COMUNISMO: OUTRO OLHAR
Descrição do Produto
RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES (Org.) COMUNISMO: OUTRO OLHAR Quirinópolis 2014
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 2
RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES (Org.) COMUNISMO: OUTRO OLHAR Material didático da Universidade Estadual de Goiás. Disciplina Temas de Sociologia – Licenciatura de História.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 3
Quirinópolis 2014
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 4
Conselho Editorial – UEG campus Quirinópolis Edevaldo Aparecido Souza (Curso de Geografia) Eduardo Batista Silva (Curso de Letras) Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos (Curso de História) Fernando Silva (Educação Física) Flávia Assumpção Santana (Curso de Biologia) Joana Correa Goulart (Curso de Pedagogia) Roberto Barcelos Souza (Curso de Matemática) Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves (Curso de História) Revisão deste material: Edevaldo Aparecido Souza FICHA CATALOGRÁFICA Gonçalves, Rodrigo Jurucê Mattos (Organizador). Comunismo: outro olhar. Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves (Org.). Quirinópolis: Edição do organizador, 2014. 91 p. Material didático (Licenciatura em História) – Universidade Estadual de Goiás. Revisão de Edevaldo Aparecido Souza. 1. Comunismo 2. Socialismo 3. Cuba 4. História I. Gonçalves, Rodrigo Jurucê Mattos II. Universidade Estadual de Goiás III. Título.
CDU 94+32 CDD 900 335 Material didático de uso exclusivo e restrito à Universidade Estadual de Goiás. É proibida a venda e a distribuição para fins comerciais. Material exclusivamente voltado para fins educacionais e de ensino da Licenciatura em História, disciplina Temas de Sociologia, durante o ano letivo de 2014. Os textos são de responsabilidade de seus autores. Todas as fontes estão devidamente citadas.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 5
Dedico este trabalho a todos os trabalhadores que, no seu cotidiano e nas lutas da vida, buscam um mundo melhor, livre da exploração e das mazelas sociais do capitalismo.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 6
“...si usted es capaz de temblar de indignación cada vez que se comete una injusticia en el 1
mundo, somos compañeros, que es más importante." Che Guevara
“... se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, (então) somos companheiros, o que é mais importante”. 1
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 7
Resumo Este material didático reúne textos sobre a temática do comunismo e do socialismo. O objetivo é contribuir para o debate da questão, bem como desmistificar uma série de ideias conservadoras que são divulgadas de forma massiva, especialmente pela mídia burguesa. Procurase ainda combater o obscurantismo que geralmente envolve as discussões entorno do comunismo e do socialismo. Palavraschave: Comunismo, Socialismo, Cuba, União Soviética.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 8
Sumário Introdução Opressivo e cinzento? Não, crescer no comunismo foi a época mais feliz de minha vida Zsuzsanna Clark 92% dos alemães orientais preferem o comunismo no país Os últimos dias da união soviética Fernando Arribas García Não li e não gostei! Mauro Castelo Branco de Moura O que não se diz sobre os médicos cubanos Cuba: os próximos 45 anos? István Mészáros O sistema político em cuba: uma democracia autêntica Anita Leocadia Prestes Cuba é o melhor país da América latina para ser mãe
9 10 16 20 26 33 37 48 53
Cuba ou a globalização da solidariedade: o internacionalismo humanitário Salim
Lamrani
55
Sistema de saúde cubano é elogiado por médicos dos EUA Edward W. Campion e
Stephen Morrissey Os rumos de Cuba segundo os cubanos Eduardo Sales De Lima Che Guevara, exemplo de vida para as novas gerações Néstor Kohan Revolução Cubana: 50 anos de resistência e dignidade Tiago Nery
61 65 74 81
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 9
Do período especial à ascensão de Raúl Stephen Wilkinson
85
Sites com informação alternativa
91
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 10
Introdução Esse material que agora o leitor tem em mãos nasceu de um debate na disciplina de Temas de Sociologia que ministramos no 1º ano do Curso de História da UEG, campus Quirinópolis. Tratase de uma compilação de textos disponíveis na internet ou em periódicos impressos. Todas as fontes estão citadas. Não vou alongar esta (breve) introdução, mas é importante dizer que estes textos foram reunidos com o objetivo de que você, leitor interessado, possa se desvencilhar das amarras do conservadorismo e que possa ter um outro olhar sobre as experiências socialistas do século XX. Isso lhe permitirá ver de outro modo as experiências socialistas que virão. Aproveito para indicar um livro sobre a Revolução Cubana: AYERBE, Luis Fernando. A revolução cubana . São Paulo: Unesp, 2004. (Coleção Revoluções do século XX). É importante dizer que os textos aqui reunidos são de diferentes autores, mas todos têm algo em comum: não compactuam. Não compactuam com a ordem capitalista ainda vigente. Ao final, oferecemos uma lista de sites nos quais se encontramse informações alternativas, para que possa se desvencilhar da mídia oficial burguesa. Eventuais inserções minhas nos textos estão entre colchetes “[ ]”. Boa leitura. Um abraço do Prof. Rodrigo Jurucê. Quirinópolis. 2014.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 11
OPRESSIVO E CINZENTO? NÃO, CRESCER NO COMUNISMO FOI A ÉPOCA 2
MAIS FELIZ DE MINHA VIDA “Quando as pessoas me perguntam como era crescer atrás da Cortina de Ferro, na Hungria nos anos setenta e oitenta, a maioria espera escutar contos sobre polícia secreta, as filas nas padarias e outras declarações desagradáveis sobre a vida em um Estado de partido único”. Zsuzsanna Clark (Hungria) Eles ficam sempre desapontados quando explico que a realidade era muito diferente, e a Hungria comunista, longe de ser o inferno na terra, era, na verdade, um ótimo local para viver. Os comunistas proporcionavam a todos trabalho garantido, boa educação e atendimento médico gratuito. Mas talvez o melhor de tudo fosse a sensação primordial da camaradagem, o espírito que falta em minha adotada GrãBretanha e, de igual forma, a cada vez que volto à Hungria atual.
A autora do artigo, Zsuzsanna Clark, como estudante de Ensino Primário na Hungria socialista.
2
Este texto mostra uma visão bastante diferenciada daquela que estamos acostumados a ver nos meios de comunicação: a do comunismo como uma ditadura perversa, onde todos são escravizados pela “casta” do Partido único. Originalmente publicado em diarioliberdade.org. 29/11/2012.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 12
Eu nasci em uma família de classe trabalhadora em Esztergom, uma cidade no norte da Hungria, em 1968. Minha mãe, Juliana, veio do Leste do país, a parte mais pobre. Nascida em 1939, teve uma infância dura. Deixou a escola aos 11 anos e foi diretamente trabalhar nos campos. Ela recorda ter tido que se levantar às 4 da manhã para caminhar cinco quilômetros e comprar um pão. De menina, ela tinha tanta fome que com frequência esperavam junto à galinha até que pusesse um ovo. Então o abria e engolia, crua, a gema e a clara. Foi o descontentamento com aquelas condições dos primeiros anos do comunismo, que conduziu à revolta húngara de 1956. Os distúrbios fizeram com que as lideranças comunistas compreendessem que só poderiam consolidar suas posições tornando as nossas vidas mais toleráveis. O stalinismo acabou e o 'comunismo goulash' um tipo original de comunismo liberal chegou. Janos Kadar, o novo líder do país, transformou a Hungria na barraca mais feliz do Leste da Europa. Tínhamos provavelmente mais liberdades que em qualquer outro país comunista. Uma das melhores coisas foi a maneira como as oportunidades de lazer e férias se abriram a todos. Antes da Segunda Guerra Mundial, as férias estavam reservadas para as classes altas e médias. Nos imediatos anos do pósguerra também, a maioria dos húngaros estava trabalhando muito duro para reconstruir o país, as férias ficavam fora de questão. Porém, nos anos sessenta, como em muitos outros aspectos da vida, as coisas mudaram para melhor. No final da década, quase todo mundo podia se dar ao luxo de viajar, graças à rede de subsídios a sindicatos, empresas e cooperativas de centros de férias. Meus pais trabalhavam em Dorog, uma cidade próxima, por Hungaroton, uma companhia discográfica de propriedade estatal, de modo que ficamos no acampamento de férias da fábrica no lago Balaton, “o mar húngaro”. O acampamento era similar à espécie de colônias de férias na moda na GrãBretanha da época, a única diferença era que os hóspedes tinham que fazer seu próprio entretenimento às noites. Não havia campos de férias tipo Butlins Redcoats.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 13
Algumas das minhas primeiras lembranças da vida no lar são os animais que meus pais mantinham no quintal. A cria de animais era algo que a maioria da gente fazia, bem como o cultivo de hortaliças. Fora de Budapeste e as grandes cidades, nós éramos uma nação de ‘Tom e Barbara Goods”. (nota: referência à série da BBC dos anos 70 “The Good Life”, protagonizada por uma família autosuficiente) Meus pais tinham por volta de 50 frangos, porcos, coelhos, patos, pombos e gansos. Mantivemos os animais não só para alimentar a nossa família, como também para vender a carne a nossos amigos. Utilizaramse as penas de ganso para travesseiros e edredons. O governo entendeu o valor da educação e da cultura. Antes da chegada do comunismo, as oportunidades para os filhos dos camponeses e da classe operária urbana, como eu, para ascender na escala educativa eram limitadas. Tudo isso mudou após a guerra. O sistema educativo na Hungria era similar ao existente no Reino Unido na época. A Educação Secundária era dividida por níveis: Elementar, Secundário Especializado e Formação Profissional. As principais diferenças eram que estávamos no Ensino Básico até os 14 anos e não até os 11. Havia também ensino noturno, para crianças e para pessoas adultas. Os meus pais, que tinham abandonado a escola de novos, iam a aulas de Matemática, História e Literatura Húngara e Gramática. Eu adorava os ir à escola e principalmente fazer parte dos Pioneiros um movimento comum a todos os países comunistas. Muitos no Ocidente achavam que era uma bruta tentativa de doutrinar a juventude com a ideologia comunista, mas sendo pioneiros ensinaramnos habilidades valiosas para a vida, tais como a cultura da amizade e a importância de trabalharmos para o benefício da comunidade. “Juntos um para o outro” era nosso lema, e assim foi como nos encorajavam a pensar. Como pioneiro, se obtinha bons resultados em teus estudos, no trabalho comunal ou em competições escolares, podia ser premiado com uma viagem a um acampamento de verão. Eu ia todos os anos, porque participava em quase todas as atividades da escola: competições, ginástica, atletismo, coro, fotografia, literatura e biblioteca.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 14
Em nossa última noite no acampamento de Pioneiros, cantávamos canções ao redor da fogueira, como o Hino Pioneiro: “Mint a mokus fenn a fan, az uttoro oly vidam” (“Somos tão felizes como um esquilo em uma árvore”), e outras canções tradicionais. Nossos sentimentos sempre foram misturados: tristeza diante da perspectiva de irmos embora, mas contentes ante a ideia de vermos nossas famílias. Hoje em dia, inclusive os que não se consideram comunistas olham para atrás com saudade para seus dias de pioneiros. As escolas húngaras não seguiam as chamadas ideias “progressistas” sobre a educação dominantes no Ocidente. Os padrões acadêmicos eram extremamente altos e a disciplina era estrita. Minha professora favorita ensinounos que sem o domínio da gramática húngara iríamos carecer de confiança para articular os nossos pensamentos e sentimentos. Só podíamos dar um erro se queríamos atingir a nota mais alta. Diferentemente do Reino Unido, tínhamos exames orais em todas as matérias. Em Literatura, por exemplo, tínhamos que memorizar e recitar diferentes textos e depois a/o estudante teria que responder perguntas colocadas oralmente pela professora. Sempre que tínhamos uma celebração nacional, eu era das que pediam para recitar um poema ou verso em frente de toda a escola. A Cultura era considerada extremamente importante pelo governo. Os comunistas não queriam restringir as coisas boas da vida para as classes altas e médias – o melhor da música, a literatura e a dança eram para o desfrute de todos. Isto significava subsídios generosos para as instituições, incluindo orquestras, óperas, teatros e cinemas. Os preços dos ingressos eram subsidiados pelo Estado, daí que as visitas à ópera e ao teatro fossem acessíveis. Abriramse “Casas da Cultura” em cada vila e cidade, também provinciais, para que a classe trabalhadora, como meus pais, pudessem ter fácil acesso às artes cênicas, bem como aos melhores intérpretes. A programação na televisão húngara refletia a prioridade do regime para levar a cultura às massas, sem estupidez.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 15
Quando eu era adolescente, a noite do sábado em prime time pelo geral significava ver uma aventura de Jules Verne, um recital de poesia, um espetáculo de variedades, uma obra de teatro ao vivo, ou um simples filme de Bud Spencer. Grande parte da televisão húngara era feita com produção própria, mas alguns programas de qualidade eram importados, não unicamente do Bloco do Leste, mas também do Oeste. Os húngaros de inícios dos anos 70 acompanharam as aventuras e tribulações de Soames Forsyte em The Forsyte Saga, tal como o público britânico tinha feito poucos anos antes. The Onedin Line foi uma outra das séries populares da BBC que eu desfrutei, assim como os documentários de David Attenborough. No entanto, o governo estava atento ao perigo de nos tornarmos uma nação de telespectadores imbecilizados. Todas as segundasfeiras, tínhamos “noite familiar”. Aí a televisão estatal ficava fora do ar e isso encorajava as famílias a fazerem outras coisas juntas. Também era chamada "noite dos planos familiares" e eu tenho certeza que um estudo do número de crianças concebidas durante as segundasfeiras familiares seria uma boa leitura. Ainda que vivêssemos no “comunismo goulash” e tivéssemos sempre comida suficiente para comer, não éramos bombardeados com publicidade de produtos que não precisávamos.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 16
Com 14 anos, a Zsuzsanna (à direita) com uma amiga ainda antes da volta da Hungria ao capitalismo.
