COMUNIDADES E PERSONALIDADES JUDAICAS AO SERVIÇO E SOB PROTEÇÃO DA FAMÍLIA REAL

May 26, 2017 | Autor: M. Santos Silva | Categoria: Medieval History, Medieval Studies, Iberian Studies, Medieval Iberian History
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P R AÇ A V E L H A Revista Cultural da Cidade da Guarda

Nº 36 | 2016

EDITORIAL

Chegados ao número 36 da publicação da revista Praça Velha, e após 19 anos de trabalho editorial desenvolvido, verificamos que a revista tem cumprido os objetivos para os quais foi criada: divulgação dos trabalhos de investigação sobre a região, nas mais diversas áreas, bem como da criação literária; e também de promoção do nosso património cultural e natural, através dos olhares de fotógrafos convidados. A revista possui uma estrutura de conteúdos que se tem mantido ao longo dos anos: Bloco Temático; Património e História; Portfólio; Grande Entrevista; Poesia, Contos e Meditações; Recensões e Súmula. Na presente edição, no bloco temático o leitor encontra as oito comunicações proferidas em 2015, no âmbito das comemorações do 816º Aniversário da Cidade da Guarda, no colóquio Diálogos e Conflitos. Relações entre Cristãos e Judeus na Idade Média. Considerada uma das mais ricas culturalmente, a região entre a Beira Interior e a província de Salamanca detém um património ímpar, em qualquer das vertentes consideradas, desde o natural ao construído, do geográfico ao cultural, proporcionando paisagens plenas de História e Tradições. Desta forma, a revista surge também como um elemento de divulgação e reconhecimento da herança judaica, nos domínios cultural, artístico e social. Mas este número apresenta também oito artigos de investigação, nas mais diversas áreas, centrando o seu olhar sobre a região da Guarda. A Grande Entrevista foi organizada e conduzida pela Professora Maria Antonieta Garcia que, de forma perspicaz e motivadora, entrevistou o Rabino da comunidade de Belmonte, Elisha Salas. A inclusão deste testemunho constitui um elemento de destaque na história de uma região, na História de um povo. Não podemos deixar de salientar os Contos e Meditações, bem como o Portfólio, com interessantes imagens do fotógrafo Alexandre Costa.

Felicitamos e agradecemos a todos os que participaram, com empenho e profissionalismo, neste número da Praça Velha, depositando na revista as suas ideias, teorias, trabalhos, e permitindo constituir um documento que a todos dignifica. Um documento memória que se transporta para o futuro. A todos o nosso mais profundo agradecimento, em nome da Guarda.   Victor Manuel dos Santos Amaral (Vereador da Cultura da Câmara Municipal da Guarda)

NOTA INTRODUTÓRIA

O colóquio Diálogos e Conflitos. Relações entre Cristãos e Judeus na Idade Média, realizado no âmbito das Conferências da Guarda, organizadas pelo Município em Novembro de 2015, representou um importante passo no avanço da história da presença judaica na região da Guarda e no país e das interacções destas comunidades com a maioria cristã. Abordagens pautadas pelo carácter científico permitiram o conhecimento de novos dados relativos à vivência judaica em Portugal, para além de comprovativos, aclarações e sínteses de grande pertinência e utilidade, não só para os especialistas como para um público mais lato, de interessados nestas matérias. A publicação, na Praça Velha, do conjunto dos estudos apresentados, falará por si e cumprirá as desejáveis consagração escrita e larga difusão dessas interessantes descobertas e interpretações. É de louvar a iniciativa do Município da Guarda, tanto no plano da organização do colóquio como da atempada concretização da edição dos textos, prestando um tributo importante à causa cultural da cidade. A riqueza histórica, arqueológica, artística e arquitectónica da Guarda – da urbe e da vasta região da diocese medieval –, reconhecida pelos investigadores, tem merecido alguma atenção mas está longe do investimento de pesquisa e de valorização que a real dimensão do seu valor justifica. Que ele se veja incrementado nos próximos anos, seja por iniciativa pública ou privada, seja como resultado de uma comunhão de esforços e de vontades, juntando especialistas, autarcas, organismos estatais, mecenas e cidadãos comuns. Percorramos brevemente os oito estudos aqui publicados, no intuito de estimular o apetite do leitor. José Hinojosa Montalvo, com uma síntese sobre as relações entre judeus e cristãos na Idade Média peninsular, fornece-nos uma perspectiva geral muito completa, colocando a tónica na variedade dessas relações e nos distintos matizes que assumiram ao longo do tempo nos diversos espaços e contextos. Nega que tenha havido lugar a uma verdadeira integração da sociedade hebraica na cristã mas também não reconhece uma oposição estrutural entre elas. No quadro ideológico e religioso, sobretudo desde o Concílio de Latrão, mostra como as recomendações eram para evitar os contactos entre judeus e cristãos, que no entanto, no plano profissional e nalguns círculos da coroa, se verificavam efectivos e profícuos. Segundo o autor, o predomínio judaico nas práticas financeiras,

