoiar os sujeitos a identificarem e construírem objetos de investimento que tenham a ver com seu objeto de trabalho. Ampliar a capacidade dos sujeitos se comprometerem com aquilo que estão fazendo juntos e ao mesmo tempo capacitar os próprios participantes do grupo para exercer a “função apoio” na sua prática. A “função apoio” também pode ser exercida na prática clínica com os pacientes, nas práticas grupais. Enfatiza-se muito nesse texto que o objetivo do Apoio é produzir, ao mesmo tempo, efeitos que são pedagógicos, terapêuticos e institucionais. E para concluir, faz-se uma provocação que Freud fez, quando falou que a psicanálise, a educação e a política são ofícios impossíveis. São impossíveis porque eles são incessantes, ou seja, não se acaba um processo de formação ou de análise, nunca se para de fazer política pois vivemos toda a vida a nos formar, a nos constituir como sujeitos, a lidar com outros sujeitos, com os projetos de mundo que estão aí. Essas atividades – a psicanálise, a educação e a política – são impossíveis porque são atividades humanas e não técnicas, quer dizer, não há receitas de bolo, teremos sempre de pensar em situação. E isso implica numa certa aposta: vou fazer tal intervenção com aquele sujeito, mas eu não sei a priori no que aquilo vai dar. Pois o sujeito vai exercer sua autonomia. Eu posso investir naquela intervenção, mas só vou conseguir ver os resultados a posteriori. 114

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A finalidade do processo de Apoio é a construção da autonomia. E, ao mesmo tempo em que ela é o fim que buscamos, ela é também o meio para buscar esse fim. Porque é só através do exercício da autonomia que se vai construir autonomia, não adianta ficar pensando que se quer ser autônomo, é preciso ir exercitando e ao longo desse exercício é que se vai tornando cada vez mais autônomo. Portanto, penso que o principal efeito do processo de Apoio Paideia é a própria possibilidade de os sujeitos exercerem a sua autonomia, interrogar os sentidos daquilo que eles estão fazendo, daquilo que eles estão produzindo: por que eles estão ali? E podem, assim, construir maior capacidade de intervir no mundo (Furlan e Amaral, 2008). O nome “Paideia” é um termo grego, que tem a ver com a formação integral do ser humano (Campos, 2003). Na Grécia antiga, as pessoas se juntavam para discutir as questões relativas à cidade, à cidadania, à inserção social, aos desejos, aos interesses de cada um, e ali se fazia a gestão do coletivo e a formação das pessoas. E se estamos pensando em um processo de Apoio-Formação-Paideia nas suas conexões entre a política, a psicanálise e a educação, estamos nos aproximando do que Freud falou. Estamos fazendo algo que é indeterminado a priori, que é impossível no sentido de que não sabemos muito bem aonde vai chegar, não podemos esperar um resultado determinado, pois não somos nós que determinamos o caminho. Nós tentamos que esse processo capacite os sujeitos para que eles próprios possam pensar e agir sobre si mesmos, sobre os outros e sobre o contexto, para que eles desenvolvam sua capacidade de análise e de intervenção, sendo mais autônomos com relação à própria vida e ao próprio trabalho.

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Sistema Saúde Escola Ivana Cristina Barreto

Discutiremos neste texto a experiência que temos em trabalhar a educação permanente no interior dos sistemas de saúde de forma mais abrangente, compreendendo e atuando dentro do território de um município ou do território de um estado, de forma a diagnosticar as necessidades e atuar sobre elas mais integralmente. Estamos construindo um conceito de Sistema de Saúde Escola no âmbito do Sistema Único de Saúde no Brasil. A ideia que temos é de situar essa proposta dentro do vetor das práticas de Educação Permanente e de destacar as articulações entre a teoria e a prática com relação à dinâmica de troca de conhecimentos entre equipes interprofissionais. Retomando os princípios do nosso sistema de saúde, firmados na Constituição de 1988, sabemos que, por meio do princípio da Universalidade, o direito à assistência à saúde foi estendido a todos os brasileiros. Na história do Brasil, até o final da década de 1980, milhões de brasileiros não tinham acesso à assistência médica e hospitalar, eram beneficiados por esse direito apenas os trabalhadores que estavam formalmente no mercado de trabalho, os cidadãos que pagavam planos de saúde privados ou aqueles com recursos pessoais para comprar serviços diretamente ao prestador. A partir da promulgação da Constituição de 1988 o direito à saúde foi garantido formalmente na Lei como direito de todo cidadão. Esse fato teve grandes repercussões porque o sistema público de saúde que foi sendo forjado a partir daí hoje é responsável pela atenção a 200 milhões de habitantes. Destes 200 milhões de brasileiros, apenas 50 milhões possuem planos de saúde privados ou dispõem de dinheiro para pagar diretamente a um 116

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prestador de serviço quando necessário. Os outros 150 milhões dependem exclusivamente da assistência à saúde ofertada pelos serviços públicos municipais, estaduais ou federais. Outros princípios que foram aprovados na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde foram os da acessibilidade e integralidade. Ou seja, o Sistema Único de Saúde deve garantir o efetivo acesso aos serviços de saúde para toda a população. Com o princípio da integralidade se quis afirmar que o Estado não deveria se comprometer apenas com uma cesta básica de serviços. Na Constituição, foi assegurado a todo cidadão o direito ao atendimento em todas as redes de atenção à saúde existentes dentro do país, o que inclui hoje a atenção primária, a atenção especializada, a atenção em saúde mental, a urgência e emergência, e a atenção hospitalar, portanto, desde serviços de menor até os de mais alta densidade tecnológica no sentido da tecnologia dura. Os princípios da Universalidade, Acessibilidade e Integralidade estão inscritos na Lei, entretanto, sabemos que ainda temos problemas na efetivação destes princípios, pois temos muitas deficiências no sistema público de saúde. Na atenção primária à saúde conseguimos alcançar uma grande cobertura assistencial, mas temos grave carência de médicos. Em 2012, segundo o Ministério da Saúde, 90% dos municípios brasileiros possuíam equipes de saúde da família formadas por enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Entretanto, na periferia das grandes cidades e em áreas remotas, como a Amazônia e nas cidades do interior do Nordeste e Centro-Oeste, faltam médicos. Cerca de 50% de nossas equipes de saúde da família carecem de médicos, e muitas unidades de atenção primária à saúde carecem de infraestrutura e de suprimentos necessários para uma prestação de serviços de qualidade. 117

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Em uma pesquisa que fizemos no ano 2000, em Sobral, 98% da população estava cadastrada na equipe de Saúde da Família, e mais de 97% conseguiu atendimento à saúde no mesmo dia em que demandou. As pesquisas de assistência médico-sanitária realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que a maioria da população consegue o atendimento de saúde quando demanda. As questões que surgem são a respeito da qualidade. Sabe-se que um elevado percentual de atendimentos realizados não são resolutivos e nem realizados em tempo adequado. Embora tenhamos conseguido bons resultados, como a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida dos brasileiros, os questionamentos quanto à qualidade da atenção prestada no SUS são alimentados pela persistência de problemas que deveriam ter sido significativamente reduzidos ou eliminados, como a incidência de sífilis congênita e as elevadas taxas de mortalidade materna. Por outro lado, novos problemas estão nos desafiando, pois, na medida em que se salvam crianças e as pessoas vivem mais, o sistema se defronta com problemas mais complexos, a maioria deles decorrentes do envelhecimento, como as doenças cardiocirculatórias e o câncer. Outros importantes princípios do SUS são a descentralização e a gestão participativa, também inscritos na Constituição de 1988. O Brasil é um país federativo com três esferas de gestão autônomas, governos federal, estaduais e municipais, e isto torna o processo de descentralização muito complexo. Na década de 90 houve um processo intenso de descentralização da gestão da saúde para a esfera de gestão municipal, o que foi um dos fatores que contribuiu para o aumento de cobertura da Estratégia Saúde da Família e das ações primárias de saúde de uma forma geral. O Brasil tem 5.570 municípios e a maioria 118

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é de pequeno porte, contando apenas com serviços de atenção primária à saúde. Aos grandes municípios cabe prover assistência à saúde secundária e terciária não só à sua população, mas também para a população de municípios vizinhos. No momento atual, o Ministério da Saúde lidera um movimento com o objetivo de reagrupar os sistemas municipais de saúde em regiões de saúde, onde seja possível estruturar redes de atenção à saúde com serviços de atenção primária, secundária e terciária de qualidade e economicamente sustentáveis, capazes de garantir atenção integral à saúde para população regional. Sabe-se que para serviços de complexidade terciária, quanto maior o volume de procedimentos melhor a qualidade e o custo-efetividade, portanto, eles devem ser organizados para uma base populacional mínima. O Canadá é um bom exemplo de país que tem regiões de saúde bem estruturadas. No Brasil o projeto é de estruturação de 435 regiões de saúde, entretanto, em função da autonomia política e administrativa das três esferas de governo, este é um processo que envolve muitos atores e necessita ser construído com base em contratos de colaboração intergovernamental. No momento, a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde e a Secretaria de Saúde do Ceará estão empenhadas em construir estas pactuações entre os municípios, o estado e o governo federal em cada uma das vinte e duas regiões de saúde do Ceará, firmando contratos organizativos de ação pública assinados por gestores das três esferas. Em cada região deverão ser organizadas redes de atenção à saúde até a complexidade terciária e cada ente federativo se comprometerá com o financiamento de um grupo de serviços e ações de saúde relativas ao funcionamento destas redes. Por tudo isto, a efetivação de todos os princípios do SUS só será alcançada quando nós tivermos essas regiões de saúde funcionando de forma integrada. 119