Durante a minha juventude, vesti roupas em segunda mão, como a maior parte das pessoas novas. A minha mochila escolar era da fábrica onde meus pais trabalhavam. Que diferença com a Hungria de hoje, onde as crianças são intimidadas, tal como no Reino Unido, por usarem uns tênis da “pior” marca. Como a maioria da gente na era comunista, meu pai não tinha obsessão com o dinheiro. Como mecânico, ele cobrava às pessoas com justiça. Uma vez vi um carro avariado com o capô aberto um espetáculo que sempre o fazia reagir. Pertencia a um turista da Alemanha Ocidental. Meu pai arranjou o carro, mas negouse a cobrarlhe, nem que fosse com uma garrafa de cerveja. Para ele era natural que a ninguém pudesse aceitar dinheiro por ajudar a alguém com problemas. Quando o comunismo na Hungria terminou em 1989, não só fui surpreendida, também estava entristecida, tal como muitos outros. Sim, tinha gente se manifestando contra o governo, mas a maioria das pessoas comuns – eu e minha família incluída – não participou nos protestos.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 17
Nossa voz – a voz daqueles cujas vidas foram melhoradas pelo comunismo – rara vez se escuta quando se trata de discussões sobre como era a vida por trás da Cortina de Ferro. Em troca, os relatos que se escutam no Ocidente são quase sempre da perspectiva de emigrantes ricos ou dos dissidentes anticomunistas com um interesse pessoal. O comunismo na Hungria teve seu lado negativo. Enquanto as viagens a outros países socialistas não tinham nenhuma restrição, viajar para o oeste era problemático e só era permitido a cada dois anos. Poucos húngaros (eu incluída) desfrutaram das aulas de russo obrigatórias. Tinha restrições menores e desnecessários setores burocráticos, e a liberdade para criticar o governo estava limitada. No entanto, apesar disto, acho que, em seu conjunto, as características positivas ultrapassam as negativas. Vinte anos depois, a maior parte destes benefícios foram destruídos. As pessoas já não têm estabilidade no emprego. A pobreza e a delinquência estão aumentando. Pessoas da classe trabalhadora já não podem se dar ao luxo de ir à ópera ou ao teatro. Tal como na GrãBretanha, a televisão atonta em um grau preocupante ironicamente, nunca tivemos Big Brother durante o comunismo, mas hoje temos. E o mais triste de tudo, o espírito de camaradagem que uma vez se desfrutou quase desapareceu. Nas últimas duas décadas é possível que tenhamos aumentado o número de shoppings, a "democracia" multipartidarista, os celulares e a internet. Mas perdemos muito mais.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 18
3
92% DOS ALEMÃES ORIENTAIS PREFEREM O COMUNISMO NO PAÍS Para marcar a data da queda do Muro de Berlim, o [jornal alemão] Der Spiegel fez uma pesquisa, divulgada neste sábado (10), com mil alemães que cresceram nos dois lados do país dividido até 9 de novembro de 1989. A conclusão [é] para desespero do semanário alemão [conservador]. 11/11/2007.
Junto com a TNS Forschung, o Spiegel fez a pesquisa com duas gerações distintas de alemães orientais e ocidentais com o objetivo de obter um retrato dos resultados da unificação na psique nacional. A conclusão é que o muro ideológico ainda permanece nas mentes alemãs, quase duas décadas após a reunificação. Foram entrevistados 500 jovens na faixa etária de 14 a 24 anos e seus 500 pais na faixa de 35 a 50 anos. A primeira, tinha no máximo seis anos quando o muro caiu e, evidentemente, possui uma experiência temporal menor do período em que o país estava dividido pela Guerra Fria. Já a segunda geração tinha pelo menos 17 anos, e no máximo 32, quando ocorreu a débâcle do muro. O método da pesquisa constatou que praticamente não há diferenças entre as gerações mais jovens e mais velhas na sua forma de pensar a reunificação. Socialismo, uma boa idéia As maiores diferenças na pesquisa aparecem quando os entrevistados orientais e ocidentais compartilham suas opiniões sobre a vida na antiga Alemanha Oriental. O Estado comunista recebe notas muito mais altas dos que moram no Leste com relação aos que moram no Oeste. Dos alemães orientais de 35 a 50 anos, 92% acreditam que um dos maiores atributos da antiga Alemanha Oriental foi sua rede de segurança social; 47% dos jovens no Leste também
3
Originalmente publicado em: vermelho.org.br. 11/11/2007.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 19
pensam assim. No item ''padrão de vida'', os jovens do Leste avaliam a Alemanha comunista de maneira ainda mais positiva que seus pais. Por outro lado, apenas 26% dos jovens ocidentais e 48% dos seus pais expressaram a opinião que a Alemanha Oriental tinha um sistema mais forte de bem estar social comparado com o de hoje. Os alemães orientais também estão menos satisfeitos e menos otimistas com sua situação do que os que vivem nos Estados que compunham a antiga Alemanha Ocidental. Eles estão muito menos convencidos das virtudes do capitalismo do que seus colegas ocidentais. Muitos acreditam que o socialismo é uma boa idéia que simplesmente não foi bem implementada no passado. Contudo, apesar da nostalgia pela Alemanha Oriental, a maior parte dos alemães orientais diz que preferiria morar no Oeste, caso um novo Muro de Berlim fosse construído hoje. O que não é de todo contraditório, já que durante a Guerra Fria, com o apoio de todo tipo dos EUA ao Oeste, e também todo tipo de boicote ao Leste, a Alemanha Ocidental oferecia muito mais riqueza, ainda que com alguma desigualdade, do que a Oriental. Identidades diferentes Os dados da pesquisa revelam que as diferenças ideológicas se refletem na identidade de cada grupo, já que 67% dos jovens alemães, e 82% de seus pais, orientais e ocidentais não sentem que possuem as mesmas identidades. Quanto tempo, entretanto, levará para a Alemanha se unificar ideologicamente? Para 25% dos jovens alemães ocidentais, e só 5% dos orientais, ''não levará mais do que cinco outros anos''. Apenas 12% e 4%, respectivamente, de pais concordaram com os filhos. Muitos jovens alemães orientais vêem a Alemanha de hoje como um lugar onde seus pais têm dificuldades para encontrar um caminho. Apesar da geração mais nova praticamente não ter vivenciado a vida sob o socialismo, o compartilhar das lembranças, opiniões e histórias de seus pais naturalmente os influenciam. Jovens pensam como seus pais
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 20
Esta talvez seja a explicação que os comentários do Spieguel tentam manipular a favor do Oeste para que os jovens alemães do Leste vejam a antiga Alemanha Oriental sob uma luz mais otimista do que seus compatriotas no Oeste, e viceversa. ''É uma opinião [as dos jovens da Alemanha Oriental] de lentes corderosa, que vê uma Alemanha Oriental com emprego para todos, creches para todas as crianças e um sistema de bem estar social que acompanhava o cidadão do berço ao túmulo. É claro, essa geração não foi exposta aos aspectos negativos da vida sob o domínio comunista como filas de comida e repressão da polícia'', argumenta o Spiguel . Porém, a pesquisa indica que o mesmo argumento de ''lentes corderosa'' para desqualificar a opinião dos jovens do Leste, sobre a Alemanha Oriental, também serve aos jovens do Oeste, com relação a Alemanha Ocidental, com pelo menos um ponto de vantagem para os primeiros. Quem viveu a Alemanha comunista agora está vivendo a capitalista, enquanto que o inverso não foi possível. Tiro no pé Como toda manipulação não se sustenta por muito tempo, o próprio Spiguel é obrigado a admitir a realidade, um verdadeiro tiro no pé, no último parágrafo da matéria que noticiou a pesquisa neste sábado. ''Ainda assim, os sentimentos positivos para certos aspectos da antiga Alemanha Oriental continuam altos. Dos jovens alemães orientais entrevistados, 60% disseram que achavam ruim que nada tivesse restado das coisas que se podiam orgulhar da Alemanha Oriental''. Os resultados da pesquisa fazem lembrar o seriado alemão que devido ao imenso sucesso no país virou filme lançado em 2003, chamado Adeus, Lênin! , do diretor alemão Wolfgang Becker. ''Adeus, Lênin!'' No longa, Christiane Becker (Kathrin Sa), que mora na então Alemanha comunista, é abandonada pelo marido, tendo que criar seus dois filhos, Alexander (Daniel Brühl) e Ariane (Maria Simon), sozinha.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 21
Uma vez recuperada do trauma da separação, Christiane tornase uma cidadã ativa e exemplar, transformando o país em um substituto de seu marido, abraçando assim, o ideal comunista. Mas ao ver Alexander participando de uma revolta antisocialista, ela fica gravemente doente e acaba entrando num longo coma que a faz dormir durante a queda do Muro de Berlim e a adaptação ao capitalismo de sua Alemanha Oriental. Ela acorda do coma, mas frágil demais para se deparar com o choque das mudanças do mundo ao seu redor. Comovido, Alexander precisa forjar a vitória da ideologia do comunismo e sapatear para criar a ilusão na mãe de que nada mudou. Socialismo vivo Quatro anos após o lançamento do filme, que teve como pano de fundo o dilema da reunificação sob a égide capitalista com o fim da Guerra Fria, a pesquisa reafirma que o ideal comunista não morrerá tão cedo nos corações dos alemães que viveram as primeiras experiências mais duradouras do regime no mundo. A manifestação com 50 mil pessoas em Moscou (Rússia), no último dia 7 de novembro [de 2007], por ocasião das comemorações dos 90 anos da Revolução Russa, é apenas mais uma fotagrafia do quanto por lá esse sentimento continua extremamente vivo.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 22
4
OS ÚLTIMOS DIAS DA UNIÃO SOVIÉTICA Há 20 anos de uma história mal contada e que ainda não terminou. 5
Por: Fernando Arribas García . Em 26 de dezembro de 1991, o Soviete Supremo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, órgão máximo do Estado e assento do nível superior do Poder Popular, segundo o Artigo 108 da Constituição até então vigente, se reuniu na sua sede do Grande Palácio do Kremlin em Moscou. A agenda do dia incluía um único ponto: a consideração da renuncia que havia apresentado no dia anterior Mikhail Gorbachev ao cargo de Presidente Executivo da União Soviética (URSS), devolvendo efetivamente ao Soviete Supremo todos os poderes como Chefe de Estado que este lhe havia encomendado em sucessivos procedimentos desde outubro de 1988. O debate que seguiu, em um clima encrespado, depois de vários meses de grave instabilidade política e institucional, tomou um tom cada vez mais sombrio. A decisão final adotada nesse dia, pese as irregularidades do procedimento (não parecem haver cumprido as formalidades de determinação de quórum, em vista da ausência obrigada de muitos dos deputados comunistas), é sem dúvida um dos acontecimentos mais dramáticos e transcendentais da segunda metade do século XX: o Soviete Supremo se declarou a si mesmo dissolvido, com o que concluía oficialmente a existência da URSS, faltando dois dias para o 69º aniversário de seu estabelecimento. Quatro meses antes, na sequência dos acontecimentos de 19 a 21 de agosto, Boris Yeltsin, então Presidente da República Federativa Socialista Soviética da Rússia (a maior das 15 repúblicas que formavam a URSS), havia emitido um decreto proibindo a existência e as atividades do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) no território russo, em violação da Constituição e das leis da URSS da qual a Rússia todavia fazia parte, e desconhecendo a
4
Originalmente publicado em: pcb.org.br. 25/01/2012. Tradução de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves. Diretor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais “BolívarMarx”.