nomeadamente a usura, contribuiu de sobremaneira para reforçar o antijudaísmo. Por outro lado, apresenta múltiplas situações, nos planos mercantil, artesanal, das práticas médicas, entre outros, em que a aproximação era real. Reconhece Hinojosa Montalvo que entre a normativa legal e a realidade se verificava uma distância e que a segregação nunca foi completa, tendo existido ocasiões de verdadeira partilha. Porém, admitindo as transferências, as influências, a coexistência tantas vezes pacífica, coloca em causa o reconhecimento de efectivas tolerância e convivência entre as duas comunidades. Maria Filomena Lopes de Barros, na sua abordagem aos judeus, cristãos e muçulmanos no Período Medieval, faz o contraponto entre as minorias em época islâmica e em época medieval cristã e assinala a disseminação dos judeus por todo o Portugal, com incremento notório no séc. XV, ao invés da minoria muçulmana, que se cingia essencialmente ao sul do Tejo. Sublinha que a construção da lei canónica e das leis do reino se fez em função de uma identidade cristã que definia barreiras em relação ao “outro”, uma legislação que marcava a superioridade cristã e determinava a separação das minorias. Por outro lado, demonstra como a normativa foi tantas vezes subvertida pela prática quotidiana. Admite que neste processo de construção da res publica christiana, sob a égide do papado, participou toda a sociedade, incluindo as próprias minorias. Da segregação das minorias, que reconhece ser bem visível no espaço público, regulando comportamentos, indumentária e a localização dos bairros, Filomena Barros fornece-nos amplos e elucidativos exemplos recolhidos em fontes dos séculos XIII a XV. Manuela Santos Silva centra-se na análise da relação do rei com os judeus, os seus judeus, através de ampla documentação, de que destaca as Chancelarias Régias e a as emanações de D. Afonso IV. Ao falar-nos sobre as comunidades e personalidades judaicas ao serviço e sob protecção da família real, lembra as muitas referências documentais que atestam recompensas régias aos judeus, por serviços como ourives, alfaiates, sapateiros, físicos, astrólogos e trovadores, entre outros . O acolhimento na corte e o acesso à privacidade do monarca, por vezes com valências de assessoria e gestão do tesouro, ter-se-á, segundo a autora, prolongado por todo o século XV. Sobre o arrabiado, refere-se particularmente aos registos do tempo de D. João I e aos privilégios concedidos, que chegaram a incluir o poder trazer “cadea e sello” e, por vezes, ter séquito, como os cavaleiros cristãos. De novo é sublinhado o constante incumprimento das normas legais, prevalecendo as leis do monarca, que se assumia como o protector dos judeus e deles recebia avultados contributos financeiros. Luís Afonso, para o mundo artístico, não deixa de enfatizar os pontos de contacto entre as duas culturas, sobretudo nos planos científico, intelectual e simbólico, particularmente dentro de um mesmo estatuto social – o da elite da época. Apresenta exemplos de inesperadas interacções entre judeus e cristãos na segunda metade do século XV, na arquitectura e na iluminura. O percurso é feito pela sinagoga ou sala de oração de

Castelo de Vide e e pela sinagoga de Tomar, mostrando, entre outros detalhes artísticos, a linguagem tardo-gótica, de grande sobriedade, do hekhal e das janelas da primeira, aspectos também presentes na segunda, onde constata a reintrodução precoce das ordens clássicas. De facto, o autor valoriza a aproximação destes edifícios a modelos e práticas da arquitectura cristã da época e acusa o afastamento da tradicional linha mudéjar. Prossegue com exemplos desta afinidade artística entre as iluminuras produzidas de um e de outro lado, com destaque para as produções sefarditas da chamada “Escola de Lisboa”, em que é evidente a adopção nas cercaduras de modelos decorativos inspirados e adaptados dos cristãos. Sublinha, porém, neste âmbito, grandes diferenças e fundamenta-as. Acrescenta ainda exemplos de outras interacções artísticas nomeadamente em obras executadas por judeus para encomendantes cristãos. Tiago Moita presenteia-nos com o estudo dos mais antigos manuscritos hebraicos medievais portugueses, um de Seia, um da Guarda e um terceiro de Sevilha mas com informação para o território português. É em especial nos cólofones, notas finais desses documentos, que concentra atenções, deles extraíndo informação de relevância histórica e cultural. O manuscrito de Seia (1284-85), inédito, permite-lhe atestar da antiguidade da presença judaica na vila e nele vê mencionada a fortaleza de Seia. O manuscrito da Guarda, de 1346, um Comentário ao Pentateuco, apresenta um interessante cólofon que permite ilações sobre o copista e as práticas religioso-culturais na comunidade hebraica da cidade. No cólofon da Biblía Hebraica de Sevilha, de 1356, Tiago Moita encontra alusão ao sismo de Lisboa desse ano. Fernando Berrocal traz-nos uma análise da presença judaica em Cáceres, recorrendo sobretudo ao códice «Foros de Cáceres», de 1267, que inclui o fuero latino e o fuero romanceado. Nesta documentação evidenciam-se a precoce presença judaica na cidade, as obrigações impostas aos judeus, bem como as liberdades e os privilégios que lhes foram concedidos, incluindo os da dimensão comercial, a protecção especial de que eram objecto, em contraste com a minoria muçulmana da cidade e as orientações no relacionamento com os cristãos. Sublinha a importância desta comunidade judaica para o desenvolvimento económico da Cáceres medieval. O autor mostra-nos ainda o valor histórico e patrimonial do que resta do bairro judeu de Cáceres e de como esse legado tem sido bem aproveitado em termos turístico-culturais. José Alberto Tavim apresenta-nos o resultado das suas pesquisas de arquivo referentes à Colegiada de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães e ao Cabido da Sé de Braga, sobretudo as cartas de emprazamento, produções essencialmente cristãs. Através desta documentação do século XV, transmite-nos indicadores da localização dos bairros judaicos e das casas emprazadas, da proveniência das famílias, dos seus nomes, das suas ocupações, do espaço familiar do judeu e do mundo cristão que envolvia as judiarias,