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O desafio do governo brasileiro no que diz respeito à gestão do trabalho em saúde é muito grande: antes de 1988, 70% dos trabalhadores em saúde eram vinculados às esferas de governo estadual e federal. Essa proporção mudou radicalmente em 25 anos. Na atualidade, 70% ou mais dos trabalhadores em saúde estão vinculados à esfera municipal de governo que, sendo estruturalmente menos organizada e dispondo de menos recursos, tem limitações administrativas e restrições legais para negociar planos de cargos e salários. Existem hoje propostas da participação dos governos estaduais e federal para organizar carreiras para o SUS de base local, mas com a possibilidade de progressão horizontal e vertical. Este, porém, não é o foco neste texto. Outro desafio que se coloca para a gestão em saúde é a produção acelerada de novos conhecimentos e tecnologias e a pressão de consumo de procedimentos e medicamentos sobre o sistema de saúde, aumentando rapidamente os custos da assistência em saúde. Os profissionais de saúde e a própria população em geral, ao serem informados de uma nova tecnologia aparentemente eficaz, pressionam o sistema de saúde a incorporá-la, muitas vezes sem que tenha sido comprovado seu melhor custo-efetividade com relação a tecnologias mais antigas. Desta forma, é preciso que se construam mecanismos para conter e racionalizar esta incorporação de modo a não inviabilizar o sistema público. Em nossa opinião, comunidades de prática de profissionais de saúde alinhadas aos princípios dos sistemas universais podem apoiar enormemente este processo. Como afirmou o professor Wenger, existem diversos matizes de Comunidades de Prática. E para nós isto é muito claro. A Comunidade de Prática da saúde coletiva brasileira da qual participo, se posiciona defendendo o sistema público e 120

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universal de saúde. Para esta comunidade, é muito importante se integrar às outras comunidades alinhadas com este pensamento, para conquistar maior equidade em saúde no Brasil. O Brasil enfrenta hoje outro grande desafio, pois historicamente o ordenamento e a regulação da formação de profissionais de saúde não foram feitas de acordo com as necessidades de saúde da população e do sistema público, respondendo mais a interesses corporativos e privados. O fato do sistema de saúde não estar integrado às instituições de ensino, e do Estado historicamente não ter atuado efetivamente nesta questão, resultou em problemas tanto no campo da formação profissional quanto da educação permanente. Atualmente, por exemplo, o país sofre com a escassez de profissionais médicos. Outra questão é a inadequação da formação profissional para atuação na rede de atenção primária em saúde, que deve ser a porta de entrada e a coordenadora do sistema de saúde (Starfield, 2002). Considerando todo este contexto é que surgiu o conceito de Sistema de Saúde Escola, como uma estratégia que utiliza a educação permanente, a gestão participativa, a colaboração interprofissional, interinstitucional e interorganizacional, como ferramentas para melhoria da gestão e a integração do sistema de saúde. A ideia-força embutida no conceito de SSE é de transformar toda a rede de serviços de saúde em espaços para educação contextualizada e o desenvolvimento profissional. As características do SSE são: coerência entre os processos de formação e desenvolvimento profissional com os princípios da universalidade e equidade; educação contextualizada (preceptoria em serviço/tenda invertida e aprendizagem baseada na problematização da realidade); a compreensão da aprendizagem como prática social; gestão participativa; 121

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estímulo à colaboração interprofissional, interorganizacional e interinstitucional. No século XX, as iniciativas para integração entre as instituições de ensino e os serviços de saúde em geral partiram das primeiras, ou seja, de movimentos acadêmicos. A estratégia Sistema Saúde Escola propõe que a gestão da saúde, compreendendo a importância que representa a formação, a educação permanente e o desenvolvimento dos profissionais de saúde para o sucesso do próprio sistema, assuma um papel mais ativo e determinante nesse processo de integração. Contextualizando essa estratégia para a realidade do Brasil, o Sistema de Saúde Escola (SSE), enquanto estratégia de gestão e organização do SUS numa determinada esfera de gestão da saúde, seja ela município, estado ou União, mobiliza gestores, trabalhadores do SUS, instituições de ensino públicas e privadas e de ensino técnico e superior, a enfrentar o desafio da mudança do modelo assistencial de saúde e contribuir para prover acesso à saúde com qualidade à população. Busca superar o modelo hegemônico no século XX, centrado na ideia de complexos hospitalares de excelência que, por concentrar a tecnologia mais avançada, teoricamente deteriam também o “saber científico” mais relevante e atual (Barreto et al., 2006). O SSE utiliza a Educação Permanente em Saúde (EPS) como forma de potencializar a reorientação do modelo assistencial, propiciando mudanças qualitativas no processo de trabalho em saúde. É um sistema integrado, articulado, que se desenvolve em todas as redes de assistência à saúde (RAS), a saber, rede de atenção primária, de atenção secundária, de urgência e emergência, de saúde mental e rede hospitalar. Os processos de 122

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formação profissional e educação permanente dos profissionais de saúde podem ser também um vetor de força para integração das RAS (Figura 1).

Figura 1 – Espiral da complexidade do Sistema Saúde Escola (Barreto et al., 2006).

Nos âmbitos estadual e municipal, esses processos de formação profissional e educação permanente podem articular os diversos programas e projetos desenvolvidos pelo Ministério da Saúde e iniciativas do próprio estado e município. Eles abrem perspectivas para o envolvimento de toda a rede de formação dos profissionais de saúde (instituições de ensino superior, de ensino técnico e tecnológico, quer públicas ou privadas) e propõem sua integração aos serviços de saúde.

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Diretrizes e processo de implementação As diretrizes propostas pelos autores para o Sistema Saúde Escola são: Conceito de Saúde como Qualidade de Vida A saúde é percebida e concebida como um objeto complexo, cuja construção requer abordagem transdisciplinar, intersetorial e interprofissional: • transdisciplinar, pelo fato de a saúde ser produzida socialmente, inserindo em seu processo de produção múltiplas dimensões e requerendo, portanto, a incorporação dos olhares e saberes e dos diferentes campos de conhecimento; • intersetorial, por necessitar da intervenção integrada e não justaposta dos vários setores junto aos determinantes da saúde; • i nterprofissional, por requerer conhecimentos e práticas das várias categorias profissionais, dentro e fora do setor da saúde, cuja atuação colaborativa deverá potencializar a integralidade da atenção à saúde. Gestão do conhecimento em saúde A implementação de dispositivos de gestão do conhecimento em saúde no SUS é um imperativo para reduzir o fosso entre conhecimento produzido e conhecimento aplicado em benefício da população.

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Um sistema cujo eixo central de desenvolvimento é o espaço do serviço e o seu território de abrangência O processo de trabalho em saúde, um dos focos centrais da política de educação para o SUS, não se limita ao campo específico do serviço da unidade de saúde, mas se insere na dinâmica do território, do sistema como um todo, sendo a mudança das práticas sanitárias e a construção de novos saberes resultantes de esforços coletivos – comunitários, interinstitucionais, intersetoriais, interprofissionais e interdisciplinares. Na lógica explicitada, uma das estratégias prioritárias para viabilizar e contextualizar a política de educação para o SUS é a Educação Permanente em Saúde (EPS). Formação de profissionais de acordo com o desenvolvimento do SUS e as necessidades de saúde da população É necessário haver sintonia entre o desenvolvimento das redes assistenciais do SUS, a formação e o desenvolvimento dos profissionais de saúde. No âmbito estadual, a organização e mobilização das Comissões de Integração Ensino Serviço (Cies) é um passo fundamental para organização do Sistema Saúde Escola. Outra necessidade primordial é a de fazer uma cartografia da situação da força de trabalho em saúde e planejar a formação de profissionais de saúde de acordo com as necessidades atuais e futuras. Nesse sentido, destaca-se dentre as iniciativas de um SSE, a convocação das instituições de ensino superior (IES), dos gestores de saúde, trabalhadores e representantes dos 125

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conselhos de saúde de um determinado território, para discutir a demanda de formação, quer seja técnica, de Graduação ou Pós-graduação, por meio das Comissões de Integração Ensino Serviço ou outros espaços de discussão, como fóruns do SSE. O SSE assume, também, o desafio de contribuir na melhoria da formação, abrindo as portas de todas as redes assistenciais para receber os estudantes da saúde, estruturando e pactuando esse processo de aproximação da Graduação e da Pós-graduação às unidades de saúde, possibilitando um ensino contextualizado. Assim, o SSE vai conferindo unidade aos diversos programas e projetos oriundos do Ministério da Saúde, a exemplo do Pró-Saúde e do Pet-Saúde, e organizando os estágios nas unidades de saúde, por meio de um processo de pactuação com as IES e escolas técnicas de saúde. A criação de um espaço de coordenação político-administrativo flexível e desburocratizado é necessária para o estabelecimento e manutenção da estratégia Sistema Saúde Escola. Essa coordenação, ligada diretamente ao gestor de saúde, deverá atuar fomentando e mediando processos de colaboração interorganizacionais e interinstitucionais para integração ensino-serviços de saúde. O processo de implementação do SSE não se processa sem conflitos, sendo permeado de contradições e de questões que vão sendo equacionadas por intermédio da pactuação entre os diferentes atores envolvidos (Ellery et al., 2010). Há questões a serem pactuadas, notadamente em relação às expectativas dos diferentes atores. Cada segmento (educação e saúde) parece esperar que o outro atenda às suas necessidades. O financiamento é outro importante aspecto a ser equacionado, considerando que a introdução de estudantes na rede gera uma série de custos que precisam ser estimados para 126

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a definição de estratégias de financiamento. Outro aspecto necessário é definir parâmetros para estimar a capacidade de absorção de estudantes e estagiários em geral por parte das redes assistenciais (número de alunos versus profissional de saúde, por exemplo). Desenvolver, também, um processo de corresponsabilidade sanitária com a melhoria da situação de saúde do estado, região e município, acompanhada por meio de indicadores, é importante para celebrar o compromisso mútuo entre o sistema e serviços de saúde e as instituições de ensino. Essas demandas de saúde da população devem ser consideradas também nas pesquisas a serem desenvolvidas. O objetivo é desenvolver vínculos entre instituições de ensino e serviços, entre professores, profissionais de saúde dos serviços e estudantes com a população. O processo não precisa ser uniforme em todas as redes assistenciais e em todas as regiões de saúde e municípios, devendo ser desenvolvido de acordo com as necessidades locais. Pode ser construída uma sistemática de territorialização para a atuação das instituições de ensino nas redes assistenciais de saúde. É, contudo, um processo pactuado, sistemático, gradual, que é implementado em acordo com os parceiros, levando em conta critérios geográficos, capacidade instalada nos serviços de saúde, disponibilidade dos serviços e de profissionais para preceptoria. Em um determinado município, onde há divisão de regionais, enquanto unidades administrativas, o processo de implementação pode obedecer a esse critério, dependendo da pactuação entre os atores da educação e da saúde.