5
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 23
legitimidade da maioria dos deputados tanto no Soviete Supremo da URSS como no da Rússia, que eram membros do agora proscrito PCUS, como o havia sido até esse dia o próprio Yeltsin. O decreto ordenava ademais o confisco de todos os bens do Partido, a interrupção imediata da publicação de seus órgãos de imprensa e a prisão sumária de seus ativistas. O golpe de agosto Yeltsin havia emergido como o grande vencedor da confusa série de eventos de agosto de 1991, que resultaram na erosão irremediável dos poderes constituídos e causaram à URSS uma ferida que finalmente resultaria mortal. O dia 19, em um intento nefasto para deter a crescente agitação separatista que ameaçava a integridade territorial do país, vários membros do Conselho de Ministros da URSS, sob a direção do Vicepresidente Gennady Yanayev e com apoio das Forças Armadas e da força de segurança do Estado, mas contra a opinião do Presidente Gorbachev, havia declarado o Estado de Emergência. Por vários dias, este grupo de ministros se reuniu com Gorbachev tratando sem êxito de lhe convencer da necessidade de atuar com maior energia para aplacar os movimentos separatistas que começavam a tomar força nas repúblicas bálticas, assim como na Ucrânia, Bielorrússia e até a na própria Rússia. Diante da negativa de Gorbachev, o grupo de ministros o desconsiderou como Presidente, estabeleceu um Comitê de Estado de Emergência, e designou a Yanayev como Presidente Provisório. Não se cumpriram os procedimentos previstos pela Constituição para a declaração do Estado de Emergência e para a substituição do Presidente (o Conselho de Ministros não foi legalmente constituído para tomar a decisão), pelo que este movimento pode ser considerado como um “golpe de Estado”. E ainda que a vasta maioria da população seguramente estava de acordo com os objetivos últimos do autoproclamado Comitê (76% do eleitorado havia votado em um referendo em março a favor da preservação da URSS), a óbvia ilegalidade de procedimento e a falta de transparência das ações do Comitê semearam a desconfiança e a confusão e deram alento a uma decidida minoria a entrar em ação. No dia 20, Yeltsin saiu às ruas de Moscou discursando aos seus seguidores e a organizando a “resistência” frente a um ataque militar que supostamente estava para começar. No dia 21 houve efetivamente alguns movimentos de tropas até o centro da cidade, que encontraram certa resistência civil; mas depois de três mortes (duas delas acidentais), o Comitê titubeou diante da possibilidade de um massacre e pediu a Gorbachev que reassumisse seu cargo.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 24
No dia 22 ficou formalmente restabelecida a ordem constitucional, mas o poder e o prestígio da Presidência e de todo o aparato do Estado haviam sido irreparavelmente deteriorados. Yeltsin, arroubado pelo seu êxito e pela rápida popularidade que havia obtido, resistiu a acatar plenamente os poderes restabelecidos e permaneceu em rebeldia frente ao Estado soviético até que forçou Gorbachev a renunciar, e precipitou a última decisão do Soviete Supremo. Até aqui, o relato de uma história bastante conhecida. Um Pinochet para a URSS O que não é tão conhecido é que a ideia de dar um golpe de Estado contra Gorbachev havia sido alentada desde 1990 em diversos meios dos Estados Unidos e do Reino Unido, com a esperança de que algum reformador prócapitalista mais audacioso que o próprio Gorbachev assumisse o poder e acelerasse o desmonte total do Estado socialista. Gorbachev havia posto em marcha há vários anos uma série de reformas que inicialmente propugnavam reorganizar a URSS com o objetivo de modernizar as instituições socialistas e aumentar a eficiência e a produtividade da economia soviética. Contudo, à medida que as reformas avançavam, seu objetivo foi se borrando, e em 1990, segundo palavras do próprio Gorbachev, a meta já era o estabelecimento de uma “economia social de mercado” que mantivesse um setor público com indústrias chaves sob controle estatal e permitisse ao mesmo tempo o florescimento de um poderoso setor capitalista. Mas os planos de Gorbachev requeriam de dez a quinze anos e manteriam de toda maneira boa parte da economia soviética fora do alcance do capitalismo; isto não era suficiente para aqueles que queriam aproveitar o momento de debilidade da URSS e apagála de imediato e por completo. Em julho de 1991, durante a reunião da Cúpula do G7 que se desenvolveu em Londres e a que a URSS havia sido convidada pela primeira vez, representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial fizeram Gorbachev saber que não lhe dariam o apoio financeiro necessário para continuar suas reformas se não acelerasse o ritmo e abrisse totalmente a economia soviética aos mercados capitalistas internacionais. Se tratava, segundo conta Gorbachev em suas memórias, de uma chantagem sem atenuantes ao que se negou. Apenas um mês mais tarde, o jornal estadunidense The Washington Post publicou um artígo sob o insólito título de “O Chile de Pinochet: modelo para a nova economia soviética”, em que se propunha abertamente a necessidade de um golpe de Estado na URSS para remover a
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 25
Gorbachev, eliminar a resistência às mudanças prócapitalistas e dar um rumo pleno para uma economia de mercado. A mesma ideia, e com palavras parecidas, já havia sido exposta em dezembro de 1990 em um artigo da revista britânica The Economist . Quase ao mesmo tempo em que se publicava esse insultante artigo do Washington Post , ocorreu efetivamente o golpe de Estado contra Gorbachev, ainda que, pelo menos aparentemente, inspirado por intenções opostas às que alentava o jornal estadunidense. Mas, fossem quais fossem as intenções dos ministros soviéticos que estabeleceram o Comitê de Estado de Emergência, quando o pó se assentou nas ruas de Moscou, evidente, na prática, seu movimento havia servido paradoxalmente para abrir caminho a um dirigente suficientemente inescrupuloso e voraz para cumprir a função de um Pinochet soviético: Boris Yeltsin. A terapia de choque Em poucos dias, contrariando a orientação do governo da URSS e a linha do PCUS, Yeltsin entrou em negociações com o FMI, o qual enviou a Moscou seu assessor estrela, Jeffrey Sachs, o principal promotor do conceito da “terapia de choque” que o Fundo oferecia naqueles anos como receita mágica para resolver os problemas econômicos mundiais. A terapia consistia na aplicação rápida e sem considerações das mais extremas medidas neoliberais (privatização massiva, corte radical dos gastos sociais, liberação geral dos preços, desregulação dos mercados internos e internacionais). A chave do êxito, segundo Sachs, era aplicar tal pacote de medidas com grande rapidez e rigor absoluto, com o objetivo de tomar o país de surpresa e impossibilitar a resistência. Mas para isso era necessário um governante disposto a tudo, como Pinochet no Chile de 1973. E Yeltsin demonstrou ser esse governante. Entre agosto e outubro de 1991, ao mesmo tempo que ordenava a privatização de quase 250 mil empresas estatais e a eliminação dos subsídios e dos controles de preços sobre todos os bens e serviços, Yeltsin usou seu poder político para esmagar qualquer força que se opusesse às mudanças em marcha. O primeiro alvo, como havia sido no Chile, foi o Partido Comunista. Seguiram os sindicatos, os conselhos de trabalhadores e camponeses, as organizações populares de massa. No fim de outubro, Sachs e seus terapeutas de choque estavam confiantes de que o povo, privado de suas organizações e dirigentes naturais, desorientado e aturdido pela rapidez das mudanças, e esgotado após muitos meses de luta política, já não ofereceria maior resistência. E Yeltsin se lançou então para consolidar seu controle para garantir a
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 26
continuidade das reformas. Com o PCUS impossibilitado de atuar abertamente, e com todas outras formas de resistência anuladas, Yeltsin obteve de um Parlamento controlado por seus cúmplices poderes absolutos para governar por decreto. Sob a orientação de Sachs, e com a colaboração de uma equipe de economistas neoliberais que adotaram com orgulho o apelativo [epíteto] de “os novos Chicago Boys» (os Chicago Boys originais, recordese, haviam sido os assessores de Pinochet sob a liderança de Milton Friedman), Yeltsin havia logrado, no final de 1992, apagar completamente toda sombra da antiga Rússia soviética: um terço da população se encontrava agora abaixo da linha de pobreza, o consumo de alimentos havia reduzido quase pela metade, a inflação superava 2 mil %, o Produto Interno Bruto havia caído em 54% e o desemprego era generalizado. O ditador Yeltsin No início de 1993, o povo começou a reagir em numerosos protestos que reclamavam pelo fim das políticas neoliberais. Em março, diante da crescente pressão popular, o Parlamento votou a anulação dos poderes absolutos de Yeltsin, e aprovou um orçamento contraditório aos mandatos de austeridade do FMI. Mas já era tarde: Yeltsin havia consolidado seu controle sobre os elementos chaves da vida russa. Sem que nada nem ninguém pudesse evitar, decretou o Estado de Emergência, desconsiderou as decisões do Parlamento e recuperou seus poderes absolutos. Mais tarde, quando o Parlamento e a Corte Constitucional protestaram contra a ilegalidade de tais ações, Yeltsin ordenou dissolver o Parlamento e aboliu a nova Constituição que o mesmo havia promulgado meses antes. Os deputados se negaram então a abandonar seus assentos, e Yeltsin ordenou ao exército cercar o edifício do Parlamento e cortar a água, a luz e os telefones. Depois de longas semanas de assédio, e diante o crescente apoio que os deputados estavam recebendo do povo, Yeltsin decidiu acabar de uma vez por todas com o problema e em 3 de outubro ordenou ao exército bombardear, incendiar e tomar o Parlamento a qualquer custo. E, diferentemente dos temerosos golpistas de agosto de 1991, a Yeltsin não lhe estremeceu o pulso diante da possibilidade de um massacre: no dia seguinte uns 600 civis foram mortos, mais de mil haviam sido feridos e uns mil e 700 haviam sido presos. A Rússia estava agora pela primeira vez em décadas sob o controle de uma autêntica ditadura sangrenta.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 27