das boas relações entre os proprietários urbanos cristãos e as comunidades judaicas. Em Guimarães regista alguma permeabilidade entre judeus e cristãos, com casas arrendadas por cristãos na judiaria. Em Braga, percorre, através das fontes, aspectos da judiaria velha e da judiaria nova, distinguindo o edifício da sinagoga desta última, onde persiste uma inscrição do séc. XV. O estudo de Tavim permite também relevar outros aspectos interessantes, como, no caso de Braga, a prerrogativa de assinatura de documentos em hebraico. O estudo da região da Guarda (excluindo algumas áreas do território vastíssimo da diocese medieval, a sul e oeste) é apresentado por Maria José Ferro Tavares. Com base em documentação medieval e em processos da Inquisição, a autora problematiza a localização e a dimensão da presença judaica a partir da onomástica, da toponímia e da topografia, alertando para as dificuldades de interpretação de conjuntos viários e arquitectónicos face às transformações que foram sofrendo ao longo dos tempos. À comunidade judaica da Guarda, sede do arrabiado das Beiras, entre duzentos e quatrocentos, dedica análise detalhada, com a localização de espaços de habitação, de vida religiosa e económica, descrevendo alguns deles. Aborda também as judiarias da Covilhã e de Castelo Branco e menciona várias outras localidades com comunas ou presença judaica. Com fundamento em abundantes referências recolhidas das fontes, aborda as relações entre judeus e cristãos, as relações de judeus com o rei, as relações entre os próprios judeus, aspectos da evolução demográfica das comunidades judaicas e aspectos das mudanças motivadas pela expulsão. De forma eloquente e crítica, Maria José Ferro Tavares proporciona-nos uma completa panorâmica da presença judaica nas Beiras. Em suma, este conjunto de estudos, que ora se publicam, permitiu várias importantes constatações: – No plano artístico, foi possível reconhecer uma transferência mútua de tendências e a adopção, por parte de determinados edificados judaicos em Portugal, de uma linguagem racional, italianizante, evidenciando um proto-despojamento que caracterizará alguma arquitectura cristã de finais de quatrocentos. – Na dimensão literária, a apresentação de novos manuscritos hebraicos de origem portuguesa, dos séculos XIII e XIV, sendo os mais antigos de Seia e da Guarda, proporcionaram inovadoras releituras da realidade intelectual judaica e da importância dessas comunidades na região da Beira Alta. – Através de estudos de casos baseados em documentação variada, alguma desconhecida até há pouco, conclui-se estarem a ser possível avanços significativos no entendimento das comunidades judaicas – na forma como se definiam as suas relações com os cristãos, na dimensão espacial, como noutras. – Os estudos que trataram preferencialmente do relacionamento entre judeus e cristãos foram unânimes em reconhecer a distância entre as disposições legais e a prática

quotidiana, onde a protecção régia, os interesses mercantis e financeiros, ou as simples relações de vizinhança quebraram muitas vezes as normas estabelecidas e a vigilância clerical cristã, conduzindo à permissividade e mesmo à convivência. – Por fim, particularmente relevante para a Guarda, o estudo e as interpretações de Maria José Ferro Tavares reforçaram a importância da presença judaica na região da Beira Alta, com destaque para a cidade da Guarda. A remanescente judiaria, cuja existência e antiguidade a documentação histórica inequivocamente comprova, plasma-se num notável conjunto patrimonial que, empenhadamente, é preciso preservar.

Isabel Cristina Ferreira Fernandes

SUMÁRIO DIÁLOGOS E CONFLITOS. RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS NA IDADE MÉDIA RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E JUDEUS NA IDADE MÉDIA José Hinojosa Montalvo...................................................................................................................................................................................17 JUDEUS, CRISTÃOS E MUÇULMANOS NO PORTUGAL MEDIEVAL Maria Filomena Lopes de Barros............................................................................................................................................................. 37 COMUNIDADES E PERSONALIDADES JUDAICAS AO SERVIÇO E SOB PROTEÇÃO DA FAMÍLIA REAL: UMA RELAÇÃO MANTIDA DESDE OS PRIMÓRDIOS DA MONARQUIA PORTUGUESA ATÉ FINAIS DO SÉCULO XV Manuela Santos Silva.......................................................................................................................................................................................55 O POVOAMENTO JUDAICO NO TERRITÓRIO DA DIOCESE DA GUARDA (período medieval e moderno) Maria José Ferro Tavares..............................................................................................................................................................................65 FALANDO DE SI MESMOS. DUAS COMUNIDADES PRÓXIMAS: OS JUDEUS DE GUIMARÃES E DE BRAGA José Alberto Rodrigues da Silva Tavim.................................................................................................................................................89 A COMUNIDADE JUDIA NOS FOROS MEDIEVAIS DE CÁCERES Fernando Jiménez Berrocal...................................................................................................................................................................... 107 INTERAÇÕES ARTÍSTICAS ENTRE JUDEUS E CRISTÃOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SÉCULO XV: ARQUITETURA E ILUMINURA Luís Urbano Afonso..........................................................................................................................................................................................119 OS CÓLOFONES DOS MANUSCRITOS HEBRAICOS MEDIEVAIS COMO FONTES DE INFORMAÇÃO HISTÓRICA RELEVANTE. OS MANUSCRITOS HEBRAICOS DE SEIA, GUARDA E SEVILHA Tiago Moita...........................................................................................................................................................................................................147

PATRIMÓNIO E HISTÓRIA O CONJUNTO TERMAL DO SÍTIO ROMANO DA PÓVOA DO MILEU (GUARDA) Vitor Pereira.........................................................................................................................................................................................................163 CONTRIBUIÇÃO PARA A HISTÓRIA DA JUDIARIA DA GUARDA Alcina Cameijo, Maria Leontina Cunha, Telmo Cunha.............................................................................................................. 183 JUDIARIA DA GUARDA. ESTUDO DO ESPAÇO PÚBLICO URBANO E IDENTIDADE LOCAL Cecília dos Santos Zacarias.......................................................................................................................................................................201 O COMBATE E O INTERVENCIONISMO MILITAR REPUBLICANO NA GUARDA José Luís Lima Garcia....................................................................................................................................................................................213 SAÚDE EM PINHEL NO PRIMEIRO ANO DA REPÚBLICA Aires Diniz............................................................................................................................................................................................................223