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Ações estratégicas Gestão do Conhecimento no Sistema Saúde Escola O Sistema Saúde Escola tem como um de seus objetivos estratégicos desenvolver práticas de Gestão do Conhecimento. Relacionamos, adaptando de Batista et al. (2005), algumas práticas de Gestão do Conhecimento e suas definições que podem ser aplicadas no contexto de um Sistema Saúde Escola. I.

 ultivo de Comunidades de Práticas e seu C engajamento nos objetivos estratégicos do Sistema Saúde Escola.  omunidades de Prática diz respeito a grupos C de pessoas engajadas em práticas sociais que apresentam problemas, preocupações ou mesmo paixões compartilhadas e as levam a interesses comuns na busca de conhecimentos, agindo de maneira a partilhar processos de aprendizado (Wenger, 1998).  studos realizados no Sistema Nacional de Saúde E Inglês demonstram que as Comunidades de Prática podem ter efeitos positivos e negativos sobre o Sistema Público de Saúde. Os efeitos positivos das comunidades de práticas de profissionais de saúde estão relacionadas à aprendizagem que se desenvolve no processo de engajamento e participação dos seus membros que compartilham a clínica como um objeto comum de interesse. Os efeitos negativos estão relacionados ao fato de que a inovação frequentemente resulta de relações interprofissionais

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e interdisciplinares, e as comunidades de prática de uma profissão específica tendem a criar barreiras que impedem a criação de links entre diferentes grupos profissionais.  onsiderando essas questões, caberia à gestão do C Sistema Saúde Escola tentar criar cumplicidade das Comunidades de Prática aos seus objetivos estratégicos e estimular a formação de Comunidades de Prática Interprofissionais. A criação de Programas Educacionais Multiprofissionais, como os que vêm sendo incentivados pela Política Nacional de Educação Permanente, entre eles as Residências Multiprofissionais em Saúde, é um caminho que pode ser seguido. II. M  entoria/Matriciamento – Modalidade de gestão do desempenho, na qual um expert participante modela as competências de um indivíduo ou grupo. III. T  enda Invertida – Uma forma de mentoria em que o objetivo principal é a educação permanente dos profissionais de saúde, que no contexto do SSE foi utilizada para designar a atuação de especialistas junto às equipes de saúde da família no interior dos Centros de Saúde da Família, refletindo e construindo soluções com as equipes para os problemas de saúde do território (Andrade, 2004). IV. T  utoria – O expert é externo à organização e faz parte de um processo planejado de orientação, apoio, diálogo e acompanhamento, com tempo definido e alinhado às diretrizes estratégicas da secretaria. 129

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V.

 receptoria de Território – Modalidade de mentoria P que é utilizada nas Residências Multiprofissionais em Saúde da Família para designar a atuação do docente em serviço que se ocupa de produzir reflexões e planejamento da equipe de saúde da família para sua atuação no território pelo qual tem responsabilidade sanitária.

VI. B  enchmarking interno e externo – Busca sistemática das melhores referências para comparação aos processos e serviços da secretaria. Troca de experiências interdisciplinares e interprofissionais. VII. M  elhores práticas – Identificação e difusão de melhores práticas, que podem ser definidas como um procedimento validado para a resolução de um problema. São documentadas por meio de manuais, rotinas, diretrizes ou banco de dados. VIII. Fóruns (presenciais e virtuais)/Listas de discussão – Espaço para discutir e compartilhar informações, ideias e experiências. Inclui-se espaço para cogestão compartilhada como roda de gestão. IX. M  apeamento ou auditoria do conhecimento – Registro do conhecimento institucional sobre processos, serviços e relacionamento com os usuários. Inclui a elaboração de mapas de conhecimento. X. F  erramentas de colaboração como portais, intra e extranets – Sistema informatizado que captura e difunde conhecimento e experiência entre profissionais e setores da secretaria. XI. S istema de gestão por competências – Estratégia de gestão baseada nas competências requeridas 130

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para o exercício das atividades de determinado posto de trabalho e remuneração pelo conjunto de competências efetivamente exercidas. Esse é um grande desafio para os Sistemas Saúde Escola, pois representa sua interface com a Gestão do Trabalho, que tem muitos desafios a superar no Sistema Único de Saúde. XII. B  anco de competências individuais/Banco de Talentos – Repositório de informações sobre a capacidade técnica, científica, artística e cultural das pessoas. Pode mapear conhecimento explícito (formal) ou tácito (experiência e habilidades). XIII. Banco de competências organizacionais e comunitárias – Repositório de informações sobre a localização de conhecimento na secretaria municipal de saúde ou comunidade, incluindo fontes de consulta e também as pessoas ou equipes detentoras de determinado conhecimento. XIV. Memória organizacional/Lições aprendidas/Banco de conhecimentos – Registro do conhecimento organizacional sobre processos, serviços e relacionamento com usuários. Lições aprendidas são relatos de experiências onde se registra o que aconteceu, o que se esperava que acontecesse, a análise e o que foi aprendido com o processo. XV. S istemas de inteligência organizacional – Transformação de dados em inteligência, com o objetivo de apoiar a tomada de decisão. O conhecimento obtido de fontes internas e externas, formais ou informais, é formalizado, documentado e armazenado para facilitar o seu acesso. 131

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Ações operacionais O leque de possibilidades para um SSE é bastante amplo, podendo envolver ações como seguem: a) Educação formal e continuada, que é compreendida como todo aquele processo de formação dos trabalhadores que exija credenciamento no Conselho Estadual de Educação ou Ministério da Educação (MEC). Em parcerias entre seus diferentes atores, somando esforços, o SSE pode empreender atividades de Aperfeiçoamento, Graduação e Pós-graduação, como Residências, Especializações. Também podem ser desenvolvidos cursos de educação à distancia. b) Apoio às Universidades, compreendendo toda aquela ação que permita a organização de um campo de estágio ou treinamento para estudantes das universidades parceiras: Internato; Estágios; Projetos de Extensão. c) Educação popular em saúde, toda atividade que compreende a articulação dos saberes e práticas populares ao conhecimento produzido pelas instituições de ensino e pelo serviço. d) Incentivo à ciência e tecnologia: toda ação de fomento à pesquisa, desenvolvimento de novas tecnologias, sistematização e divulgação dos saberes produzidos no serviço e na comunidade: Fórum de Pesquisadores; Revista; Boletim de Epidemiologia; Telemedicina; Comunidade ampliada de pesquisa.

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Terceira Parte – Limites e possibilidades do conceito Comunidades de Prática Mesas redondas: Cultivar Comunidades de Prática enquanto condição de possibilidade para a construção de projetos interprofissionais Ana Ecilda Lima Ellery

Avaliação das contribuições e limites atribuídos às Comunidades de Prática (CdP) na área da saúde Sonia Rioux e Cecília Borges

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Cultivar comunidades de prática enquanto condição de possibilidade para a construção de projetos interprofissionais Ana Ecilda Lima Ellery1

1. Introdução Este artigo tem por objetivo discutir o fomento às Comunidades de Prática, enquanto estratégia que facilita a construção de projetos interprofissionais na saúde. A referida estratégia foi uma das conclusões a qual chegamos em nossa tese de Doutorado em Saúde Coletiva, defendida na Universidade Federal do Ceará. Nossos estudos sobre a interprofissionalidade foram desenvolvidos no âmbito da Estratégia Saúde da Família, pela relevância dela como política pública de organização do sistema de saúde, e também por sua magnitude. Temos hoje no Brasil 32.079 equipes de Saúde da Família, e mais 1.578 equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF (Brasil, 2011a). Há, portanto, um grande número de profissionais trabalhando na Atenção Primária à Saúde, de diversas categorias. No Brasil, existem 14 profissões reconhecidas como da área da saúde. Em breve, teremos mais uma que está em processo de reconhecimento, qual seja, a Saúde Coletiva. Desta forma, com a criação dos NASF (BRASIL, 2008), gradativamente, trabalhadores com formações diferenciadas estão sendo incorporados à Saúde da Família no Brasil. Na pesquisa do Doutorado, interessavaPsicóloga, Assistente Social, Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará, com estágio de doutorado sanduíche na Université de Montreal. 1

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-nos compreender como as equipes estão vivenciando este cotidiano com múltiplos profissionais, com um desafio de construir trabalho integrado, em colaboração, conforme postulado na Política Nacional de Atenção Básica (Brasil, 2011b). Contudo, como sabemos, o que está prescrito na legislação e nos programas nem sempre é o que se realiza na prática. Além disso, é necessário considerar que cada um de nós enquanto profissional vivencia uma dinâmica contraditória no cotidiano de saúde, porque, na realidade, fomos formados dentro da lógica da profissionalização (D’amour et al., 2005; Furtado, 2007), para reservar saber e poder, marca do processo de constituição das profissões. Como assinalam Girardi, Fernandes Jr. e Carvalho (2010), a regulamentação de uma atividade profissional implica reserva de mercado ou de direito exclusivo de propriedade sobre campos de prática, concedido pelo Estado, com o reconhecimento da utilidade pública daquela atividade. Os conselhos profissionais estão aí para garantir e salvaguardar espaços de saberes e práticas, de forma a auferir maiores ganhos e prestígio no mercado de trabalho. Por outro lado, no contexto de realização das práticas, com a complexidade das situações com as quais os profissionais se deparam, os mesmos são desafiados a colaborar com seus pares. Isto porque nenhum profissional, qualquer que seja a formação, tem condições de responder sozinho à complexidade dos problemas enfrentados. Nesta perspectiva é que consideramos tratar-se de uma dinâmica contraditória, numa visão dialética, e não “antagônica”. Fazemos tal afirmativa porque, se as forças fossem antagônicas, elas não poderiam coexistir simultaneamente. Na perspectiva do conceito de “contradição” (Prado, 2002), consideramos serem forças coexistentes, estando em permanente conflito. Se, por um lado, nas relações entre as categorias, o profissional 135

