Comunismo, corrupção e a \'cervejinha do guarda\'

October 6, 2017 | Autor: Pedro Scuro | Categoria: Fighting and Preventing Corruption through Law, Corruption
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Fundação Maurício Grabois, dez. 2014
Comunismo, corrupção e a "cervejinha do guarda"
Pedro Scuro Neto*
Nas instituições em que não circula o vento cortante da crítica franca e aberta, cresce como bolor uma corrupção inocente. (Friedrich Nietzsche)
o comunismo criou a contragosto incentivos estruturais para práticas corruptas que, associadas a maus costumes enraizados na sociedade, tornaram-se fatos normais e corriqueiros, característicos de economias excessivamente reguladas e sistemas jurídicos muito rígidos. Isso diziam os inimigos do regime, mas – pergunta o cidadão que viveu sob o comunismo – que poderia haver de ruim em subornar para obter serviços de melhor qualidade? Cidadão que ainda hoje se recorda com saudade das vantagens do comunismo em termos não só de segurança, saúde, educação, mas também de corrupção: "bastava subornar um safado só e você tinha certeza que ia ser atendido". No capitalismo, ao contrário, "você paga um monte de safados e mesmo assim não sabe se vai dar certo". Nada de mais, justifica por sua vez um laureado jurista norte-americano: que pode haver de mal em subornar também sob o capitalismo "quando a prática corrupta é notória e ajuda a corrigir informalmente o salário de um servidor"? Era o que dizia o antigo governador de São Paulo, Adhemar de Barros, um dos líderes do golpe de 1964: "delegado de polícia não precisa de aumento, pois se dinheiro é problema ele usa a carteira funcional".
Corrupção: bomba-relógio
Em qualquer regime político e econômico, mas acentuadamente no comunismo, corrupção "normal" representa um tremendo obstáculo ao progresso social. Com efeito, se as práticas corruptas das elites e dos dirigentes persistem, a população por seu turno torna-se cada vez mais indiferente à desonestidade e se acostuma a sonegar impostos, recorrer aos serviços do crime organizado, corromper e ser corrompida por políticos e servidores públicos. No comunismo, corrupção "normal" transformou-se em uma bomba-relógio que, em circunstâncias de crise política e econômica, explodiu e levou consigo o sistema por inteiro, a União Soviética e todo o bloco de países socialistas.
Os precavidos comunistas chineses, por outro lado, já em 1978 incluíam o combate à corrupção na pauta de prioridades do seu movimento de "Reforma e Abertura". Porém, como seria de se esperar, não agiram com a devida determinação, gerando descrédito e descontentamento, expondo o regime ao ridículo e ao risco de derrocada. Não foi surpresa, portanto, a ocorrência das sangrentas manifestações de 1989 na Praça da Paz Celestial, e em seguida as profundas mudanças na cúpula e na política de reformas do Partido Comunista, que ao combate à corrupção finalmente concedeu status de política pública tão urgente quanto, por exemplo, a geração de empregos.
Na China, as penas dos corruptos incluem até mesmo pena de morte, mas com sucesso apenas relativo, pois corrupção não se resume a roubo de dinheiro público, a crimes econômicos como suborno, extorsão, fraude, contrabando, evasão, sonegação. Corrupção depende de mecanismos diabólicos que reproduzem os "maus costumes" de quem se nutre de relações espúrias e privatistas com o Estado. Corrupção cinzenta, bem mais difícil de exterminar que o roubo descarado do dinheiro público, que não somente é validada por formas legais, ilegais e semilegais, como também convalidada até por quem a desaprova, porém adota quando tem a oportunidade de usar práticas daninhas em benefício próprio. Não surpreende, portanto, a eficácia do "convite" que fazem os "corruptos cinzentos": quem quiser usufruir e abusar das mesmas regalias e privilégios, que consiga cargo de confiança ou passe em concurso público.
Corrupção: rede diabólica
No passado, os comunistas fracassaram porque entenderam corrupção como "vício de origem" capitalista e descartaram seus impactos sobre os padrões de moralidade e os modelos sociais de conduta da sociedade que queriam construir. Na verdade, sob o comunismo, da mesma forma que no capitalismo, corrupção gera desânimo em relação ao trabalho duro, competente e honesto, e desconfiança para com o próprio cidadão, que, quando extrapola o papel de simples consumidor torna-se "o inimigo", causador de problemas cuja mera existência justifica abuso e práticas corruptas. Livres ficam, portanto, os aparelhos de manipulação ideológica para explorar sentimentos de culpa, para apregoar que todos temos "um dedão na lama", pois afinal quem de nós "não aceitou um pagamento sem recibo" ou deixou de dar "uma cervejinha ao guarda"?
Essa noção de corrupção como "pecado de todos nós", traço do caráter nacional, pedra no meio do nosso caminho à modernidade, é profundamente reacionária. Corrupção não acontece somente quando a ocasião se faz presente nem se restringe a "bandas podres" de "maus servidores", como guardas safados e políticos sem vergonha que só agem quando são "seduzidos" por alguém mal-intencionado. A corrupção é "organizada" de forma hierárquica e autoritária; permeia a polícia, o Judiciário e o Ministério Público, envolve políticos, partidos, empresas, intermediários e a própria população. Forma redes diabólicas em que superiores dizem aos subordinados como e quando empregar práticas corruptas e cometer abusos, estabelecendo quotas de participação em transações com dinheiro, informações, proteção política, decisões favoráveis, apoio e consentimento.
Caso da mocinha que, aprovada em concurso público, foi nomeada para trabalhar em uma movimentada repartição tributária. Ainda vibrando com suas realizações pessoais, recebeu o primeiro pagamento, mas verificou que na sua conta havia um salário e meio a mais. Atônita, perguntou ao supervisor o que poderia ter acontecido e como fazer para devolver o dinheiro. Paternalmente, o chefe lhe disse que sossegasse; o dinheiro não só era dela como poderia continuar recebendo tanto ou até mais se cumprisse determinadas "instruções superiores". O que o chefe não disse, mas a moça logo ficou sabendo que todos que se recusavam a cumprir as tais "instruções" não só deixavam de receber depósitos extras como eram transferidos para lugares distantes, perdidos no sertão brasileiro.
Não podemos ou não sabemos?
Diante dessa rede demoníaca, em que os corruptos são meras peças de reposição, todas as nossas experiências de corrupção têm em comum o fato de dizermos, apáticos e impotentes, que "nada podemos fazer" quando o certo seria admitir que "não sabemos o que fazer". Não sabemos, e sobretudo as autoridades não sabem, porque lhes falta coragem e vontade de convencer as pessoas que não devem confiar indefinidamente nos outros (principalmente nas próprias autoridades) para resolver suas preocupações, e sim que cada um precisa assumir a sua parcela de responsabilidade. Não é verdade que "somos todos iguais", como dizia aquela velha canção, nem que "temos todos um dedão na lama". A verdade é que jamais somos ouvidos e muito menos convocados a participar da solução dos problemas que ainda parecem estar além da capacidade de cooperação e entendimento dos poderosos e das elites dirigentes.



* Fundação Maurício Grabois (São Paulo).

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