Epílogo Todavia falta esclarecer completamente as razões profundas que foram erodindo o prestígio e a vitalidade do Estado soviético, e que o levaram à situação de debilidade institucional e estancamento econômico no qual se encontrava nos anos 80. Porque ainda que as reformas empreendidas por Gorbachev resultaram em seu conjunto numa traição ao projeto socialista, não nos cabe dúvida de que algumas de tais políticas, pelo menos na sua intenção inicial, respondiam efetivamente à necessidade urgente de corrigir os graves vícios e deformações que tinham se acumulando por décadas. Falta também esclarecer plenamente o processo de corrupção interna que havia sofrido o PCUS, e que permitiu que personagens do nível de Yeltsin tenham escalado posições em sua estrutura hierárquica até chegar à ocupar postos chaves de direção, somente para trair o Partido, o socialismo e o país quando se apresentou uma oportunidade propícia. Mas o que ficou bastante claro já desde o momento destes eventos, é que os principais perdedores com a dissolução da URSS e o desmantelamento do socialismo foram os povos das repúblicas agora exsoviéticas. Vinte anos mais tarde, continua em quase todas elas a instabilidade institucional que se iniciou em 199093, e se aprofundam os problemas sociais e econômicos gerados pelo estabelecimento a sangue e fogo do capitalismo. Sem o formidável sistema de seguridade social integral da época soviética, e com a economia completamente controlada por empresários privados em plena expansão de seus interesses, estes povos enfrentam uma situação de grave desamparo cada vez mais aguda, como em todos os outros países capitalistas com a crise cíclica do sistema. Assim não surpreende que, pese a proibição que se manteve por mais de dois anos sobre as atividades comunistas na Rússia, pese a intensa e permanente campanha de desprestígio e calúnias nos meios de comunicação de todo mundo contra o PCUS e seus sucessores, e pese as manobras de todo tipo que continuam até o dia de hoje para dificultar as atividades das organizações comunistas e para prevenir seu avanço, o Partido Comunista da Federação Russa (PCFR) é hoje o segundo maior partido do país com cerca de 20% dos votos nas eleições presidenciais de 2008 e nas parlamentarias de 2011 (fica demonstrado que em ambas oportunidades o PCFR foi vítima de fraudes que o privaram de cerca da metade de sua votação), e o primeiro em algumas localidades e regiões. Não pode surpreender que os
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 28
comunistas também estejam obtendo inclusive êxitos eleitorais maiores em várias outras repúblicas exsoviéticas, como Moldávia, Letônia e Bielorrússia. A história continua e suas melhores páginas ainda estão por escrever.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 29
NÃO LI E NÃO GOSTEI! A REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO ABRIU SUAS PÁGINAS AO VITUPÉRIO E À 6
APOLOGIA DO OBSCURANTISMO 7
Mauro Castelo Branco de Moura “Não há entrada já aberta para a ciência e só aqueles que não temem a fadiga de galgar suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos luminosos” Karl Marx A pretexto da irretorquível defesa da liberdade de pensamento a REA abriu suas páginas, infelizmente, à apologia do mais abjeto obscurantismo. Em seu nº 83, de abril do corrente, o Diplomata Paulo Roberto de Almeida, em artigo supostamente bem humorado, intitulado O fetiche do Capital , defende ostensivamente a idéia de que não se deva estudar O Capital de Marx nas universidades, pois se trataria, em síntese, de obra completamente ultrapassada. Mesmo quando afirma “que não tenho nada contra a leitura do Capital ” o Diplomata Almeida logo se apressa em acrescentar a seguinte ressalva: “sempre bemvinda e interessante quando se dispõe de tempo e do lazer necessários a um mergulho na história das idéias econômicas do século XIX”. Em tom professoral o preocupado diplomata adverte: “Tenho reparado, pela minha freqüentação de listas de discussões e pela leitura de sites acadêmicos que professores universitários brasileiros continuam a insistir com seus alunos na leitura do Capital , leitura que é feita sempre parcial e truncadamente, pois que não concebo um estudante “normal” de
6
Este texto é a denúncia contra a tão comum negação do marxismo como ciência fundamental e indispensável para a evolução da humanidade. A polêmica do professor Mauro de Moura pode ser endereçada à todos aqueles que buscam desqualificar e renegar o marxismo. Originalmente publicado em: espacoacademico.com.br. Revista Espaço Acadêmico, n. 85, junho de 2008. 7 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outras obras, de Os Mercadores, o Templo e a Filosofia: Marx e a Religiosidade , Coleção “Filosofia” nº 181, Porto Alegre, Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Edipucrs), 2004.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 30
nossas instituições de ensino superior mergulhando na leitura sistemática dos três livros do Capital (e mais quatro sobre a Teoria da MaisValia ), sem correr seriamente o risco de ser reprovado nas demais matérias por falta de estudo, o que seria a suprema ironia”. Não deixa de ser curioso o incômodo provocado em Paulo Roberto de Almeida com o fato de que, eventualmente, algum professor universitário insista em que seus alunos leiam O Capital de Karl Marx. Digo, eventualmente, porque todo aquele que freqüente as academias brasileiras nos dias de hoje sabe o quão difícil será encontrar algum professor que ministre aulas sobre esta obra clássica. Fica a pergunta: porque este empenho em censurar o ensino de um clássico, condenandoo ao esquecimento? O diplomata insinua uma preocupação de exegeta contra leituras parciais e truncadas, já que por sua extensão e (ele não afirma, mas eu poderia acrescentar) complexidade a leitura cabal da obra não estaria ao alcance de nossas instituições de ensino superior e assim, em tom libertário, pretende “livrar” os estudantes brasileiros deste penoso fardo. Destarte, seguindo a linha de raciocínio do cioso diplomata, deduzo, como professor de filosofia, que o ensino de minha disciplina é absolutamente inapropriado nas universidades brasileiras. Como pedir a alunos que leiam a Crítica da Razão Pura de Kant ou a Ciência da Lógica de Hegel uma vez que são obras extensas e reconhecidamente difíceis? E o ensino dos pensadores antigos, não seria ainda mais problemático? Teria algum sentido, na perspectiva do cioso diplomata, ler a Metafísica de Aristóteles, por exemplo, obra escrita há mais de dois mil anos? “Livremos nossos alunos de toda a cultura clássica!”, é isso o que apregoa Paulo Roberto de Almeida? Devemos fazer o que, ler gibi ou livros de autoajuda em sala de aula? Não obstante, só ao Capital de Marx o Diplomata Almeida pretendeu defenestrar, só esta obra mereceu entrar em seu índex pessoal... Em sua cruzada por “libertar” os alunos deste penoso e inútil fardo o cioso articulista se despoja de qualquer rigor acadêmico e inicia um valetudo onde a pose inicial de exegeta se desvanece completamente. A displicência começa quando 8
afirma que a “edição original” de O Capital teria sido em 1863 ( sic ) . O paladino dos estudantes erigiu seu moinho de vento (porém, sem a honesta e enlouquecida ingenuidade do “engenhoso fidalgo da Mancha”) sem citar a própria obra em questão uma única vez. Com O Livro I de O Capital conheceu três versões quando Marx ainda em vida. A primeira delas, em alemão, veio a lume em 1867. Sucederamna a 2ª edição alemã (que comporta diferenças muito importantes com relação à 1ª), publicada em fascículos entre 1872 e 1873, e a versão francesa, traduzida por Joseph Roy, mas substancialmente reformulada pelo próprio Marx, e publicada, também em fascículos, entre 1872 e 1875. 8
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 31
enorme desassombro dedicouse a imprecar contra o clássico sem qualquer pudor intelectual, fazendo tábula rasa da enorme literatura crítica que o cerca, citando apenas Pareto, porém no frágil contexto do magiter dixit . Isto numa revista denominada Espaço Acadêmico... Qual seria o objetivo do cioso diplomata? Decerto que não pretendeu estimular o debate acerca da obra, o que seria, per se , louvável e academicamente salutar, independentemente da posição que assumisse. Aliás, para encomiar ou para combater seria de bom alvitre certo distanciamento crítico, não é o que pretendeu o Diplomata Almeida. Na verdade, seu primeiro objetivo foi o de tender um cordão sanitário em torno da obra de Marx, convidando os que não a leram a que continuassem a ignorála. O mais tacanho obscurantismo, portanto, moveuo em seu libelo, sem sequer ser original neste execrável intuito (quantos destruidores de livros a história já conheceu!). Porém, ao fazêlo esqueceu que aos clássicos não lhes dá a medida o pigmeu, mas é a própria insignificância que se revela sem disfarces na comparação. O Capital , como qualquer outra obra clássica, não está sub judice , pelo contrário, é ele que julga àqueles que pretendem ajuizálo. É como uma Mona Lisa a espreitar as legiões de visitantes do Louvre que dela se aproximam, sempre haverá os que não a estimem uma obra meritória... Porém, ela seguirá lá impávida, julgando, com seu sorriso enigmático, novas multidões de admiradores... Lembrome, quando era ainda bastante jovem, no tempo da ditadura militar, que Mário Henrique Simonsen, à época ministro (da fazenda se não me engano), escreveu certa feita um artigo para o caderno cultural do Jornal do Brasil louvando a reedição de O Capital , cuja primeira edição no Brasil já se achava esgotada. Sem qualquer suspeição de simpatia pela obra, o ex ministro, como qualquer homem lúcido e bem informado haveria de fazêlo, destacava a importância da obra (e só um obscurantismo desvairado a circunscreveria apenas ao âmbito restrito do contexto do século XIX). Porém Mário Henrique Simonsen não fez verão sozinho. Raymond Aron, por exemplo, que dedicou uma parte relevante de sua extensa obra à crítica dos marxistas, jamais pretendeu que Marx não fosse lido, pelo contrário, tornouse um excelente especialista, referência para críticos ou admiradores. Para continuar no âmbito francês, Jacques Attali, líder de uma comissão de notáveis designada pelo Presidente Nicolas Sarkozy (que não pode, de modo algum, ser acusado de “marxismo”!) para sugerir um plano de reformas ao governo francês por ele presidido,
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 32
conhece tão bem a vida e a obra de Marx que é autor de uma biografia ( Karl Marx ou l’esprit du monde , Paris, Fayard, 2005), relativamente bem documentada, onde destaca, precisamente, a atualidade do pensamento do autor que o Diplomata Almeida quer ver confinado nas calendas do século XIX e sem ser lido no século XXI. Como se vê, não é necessário esposar o ideário marxista para reconhecer a importância do legado de Marx, sobretudo de O Capital , basta algum descortino... Sem embargo, Paulo Roberto de Almeida não parou por aí. Tendido o cordão sanitário em torno do legado de Marx, o cioso diplomata revela agora, com toda a clareza, outra faceta (já antes esboçada, mas de modo velado!): a de provocador. Contrariando a expectativa que se tem dos egressos do prestigioso Instituto Rio Branco, o Diplomata Almeida não revela qualquer politesse ao “resenhar” na REA nº 84, de maio do corrente, o livro Incontornável Marx , organizado por Jorge Nóvoa. Decerto que não há nada de errado na emissão de comentários críticos acerca de uma obra resenhada, porquanto não se exige de quem escreve uma resenha uma postura neutra. Pelo contrário, é desejável que emita uma opinião argumentada, se favorável ou desfavorável, pouco importa. Porém, coloco o “resenhar” entre aspas porque em momento algum o articulista expôs o conteúdo do livro, apenas limitouse ao vitupério e ao achincalhe, confundindo imprensa marrom com revista acadêmica (e isto 9