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pode se sentir ameaçado, tendendo a fechar-se, ou, até mesmo, a boicotar o colega de trabalho; por outro lado, pode também, em determinadas situações, sentir-se impelido a colaborar com outro profissional, pela necessidade da resolubilidade do problema do usuário e por sentir ser sua atuação insuficiente para dar conta da complexidade das situações enfrentadas. Diante deste dilema, duas questões principais nortearam a pesquisa, quais sejam: a) Apesar de serem formados na lógica da profissionalização, seria possível os profissionais de saúde desenvolverem projetos interprofissionais, integrando saberes e compartilhando práticas? b) Que teorias e dispositivos poderiam contribuir na afirmação de atitudes, conhecimentos e práticas voltadas à construção da interprofissionalidade na Saúde da Família? 2. A trilha metodológica Ciente dos inúmeros entraves epistemológicos, políticos, estruturais, institucionais, éticos e subjetivos (Campos e Domitti, 2007) para a efetivação da interprofissionalidade na Estratégia Saúde da Família, e sem jamais negá-los, em nossa pesquisa de Doutorado, movia-nos a intenção de encontrar possibilidades para sairmos do dilema de como compatibilizar a necessidade da construção de um projeto interprofissional com o fato dos profissionais serem formados para atuarem na lógica da profissionalização. Se os trabalhadores da saúde no seu cotidiano disputam poder e status, como podem vivenciar práticas em colaboração? Para responder a essas questões, fizemos um estudo de caso (Yin, 2005) de natureza qualitativa, inspirado na Hermenêutica de Hans G. Gadamer (1979) como prática filosófica e na Fenomenologia Hermenêutica, de Paul Ricoeur (1986), 136

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para a produção do conhecimento. O cenário de estudo foi um Centro de Saúde da Família (CSF), em Fortaleza. Referido CSF é considerado um Centro de Saúde Escola, uma vez que nele são desenvolvidos vários programas de ensino, como a residência médica, a residência multiprofissional, estágios diversos, com alunos do ensino técnico, Graduação e Pós-graduação. Com exceção de dois profissionais, os demais membros das equipes mínimas da ESF no CSF estudado eram preceptores das residências em Saúde da Família (médica e multiprofissional) ou do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-SAÚDE). O percurso metodológico utilizou a “Triangulação Metodológica” (Minayo, 2000), permitindo o uso concomitante de várias técnicas de abordagens e diversas modalidades de análise, de vários informantes e pontos de vista de observação, visando à ampliação da produção do conhecimento e à validação da pesquisa. Foram utilizadas três técnicas complementares na produção do conhecimento, quais sejam: Técnica 1 – Entrevistas com profissionais das equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF). Nas entrevistas abertas, tínhamos questões orientadoras que nos interessavam, relacionadas às características da Teoria das Comunidades de Práticas, buscando compreender como as equipes resolvem conflitos; como aprendem; se pactuam um projeto em comum e como o fazem; como integram conhecimentos; se colaboram e, em caso afirmativo, como o fazem (Figura 1). Como eram questões abertas, contudo, fizemos uma escuta ampla dos relatos e experiências de cada profissional, permitindo o surgimento de outras temáticas no desenrolar das entrevistas, como as dificuldades sentidas pelos profissionais, o histórico do CSF, entre outras temáticas. 137

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Figura 1 – Processos de uma Comunidade de Prática pesquisados nas entrevistas abertas e nas observações.

Fonte: Ellery (2012).

Técnica 2 – Observação das atividades desenvolvidas pelas equipes da ESF, profissionais do NASF e residentes do CSF, como: visitas domiciliares, reuniões de matriciamento (Campos, 1999), rodas de gestão das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF). Na observação das atividades desenvolvidas pelos profissionais, em momentos de trabalho conjunto, interessava-nos observar as mesmas questões focadas nas entrevistas. Técnica 3 – Oficina de produção do conhecimento, para sistematização do campo comum (Andrade et al., 2004; Campos, 2000) de atuação dos profissionais, da atenção primária à saúde. O campo comum é o espaço do compartilhamento, da socialização de práticas e saberes entre os diversos profissionais que integram a atenção primária à saúde no Brasil, ou seja, profissionais das equipes da ESF, incluindo o NASF. 138

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A recolha das informações foi procedida no período de março a agosto de 2011, envolvendo 23 profissionais da ESF, incluindo os Núcleos de Apoio à Saúde da Família, bem como residentes de Medicina e de Saúde da Família e membros da comunidade. Considerando que uma das questões norteadoras do estudo foi saber “que teorias e dispositivos poderiam contribuir na afirmação de atitudes, conhecimentos e práticas voltadas à construção da interprofissionalidade na Saúde da Família?”, uma das teorias que adotamos para dialogar na pesquisa foi a “Teoria da Comunidade de Prática” (Wenger, 2009). O objetivo central do estudo foi compreender as relações interprofissionais na produção do cuidado na Estratégia Saúde da Família, explorando condições de possibilidades que facilitem o trabalho interprofissional. Com base na experiência estudada e nos estudos teóricos, discutiremos a seguir o fomento às Comunidades de Práticas, enquanto condição de possibilidade para a construção de projetos interprofissionais. Porém, antes de discutirmos as condições de possibilidade para a interprofissionalidade, expressamos nossa concepção desta categoria central no presente estudo. 3. Concepção de Interprofissionalidade O conceito de interprofissionalidade adotado foi construído a partir da concepção de interdisciplinaridade formulada por Colet (2002). Para fundamentar tal discussão, fazemos inicialmente a diferenciação entre os vocábulos “disciplinar” e “profissional”, que são frequentemente empregadas com diversos prefixos, como: “inter”, “multi” e “trans”. D’Amour (1997) e Furtado (2007; 2009) consideram 139

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referir-se o vocábulo “disciplinar” à vertente dos saberes, situando-se num plano epistemológico, isto é, ao nível mais teórico do conhecimento. O lexema “profissional” situa-se numa dimensão pragmática, referindo-se às práticas concretas, ao campo de atuação dos trabalhadores e dos serviços. Desta forma, adotamos em nossos estudos a categoria “interprofissionalidade”, uma vez que trabalhamos com os profissionais em seus campos de prática. Para Colet (2002), a interdisciplinaridade possui duas dimensões: uma cognitiva, onde ocorre a integração conceitual teórico e/ou metodológico de duas ou mais disciplinas colocadas uma na presença da outra; e uma dimensão pragmática, na qual, para realizar esta integração, há a necessidade de colaboração entre os representantes das diferentes disciplinas em questão. A integração dos aportes disciplinares necessita de uma coordenação, de forma a facilitar a cooperação entre as disciplinas implicadas. As dimensões cognitiva e pragmática são totalmente correlacionadas e suas interações produzem a síntese, pelo princípio da interdependência. A integração disciplinar tem lugar na organização dos saberes, enquanto a colaboração se efetiva no domínio da organização do trabalho. Nossos estudos teórico-práticos indicaram que a integração de saberes e a colaboração entre os profissionais são processos mediados fortemente pelos afetos, não sendo resultado apenas de uma dimensão cognitiva, onde ocorre a integração de saberes; e de uma dimensão pragmática, onde tem lugar o compartilhamento de práticas. Compreendemos, portanto, ser a interprofissionalidade marcada por processos cognitivos, pragmáticos e também afetivos. Introduzimos esta dimensão afetiva por acreditarmos ser ela o motor, a mola impulsionadora do cognitivo e do pragmático. A afetividade é compreendida como o conjunto de afetos (emoções, sentimentos, estados) vivenciados pelo sujeito (Ribeiro, 2008). Entretanto, a afetividade não pode ser 140

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compreendida sem as interações e implicações com as outras dimensões do ser humano (cognitiva, motora etc.). Existe um ser humano que “sente” para si mesmo um universo psicológico-subjetivo, universo este de significados próprios cheios de valoração (Pinto, 2004), a saber: amor, inveja, ódio, amizade, felicidade, alegria, etc. Os afetos são traduzidos pela variedade e complexidade de significados produzidos no psiquismo do ser humano. A afetividade envolve tanto uma resposta de conteúdo emocional (empalidecimento, cólera, ansiedade e estresse), como aspectos expressivo-gestuais (lágrimas e sorrisos) em um mesmo experienciar do ser humano. A afetividade faz parte essencial do psiquismo de todos os seres humanos, estando unida ao domínio do íntimo e pessoal, do mundo privado e subjetivo do ser humano, sendo assim parte efetiva do funcionamento psicológico (Pinto, 2004). Nessa perspectiva, postulamos que a elaboração de um projeto interprofissional é, essencialmente, uma PRODUÇÃO AFETIVA, uma vez que a integração de saberes e a colaboração interprofissional são fortemente intermediadas pelos afetos. Esta concepção está representada na Figura 2. Figura 2 – Estrutura Conceitual da Interprofissionalidade

Fonte: Ellery (2012). 141

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A produção afetiva resulta de processos e relações onde estão envolvidas emoções, afetos, estando presentes também certas posturas ético-cognitivas, como: o reconhecimento do outro como um ser capaz, detentor e produtor de saberes; o reconhecimento da incompletude de cada profissional, para dar conta das situações-limite (Freire, 2009) com as quais são confrontados os trabalhadores da saúde no cotidiano dos serviços de saúde. A prática profissional na saúde, portanto, coloca os trabalhadores diante de situações imprevisíveis, complexas, decorrentes de fatores múltiplos (biológicos, psicológicos, sociais e ambientais), que exigem a colaboração interprofissional. A natureza deste tipo de trabalho, segundo Hardt e Negri (2001), só pode ser realizada “através das potências, das potências de viver” (p. 28) por eles denominadas afetos. “A vida afetiva se torna, portanto, uma das expressões da ferramenta de trabalho encarnada dentro do corpo” (Hardt; Negri, 2001, p. 28). O trabalhador é solicitado a implicar-se subjetivamente com os objetivos do trabalho, com a organização das atividades por ele executadas, em colaboração com demais colegas, com os valores institucionais e, principalmente, com o público por ele atendido. Sob este ângulo, as formas como os profissionais da saúde organizam e dão “direção às suas atividades não pode ser simplesmente prescrito em documentos de descrição e análise de cargos, como uma série de regras fixas e protocolos que são esclarecidos por ocasião da sua contratação ou nos cursos técnicos e universitários” (Mansano, 2011, p. 6). Consideramos, portanto, envolver o trabalho interprofissional na saúde, fundamentalmente, uma dimensão afetiva, que interfere decisivamente para que haja socialização e integração de saberes e o compartilhamento das práticas. A afetividade mobiliza os profissionais, disponibilizando-os 142