D. JOÃO ANTÓNIO DA SILVA SARAIVA (1923-1976) 29.º BISPO DO FUNCHAL (1965-1972) J. Pinharanda Gomes......................................................................................................................................................................................241 O CHARRO OU OS FALARES FRONTEIRIÇOS DE ALAMEDILLA E XALMA, OU SEJA DE UMA ZONA QUE, PELO LADO PORTUGUÊS VAI DE BATOCAS, NORDESTE DA RAIA SABUGALENSE A ARANHAS, SUESTE DE PENAMACOR E, PELO ESPANHOL SE ESTENDE DE ALAMEDILLA, NOROESTE DE SALAMANCA A SAN MATIM DE TRAVEJO, SUDOESTE DE CACÉRES Manuel Leal Freire..........................................................................................................................................................................................257 REZAS A ADONAI, DEUS DE ABRAÃO, ISAAC E JACOB E A DEUS PAI, PRIMEIRA PESSOA DA SANTÍSSIMA TRINDADE SEGUNDO O CRISTIANISMO Guilhermina Leal............................................................................................................................................................................................. 269

PORFÓLIO Alexandre Costa .............................................................................................................................................................................................279

GRANDE ENTREVISTA ENTREVISTA AO RABINO ELISHA SALAS Maria Antonieta Garcia.................................................................................................................................................................................291

POESIA, CONTOS E MEDITAÇÕES Cristino Cortes................................................................................................................................................................................................307 João Esteves Pinto............................................................................................................................................................................................311

RECENSÕES...............................................................................................................................................................................................317 SÚMULA......................................................................................................................................................................................................... 345

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Manuela Santos Silva1

A 5 de Agosto de 1339, o rei de Portugal Afonso IV enviou a seguinte mensagem escrita ao seu almoxarife, e respetivo escrivão, da cidade da Guarda: Sabede que mestre Jacob meu Judeu morador en essa vila veo a mjm e disse me en qual guisa el tinha humas mhas casas de fforo das quaes mi auia de dar en cada huum Ano polo dicto foro catorze libras e quarta As quaes casas dizia que forom de Bolafia e do vezinho, Judeus ia passados E pediu me que lhy quitasse A dicta Renda E eu veendo o que me pedia e querendo lhy fazer merçee por serviço que me fez. Tenho por bem que el tenha de mjm sem Renda As dictas casas enquanto for mha merçee se Assi he que elas nom estam por mays que polas dictas catorze libras e quarta Porque mando A uos e a outro qualquer Almoxarife ou scriuam que depos uos ueer que o nom costrengades pelas dictas catorze libras. E quarta pela guisa que dicto he enquanto for mha merçee (…)2. Chamo-vos a atenção, em primeiro lugar, para o facto de o rei se referir a este Mestre Jacob como seu judeu e, em segundo lugar, para a circunstância de lhe fazer esta mercê de o dispensar do pagamento devido por ocupar casas do património régio na Guarda pelo serviço que me fez, reconhece o rei. Registamos ainda a informação de que as casas em causa, já no passado, terem sido aforadas por Judeus, que assim habitavam edifícios cujo proprietário era o rei. A preocupação régia com as comunidades judaicas revelava-se, normalmente, logo no início de cada reinado. Cada monarca, além de reconhecer os privilégios de cada um dos 1

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

2

Chancelarias Portuguesas. Chancelaria de D. Afonso IV, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992, II,191.

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concelhos do seu reino, do seu senhorio, como normalmente a ele se referiam, também assegurava os privilégios, foros, liberdades e bons costumes de cada comunidade judaica, usando a tradição como instrumento de lei. Por exemplo, a 9 de Agosto de 1358, o rei D. Pedro I, confirmou e outorgou aa comuna dos judeus da cidade da guarda todos seus priujlegios e foros liberdades e boons custumes de que sempre husarom (…)3. De facto, quem percorrer os Livros de Chancelaria dos monarcas que reinaram em Portugal entre os séculos XIII e XV deparará com um sem-número de diplomas régios que reconhecem direitos próprios às comunidades judaicas em todo o reino, que lhes concedem, em aforamento, prédios urbanos pertencentes à Coroa nas cidades e vilas de que estes tinham a jurisdição, e que privilegiam de vários modos indivíduos de etnia judaica recompensando-os, sobretudo, por serviços prestados ao rei, à rainha, e aos seus reinos. Há chancelarias mais profícuas do que outras. A de Dom Afonso IV, permite-nos uma excelente aproximação à temática da proximidade do poder régio aos seus judeus. São numerosas as cartas emanadas em nome do monarca tendo como destinatários judeus, cedendo-lhes, como já vimos, imóveis seus em aforamento, em zonas entretanto transformadas em judiarias, ou mesmo em outras vias das cidades, concedendo certos privilégios a alguns dos membros ou famílias das suas elites e, sobretudo, acolhendo, entre os seus servidores, judeus que desempenhavam certos ofícios mecânicos – ourives, por exemplo, mas também alfaiates e sapateiros – ou que, em seu nome, faziam o recebimento dos direitos reais e das despesas que lhes estavam adscritas, e ainda os muito conceituados físicos de formação médica judaica. Para além de considerarem como seus privados e homens de confiança judeus ricos e cultos que, em praticamente todos os reinados, ocuparam posições importantes ao serviço dos monarcas. Destes, os que melhor conhecemos são os que ocuparam os cargos de Rabis-mores, representantes dos interesses da sua comunidade junto do rei, ao mesmo tempo que superintendiam os rabis de cada uma das comunas urbanas. Os judeus tinham direito a ser julgados segundo a sua própria lei e o julgamento estava sob a alçada do Rabi-Mor, tal como sucedia com a aplicação do sistema fiscal aplicado às comunidades judaicas. Era, de facto, uma figura de ligação entre as instâncias da Corte e a sua comunidade e, por isso, “desde o século XIV, este papel importante esteve sempre nas mãos de famílias poderosas e ricas”, sendo o Rabi-Mor “quase sempre, um grande mercador e conselheiro em matérias da fazenda”, como nos disse Rita Costa Gomes4, quando estudou a Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média. Pelo que podemos depreender que, em matéria judicial, ele apenas superintenderia uma equipa de especialistas em direito, não sendo 3

Chancelarias Portuguesas. Chancelaria de D. Pedro I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984, I, 316.