caberia aos editores da REA impedir!) . Sua tese, ou melhor, sua obsessão, que começa no deselegante e desrespeitoso título, Marxistas totalmente contornáveis , parece ser a de demonstrar que Marx é um autor completamente defasado, sem qualquer valor atual e que o interesse por sua obra se confinaria 10
a nostálgicos empedernidos e sádicos . Ensandecido pelas próprias diatribes, o cioso diplomata, convertido agora em paladino da causa do capitalismo, atropela o conjunto dos colaboradores do livro, nacionais e estrangeiros, alguns de grande nomeada, com uma enxurrada de adjetivos. O menos defenestrado por suas invectivas foi Michael Löwy, cujo
9
O zelo pela qualidade do material publicado não deve ser confundido com censura. Permitir que as páginas de uma revista acadêmica respeitada sejam conspurcadas por um provocador raivoso é um sério desserviço à idoneidade da mesma. 10 Segundo o cioso diplomata, paladino de indefesos estudantes, nas garras dos perversos marxistas, “As ações “Marx” estão indiscutivelmente em baixa no mercado [...] são valorizadas na academia – hoje, talvez, como método de tortura de estudantes que sequer sonham em ser socialistas –, mas não correm o risco de passar ao setor real da economia, pois seriam rapidamente remetidas às camadas geológicas do capitalismo précambriano, quando não tomadas como brincadeira de sonhadores incuráveis”.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 33
texto, no entanto, se enquadraria, segundo o intrépido diplomata, na categoria “arqueologia marxista”... Porém, a apoteose da “resenha” é o seu grand finale , quando o Diplomata Almeida deixa cair a máscara e se converte em bufão, esquecendo completamente que o debate de idéias, pelo menos no seio da academia (e de publicações como a REA), deveria estar pautado pelo respeito (se é que se quer verdadeiramente debater), e conclui com a seguinte pérola de rasteira grosseria: “Pessoalmente, não creio que o conteúdo ontológico deste Marx “incontornável” valha o preço do papel no qual ele foi impresso. Pelo peso do volume, ele deve valer bem duas ou três pizzas em algum microempreendimento capitalista: assim, o seu dinheiro estará muito melhor empregado. O livro não é apenas contornável e dispensável: ele é totalmente indigesto. Melhor ficar com a pizza...” Perguntase: se Marx e seus seguidores são carta fora do baralho da história, porque tanto empenho em atacálos? Não se pode imaginar que o cioso diplomata não tenha nada melhor a fazer em seus momentos de ócio do que vituperar e achincalhar superados jurássicos... Pelo contrário, a provocação não parece um destempero gratuito, mas a obra de alguém obcecado e que tem um alvo a atingir. Pelo ânimo virulento da linguagem empregada depreendese que o Diplomata Almeida arvorase em paladino de uma causa. Qual seria ela? Algumas pistas podem estar no mesmo número da REA (84, de maio de 2008) que contém a aludida “resenha”. Num artigo intitulado As roupas novas do império: 21 teses rápidas Paulo Roberto de Almeida declina aos leitores da revista algumas pérolas de seu ideário. Em suas próprias palavras: “Um império é, basicamente, um sistema extrator de recursos por meio da coerção, o que não ocorre no caso dos EUA, que estão comprometidos com valores e princípios condizentes com a liberdade de mercados e as franquias políticas democráticas. Qualquer afirmação em contrário teria de comprovar que as ditaduras que os EUA apoiaram em várias partes do mundo, na era da Guerra Fria, foram obras construídas consciente e deliberadamente pelos EUA para assegurar um tipo qualquer de extração de recursos por via da coerção militar”. Por mais admiração que se tenha pelos Estados Unidos e, sobretudo, pelo povo e cultura norteamericanos (e este é o meu caso pessoal!), só alguém cegado pelo fanatismo poderia afirmar uma coisa assim, quando os contraexemplos são tão evidentes. Como o Diplomata Almeida classificaria a invasão do Iraque? Em nome da defesa de que “valores”? Ou seria das
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 34
receitas das empresas apaniguadas da Casa Branca? Ou do controle do petróleo iraquiano? Quais “franquias políticas democráticas” são defendidas no Iraque? E em Guantánamo? Ou há algumas décadas foram defendidas no Vietnam? Será pela defesa da “liberdade de mercados” que o etanol brasileiro encontra barreiras no mercado americano? Seria infindável continuar com os contraexemplos... Porém, a segunda parte da assertiva mereceria um rápido exame. Contudo, para não cometer a indelicadeza de pontificar sobre outros países, seria melhor circunscrever o debate ao caso do Brasil, nação à qual o Diplomata Almeida é pago para servir. Hoje, em virtude da documentação disponibilizada, não há mais qualquer dúvida acerca da ingerência dos Estados Unidos em apoio à quartelada que feriu de morte a ordem constitucional brasileira em 1964 e isto foi feito tão “consciente e deliberadamente” que o próprio Embaixador Americano no Brasil à época, Lincoln Gordon, admitiu sua atuação em favor dos golpistas. Imaginar que a participação americana na quartelada foi em defesa das “franquias políticas democráticas” dos brasileiros e que isto não propiciou a “extração de recursos” do país é de uma “ingenuidade” comovente! Só um fanático, obcecado por uma idéia, pode ter uma leitura tão tortuosa da realidade. Contrariando toda a evidência empírica o destemido Diplomata Almeida perece acreditar que a Grande Nação Americana é a própria manifestação terrena da Liberdade. Em suas palavras: “ Nesse sistema de portas abertas, a única “ditadura” suscetível de ser criada pela hegemonia dos EUA é aquela que destrói todas as ditaduras. Estas são as bases indiscutíveis do “império” americano: a livre circulação de fatores de produção e de produtos da inteligência e da criatividade humanas. Esse é um sistema destruidor de todas as hegemonias conhecidas historicamente. Mas quem destrói todas as velhas hegemonias não é o poder comercial ou econômico dos EUA, e sim a força das suas idéias , idéias muito simples: liberdade de iniciativa, liberdade política, liberdade de acumular e de circular riquezas”. Fica aqui a pergunta: se as idéias americanas são assim tão fortes, porque precisam de tantas armas? Chega a ser tocante, porém, pouco realista, a admiração que o Diplomata Almeida nutre pelos Estados Unidos (aliás, por mim compartilhada, porém sem este viés fanático e fundamentalista) e é de se perguntar se isso não lhe causa nenhum conflito íntimo quando seu desempenho como diplomata o obriga a defender os interesses nacionais frente aos do país que tanto idolatra, a menos, é claro, que pense como o notório político que não teve qualquer
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 35
pejo em afirmar que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”... Em países menos tolerantes que o nosso este tipo de amor obcecado a uma potência alienígena pode ser considerado traição à pátria, sobretudo quando envolve pessoal do seu corpo diplomático. E os próprios Estados Unidos, por exemplo, não costumam ser muito indulgentes com seus concidadãos envolvidos neste tipo de conflito de interesses. Em sua idolatria, talvez ao Diplomata Almeida não lhe ocorra interrogarse, por exemplo, acerca do caráter intrinsecamente antidemocrático do sistema eleitoral americano, pelo menos quando comparado ao brasileiro. Em nosso país (sem deixar de reconhecer as imensas imperfeições do sistema político brasileiro), porém onde tivemos uma vasta campanha popular em prol de eleições diretas, o sistema americano de eleições indiretas não pode despertar muitas simpatias. Ter um presidente eleito com menos votos do que seu contendor, como foi o caso de Bush II em seu primeiro mandato (sem falar da fraude, notadamente na Flórida onde seu irmão era o Governador) não pode ser muito edificante para quem pretenda exportar democracia... E a Liberdade de que fala Paulo Roberto Almeida não pode ser abstrata, seria algo demasiado paradoxal para a nação berço do pragmatismo. Não obstante, é possível que muita gente nos próprios Estados Unidos ou alhures (sob os influxos dos mesmos) não consiga experimentar esta Liberdade na prática, talvez por isso a população carcerária americana seja tão grande e o recurso à pena de morte tão utilizado! O Diplomata Almeida, em seu fundamentalismo maniqueísta, habita em um mundo nostálgico da Guerra Fria. Se ela não existe mais, tornase mister recriála! Há um tocante simplismo hollywoodiano em suas colocações. De um lado, o bem e o Sétimo de Cavalaria; do outro, o mal, índios, comunistas e quejandos... Porém, só a crassa desinformação e a cegueira do fanatismo puderam conduzir o intrépido combatente da Guerra Fria rediviva ao equívoco de afirmar que: “As ações “Marx” estão indiscutivelmente em baixa no mercado”. Ledo engano Diplomata Almeida! Jamais os estudos sobre Marx tiveram tanto impulso! A retomada do projeto editorial de publicação do conjunto da obra de Marx e Engels na última 11
década do século passado já começa a produzir frutos e, na contramão dos desejos do A MarxEngels Gesamtausgabe , mais conhecida como Mega2 , projeto abraçado pelo Internationale Marx Engels Stiftung (IMES), fundado com este propósito em 1990, com sede em Amsterdam, porém com o apoio de instituições de vários países, pretende publicar, pela primeira vez com critérios estritamente acadêmicos de rigor e cientificidade, a totalidade das obras de Marx e de Engels, já que as outras tentativas neste sentido quedaram inconclusas. Dos 114 volumes previstos (122 tomos), 52 volumes (56 tomos) já foram publicados (http://www.bbaw.de/bbaw/Forschung/Forschungsprojekte/mega/de/Ueberblick#Portug). 11
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 36
nostálgico diplomata, há um expressivo movimento de retomada nos estudos sobre a obra do ilustre pensador renano. À esteira da MarxEngels Gesamtausgabe os projetos de tradução também proliferam. Acaba de ser lançado na Sorbonne, em Paris, o projeto GEME ( grande édition Marx et Engels ) que pretende efetuar uma nova tradução das obras desses autores em francês, proporcionando, a partir de 2010, uma edição eletrônica das obras. Na Itália, Edizioni "La Città del Sole" retomou a publicação das Opere complete di Marx ed Engels (e já vai pelo vigésimo segundo volume!) . No Brasil há um visível incremento no número de títulos de Marx disponíveis no mercado editorial, para não falar de obras sobre o pensamento de Marx como o Incontornável Marx , cuja primeira tiragem esgotouse...