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ou não, para que haja a integração de saberes (dimensão cognitiva) e para a colaboração interprofissional (dimensão pragmática). Integrar saberes e compartilhar práticas são processos perpassados pelos medos, pelos afetos, o que se constitui na dimensão subjetiva da estrutura conceitual da interprofissionalidade, expressa na figura 2. O projeto interprofissional exige uma nova organização dos saberes, implicando numa ampliação da compreensão dos fenômenos trabalhados, constituindo-se na dimensão cognitiva da interprofissionalidade. Isto requer a presença, a articulação e a confrontação de várias disciplinas, quer elas sejam próximas ou não, condenando toda forma de supremacia disciplinar, onde uma disciplina impõe seus conceitos e métodos, considerando as outras disciplinas como auxiliares (Colet, 2002). A organização dos saberes atesta a interação dos campos disciplinares, dando lugar a um quadro de referência não disciplinar. Este quadro referencial resulta da interação e troca estabelecidas entre as disciplinas (conceitos, teorias, métodos, instrumentos de análise, etc.) e do grau de interpenetração obtida entre elas. A dimensão pragmática de um projeto interprofissional examina os meios desenvolvidos para realizar um projeto, incluindo-se nesta dimensão tudo que é ligado à organização e à gestão do trabalho interprofissional: a composição da equipe, o funcionamento interno, a dinâmica da equipe, o processo de tomada de decisão, os modos de comunicação, os problemas de identidade e de lealdade disciplinar etc. (Colet, 2002). A organização do trabalho não se resume unicamente à gestão do trabalho em equipe. Todo projeto interprofissional tem necessidade de um enquadramento. Por tal motivo, a dimensão pragmática se interessa também pela questão do reconhecimento dado ao projeto, podendo este se 143

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manifestar pela quantidade de recursos necessários à disposição do programa; da constituição de uma rede institucional de apoio; da institucionalização dos processos de trabalho, da valorização científica e social do projeto interdisciplinar etc. Em outras palavras, trata-se de compreender como o projeto é acolhido no contexto onde ele se insere. A implantação do projeto interprofissional é vista como pertinente? Os resultados obtidos são considerados aceitáveis? Estas são interrogações a serem feitas de forma a verificar o enquadramento institucional do projeto (Colet, 2002). O projeto interprofissional é expresso por meio da elaboração de uma síntese (Colet, 2002), considerada como a emergência de um saber integrado ou saber combinado e da colaboração entre os profissionais, que só são possíveis se a pessoa mobiliza afetos para permitir que seja possível a integração de saberes e a colaboração interprofissional. 4. A Comunidade de Prática enquanto teoria e dispositivo que contribui na afirmação de atitudes, conhecimentos e práticas voltadas à construção da interprofissionalidade na Atenção Primária à Saúde A pesquisa realizada mostrou serem complexas as relações interprofissionais na Estratégia Saúde da Família (ESF), havendo vários aspectos que influenciam e vêm oportunizando a construção de projetos interprofissionais no CSF estudado. Para efeito didático, sintetizamos os resultados deste estudo, no tocante às condições de possibilidades para a efetivação da interprofissionalidade na ESF, em três dimensões principais, a saber: organizacional, coletiva e subjetiva, sendo correlacionadas e sintetizadas na Figura 3. 144

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Figura 3 – Condições de possibilidade da interprofissionalidade na Atenção Primária à Saúde.

Fonte: Ellery (2012).

Na dimensão organizacional estão incluídos dispositivos e arranjos institucionais, suportes para as atividades interprofissionais, tais como: a estruturação de uma “Rede de Saúde – Escola”, transformando todas as unidades de saúde de um município em espaços de ensino, pesquisa e assistência (Barreto et al., 2006); a “Educação Permanente Interprofissional” (Ellery e Pontes, 2012) que contribui para ultrapassar a lógica da profissionalização ainda hegemônica na formação dos trabalhadores da saúde; e a “Abordagem Centrada na Família”, em contraposição à tendência de organizar os serviços de saúde com base em interesses corporativos. Além da dimensão organizacional, onde são incluídos dispositivos e arranjos institucionais, a viabilização da interprofissionalidade envolve também uma dimensão subjetiva, que não teremos tempo para explorar nessa apresentação. Vamos nos deter, então, à dimensão coletiva que favorece a interprofissionalidade. 145

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A dimensão coletiva compreende as formas como os profissionais se organizam no seu cotidiano profissional, como são seus processos de aprendizagem, como pactuam um projeto em comum, como lidam com os interesses divergentes e com o poder. A Teoria das Comunidades de Prática constitui-se na base desta dimensão coletiva. A Comunidade de Prática possui três elementos essenciais: a pactuação de um projeto em comum, o engajamento mútuo nele e o desenvolvimento de um repertório compartilhado. Figura 4 – As três dimensões de uma Comunidade de Prática

Fonte: Adaptada de Wenger (2009), por Ellery (2012).

O engajamento mútuo dos participantes constitui uma característica fundamental da prática, sendo uma fonte de consistência de uma comunidade. A prática não existe no abstrato, ela existe porque as pessoas se engajam nas ações e 146

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isto produz um significado para cada uma, sendo objeto de pactuação entre elas (Wenger, 2009). Uma Comunidade de Prática não é sinônimo de grupo, de equipe, nem se restringe a um conjunto de pessoas que possuem características comuns. A proximidade geográfica não é suficiente para criar uma prática em comum, embora possa favorecê-la, uma vez que o engajamento mútuo exige um mínimo de interação. Não é porque as pessoas trabalham num mesmo espaço físico que elas formam uma comunidade de prática. Esta ocorre quando os profissionais mantêm relações estreitas de engajamento mútuo, articulando-se no desenvolvimento de suas ações profissionais. O que permite um engajamento mútuo eficaz e produtivo não é mera função da homogeneidade, mas da diversidade das pessoas e das formas de engajamento. Faz-se necessário que os trabalhadores trabalhem juntos, conversem com frequência, troquem opiniões e saberes, havendo influência mútua na compreensão dos fenômenos e na ação cotidiana. No caso da Saúde da Família, portanto, não é suficiente que os profissionais trabalhem num mesmo Centro de Saúde da Família para formarem uma comunidade de prática. Necessário se faz a troca de conhecimentos e uma prática colaborativa para que a comunidade de prática de fato exista. Neste sentido, é que dizemos que a comunidade de prática favorece a interprofissionalidade, caracterizada pela integração de saberes e pela colaboração interprofissional, processos estes mediados pelos afetos (ELLERY, 2012). O engajamento mútuo da equipe oportuniza a aprendizagem, por meio da participação vivida numa comunidade, trazendo novos ensinamentos para os profissionais, podendo suprir defasagens no processo de formação, que, em geral, não prepara para o trabalho em colaboração. Algumas falas reforçam este processo de aprendizagem social, como esta, de um Agente Comunitário de Saúde: “Cada um traz 147

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uma aprendizagem diferente. A gente também adquire este conhecimento e passa a trabalhar melhor.” O engajamento mútuo fomenta processos de trabalho solidários, contribuindo para o desenvolvimento da corresponsabilidade sanitária com os usuários dos serviços de saúde. A segunda característica de uma comunidade de prática é a pactuação de um projeto em comum. Na pesquisa desenvolvida, observamos que as equipes da ESF estudadas, nos seus processos de trabalho, pactuam um projeto em comum, construído nas rodas de gestão das equipes, nas reuniões de apoio matricial entre equipes de serviços de saúde diferentes (Campos, 1999), nas visitas domiciliares, nos atendimentos comunitários e em outros diversos momentos informais compartilhados. Na ESF, a gente realmente trabalha em equipe, porque a gente senta toda semana, discute aquela família, aquele paciente, cada um com seu olhar, mas sempre com o cuidado de fazer um olhar integrado. (Psicóloga, residente)

À medida que o projeto terapêutico ou de intervenção é construído coletivamente, através da pactuação, implica numa determinada responsabilidade solidária entre os profissionais, contribuindo para a melhoria dos serviços de saúde. Os resultados alcançados com o trabalho de equipe vão incentivando os trabalhadores da saúde a continuar compartilhando e colaborando. O depoimento a seguir reforça a importância do trabalho pactuado: “Quando a gente pega um, dois, três casos que a gente vai trabalhando em equipe interprofissional, e a gente vê os resultados dos casos, não tem mais jeito de não fazer assim.” (Médica ESF) A necessidade da pactuação de um projeto em comum surge, sobretudo, do reconhecimento de haver diferentes 148

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motivações pessoais e profissionais no trabalho. Estas são naturais. O essencial é reconhecer sua existência, tirando do campo do não-dito as divergências, os interesses diferenciados, de forma a poder pactuar. Em uma Comunidade de Prática não existe ausência de conflitos. A teoria explora bastante este aspecto. A questão essencial é como vamos manejar e lidar com os mesmos. É preciso reconhecer que os conflitos existem e que são inerentes às relações humanas. Os depoimentos das equipes foram muito fortes em relação a reconhecer a existência dos conflitos, aprendendo a lidar com os mesmos: A gente sabe que trabalhar em grupo aparecem conflitos. A gente tenta da melhor maneira resolver. (...) Resolve através do consenso. Senta, conversa, cada um tem espaço para falar. E a consciência da gente ajuda muito. Trabalhar em equipe tem que estar bem. Conflitos a gente resolve assim, conversando. (Agente Comunitário de Saúde).