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GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média, Linda-a-Velha, DIFEL, Difusão Editorial, 1995, p. 158.

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ele próprio, provavelmente, um deles. Alguns sabemos que foram físicos – médicos – ou astrólogos, e também, enquanto tal, indivíduos que rondavam a intimidade dos reis de Portugal. O monarca João I afirma, aliás, perentoriamente, que os [judeus] – da corte, naturalmente, sempre forom e som da nossa camara e da dos reis que ante Nos forom sendo per nos guardados e defendidos”5. Ora a “camara” do rei era o organismo íntimo da corte, o de maior proximidade ao monarca, ao mesmo tempo que aquele que tratava de matérias relativas ao património. O rei havia escolhido estes seus judeus, entre os melhores das comunidades judaicas para o assessorarem e servirem, nomeadamente em determinadas tarefas ligadas precisamente à recolha dos direitos reais e à guarda do Tesouro, como iremos ver mais tarde. Mas sabemos também que privavam com o monarca em ocasiões de lazer e o acompanhavam nas deslocações da corte. É conhecido, por exemplo, um episódio da crónica do rei D. Dinis, passado em 1321, em que Dom Guedelha, Rabi-Mor dos judeus, presenteou o rei com um peixe vivo – um solho – de dimensões invulgares retirado do Tejo junto a Santarém6. Algumas famílias perpetuavam-se mesmo no serviço do rei, como também sucederia com os vassalos cristãos. No reinado de Dom Pedro I, Moisés Navarro, casado com Dona Salva, ocupava o cargo de Rabi-Mor e em reconhecimento pelos seus préstimos recebeu do rei diversos benefícios7. Uma personagem de enorme importância na corte de Dom Fernando – Judas Aben Menir, um Navarro – seria, ao que parece, filho ou neto do Rabi-Mor do reinado anterior. Tanto um como outro terão também acumulado o cargo de superintendência dos Judeus com o de Tesoureiro do rei8. Tomando como base o Levantamento Populacional referente aos Judeus de Corte elaborado por Maria José Ferro Tavares para o século XV9, podemos facilmente detetar a repetição dos nomes de família: Negro aparece como sobrenome de pelo menos 7 diferentes “servidores”, tendo muitos deles desempenhado o cargo de Rabi-Mor10; por Abravanel podem pelo menos 5 indivíduos ser identificados; por Palaçano, outros 3; 2 aparecem com os apodos de Zarco, de Latam, de Alfaquim, de Tobi, de Amigo, entre outros. Para além destes, aparecem um grande número de nomes de família que se repetem e que derivam de locativos, nomeadamente o já citado Navarro, mas também Castelão, Toledano e Franco, mas também Beirão, Coimbrão, Leireão, etc. Pelo que concluímos que, apesar de numero-

5

Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Chancelaria de D. João I, Lº4, fol. 64v.

6

PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor, D. Dinis, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2005, p. 207.

7

PIMENTA, Cristina, D. Pedro I, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2005, p. 138.

8

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 117.

9

TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal no século XV, Vol. II, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984, pp. 769-778.

10

TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal no século XV, Vol. I, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1982, pp. 228-229, 233-235.

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sos, os Judeus que gozavam dos favores régios e que frequentavam a Corte e pelos quais eram divididos os cargos e tarefas a que podiam aspirar, eram um grupo relativamente endogâmico constituído por um número limitado de famílias. Depreende-se que, ainda mais do que relativamente aos servidores cristãos, a confiança estava na base do relacionamento e das escolhas que o rei fazia no seio da comunidade judaica. Compreende-se assim também que os rabis-mores, personagens próximas e estimadas pelos monarcas, até porque muitas vezes eram seus conselheiros em matéria de negócios e seus financeiros, juntassem, ao desempenho desse cargo, o de Tesoureiro-mor. Dom Judas Aben Menir que, como já vimos, executava as duas funções recebeu, em 22 de Fevereiro de 1382, o privilégio de poder trazer “no ofiçio do aRabiado cadea e Seello” tal como o faziam os Corregedores e Meirinhos, além de poder nomear um funcionário para tratar da detenção dos Judeus prevaricadores. Mas mais significativa ainda parece ser a concessão que o rei lhe fez de poder haver “a chançelaria das cartas que per el e per sseu ouujdor passarem” e ainda “armas e carcerageens e dizimas dos Judeus”, ficando totalmente nas suas mãos qualquer decisão que respeitasse à sua comunidade11, segundo o direito talmúdico12. Enquanto Tesoureiros, serviram ainda o rei Dom Fernando, para além de Dom Judas, David Algadix (ou Algadez) e o seu cunhado David Negro (ou Yadia)13. Na Crónica de Dom João I14, relata-se um episódio em que se referem precisamente duas destas personagens que Dom Fernando tivera ao seu serviço. Segundo o cronista, a população de Lisboa preparava um ataque e saque aos judeus ricos da Judiaria de Lisboa, depois da morte do Conde Juan Fernandez Andeiro e do afastamento de Lisboa da rainha regente Leonor Teles. Entre os principais alvos encontravam-se Dom Judas Aben Menir e Dom David Negro. De tais planos foi avisado, pelos Judeus, o Mestre de Avis: “os da çidadesse alvoraçavam pera os hirem rroubar e matar todos e que lhe pediam por merçee que lhe acorresse a pressa, se nom que todos erom mortos”, mas, num primeiro momento, o futuro Regedor e Defensor do Reino apenas encaminhou a resolução do problema para a regente, dizendo que “nom tiinha com aquello que fazer”. Só depois de muito instado pelos membros do seu séquito decidiu intervir e tentar travar a populaça que lhe dizia: “Senhor, (…) estes treedores destes Judeus, dom Yuda, e dom Davi Negro que ssom da parte da Rainha, teem gramdes tesouros escomdidos, e queremos lhos tomar e da llos a vos que queremos por nosso senhor”, ao que o Mestre redarguiu que deixassem então a ele a resolução dos problemas relativos às lealdades. E ao conseguir demover a multidão dos seus intentos furiosos, o futuro Dom João I obteve um importante trunfo 11 ANTT, Chancelaria de D. Fernando, I, Tomo 3, maço 16. 12

TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal no século XV…, Vol. I, p. 111.

13

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 117.

14

Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Primeira Parte, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, pp. 33-35.

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político, pois “mamdou apregoar da sua parte”, “que nom fosse nenhum tam ousado de hiir aa Judaria por fazer mal a Judeus”. Durante o seu longo reinado, João I terá ao seu serviço diversos rabis-mores “cultos que se distinguirão mais pelo saber do que pela actuação no mundo do comércio e das finanças”15. De facto, muitos deles serão físicos, isto é, terão conhecimentos de medicina, sendo quase todos deles designados como Mestres, indicativo da sua formação académica. Na estrutura social da Corte Régia, os físicos encontram-se naturalmente colocados na Câmara, gozando da privacidade do monarca. Cuidar do rei, significava proteger o seu espírito e o seu corpo e quanto a esta última preocupação, os físicos tinham a tarefa de maior responsabilidade. E na escolha dos que melhor salvaguardariam a sanidade física do monarca, bem como dos restantes membros da família real, não se colocavam entraves ao seu estado – leigo ou religioso – ou à fé que seguiam, somente à qualidade do seu desempenho16. Sabemos que o infante Dom João de Castro, filho do rei Dom Pedro, era cuidado por um Mestre Vivas, físico judeu17. Antes dele, os seus avós Afonso IV e Beatriz partilhavam um médico de nome mestre Martinho do Rosmaninhal que é tido como um convertido18. No reinado de Dom Fernando, sabemos que um dos muitos físicos chamados para tentar encontrar a cura para a longa doença do monarca era um mouro de nome Mafamede ou Maomé, sendo a rainha acompanhada por um Jusepe, médico judeu, ambos designados por Mestres19. É provável que este último tenha seguido a sua rainha para o exílio em Castela, uma vez que Dom João I lhe confisca os bens por motivo de “desserviço” à Coroa de Portugal20. No entanto, este mesmo rei acolheu também vários físicos judeus. Entre os vários servidores de formação médica que encontramos na sua corte, surgem Mestre Moisés de Leiria21 e os cirurgiões Isaque22 e Jacob Goleima23. Dom Duarte, seu filho, teve a seu lado o físico e astrólogo Mestre Guedelha24, de quem, aliás, guardou no seu Caderno de Apontamentos 15

TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal no século XV…, Vol. I, p. 116.

16 Especulo, Libro II, Título XII, Ley IV: Ca pues que ellos [los físicos]son puestos para guardar salut del cuerpo del rey, derecho es que los onre el rey, e todos los de su tierra.Easi como la salut dél por derecho es pro de todos los de su tierra, asi todos devem onrar e guardar aquellos que son puestos para guardarla. 17

Chancelarias Portuguesas. Chancelaria de D. Pedro I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984, [398] – 1359 – Lisboa, 23 de Agosto.

18

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 47.

19 Idem, ibidem, p. 160. 20

Chancelarias Portuguesas. D. João I, Volume I, Tomo I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2004 [117], p. 66.

21

Chancelarias Portuguesas. D. João I, Volume II, Tomo I (1385-1392), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2005, [II-568], p. 292.

22

Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, Volume I, Tomo 2 (1435-1438), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1998, [1026], p. 290.

23

VENTURA, Margarida Garcez, A Corte de D. Duarte. Política, Cultura e Afectos, Vila do Conde, Verso da História, 2013, p. 91.

24

Crónica do Rei D. Duarte de Rui de Pina, COELHO, António Borges (ed.), Lisboa, Editorial Presença, 1966, p. 41.

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algumas informações astronómicas25. Por outro lado, encontramos Judas Benziza como físico da rainha Dona Leonor, sua mulher26. Duas súplicas enviadas ao Papa Eugénio IV pelo rei português Dom Duarte, em 1434, foram estudadas por Margarida Garcez Ventura27. Pretendia-se, nesses tempos conturbados do relacionamento entre as autoridades eclesiásticas e a população de credo judaico, autorização para manter, como era costume nos reinados anteriores, físicos judaicos na Corte. O Papa aceitou-as, o que parece fundamental para entendermos como aconteceu que, numa altura em que as perseguições aos Judeus se incentivavam um pouco por todo o Ocidente, em Portugal, a corte régia, parecia acentuar a importância do contributo Judeu, nomeadamente quanto à medicina e a astrologia28. Rita Costa Gomes fala mesmo de “um inegável sucesso dos físicos judeus no ambiente cortesão de Quatrocentos”29, encontrando-se, sem esforço, vestígios de nomes judaicos ou de conversos entre os que gozavam dos favores do monarca em compensação pelos seus serviços. Mestre Abraão e Mestre Abas, físico do duque de Guimarães, tinham mesmo ocupado o cargo de Rabi-Mor. Seguir-se-lhes-ão Guedelha e o seu filho Abraão Negro que fazem regressar às grandes famílias de comerciantes e financeiros judeus – até à extinção do cargo em 1464 – esta honra30. No período entre 1446 e 1454, foram arrendadas a membros de poderosas famílias hebraicas – dos Abravanel e dos Latão – em parceria com comerciantes genoveses – o pagamento das moradias aos cortesãos, isto é, das rendas que estes auferiam como recompensa pelos serviços prestados ao monarca e à sua família31. Por outro lado, David Negro, intitula-se servidor da rainha, provavelmente na compra e venda de mercadorias32. Mas estes judeus que gozavam de grande prestígio social e eram figuras de importância económica e/ou cultural na sociedade portuguesa não eram os únicos que frequentavam a corte. Aqui e ali, surgem-nos menções a outros judeus, com lugar na Corte, encarregados de outros serviços. Das informações disponíveis concluímos que a especial habilidade com que muitos 25