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 37
12
O QUE NÃO SE DIZ SOBRE OS MÉDICOS CUBANOS
Profundo conhecedor da realidade de Cuba e membro do núcleo de estudos cubanos da Universidade de Brasília, o jornalista Hélio Doyle produziu diversas análises técnicas, e sem ranço ideológico, sobre a importação de 4 mil profissionais pelo governo brasileiro. Os textos foram cedidos ao 247 e permitem uma maior compreensão sobre um tema que tem gerado tanto debate. Leia abaixo seus artigos: O que não se diz sobre os médicos cubanos A grande imprensa brasileira, que nos últimos anos exacerbou, por incompetência e ideologia, a superficialidade que sempre a caracterizou, tem sido coerente ao tratar da vinda de quatro mil médicos cubanos: limitase a noticiar o fato e reproduzir as críticas das associações corporativas de médicos e dos políticos oposicionistas. Mantémse fiel à superficialidade que é sua marca, acrescida de forte conteúdo ideológico conservador e de direita. Não conta, por exemplo, que médicos cubanos já trabalharam no Brasil, atendendo a comunidades pobres e distantes nos estados de Tocantins, Roraima e Amapá. Não houve
12
Originalmente publicado em brasil247.com. 24/08/2013.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 38
nenhuma reclamação quanto à qualidade desse atendimento e nenhum problema com o conhecimento restrito da língua portuguesa. Os médicos cubanos tiveram de deixar o Brasil por pressão do corporativismo médico brasileiro – liderado por doutores que gostam de trabalhar em clínicas privadas e nas grandes cidades. A grande imprensa não conta também que há mais de 30 mil médicos cubanos trabalhando em 69 países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania, lidando com pessoas que falam inglês, francês, português e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala francês e o dialeto creole, há 1.200 médicos cubanos – que sustentam o sistema de saúde daquele país e, como profissionais com alto nível de educação formal, aprendem rapidamente línguas estrangeiras. O professor John Kirk, da Universidade Dalhousie, no Canadá, estudou a participação de equipes de saúde de Cuba em vários países e é dele a frase seguinte: “A contribuição de Cuba, como ocorre agora no Haiti, é o maior segredo do mundo. Eles são pouco mencionados, mesmo fazendo muito do trabalho pesado”. Segredo porque a imprensa internacional – especialmente a estadunidense — não gosta de falar do assunto. Kirk contesta o argumento de que os médicos cubanos que atendem as comunidades pobres em vários países não são eficientes por não dominar as últimas tecnologias médicas: “A abordagem hightech para as necessidades de saúde em Londres e Toronto é irrelevante para milhões de pessoas no Terceiro Mundo que estão vivendo na pobreza. É fácil ficar de fora e criticar a qualidade, mas se você está vivendo em algum lugar sem médicos, ficaria feliz quando chegasse algum”. O problema dos que contestam a vinda de médicos estrangeiros e, em especial dos cubanos, é que as pessoas que passam anos ou toda a vida sem ver um médico ficarão muito felizes quando receberem a atenção que os corporativistas do Brasil lhes negam e tentam impedir. Socialismo e guerra fria Duas informações referentes à vinda de médicos cubanos para o Brasil e que podem ser úteis aos que querem ir além do que diz a grande imprensa: Cuba é um país socialista e por isso, gostemos ou não, as coisas não funcionam exatamente como em um país capitalista. Como é um país socialista, há a preocupação de manter baixos
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 39
os índices de desigualdade econômica e social. Por isso nenhuma empresa ou governo estrangeiro contrata trabalhadores cubanos diretamente, em Cuba ou no exterior (nesse caso quando a contratação é resultado de um acordo entre estados). Todos são contratados por empresas estatais que recebem do contratante estrangeiro e pagam os salários aos trabalhadores, sem grande discrepância em relação ao que recebem os que trabalham em empresas ou organismos cubanos. Os médicos que trabalham no exterior recebem mais do que os que trabalham em Cuba. Mas algo como nem muito que seja um desincentivo aos que ficam, nem tão pouco que não incentive os que saem. O governo dos Estados Unidos tem um programa especial para atrair médicos cubanos que trabalham no exterior. Eles são procurados por funcionários estadunidenses e lhes são oferecidas inúmeras vantagens para “desertar”, como visto de entrada, passagem gratuita, permissão de trabalho e dispensa de formalidades para exercer a atividade. Os que atuam na América Latina são os mais procurados e uma condição para serem aceitos no programa é que critiquem o sistema político cubano e digam que os médicos no exterior são oprimidos e mantidos quase como escravos. Os que aceitam as ofertas dos Estados Unidos, os que emigram para outros países ou ficam no país que os recebe depois de terminado o contrato representam cerca de 3% dos efetivos. No Brasil, mantida essa média, podese esperar que até 120 dos quatro mil médicos cubanos “desertem”. Um sistema irreal A citação a seguir é do New England Journal of Medicine: “O sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”. Menções elogiosas ao sistema de saúde cubano e a seus profissionais são frequentes em publicações especializadas e ditas por autoridades médicas e organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde, a Organização Panamericana de Saúde e o Unicef. Mas mesmo assim, querendo negar a realidade, médicos e políticos brasileiros insistem em negar o óbvio, chegando ao absurdo de dizer que nossa população está correndo riscos ao ser atendida pelos cubanos.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 40
Para começar, os indicadores de saúde em Cuba são os melhores da América Latina e estão à frente dos de muitos países desenvolvidos. A mortalidade infantil, por exemplo (4,8 por mil), é menor do que a dos Estados Unidos. Aliás, para os que gostam de dizer que Cuba estava melhor antes da revolução de 1959, naquela época era de 60 por mil. A expectativa de vida dos cubanos é também elevada: 78,8 anos. Outro aliás quanto aos saudosistas: em 1959, Cuba tinha seis mil médicos, sendo que três mil correram para os Estados Unidos quando viram que não haveria mais lugar para o sistema privado de saúde e que os doutores elitistas e da elite perderiam seus privilégios. Hoje tem 78 mil médicos, um para cada 150 habitantes, uma das melhores médias do mundo. Isso permite a Cuba manter mais de 30 mil médicos no exterior. Desde 1962, médicos cubanos já estiveram trabalhando em 102 países. Em 2012 formaramse em Cuba 5.315 médicos cubanos em 25 faculdades públicas e 5.694 estrangeiros, que estudam de graça na Escola LatinoAmericana de Medicina (Elam). A Elam recebe estudantes de 116 países, inclusive dos Estados Unidos, e já formou 24 mil estrangeiros. Os médicos cubanos se formam após seis anos de graduação, incluindo um de internato, e mais três ou quatro anos de especialização. Os generalistas, que atendem no sistema Médico da Família (um médico e um enfermeiro para 150 a 200 famílias, e que moram na comunidade que atendem) são preparados para atuar em clínica geral, pediatria, ginecologiaobstetrícia e fazer pequenas cirurgias. Dos quatro mil médicos que vêm para o Brasil, todos têm especialização em medicina de família, 42% já trabalharam em pelo menos dois países e 84% têm mais de 16 anos de atividade. Grande parte já atuou em países de língua portuguesa, na África e em TimorLeste. Foi em Timor, a propósito, que ocorreu o fato seguinte: o embaixador estadunidense exigiu do então presidente Xanana Gusmão que expulsasse os médicos cubanos. Xanana perguntou quantos médicos dos Estados Unidos havia no TimorLeste e quantos o país mandaria para substituir os mais de duzentos cubanos que estavam lá. Diante da resposta, de que havia apenas um, que atendia os diplomatas norteamericanos, e que não viria mais nenhum, Xanana, simplesmente, disse que os cubanos ficariam. E estão lá até hoje. Falando português.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 41
13
CUBA: OS PRÓXIMOS 45 ANOS? Por: István Mészáros. 1 Dia 1º de Janeiro Cuba celebrou o quadragésimo quinto aniversário de sua vitoriosa revolução: uma grande conquista histórica. E quando nos lembramos de que a revolução cubana – a ação duradoura de uma nação de apenas onze milhões de pessoas – sobreviveu ao longo de quarenta e cinco anos contra todos os riscos, confrontando a inimizade declarada, o cerco e bloqueio internacionais determinados pelos Estados Unidos, assim como as tentativas de subverter e derrubar a ordem pósrevolucionária pela mais preponderante potência econômica e militar, até mesmo esse simples acontecimento põe em relevo a magnitude e a significância da atual intervenção cubana no processo histórico de nosso tempo. Somos todos contemporâneos de uma vitória cujas reverberações chegam bem além dos limites do tendenciosamente propagandeado “Hemisfério Americano”, oferecendo sua mensagem de esperança também para o resto do mundo. Em 1999, três anos antes de o governo americano ter negativamente decretado que Cuba fazia 14
parte do “eixo do mal”, visando eliminar o “círculo vicioso” numa fase inicial do agressivamente promovido “novo século americano”, escrevi no prefácio de Socialismo ou Barbárie : Chegou ao fim o século XX, descrito pelos apologistas mais entusiasmados como o “século americano”. Essas opiniões se manifestam como se não houvesse ocorrido a Revolução de Outubro de 1917, nem as revoluções Chinesa e Cubana, nem as lutas pela libertação colonial das décadas seguintes, isso sem mencionar a humilhante derrota dos Estados Unidos no
13
Originalmente publicado em: resistir.info. 12/01/2004. Nascido na Hungria em 1930, István Mészáros é um dos maiores pensadores vivos. É autor de diversas obras, como “Para além do capital” (São Paulo: Boitempo, 2002). 14 Lincoln DiazBallart, “amigo íntimo e assessor do Presidente Bush, fez essa declaração enigmática a uma estação de TV de Miami: 'não posso entrar em detalhes, mas estamos tentando quebrar esse círculo vicioso .' Que métodos eles estarão considerando para lidar com esse círculo vicioso? Minha eliminação com os recursos sofisticados que desenvolveram, como prometeu Mr. Bush no Texas antes das eleições? Ou pelo ataque a Cuba tal como atacaram o Iraque?” Do discurso do Presidente Fidel Castro pronunciado no dia Primeiro de Maio de 2003.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 42
Vietnã. De fato, os defensores acríticos da ordem estabelecida antecipam confidencialmente que não apenas o século XXI, mas todo o próximo milênio, está destinado a se conformar às 15
regras incontestáveis da “Pax Americana”. Evidentemente, todos os que se engajam na tentativa fútil de reescrever a história se recusam a reconhecer até o mais óbvio: ou seja, que os grandes eventos históricos, como os que acabei de mencionar, não podem ser desfeitos para se ajustar às contingências políticas do momento. Esses eventos resultam de contradições sociais absolutamente fundamentais, e não perdem a relevância histórica e ardente realidade enquanto determinações arraigadas não forem atendidas de forma positiva e duradoura por um estágio mais avançado de desenvolvimento. Nem quando pensamos no tipo de reversão capitulacionista que vimos na antiga União Soviética. Teremos coragem de pensar nos próximos quarenta e cinco anos? A resposta é simplesmente que isso é necessário. Pois as mudanças históricas da magnitude da que consideramos aqui, embora tenham impacto dramático imediato, só realizam todo o seu potencial numa perspectiva mais longa. Tanto mais porque o adversário histórico entrincheirado sempre ajusta suas próprias estratégias – restringidas apenas pelos limites últimos de suas determinações sistêmicas – para anular todo movimento do adversário progressista. É assim quando os ajustes signifiquem algumas concessões reformistas temporárias, ou quando, pelo contrário, signifiquem a adoção implacável das ações mais destrutivas. E por isso a noção de Kruschev de uma “competição pacífica” com a produção capitalista, como o juiz mutuamente aceito de objetivos rivais, foi tão ingênua, para não dizer coisa mais grave, quando a verdadeira aposta histórica era nada menos que a instituição de uma alternativa radical hegemônica à ordem social do capital. O antagonista capitalista firmemente estabelecido nunca teve a espécie de ilusão que cobra o pagamento de alto preço. Nesse contexto não devemos nos esquecer de que se existe uma interrogação acerca dos próximos quarenta e cinco anos de Cuba, a mesma interrogação paira sobre o futuro de toda a humanidade. Pois na atual fase do desenvolvimento histórico do capital, em resultado do aprofundamento da crise estrutural do sistema, não somente as concessões reformistas do passado terão de ser retomadas – como já estão sendo – até mesmo nos países capitalistas István Mészáros, O Século XXI: Socialismo ou Barbárie, Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 15/16.
15
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 43
mais avançados, mas, dada a insuficiência crônica dos remédios produtivamente disponíveis, surge claramente no horizonte a mortal irracionalidade da adoção do curso de ação mais destrutivo em escala global, tentando se impor como solução racional de todos os nossos problemas. Cuba está ao lado dos Estados Unidos e pode ser atingida militarmente com a maior facilidade. Mas, é claro, a mesma facilidade de ataque está em preparação ativa – tanto para fins de chantagem, inclusive a nuclear, quanto para disparar uma ação militar devastadora – para atingir os cantos mais remotos do mundo. O projeto “Guerra nas Estrelas” de ontem ainda podia ser apresentado como um escudo defensivo, mesmo que na verdade não fosse nada dessa espécie. Mas o sucessor altamente aperfeiçoado, cujo nome de código é “Falcão” (sigla em inglês para Aplicação e Lançamento de Força a partir dos Estados Unidos Continentais) não pode ser considerado outra coisa que não um sistema de armamentos escandalosamente ofensivo, a ser lançado contra o mundo inteiro. A primeira fase operacional desse sistema estará completa em meados de 2006, e os testes iniciais começarão em 2004. Completamente desenvolvidos, os veículos não tripulados “serão capazes de atingir alvos a 9.000 milhas marítimas (16679,25 km) de distância em não mais que duas horas”. Além disso, levarão uma carga de até 12.000 libras (5436 kg) e voarão a velocidades de até 10 vezes a velocidade do som.” O objetivo dessa máquina de guerra infernal é permitir que os Estados Unidos ataquem sozinhos qualquer país que queiram dominar ou destruir, no seu projeto de conquistar a dominação do mundo como indiscutível e inatacável governante do imperialismo hegemônico global. Como comentou John Pike, chefe do think tank “globalsecurity.org”, sobre o novo sistema de armas: Tratase de explodir povos do outro 16
lado do mundo, mesmo que nenhum país do mundo nos permita usar seu território . 2 O fracasso da persistente política do governo americano contra Cuba é amplamente reconhecido. Mesmo um antigo ministro do governo conservador de Margatet Thatcher tem grandes reservas acerca dessa postura anticubana dos americanos e de sua adoção pelos governos da Europa, como deixou claro num artigo recente:
Julian Borger, “USbased missiles to have global reach”, The Guardian , 1 de julho de 2003.