Em decorrência da necessidade de maior resolubilidade da atenção à saúde, as equipes da ESF reúnem-se semanalmente com profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para discutir casos (pessoa, família ou comunidade), previamente selecionados pelas equipes da ESF. No matriciamento ou apoio matricial (Campos, 1999), trabalhadores da atenção primária e dos CAPS, num processo compartilhado e interprofissional, desenvolvem propostas de intervenção pedagógico-terapêutica para os casos discutidos. Nas semanas posteriores, caso haja necessidade, é visto como está sendo implantado o projeto terapêutico, que alterações precisam ser processadas, num olhar ampliado sobre o processo saúde-enfermidade-intervenção, onde todos os profissionais da saúde têm contribuições a aportar. A construção coletiva de projetos terapêuticos facilita o engajamento mútuo dos profissionais integrantes das equipes da ESF, num processo de 149

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corresponsabilização: “a gente sempre está junto e trocando ideias. Eu acho que a gente trabalha em equipe bem próximo mesmo.” (Enfermeira da ESF). Mesmo sabendo que a pactuação de um projeto em comum não se faz somente por decisão de gestão, esta, contudo, tem uma importância fundamental, no tocante a compreender e acolher as demandas dos profissionais de maneira a serem disponibilizadas condições para os encontros entre os mesmos. Um projeto em comum não é desenvolvido sem que a equipe encontre espaços de partilha, de reflexão das situações-problema vivenciadas entre as diversas redes assistenciais de saúde. Há necessidade de serem estabelecidos horários na rotina do CSF, destinando tempo para as reuniões da equipe e estudos de casos entre os profissionais. O terceiro elemento presente numa equipe da ESF, quando esta se organiza como uma comunidade de prática, é o repertório compartilhado. Para que a comunicação entre os profissionais seja possível, a barreira da linguagem precisa ser transposta, através da decodificação e socialização de termos técnicos, das siglas, dos jargões profissionais. Os termos, gestos, rotinas, protocolos, enfim, os repertórios compartilhados são úteis não somente porque testemunham um engajamento mútuo dos profissionais na sua comunidade de prática, mas também porque eles podem ser utilizados em novas situações e socializados com outros profissionais que venham a integrar a equipe (Wenger, 2009). Cada elemento tem um significado bem preciso, que pode ser utilizado na formulação de novos protocolos, novas tecnologias a serem utilizadas na atuação profissional. Compartilhar repertórios implica também um esforço pessoal de cada profissional para estar no coletivo com condições de socializar saberes e práticas. Para tanto, além da abertura para partilhar competências, necessário se 150

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faz também um esforço de educação permanente por parte de cada trabalhador, de forma a poder contribuir com a discussão e resolução das questões emergentes. “Estudar um pouquinho também é importante, para ir para a discussão e estudo de casos mais seguro. Ter um apoio teórico, uma fundamentação teórica. Acho que também é importante”. (Psicóloga, residente) Neste estudo, vimos haver evidências da presença das três dimensões que caracterizam uma comunidade de prática (o engajamento mútuo, o projeto comum e um repertório partilhado) no cotidiano das equipes da ESF, considerando que o trabalho conjunto dos profissionais constitui-se em elemento-chave para a busca permanente de comunicação e troca de experiências e conhecimentos entre os integrantes da equipe da ESF. Para que a equipe se constitua numa comunidade de prática (CdP), é preciso, entre outras, a possibilidade do diálogo, da pactuação dos interesses nem sempre convergentes e centrados nos usuários. Embora a prática seja lugar privilegiado de aprendizagem, torna-se imprescindível a garantia de espaços na dinâmica do trabalho para a reflexão sobre o cotidiano profissional e o processo de pactuação. Isto porque a prática envolve experiências positivas, animadoras, mas também traz momentos de conflitos, geradores de sofrimento. Se estes não forem adequadamente trabalhados entre os membros de uma CdP, podem surgir bloqueios, contribuindo para que muitos participantes se fechem para o processo coletivo. 5. Considerações Finais Com base na teoria da Comunidade de Prática e dos estudos que tratam da implementação destas nas organizações, consideramos haver potencial nas equipes da ESF para a 151

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aprendizagem na prática, possibilitando uma nova forma de trabalho e de interação dos profissionais, que possibilitem a colaboração entre eles, a despeito dos conflitos e divergências inerentes às relações humanas. Assim, existem evidências de haver numa equipe da ESF a possibilidade desta se constituir numa comunidade de prática, onde exista aprendizagem social. Nestes espaços de construção de novas práticas e saberes, nascidas da integração de saberes disciplinares e da colaboração entre os trabalhadores, pode ser gestado um projeto interprofissional, a despeito dos obstáculos para a sua efetivação. Em se adotando a concepção da aprendizagem social em comunidades de prática, mesmo que os profissionais tenham sido formados hegemonicamente para atuações disciplinares, para afirmação de seu espaço profissional e status social (Furtado, 2007, 2009), pela Teoria Social da Aprendizagem, há evidências de ser possível a reversão desta tendência entre os profissionais. O diferencial de uma CdP não é a harmonia nem a ausência de conflitos, mas a capacidade dos profissionais de reconhecer a existência dos mesmos, naturais em um espaço democrático, e de lidar com eles. O diferencial não é, ainda, a abundância de recursos materiais. Na experiência estudada, encontramos dificuldades diversas em termos materiais, de estrutura, de recursos humanos, comuns em grande parte dos Centros de Saúde dessa ou de outras cidades, sendo o diferencial a capacidade de organizar-se para enfrentar dificuldades em conjunto, mobilizando atores sociais diversos, impulsionados pela inquietação criativa de residentes e estudantes. O diferencial também não é a uniformidade, mas o respeito à diversidade aliada ao exercício da pactuação de interesses e objetivos nem sempre convergentes. 152

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Nossos estudos mostraram que, apesar dos profissionais de saúde terem sido formados hegemonicamente na lógica da profissionalização (para reservar saberes, práticas e poder), a vivência nessa equipe de trabalho, organizada como uma Comunidade de Prática, favorece a construção de projetos interprofissionais. Não é porque determinado profissional foi formado em uma lógica, que ele terá que ficar desta forma, engessado, até o final de sua vida profissional. Então, esse trabalhador, dentro desse ambiente de “Rede-Escola” (Barreto et al., 2006; Ellery et al., 2010) e organizados na perspectiva de uma Comunidade de Prática, vai poder questionar e reverter esta lógica da profissionalização, abrindo-se gradativamente para a colaboração interprofissional. Este processo, contudo, é permeado de conflitos e de contradições, pois os profissionais estarão sempre vivenciando a contradição entre reservar poder e saber (lógica da profissionalização) e a necessidade imperiosa de colaborar com os colegas da mesma profissão e com os de categorias profissionais diferentes. Contudo, num ambiente de trabalho onde sejam fomentados o diálogo, a pactuação, o compartilhamento de repertórios, estas contradições serão mais bem trabalhadas, favorecendo assim o desenvolvimento de projetos interprofissionais. Nossas pesquisas sugerem que o fortalecimento das comunidades de prática, que se formam naturalmente na saúde, como também em outros setores de trabalhos, cria um ambiente favorável à construção de projetos interprofissionais. Assim, podemos dizer que a vivência numa comunidade de prática mobiliza os profissionais para a integração de saberes e a colaboração interprofissional, marcas da interprofissionalidade.

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Balanço das contribuições e limites atribuídos às Comunidades de Prática (CPS) na área da saúde2 Por Sonia Rioux, doutoranda2 e Profa. Dra.Cecília Borges3 Tradução: Ana Ecilda Lima Ellery

1. Introdução Agradecendo pelo honroso convite em participar deste evento, gostaria de iniciar tecendo algumas considerações sobre o título desta apresentação. Trata-se de um balanço sobre os avanços e limites que são atribuídos às Comunidades de Prática interprofissionais no campo da saúde. Antes, porém, me parece importante destacar ao menos três razões que, de certa maneira, explicam o interesse crescente pelas Comunidades de Prática no campo da saúde. Como sabemos, os serviços de saúde são marcados por uma complexidade atribuída à velocidade do desenvolvimento dos conhecimentos. Referida complexidade deve-se, ainda, à própria complexidade das organizações que prestam cuidados no campo da saúde (OMS, 2002; plsek e Wilson, 2001; Plsek e Greenhalgh, 2001). Estas são caracterizadas por intervenções muito especializadas, o que contribui para a fragmentação dos cuidados. Por outro lado, há um aumento Este artigo é oriundo da conferência intitulada Avaliação das contribuições e limites atribuídos às Comunidades de Prática na área da Saúde, realizada durante o Seminário Internacional sobre Comunidades de Prática e saúde, maio 2012. 3 Universidade de Montreal, Centro de pesquisa interuniversitário sobre a formação e a profissão docente. 2

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contínuo da incidência e da prevalência de doenças crônicas, em todos os países ocidentais (Murray, Lopez e Jamison, 1994; Murray e Lopez, 1997a, 1997b). As doenças crônicas requerem cuidados complexos e diversificados, por serem condições de saúde persistentes e exigirem o envolvimento de mais de um profissional da saúde para os cuidados de um mesmo paciente. Diante disto, os serviços de saúde precisam se adaptar a essa complexidade, que requer uma mudança de paradigma baseado na colaboração interprofissional (Molleman, Broekhuis, Stoffels e Jaspers, 2008). Esta mudança paradigmática requer uma atitude de abertura entre os trabalhadores da saúde, uma atitude que busca realmente compartilhar, pôr em comum os conhecimentos relativos à atenção e aos cuidados. É nessa perspectiva justamente que as Comunidades de Prática representam uma forma de colaboração interprofissional valorizada no campo da saúde (Couturier e Chouinard, 2006; Couturier, Gagnon, Carrier e Etheridge, 2008; Klein, 2008; D’Amour, Ferrada-Videla, San Martin-Rodriguez e Beaulieu, 2005; D’Amour, Goulet, Labadie, San Martín-Rodriguez e Pineault, 2008; Davoli e Fine, 2004; Soubhi, 2007). Outro argumento que trazemos à tona e que tem relação com o tema global dessa mesa, é que as Comunidades de Prática realmente parecem favorecer a gestão do conhecimento. E nesse sentido, há um esforço crescente no sentido de implantar a gestão do conhecimento no campo da saúde que se ancora numa política de cuidados baseados em evidências e preconizam a aplicação dos saberes oriundos das pesquisas na área (conhecimentos explícitos resultantes das pesquisas). Na verdade, os resultados das pesquisas oferecem diretrizes ou protocolos que são muito valorizados pela gestão ou pelos administradores. Existem, entretanto, autores que se dizem 155

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surpresos que tal processo linear e racionalista de aquisição dos conhecimentos seja valorizado. Isto porque a realidade faz com que os trabalhadores baseiem as evidências em suas próprias condutas e pensamento pessoal, os quais são apoiados na experiência (conhecimentos tácitos), mais do que na pesquisa. Nessa perspectiva é que as Comunidades de Prática são percebidas como uma forma de valorização e de contribuição para a união desses dois tipos de conhecimentos: explícitos e tácitos (Li, Grimshaw, Nielsen, Judd, Coyte e Graham, 2009a; Fung-Kee-Fung Goubanova, Sequeira, Abdulla, Cook, Crossley et al., 2008; Gabbay e le May, 2004). Assim, a abordagem de gestão do conhecimento presente nas Comunidades de Prática liga os conhecimentos baseados em evidências científicas e na experiência, fazendo uma fusão destas duas linhas de pensamento. Passando então ao balanço crítico sobre as comunidades de prática, apresentaremos, inicialmente, os avanços ou contribuições destas ao campo da saúde. Em seguida, abordaremos seus limites ou os fatores que freiam a sua emergência, desenvolvimento e longevidade no campo da saúde e, com isso, concluímos nossa exposição. 2. As Comunidades de Prática: um balanço crítico Todo esse interesse pelas Comunidades de Prática no campo da saúde, como mencionamos anteriormente, suscita ao mesmo tempo a necessidade de se fazer um balanço crítico sobre as experiências que se inspiram desta abordagem. Como se operacionalizam as Comunidades de Prática no quotidiano das organizações de cuidado e de atendimento no campo da saúde? Quais fatores limitam ou contribuem para o seu 156