Livro dos conselhos de el-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa), Edição diplomática. Lisboa, Editora Estampa, 1982, p. 156.

26

Crónica do Rei D. Duarte de Rui de Pina, …, p. 160.

27

VENTURA, Margarida Garcez, “Médicos Judeus na Corte e no Reino: a excepção consentida pelo Papa Eugénio IV”, sep. De Os Judeus e os Descobrimentos. Actas do Simpósio Internacional, 1992.

28 CARVALHO, Helena Cristina Ferreira Avelar de, Vir Sapiens DominabiturAstrios. Astrological Knowledge and Practices in the Portuguese Medieval Court (King João I to King AfonsoV), Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011. 29

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 128.

30

TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal…, Vol. I, p. 116.

31

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 210.

32

RODRIGUES, Ana Maria S. A., As tristes rainhas. Leonor de Aragão e Isabel de Coimbra, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2012, p. 170.

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judeus se dedicavam à metalurgia era muito apreciada na corte que os encarregava muitas vezes de confecionar armas33. Também lhes davam a sua preferência enquanto alfaiates: em 1258, apreciava-se que o alfaiate que servia o rei soubesse “conhecer panos E compra llos e aprecallos “, sabendo “bemfazer seu mester”34. Na corte de Dona Duarte, a rainha Dona Leonor encarregava dois judeus, Samuel Beirão e Abraão, de a servir como alfaiates. Um deles – Samuel Beirão – permaneceria na corte no reinado seguinte, trabalhando para a rainha Dona Isabel, mulher de Dom Afonso V35. O segundo, “que se pensa pertencer à família “Amigo”,” terá provavelmente acompanhado a viúva de Dom Duarte no seu exílio e sabemos que gozava até dos favores da rainha de Aragão depois da morte de Dona Leonor36. A ourivesaria era outra das artes em que os judeus eram exímios e à qual a família real não era indiferente. Precisavam, continuamente, para uso próprio ou para delas fazerem presente a embaixadores, vassalos ou familiares, para selar contratos e pactos políticos e matrimoniais, de peças, em metais preciosos, como baixelas, joias ornamentais ou alfaias litúrgicas. Sabe-se que um judeu, ourives do Infante Dom Henrique, participou na conquista de Ceuta em 1415, integrado no contingente que este chefiava37. Ao serviço da rainha Dona Leonor Teles, mulher de Dom Fernando I, houve também, pelo menos um ourives judeu que se destacou enquanto membro da casa da rainha. Em 1377 sabemos que lhe foi concedido o privilégio de, sempre que se deslocasse pelo reino ao serviço da monarca, poder usufruir de “pousadas, alimentos e montada”, bem como de um séquito formado por cavaleiros e peões38. A sua liberdade de movimentos, com o gozo de tais benefícios, era total. Na Crónica da Tomada de Ceuta, por sua vez, narra-se um episódio passado durante a preparação da conquista. Dá-nos conta do susto que percorreu o grupo cortesão que estava dentro do segredo do destino da armada, quando um trovador judeu, a quem chamavam Yuda ou Judas Negro, e que servia a rainha Filipa de Lencastre, enviou uma trova a um escudeiro do infante Don Pedro revelando que os mais sensatos entendiam que El-Rei iria sobre a cidade de Ceuta39. Toda esta proximidade entre alguns membros da comunidade judaica e a família real portuguesa não nos deve fazer esquecer que a desconfiança em relação a estes infiéis, sobre os quais pesava o pecado de terem sido responsáveis pela morte de Cristo, podia, porém, pairar 33

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, pp. 156-158.

34 Idem, ibidem, p. 158. 35

RODRIGUES, Ana Maria S. A., As tristes rainhas…, pp. 161, 337.

36 Idem, ibidem, pp. 161, 240. 37

GOMES Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 158.

38 Idem, ibidem, p.153. 39

Gomes Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Prefácio e actualização de textos de Carlos Miranda, Lisboa, Editorial Escol, s.d., p. 70.