16
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 44
É extremamente ingênuo quem pensa que na era pósCastro Cuba vá se tornar efetivamente o 51º estado dos Estados Unidos. Ainda assim, é exatamente nisso que muitos na administração americana, e até desse lado do Atlântico, parecem acreditar. Na verdade, é mais provável que ocorra exatamente o contrário. ... É preciso evitar o perigo de tomar emprestado o instrumento cego que é a marreta política dos Estados Unidos [e de ver Cuba] através dos binóculos 17
desfocados dos desejos americanos. Desnecessário dizer, visões críticas, ainda quando não possam ser acusadas de “tendenciosamente esquerdistas”, não fazem qualquer diferença para os reacionários formuladores de política da administração dos Estados Unidos. Um de seus subsecretários de estado, John Bolton, acusou Cuba de ser o fornecedor de armas biológicas para os inimigos dos Estados Unidos, tomando por “base” o fato de os cubanos terem uma indústria farmacêutica avançada. Foi uma das primeiras tentativas de caracterizar Cuba como alvo “moralmente justificável” para um ataque militar dos Estados Unidos. Eu mesmo comentei sarcasticamente à época (junho de 2002), num programa de entrevistas da TV brasileira, “Roda Viva”, que esses homens não têm moral nem qualquer respeito pela verdade. Não causa surpresa que tentativas dessa espécie de acusar Cuba de crimes antiamericanos fictícios sejam constantemente renovadas. Fidel Castro relatou no seu discurso de Primeiro de Maio um caso muito recente e ameaçador: A política do governo dos Estados Unidos é de tão escandalosamente provocadora que no dia 25 de abril o sr Kevin Whitaker, chefe do Birô Cubano do Departamento de Estado, informou ao chefe da Seção que cuida dos nossos interesses em Washington que o Departamento de Segurança Interna do Conselho de Segurança Nacional considerava os constantes seqüestros a partir de Cuba uma ameaça grave à segurança nacional dos Estados Unidos, e exigiu que o governo cubano adote todas as medidas necessárias para evitar essas ações. Disse isso como se não fossem eles quem provocava e incentivava esses seqüestros, como se não fôssemos nós que adotávamos medidas drásticas para evitálos.
17
Colin Moynihan, “Cuba has been left out for too long: Britain and Europe must break with 40 years of failed US policy”, The Guardian , 1 de julho de 2003.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 45
A controvérsia internacional acerca da condenação dos seqüestradores teve muito a ver com o desprezo pela ameaça militar direta a que o país estava – e ainda está – submetido por esse motivo. A continuação cínica de atos de provocação e a hipócrita justificação mentirosa nos meios de comunicação de massa permanecem como as características definidoras da política americana com que Cuba está condenada a conviver no futuro previsível, ainda que não pelos próximos quarenta e cinco anos. Certamente não pelos próximos quarenta e cinco anos! Pois é inconcebível que a fase atual, extremamente agressiva do imperialismo hegemônico global – que agora tenta absurdamente “compensar” o perdularismo incurável de seu sistema de produção destrutiva por meio dos gastos astronômicos em armamentos e aventuras militares associadas, financiados pelo buraco negro do endividamento americano – seja capaz de durar tanto tempo, exterminando toda a humanidade se não for interrompido bem antes de decorrido esse tempo. Por muito tempo, Cuba foi forçada a viver em estado de emergência. As grandes privações que tiveram de ser vencidas sob tais circunstâncias não se limitam às conseqüências do bloqueio americano. Depois do desmoronamento do sistema soviético a situação se agravou ainda mais, não somente através do endurecimento do bloqueio americano, na vã esperança de precipitar um colapso imediato, mas também devido à perda pelo país de seus principais mercados e fontes de suprimentos. Por isso, a absorção de calorias e proteínas pela população caiu praticamente à metade, e os anos dolorosos do “período especial” foram necessários para restaurar os requisitos nutricionais da população ao nível anterior. Desnecessário dizer, as condições do estado de emergência são desfavoráveis à conquista de muitos objetivos desejáveis, tanto no plano políticocultural, quanto no econômico. Mas não se pode simplesmente esperar que elas deixem de existir, nem elas devem ser prolongadas além do historicamente justificável, uma vez que as condições se alterem para melhor. Nesse ponto vemos um grande contraste com a experiência soviética. Como sabemos, durante alguns anos depois da Revolução de Outubro o país teve de enfrentar a extrema privação de um autêntico estado de emergência. Mais tarde, entretanto, Stalin prolongou artificialmente durante décadas o estado de emergência antes plenamente justificável, pois essa continuação
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 46
lhe ofereceu uma opção mais fácil para implementar suas políticas autoritárias. Mas seguir assim a “linha de resistência mínima” – já que, na visão de Stalin, todo questionamento das políticas decretadas poderia ser facilmente esmagado – resultou na instituição dos campos de trabalho forçado, com terríveis conseqüências para a produtividade do trabalho, trazendo consigo a violação brutal da legalidade que em 1956 Kruschev condenou com toda razão. Ademais, quando foi forçado em 1952 a admitir que a produtividade do trabalho soviético era seriamente problemática, Stalin tentou resolver a situação pela estipulação de mais uma solução autoritária, propondo a imposição pela administração da disciplina do trabalho. Em seu último texto importante – sobre os “Problemas Econômicos do Socialismo na URSS” – ele decretou a validade eterna da “lei do valor”, a permanência da divisão “nãoessencial” entre o trabalho físico e o mental, e a separação justificável da sociedade entre o “pessoal executivo socialista” (“nossos executivos empresariais”) bem remunerado, e a “força de trabalho físico” firmemente controlada não apenas politicamente, mas também por práticas institucionais “racionais” sucedâneas do mercado. Insistiu na necessidade de “produção e circulação adequada de mercadorias”, a ser regulada com base na “contabilidade de custos e na lucratividade”, deixando para o futuro um perigoso legado e também conferindo “legitimidade socialista” ao autoritarismo tradicional do “mercado disciplinador” cujas 18
fatídicas conseqüências todos conhecemos bem. Evidentemente, não existe nada de artificial no dolorosamente longo estado de emergência de Cuba diante das ameaças militares constantemente renovadas e intensificadas de seu adversário preponderante. No entanto, ninguém poderá negar que todo o potencial da revolução cubana só será fruído num futuro em que, em resultado de uma mudança fundamental das circunstâncias e da relação global de forças, será possível dizer que a obrigação quase proibitiva de enfrentar as forças destrutivas do capital pertence irremediavelmente ao passado. 3 A vitoriosa revolução cubana é única e tem significância universal. É única no sentido de ter resultado de duzentos anos de luta ressurgente, inicialmente contra o colonialismo espanhol, e Os leitores interessados encontrarão uma discussão documentada dessas questões no capítulo 17 de Beyond Capital (Merlin Press, Londres, e Monthly Review Press, Nova Iorque, 1995; em português, Para além do capital , Boitempo Editorial, São Paulo, 2002), especialmente na seção 17.3, que trata de “O fracasso da desestalinização e o colapso do 'socialismo realmente existente'”. 18
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 47
mais tarde contra a dominação imperialista pelos Estados Unidos. A grande figura histórica de José Martí – que mais de cem anos depois de sua morte continua sendo uma tremenda inspiração para o presente – com sua visão de longo alcance ligou diretamente as duas fases, antecipando claramente, muito antes da conclusão da luta contra a Espanha, que Cuba só conquistaria sua emancipação quando conseguisse derrotar a nova dominação americana. Mas a revolução cubana também é única no sentido de que a derrubada do regime servil de Batista foi precedido por três anos de luta armada, sustentada por um número sempre crescente da população do país. A isso se acrescenta o fato de que à época da tomada do poder o governo americano ainda acalentava a ilusão de que seria capaz de dominar o país a seu bel prazer também sob as novas circunstâncias, ainda que de forma ligeiramente alterada. Ademais, dado o esmagador apoio popular à derrubada do regime cliente dos Estados Unidos, ele foi forçado a produzir ruídos favoráveis à mudança. Quando fracassaram as tentativas de voltar a impor a antiga dominação por outros meios, ele imediatamente adotou uma atitude abertamente hostil. É por isso que se vê claramente que o adversário histórico ajusta inevitavelmente suas estratégias quando é forçado a enfrentar um desfio significativo, o que ele faz para reverter a situação, ou pelo menos para evitar novas ocorrências daquilo que o “surpreendeu”, ou melhor, a que foi submetido. Dessa forma, as políticas americanas não somente para Cuba, mas para toda a América Latina (e não somente para ela) – sob a forma de derrubada violenta de regimes democraticamente eleitos (cinicamente em nome da “democracia e liberdade”) e imposição de ditaduras brutais – acentua fortemente esse ponto. A revolução cubana é assim única também sob o aspecto de que na sua esteira até mesmo os primeiros sinais de qualquer luta armada antiimperialista em potencial tiveram de ser esmagados pela intervenção direta ou indireta dos Estados Unidos, como o demonstra também o destino trágico de Che Guevara. Entretanto, se a unicidade da revolução cubana se afirma dessa forma – por várias razões importantes, inclusive a constituição histórica de sua liderança, de José Martí até o presente – ela não pode ser imitada ou repetida, muito menos transformada no modelo compulsório de transformação revolucionária, assim como não se pode dar toda a ênfase necessária à sua significância universal. A tentativas passadas de imposição do modelo soviético, sob Stalin e seus sucessores, causaram prejuízo imenso ao movimento socialista em toda parte. Não se
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 48
pode permitir que isso se repita no futuro, por maiores que sejam as tentações. Ninguém o afirma com mais clareza que o próprio Fidel Castro. Falando de nossos problemas, ele diz: Surgem movimentos de massa que se formam com tremenda força, e eu creio que esses movimentos desempenharão papel fundamental nas lutas futuras. Serão outras táticas, já não será a tática no estilo bolchevique, nem mesmo ao nosso estilo, porque pertenceram a um mundo diferente. Nesse de agora devem surgir novas táticas, sem que isso signifique desânimo para ninguém, em lugar algum, e fazêlo da forma que se considere conveniente. Mas tratemos de ver e analisar com a maior objetividade possível o quadro atual e o desenvolvimento da luta sob o domínio unipolar de uma superpotência: Estados Unidos. Serão outros caminhos e outras vias pelos quais irão se criando as condições para que esse 19
mundo global se transforme em outro mundo. Os apologistas do capital geralmente tentam racionalizar e “explicam para longe” suas próprias contradições e problemas como se fossem o resultado de terem sido “exportadas” de um território estrangeiro por uma “força subversiva”, e conspiratoriamente impostas a eles. Como claramente indicam as linhas citadas acima, nada poderia estar mais longe de uma estratégia genuína de transformação socialista. Pois uma estratégia bem fundamentada deve sempre advogar o acionamento das verdadeiras alavancas transformadoras pelos movimentos sociais existentes sob as condições sociais predominantes e alterar dinamicamente as circunstâncias históricas. O significado universal da revolução cubana reside na sua grande afinidade com as aspirações de todos aqueles que pretendem se libertar das restrições paralisantes da ordem social do capital. Embora, num sentido geral, essa aspiração se aplique a todos que participam da causa da emancipação humana, é compreensível que os ecos gerados pela revolução cubana tenham sido os maiores na América Latina. Pois os países daquele continente foram, e ainda são, todos dominados pela mesma potência imperialista, e seus esforços para remediar sua situação foram constantemente frustrados e afinal anulados, tanto por razões internas quanto
19
Fidel Castro Ruz, “El mundo caótico al que conduce la globalización neoliberal no puede sobrevivir”, Granma , 25 de junho de 1998, p. 6. Citado em Gilberto Valdés Gutiérrrez, “El sistema de dominación múltiple”. Manuscrito.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 49