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desenvolvimento? Quais avanços são identificados em relação à implantação de Comunidades de Prática? Enfim, o que dizem as pesquisas a esse respeito? Com base nas pesquisas sobre as experiências de Comunidades de Prática levadas a cabo no setor ou campo da saúde, passo então a apresentar um balanço dos seus avanços e limites. Minha exposição está alicerçada principalmente em dois estudos: um realizado em 2009 (Li, Grimshaw, Nielsen, Judd, Coyte e Graham, 2009b), onde foi feita a análise de treze experiências de Comunidades de Prática no setor da saúde; o segundo estudo, de Greenfield, Travaglia, Nugus e Braithwaite (2007), analisa a experiência de 79 Comunidades de Prática, sendo a maioria delas também no campo da saúde. Além destes dois pesquisadores referidos em minha exposição, complemento este balanço com outros estudos realizados entre os anos de 2000 a 2009 (Li et al., 2009a; Fung-Kee-Fung et al., 2008; Mendes et al., 2008; Cox, 2005; Tsai, 2005; Gabbay, May, Jefferson, Webb, Lovelock, Powell et al., 2003; Éraut, 2002 e Cope, 2000). 2.1. Avanços e contribuições das Comunidades de Prática no campo da saúde Dos estudos referidos, algumas constatações ou alguns temas de interesse emergem da análise deles, quais sejam: a) A contribuição das Comunidades de Prática sobre o desenvolvimento profissional e sobre os cuidados prestados; b) O processo de aprendizagem numa Comunidade de Prática; c) O impacto das tecnologias sobre uma Comunidade de Prática; e d) A responsabilidade dos facilitadores. 157

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Evidentemente, é importante salientar que estes são os principais temas abordados, embora existam outros, estes são os que se sobressaem a partir da análise das experiências trazidas pela literatura. Nesse sentido, considerando a documentação consultada e mais particularmente de acordo com o estudo realizado por Li et al. (2009b), nota-se que uma das principais contribuições das Comunidades de Prática sobre o desenvolvimento profissional e sobre os cuidados prestados é o compartilhamento das informações entre os profissionais e a aprendizagem através da socialização, os quais têm um impacto significativo sobre a melhoria dos serviços prestados em termos de cuidados aos pacientes com doenças crônicas. A análise do estudo desenvolvido por Greenfield et al. (2007) também coloca em evidência a importância da dimensão social da aprendizagem, que está ancorada na ação prática e no compartilhamento (de conhecimentos, de experiências e de práticas) entre os profissionais. Ambos constituem dois elementos essenciais ao desenvolvimento dos conhecimentos profissionais e da identidade profissional e pessoal. O que remete a uma volta à prática, a um ajuste permanente, enfim, a uma prática compartilhada significativa. As pesquisas revelam também que, à geometria variável, as Comunidades de Prática, trazem os seguintes benefícios: a interação social, o compartilhamento e a criação/produção de conhecimentos e o desenvolvimento de uma identidade pessoal e profissional. Então, segundo Li et al. (2009b), quanto mais a Comunidade de Prática está madura, mais ela consegue sistematizar e produzir conhecimentos e desenvolver a identidade pessoal-profissional dos participantes. Por outro lado, comunidades de prática mais recentes se centram, princi158

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palmente, sobre a interação social e sobre o compartilhamento dos conhecimentos. A figura 1 sintetiza o desenvolvimento das Comunidades de Prática. Contudo, muito raramente, a criação/produção de conhecimentos está no centro das Comunidades de Prática levadas a cabo no âmbito de uma formação clínica em contexto e com vistas à aprendizagem. Isto porque o objetivo da Comunidade de Prática está alicerçado sobre aprendizado de noções existentes e sobre a aquisição dos conhecimentos, assim como sobre o desenvolvimento da identidade profissional de estudantes. Figura 1 – Dinâmica de desenvolvimento das Comunidades de Prática INÍCIO MATURIDADE Ferramentas de gestão dos conhecimentos • Desenvolvimento profissional contínuo • Melhoria na qualidade do cuidado



Formação clínica em contexto

Aprendizagem 159

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As Comunidades de Prática, centradas sobre o compartilhamento e também sobre a criação/produção de conhecimentos, todavia, se impõem como uma fórmula de gestão de desenvolvimento profissional contínuo e de melhoria da qualidade dos serviços de saúde, que aliás é o tema da nossa palestra. Com relação ao processo de aprendizagem no âmbito de uma comunidade de prática, tem-se que as Comunidades de prática contribuem para um processo de aprendizagem ativa. Isto é, de acordo com a revisão de literatura realizada por Greenfield et al. (2007), as Comunidades de Prática são favoráveis à aprendizagem ativa e não passiva, o que está fortemente vinculado às interações, ao compartilhamento entre os pares das diretrizes ou protocolos (guidelines), oriundos de resultados comprovados de pesquisa, e as evidências, oriundas do pensamento e da experiência dos próprios profissionais (mindlines), assim como à reflexão partilhada. Esta última vinculada à coordenação, ao tempo e ao espaço que são necessários a esse compartilhamento. As pesquisas demonstram, ainda, que a tecnologia tem um impacto muito importante sobre as Comunidades de Prática. Segundo Greenfield et al. (2007), a contribuição da tecnologia é uma temática importante na análise das Comunidades de Prática. As observações mostram que os programas de aprendizagem oferecidos na web favorecem aos profissionais de saúde, dos estudantes e pacientes, uma vez que as Comunidades de Prática podem transferir assim como fazer circular mais facilmente os conhecimentos explícitos e até os tácitos. Naturalmente, isto depende do modelo ou design pedagógico escolhido, sendo necessário saber por esse motivo 160

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se isso responde verdadeiramente às necessidades de conteúdos dos participantes durante o seu processo. Além disso, outra vantagem da tecnologia é que os profissionais, que se encontram dispersos fisicamente, podem se conectar virtualmente. As comunidades de prática oferecem assim oportunidades de interações virtuais entre os membros, o que contribui para a sua aprendizagem e também para o seu crescimento profissional e pessoal. Enfim, as Comunidades de Prática virtuais favorecem tanto a aprendizagem dos profissionais e dos estudantes, quanto a dos clientes, que neste caso são os pacientes. Implicar tanto os pacientes, quanto os estudantes e os profissionais participantes na comunidade virtual é visto como um dos pontos fortes do aporte da tecnologia para as Comunidades de Prática no âmbito da saúde. Por outro lado, existem também limitações. Os estudos sobre as comunidades de prática revelam que a introdução das tecnologias trazem muitos desafios aos participantes, sendo as dificuldades de ordem prática as mais importantes (Greenfield et al., 2007), quais sejam: • Falta de tempo para se dedicar à comunidade virtual e às tecnologias apropriadas. Isto é, faz-se necessário se disponibilizar um tempo para participar das comunidades de prática no próprio ambiente de trabalho, que é o momento ideal para participar de uma Comunidade de Prática virtual e não necessariamente quando os profissionais voltam para casa depois de um longo dia de trabalho; • Acesso às tecnologias apropriadas para interação e trocas nos lugares de trabalho; • A distância entre os membros participantes. Ou seja, a distância dificulta a interação favorável ao desenvol161

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vimento da confiança e de uma identidade valorizada (individual e de grupo). Entre as dificuldades, nota-se também a própria relação entre os membros, isto é, desenvolver, à distância, uma interação que promova o estabelecimento de um relacionamento de proximidade e a própria confiança entre os participantes torna-se um grande desafio. Especialmente se consideramos que estes aspectos estão na base do desenvolvimento de uma identidade pessoal e da identidade do grupo formado virtualmente. Enfim, diante destes desafios advindos da tecnologia numa Comunidade de Prática, volto à argumentação de Wenger (1998) que observava que a tecnologia traz exigências que podem reduzir a participação dos membros da comunidade em certas situações complexas e significativas. Outra temática relevante presente na literatura sobre as Comunidades de Prática refere-se à importância dos facilitadores. Alguns autores como Li et al. (2009b) associam o sucesso e o fracasso das Comunidades de Prática ao papel dos facilitadores. Segundo eles, a melhoria das equipes de cuidados primários está ligada a uma liderança forte, com objetivos claros e a uma retroação regular dos progressos da equipe pelos facilitadores. Nesse sentido, a escolha da estrutura da gestão das Comunidades de Prática, isto é, de um facilitador e de um líder, que podem ser a mesma pessoa ou duas pessoas distintas, ou somente um dos dois papéis, parece depender do tamanho do grupo e da disponibilidade de recursos humanos. Várias experiências valorizam a assistência de um coordenador da comunidade, cujo papel central por vezes se aproxima daquele do facilitador. Este pode apoiar a prática reflexiva e ajudar o desenvolvimento de uma linguagem comum e 162

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estimular a participação ativa dos profissionais, dos pacientes e de seus familiares. Alguns autores valorizam também a presença de um “informador colaborador”, que pode ajudar os membros a identificar os saberes a serem buscados na literatura, considerando terem eles maior conhecimento e tempo disponível para empreender buscas na internet de novos saberes e práticas, sintetizando-os para os participantes. Essas diferentes figuras podem também ajudar a facilitar o processo de aprendizagem partilhado entre profissionais de diferentes especialidades no âmbito de uma Comunidades de Prática Interprofissional. Passemos então à análise de alguns limites ou barreiras ao desenvolvimento de Comunidades de Prática no campo da saúde. 2.2 Limites das Comunidades de Prática no campo da saúde Em relação às barreiras e limites das comunidades de prática no campo da saúde, alguns dos elementos principais que emergem da documentação consultada são: a) A porosidade ou falta de precisão conceitual da teorização sobre as Comunidades de Prática. Isto é, vários conceitos se apresentam distorcidos ou inexatos. b) O atual ambiente de trabalho nas organizações de atendimento e de cuidado no âmbito da saúde, que não é muito propício ao desenvolvimento das Comunidades de Prática; c) A dinâmica de poder entre os participantes inerente às Comunidades de Prática; d) A construção da confiança entre os participantes; e) A resistência às mudanças dos participantes e dos gestores; f ) Enfim, o investimento financeiro necessário para sustentar as Comunidades de Prática. 163