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sempre nas mentes de, pelo menos, alguns dos cristãos. Um filho da mesma rainha Filipa de Lencastre e de João I, homónimo do pai, numa resposta ao conselho que pretendia saber a sua opinião sobre “se deue el rey meu senhor fazer guerra aos mouros de benamarym ou não”40, responde“”[…] non deujamos ousadamente cometer tal guerra, e non digo tam somente contra mouros, mas aJnda contra Judeus que som a mays Roym gente do mundo”. E o seu próprio irmão Duarte, também fala de “refiarias […] de mouras e de Judias, e doutras royndades que em esta terra se vsauão”, como exemplo de ações que deviam ser evitadas pelos nobres e fidalgos de Portugal, de modo a viverem virtuosamente41. Mas, ao mesmo tempo que emitiam estas desconfianças faces aos judeus, os membros da família real portuguesa primavam pelo incumprimento, em muitas épocas e locais do reino de Portugal das restrições legais à liberdade de ação de judeus emanadas pela Santa Sé, mesmo após essas limitações se terem acentuado nos finais da Idade Média em praticamente todo o Ocidente. A legislação portuguesa considerava os judeus tão somente como súbditos do monarca, sujeitos à jurisdição do rei e não à eclesiástica, embora com deveres e direitos particulares, como notou Margarida Garcez42. Isso não significa que os monarcas portugueses não se tenham sentido coagidos, por diversas ocasiões, a legislar no sentido da segregação das populações dos dois credos – judaico e cristão – nomeadamente no que respeitava ao local de morada, com a consequente limitação à livre circulação de uns e outros no interior da cidade, sobretudo depois do anoitecer. Podem-se, porém, interpretar estas medidas como sendo do interesse do próprio rei que ganhava em agrupar os judeus de cada cidade em comunidades presididas por rabis43 que, por sua vez, obedeciam ao Rabi-Mor do reino, que, como já vimos, era um indivíduo da confiança do monarca e que intermediava, com relativamente amplos poderes, a relação deste com aqueles que considerava “os seus judeus”. Em concordância com este pressuposto, os judeus tinham, normalmente, no rei “um protector”44. Embora tal proteção não fosse desinteressada, pois aos privilégios concedidos – liberdade de religião e direito à obediência às suas próprias leis – correspondia uma carga fiscal bastante superior à suportada pela população cristã45. E quando a corte itinerante chegava a certas cidades, o rei era recebido “com as toras”, o que significava que entre os locais que lhe davam as boas vindas estavam sempre os judeus e em lugar de destaque, pois eram seus súbditos diretos. Esta singularidade da relação en40

Livro dos conselhos de el-Rei D. Duarte…, pp. 43-44.

41 Idem, ibidem, p. 238. 42

VENTURA, Margarida Garcez, “Entre Deus e César. Para a definição do estatuto dos judeus em Portugal nos finais da Idade Média” in Cadernos de Estudos Sefarditas 5, Lisboa, 2005, p. 65.

43

Embora compostas ainda por vereadores, procuradores, almotacé, tesoureiro e homens bons, ou seja com uma estrutura administrativa muito semelhantes à dos concelhos – FERRO, Maria José Pimenta, Os Judeus em Portugal no século XIV…, p. 25.

44 Idem, ibidem, pp. 51-52. 45 Idem, ibidem, p. 13.

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tre a comunidade hebraica e o seu rei era algo que os viajantes estrangeiros consideravam exótica46, bem como o facto de, nestes tempos finais da medievalidade, haver leões na alcáçova do castelo de Lisboa que eram alimentados à custa da contribuição da comuna judaica47, que também contribuía com empréstimos ao rei em ocasiões de aperto.

46

GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal…, p. 318.

47 Idem, ibidem, p. 261.

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FONTES DOCUMENTAIS ANTT, Chancelaria de D. Fernando, I, Tomo 3, maço 16. Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Chancelaria de D. João I, Lº4, fol.64v. Chancelarias Portuguesas. Chancelaria de D. Afonso IV, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992, II. Chancelarias Portuguesas. D. Duarte, Volume I, Tomo 2 (1435-1438), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 1998, [1026]. Chancelarias Portuguesas. Chancelaria de D. Pedro I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984, I. Chancelarias Portuguesas. D. João I, Volume I, Tomo I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2004 [117]. Chancelarias Portuguesas. D. João I, Volume II, Tomo I (1385-1392), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2005, [II-568]. Crónica do Rei D. Duarte de Rui de Pina, COELHO, António Borges (ed.), Lisboa, Editorial Presença, 1966. Especulo, Libro II, Título XII, Ley IV. Livro dos conselhos de el-Rei D. Duarte (livro da Cartuxa), Edição diplomática. Lisboa, Editora Estampa, 1982. LOPES, Fernão, Crónica de D. João I, Primeira Parte, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983.

BIBLIOGRAFIA CARVALHO, Helena Cristina Ferreira Avelar de, Vir Sapiens DominabiturAstrios. Astrological Knowledge and Practices in the Portuguese Medieval Court (King João I to King Afonso V), Dissertação de Mestrado em História Medieval apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011. FERRO, Maria José Pimenta, Os Judeus em Portugal no século XIV, Lisboa, Guimarães & Cª Editores, 1979. GOMES, Rita Costa, A Corte dos Reis de Portugal no final da Idade Média, Linda-a-Velha, DIFEL, Difusão Editorial, 1995. PIMENTA, Cristina, D. Pedro I, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2005. PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor, D. Dinis, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2005. RODRIGUES, Ana Maria S. A., As tristes rainhas. Leonor de Aragão e Isabel de Coimbra, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2012. TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal no século XV, Vol. I, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1982. TAVARES, Maria José Ferro, Os Judeus em Portugal no século XV, Vol. II, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984. VENTURA, Margarida Garcez, “Médicos Judeus na Corte e no Reino: a excepção consentida pelo Papa Eugénio IV”, sep. de Os Judeus e os Descobrimentos. Actas do Simpósio Internacional, 1992. VENTURA, Margarida Garcez, “Entre Deus e César. Para a definição do estatuto dos judeus em Portugal nos finais da Idade Média” in Cadernos de Estudos Sefarditas 5, Lisboa, 2005. VENTURA, Margarida Garcez, A Corte de D. Duarte. Política, Cultura e Afectos, Vila do Conde, Verso da História, 2013. ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica da Tomada de Ceuta, Prefácio e actualização de textos de Carlos Miranda, Lisboa, Editorial Escol, s.d.

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