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Vejamos, então, como cada um desses pontos são abordados na documentação consultada. Os autores que tratam do conceito de Comunidades de Prática são numerosos ao constatar a porosidade conceitual do termo Comunidade de Prática. Há também uma dificuldade em diferenciar esta forma de trabalho subjacente às Comunidades de Prática de outras fórmulas que são mais próximas e que aparecem frequentemente na literatura. Como enfatiza Greenfield et al. (2007), a literatura faz referência a muitos conceitos que se aproximam daquele da Comunidade de Prática, os quais têm em comum a preocupação em explicar como a aprendizagem se desenvolve através de uma prática colaborativa, e como essas aprendizagens e conhecimentos produzidos vêm a melhorar a prática. Todavia, esse conceitos não podem se resumir a um mesmo denominador comum. Li et al. (2009b) vão mais além. Eles estimam que, frequentemente, não é muito evidente distinguir as Comunidades de Prática das outras comunidades ou estruturas de grupo. Ainda que Wenger (2005) tenha tentado circunscrever as Comunidades de Prática através da identificação de três dimensões do processo de interação, que são indicadores ou elementos constitutivos das Comunidades de Prática: o projeto pactuado em comum, o engajamento mútuo e o repertório compartilhado. Cox (2005), por sua vez, estima que Wenger (2005) fornece uma gama de conceitos relativamente bem definidos (notadamente as três dimensões acima citadas e os doze indicadores que ajudam a identificar o sentido de cada uma delas), todavia, estes conceitos são seguidamente usados fazendo referência a outras formas de estruturas grupais, pertencentes a outros quadros conceituais e teóricos. Resumindo, segundo os autores consultados, as fórmulas ou modalidades mais confundidas são: Comunidades, 164

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Comunidades de Aprendizes, Comunidades de Aprendizagem, Comunidade de Práticas, Organização de Aprendizes. Destaco, ainda, a existência de Comunidades ditas Epistêmicas. Considerando o espaço de que disponho no âmbito deste artigo, não apresentarei cada um dos diversos conceitos mencionados, porque estes são muito densos e não dizem respeito somente a uma questão de terminologia, mas à própria base teórica sobre a qual eles se apoiam. Contudo, gostaria de destacar a presença de atividades coletivas e o registro do compartilhamento ao longo do processo de aprendizagem como um elemento caracterizando a estrutura de grupo. Processo este que se dá em um continuum que vai da coordenação, passando pela cooperação, até a colaboração, as quais se impõem como variáveis determinantes que distinguem cada um dos formatos mencionados em relação às Comunidades de Prática, tal como mostra a figura 2, abaixo. Figura 2 – As atividades coletivas nas Comunidades de Prática e em outras comunidades

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Como se pode notar, as comunidades, em um sentido amplo, permitem a coordenação, a cooperação, em qualquer que seja o campo de ação no qual elas emergem. A Comunidade de Aprendizagem, no entanto, é a única que dá lugar à cooperação, ao menos no campo da educação. Já a Comunidade de Prática, a Organização de Aprendizagem e a Comunidade Epistêmica, concebidas na origem no campo da gestão e aplicadas por conseguinte ao campo da saúde, assim como a Comunidade de aprendizagem associada ao campo da educação, essencialmente são fórmulas que permitem a emergência da colaboração. Em síntese, considerando-se o campo de aplicação e sua potencial colaboração, a Comunidade de Prática e a Organização de aprendizagem são duas modalidades colaborativas aplicáveis quando se trata da prática de atendimento e cuidados das doenças crônicas. Quanto à Comunidade Epistêmica, esta parece menos adaptada à prática desejada quando se trata de doenças crônicas, pois esta valoriza a unidisciplinaridade, ou seja, a presença de um único grupo disciplinar na comunidade. Retomando nossa apresentação sobre limites e barreiras às Comunidades de Prática, outro fator importante a considerar é o atual ambiente de trabalho nas organizações de atendimento e de cuidado no âmbito da saúde que não parece muito propício ao desenvolvimento das Comunidades de Prática. Isto é, no atual ambiente de trabalho, identificamos várias barreiras para o desenvolvimento e para a longevidade das Comunidades de Prática. O individualismo dominante nas organizações não proporciona o desenvolvimento de um ambiente coletivo, a gestão do tempo “apertado e curto” e a instabilidade das equipes (rotatividade do pessoal) não favorece nem a emergência nem o desenvolvimento das Comunidades de Prática. 166

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Outro aspecto a ser analisado diz respeito às relações de poder nas Comunidades de Prática no campo da saúde, e como elas determinam o desenvolvimento das competências e da prática reflexiva e também o recurso à autoridade e à participação como tal (Greenfield et al., 2007). Nesse sentido, os três principais desafios que vêm das análises consultadas é: • o poder detido e mantido pelos membros que são mais engajados e que participam plenamente do processo e que possuem os conhecimentos, ou são considerados peritos no assunto (Roberts, 2006) • a forma insidiosa de controle na negociação de sentido e significado das ações, que nem sempre é harmoniosa em uma Comunidades de Prática, como nos fala Wenger (Cox, 2005), • e a estrutura hierárquica de poder no setor da saúde como modo de controle da informação (Li et al., 2009b; Gabbay et al., 2003). As pesquisas mostram, ainda, que as pessoas querem se engajar no diálogo, no compartilhamento de informação e na construção de sentido e significado com as pessoas que elesem quem confiam. Nessa perspectiva, as Comunidades de Prática, como organizações de aprendizagem social, são percebidas como fórmulas propícias a relação interpessoal favorável à confiança mútua, que necessita do compartilhamento de conhecimentos tácitos e explícitos. Nessa perspectiva, os autores insistem sobre a importância da complementaridade dos papéis profissionais, o que contribui para o desenvolvimento da confiança mútua possível, que constitui um outro desafio para a emergência, desenvolvimento e duração das Comunidades de Prática. Daí a importância de que uma pessoa assuma o papel de facilitador para favorecer a confiança no 167

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meio ambiente, papel este referido por Greenfield et al. (2007). Nessa mesma direção, McKeon Oswaks, e Cunningham (2006) prosseguem a discussão, com a ideia de que é por meio da interdependência, fundamental à colaboração, e da confiança, que é um pré-requisito para as Comunidades de Prática, que os clínicos vão criar um modelo mental partilhado em seu quadro de trabalho ou de prática. Ainda no que diz respeito às relações de confiança, Greenfield et al. (2007) mencionam que estas são seguidamente associadas à coesão, mais facilmente percebida em pequenos grupos, pois são mais propícios à identificação dos interesses conjuntos em relação aos pacientes, além de serem melhores adaptados às discussões e análises de casos. Enfim, Roberts (2006) estima que a relação de confiança entre os membros e os administradores de uma organização contribuem para o sucesso das Comunidades de Práticas e requerem, ao mesmo tempo, uma ausência de controle hierárquico. Por outro lado, a resistência às mudanças presente nas organizações de saúde pode perturbar o funcionamento de uma Comunidade de Prática. Greenfield et al. (2007) menciona que uma mudança organizacional, por exemplo, uma nova política ou uma reestruturação de um serviço, pode afetar a Comunidade de Prática. Esse tipo de mudança pode perturbar e ter efeitos nefastos sobre a oferta de serviços assim como sobre as identidades profissionais dos trabalhadores. E isto vai no mesmo sentido do que diz Eraut (2002) que observa que as Comunidades de Prática são sistemas que rapidamente sofrem de erosão em consequência das mudanças nas práticas das organizações. Sobre este aspecto, Wenger (1998) destaca que a Comunidade de Prática favorece a negociação de sentido entre 168

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seus membros, como também favorece o desenvolvimento e a mudança da postura cognitiva dos seus membros e, por fim, da própria organização. Roberts (2006), todavia, evoca noção de habitus (no sentido Bourdieuniano do termo), a fim de demonstrar que as predisposições às mudanças nas Comunidades de Prática não são garantidas. E a partir desse fato, a evolução do grupo também não é garantida. O conceito de habitus de Bourdieu, segundo Roberts (2006), se refere aos modos de pensar, adquiridos inconscientemente, que são resistentes às mudanças e que se aplicam a diferentes contextos. Assim como são as Comunidades de Prática: resistentes às mudanças e se aplicam em diferentes contextos. Com o tempo, ainda segundo Roberts (2006), as Comunidades de Prática desenvolvem preferências e predisposições que vão influenciar sua capacidade de criação e de adquirir novos conhecimentos. Elas podem, então, tornarem-se estáticas, em termos de conhecimento e resistentes à mudança. Por fim, e com isto concluímos este balanço crítico, um último ponto a mencionar que pode frear o desenvolvimento de uma Comunidade de Prática diz respeito aos investimentos financeiros. Sobre este ponto, vários autores são unânimes ao mencionar que as Comunidades de Prática necessitam investimentos financeiros das organizações as quais, em decorrência, serão bonificadas pelas Comunidades de Prática. Assim, por tudo o que requerem e também pela contribuição que elas trazem, não há dúvidas de que, em se tratando de Comunidades de Prática e de serviços de atendimento e de cuidados no âmbito da Saúde, investimentos financeiros são necessários, seja em termos de tempo, de tecnologia ou do próprio pessoal. É certo que requerem investimentos financeiros importantes. 169

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A ausência de investimentos financeiros por parte das organizações pode vir a frear o funcionamento das Comunidades de Prática. O que, de certa forma, é lamentável já que as Comunidades de Prática parecem ser um modo de colaboração interprofissional que valoriza sobremaneira a gestão de conhecimento, de forma a haver fusão entre as evidências científicas e as experiências práticas, de modo a beneficiar o paciente e os serviços de atendimento e cuidado no âmbito da saúde.

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Este livro foi impresso pela Gráfica Expressão Gráfica, em Abril de 2015, na cidade de Fortaleza, CE. As fontes utilizadas foram: Adobe Garamond Pro. O papel do miolo é Offset 75g e o da capa, Cartão 250g, com laminação fosca.

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