externas, pelo mesmo sistema social sob o qual eles tiveram que reproduzir suas condições de existência. A mensagem da revolução cubana para eles é portanto dupla. Primeiro, ela focaliza a questão da recuperação de sua soberania dos Estados Unidos, e do seu poder de decisão, libertandose assim da dominação militar, política e econômica de seu vizinho avassalador. E, segundo, ao mesmo tempo as questões fundamentais do sistema reprodutivo socioeconômico em seu conjunto teriam de ser submetidas a uma crítica radical, tanto por causa da insuportável dominação da ordem capitalista pelos Estados Unidos, quanto, o que é mais importante, por causa do anacronismo histórico e perdularismo das determinações metabólicas do capital em geral no atual estágio da história. Noutras palavras, todos os países da América Latina (e não somente eles) tiveram de lutar para sair de seu próprio círculo vicioso de tentar resolver seus imensos problemas na cinicamente inflada margem mínima da “ajuda econômica” americana, quando na realidade é a economia dos Estados Unidos quem permanece maciçamente dependente dos recursos que deve transferir do resto do mundo, de muitas formas diferentes, para sua própria esfera de produção e consumo. E a desanimadora verdade é que o verdadeiro círculo vicioso deve ser operado – não como uma questão de política iníqua, mas de uma política que se pode corrigir por uma “visão esclarecida”, como advoga a “teoria do desenvolvimento modernizador”, mas, pelo contrário – como a imposição fundamentalmente inalterável de um sistema historicamente anacrônico e estruturalmente restrito para o qual “não existe alternativa” (como os políticos do sistema não se cansam de repetir), com os Estados Unidos no seu ponto alto. Desde o início, a mensagem da revolução cubana focalizava esses dois conjuntos de problemas que afetam profundamente todos os países da América Latina. Assim, não importando quando ou com que sucesso os países interessados possam agir no interesse da realização dos objetivos profundamente interligados que têm diante de si, a mensagem dupla da revolução cubana – convocando não apenas para a luta antiimperialista, mas também para uma mudança estrutural e sistêmica da sociedade como a condição última do sucesso daquela luta – está destinada a ressoar com crescente intensidade, até nas circunstâncias mais difíceis, por todo o continente.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 50
4 Quanto ao tempo que nos resta, não pode haver dúvida de que os desafios e perigos continuarão enormes, apesar de todas as conquistas. A ameaça militar dos Estados Unidos contra Cuba foi intensificada nos últimos anos, paralelamente à crescente agressividade da política americana em todo o mundo. De fato, como já mencionamos antes, Cuba foi apontada como um dos estados que constituem o “eixo do mal”, com todas as sinistras implicações de tal caracterização. Mas os formuladores da política americana devem também se lembrar de seu humilhante fiasco na “Baía dos Porcos”. Devem entender que a afirmação de Fidel Castro no discurso do dia primeiro de maio de 2003 não é uma ameaça vazia, quando ele insiste que caso Cuba seja atacada, como o foi o Iraque, “ os agressores não estariam apenas enfrentando um exército, mas milhares de exércitos que constantemente se reproduziriam e fariam o inimigo pagar preço tão alto em baixas que excederia em muito o custo em vidas de seus filhos e filhas que o povo americano estaria disposto a pagar pelas aventuras e idéias do Presidente Bush”. Na verdade, o projeto americano de dominação imperialista global não tem futuro melhor que as variedades anteriores do imperialismo – que no final sempre fracassaram. Mais cedo ou mais tarde, a sobreextensão dos agressores os levará à derrota, mesmo que na estrada que leva ao fracasso final eles possam destruir as condições de existência humana neste planeta. E nesse sentido literalmente vital, superar a ameaça militar a que Cuba está submetida é a causa comum de toda a humanidade. Naturalmente, os perigos não estão confinados ao plano militar. Sua outra dimensão crucialmente importante é a guerra econômica e política a que Cuba foi submetida nos últimos quarenta e cinco anos, constantemente intensificada e que assumiu formas novas e mais perigosas. Hoje ela assume a forma de uma enorme pressão pela “marketização”, que se torna mais problemática diante do fato de que a aceitação de uma ideologia de mercado contribuiu significativamente para a desintegração do sistema soviético no governo de Gorbachev e seus colaboradores. Quando Stalin formulou em 1952 a sua primeira versão da disciplina de mercado – pela qual se compensaria com “bens de consumo lucrativamente produzidos” a “força de trabalho” por
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 51
sua aceitação de tal disciplina – muito do que ele decretou era completamente infundado e teve de permanecer no reino da fantasia. Pois o sistema soviético não poderia operar na base da produção e circulação de mercadorias, sob a lei do valor, principalmente pela razão simples de não ter um mercado adequado, muito menos um mercado de trabalho. E muitas coisas podem ser reguladas numa economia com confiabilidade tolerável com a ajuda de um pseudomercado, que de fato existiu na União Soviética, mas evidentemente não existiu um mercado para a alocação e o controle firme da força de trabalho. Até mesmo Kruschev resistiu à tentação de ampliar as mudanças inspiradas por Stalin nesse campo perigoso. Somente com Gorbachev se deu o passo crítico de estabelecer um verdadeiro mercado de trabalho, trazendo consigo conseqüências catastróficas para a economia e sociedade soviéticas em geral, sem conseguir realizar as expectativas irreais dos formuladores dessa política. É nesse ponto que encontramos a linha crucial de demarcação . Naturalmente, falar de marketização pode cobrir muitas coisas, e freqüentemente não implica nada além do melhor uso dos recursos materiais e humanos. É uma preocupação perfeitamente legítima em qualquer circunstância. Na verdade, ela é grosseiramente violada, apesar de todas as fantasias em contrário, exatamente na atual fase de produção e consumo irremediavelmente perdulários do capital: o inimigo jurado de toda e qualquer preocupação com a economia e com a correspondente alocação racional de recursos. A questão que exige resposta é: quem detém o controle efetivo dos recursos combinados da sociedade, os “produtores associados” ou uma força externa de formulação de decisões, ainda que esta seja ideologicamente adornada com o nome da imaginária e benevolente “mão invisível” de Adam Smith? Uma vez que o trabalho seja transformado em mercadoria como qualquer outra, manipulado de acordo com as exigências fetichísticas e mistificadoras – tudo menos objetivas – do mercado de trabalho, fechamse firmemente todas as portas para as aspirações à realização dos tão necessários objetivos socialistas do povo. Em seu lugar, tudo é lançado no remoinho da restauração capitalista, como nos informa a amarga experiência histórica. Somente a forma mais ansiosa de “doce ilusão” há de esperar a capitulação de Cuba nessa questão de vital importância. A revolução cubana demonstrou sua solidariedade, da forma mais tangível, com a causa da emancipação humana em muitas ocasiões. Mas solidariedade é uma rua de duas mãos. A
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 52
solidariedade internacional tem condições de dar uma contribuição significativa para os próximos quarenta e cinco anos da revolução cubana.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 53
20
O SISTEMA POLÍTICO EM CUBA: UMA DEMOCRACIA AUTÊNTICA Cuba constitui um sistema de poder popular único, autóctone, que não é cópia de nenhum outro. “O governo do povo, pelo povo e para o povo” (Abraham Lincoln) 21
Por: Anita Leocadia Prestes. Ao estudar o sistema político vigente em Cuba, é necessário lembrar que seus antecedentes remontam ao ano de 1869, quando o povo da pequena ilha caribenha lutava de armas na mão pela independência do jugo colonial espanhol. Seus representantes se reuniram na parte do território já liberado e constituíram a Assembléia Legislativa, que aprovou a primeira Constituição da República de Cuba em armas. Era assim estabelecida a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e abolida a escravidão até então existente. Essa primeira Assembléia Constituinte elegeu o Parlamento cubano daquela época e também, de forma democrática, seu Presidente, assim como o Presidente da República de Cuba em armas, designando ainda o Chefe do Exército que levaria adiante a luta pela independência. Cuba socialista reconheceu a importância de tal herança e, inspirada também nos ensinamentos do grande pensador e líder revolucionário José Martí, chegou a criar um sistema político que constitui um Sistema de Poder Popular único, autóctone, que não é cópia de nenhum outro. Em Cuba não existem os chamados três poderes (executivo, legislativo e judiciário), característicos do sistema político burguês. Há um só poder – o poder popular. Como o povo exerce o poder? Segundo a Constituição, o povo o exerce quando aprova a Constituição e elege seus representantes e, em outros momentos, mediante as Assembléias do
20
Originalmente publicado em brasildefato.com.br. Novembro de 2013. Anita Leocadia Prestes é professora do Programa de Pósgraduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Sua história ficou conhecida no filme “Olga” (2004), de Jayme Monjardin. Filha de Olga Benário Prestes e do revolucionário brasileiro Luiz Carlos Prestes, Anita nasceu no em Berlim, em um cárcere nazista, em 1936. 21
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 54
Poder Popular e outros órgãos que são eleitos por estas Assembléias, como é o caso do Conselho de Estado, órgão da Assembléia Nacional. Portanto, o poder popular é único e exercido através das Assembléias do Poder Popular. Outro elemento importante do sistema político cubano é a existência, de acordo com a Constituição, de um único partido – o Partido Comunista. Não se trata de um partido eleitoral, e por isso não participa do processo eleitoral, designando ou propondo candidatos ou realizando campanha a favor de determinados candidatos. Seguindo o caminho apontado por José Martí, fundador do Partido Revolucionário Cubano partido único como única via para conquistar a unidade de todo o povo na luta pela independência e a soberania do país, e também na luta por justiça social , o Partido Comunista de Cuba se diferencia do conceito clássico de partidos políticos; além de não ser um partido eleitoral, é o partido dirigente da sociedade, cujas funções e cujo papel são reconhecidos pela imensa maioria do povo. A definição do seu papel está inscrita na Constituição, aprovada em referendo público, mediante voto livre, direto e secreto de 97,7% da população. É importante ressaltar que o PC é constituído pelos cidadãos mais avançados do país, o que se garante mediante um processo de consulta das massas. São os trabalhadores que não pertencem ao PC que propõem, em assembléias, as pessoas que devem ser aceitas em suas fileiras. Depois que o Partido toma decisão sobre as propostas dos trabalhadores, se reúne novamente com eles para informálos. Quando toma decisões em seus congressos, o PC as discutiu antes com a população. O Partido não dá ordens à Assembléia Nacional do Poder Popular nem ao Governo. O PC, após consultar o povo, sugere e propõe aos órgãos do Poder Popular e ao Governo as questões que somente a essas instituições cabe o papel de decisão. O Parlamento cubano se apóia em cinco pilares de uma democracia genuína e verdadeira, a saber: ●
O povo propõe e nomeia livre e democraticamente os seus candidatos.
●
Os candidatos são eleitos mediante voto direto, secreto e majoritário dos eleitores.
●
O mandato dos eleitos pode ser revogado pelo povo a qualquer momento.
●
O povo controla sistematicamente os eleitos.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 55
●
O povo participa com eles da tomada das decisões mais importantes.
O sistema do Poder Popular em Cuba é constituído pela Assembléia Nacional, as Assembléias Provinciais, as Assembléias Municipais, o Conselho Popular e a Circunscrição Eleitoral, que é o degrau básico de todo o sistema. Nenhum desses órgãos está subordinado a outro, mas todos funcionam de forma que suas funções e atividades sejam complementares, tendo em vista alcançar o objetivo de que o povo possa exercer o governo de maneira prática e efetiva. O sistema do Poder Popular se apresenta atualmente em Cuba da seguinte maneira: no nível nacional, a Assembléia Nacional do Poder Popular; em cada uma das 14 províncias, as Assembléias Provinciais do Poder Popular e nos 169 municípios, as Assembléias Municipais; no nível de comunidade, os Conselhos Populares (1540); cada Conselho agrupa várias circunscrições eleitorais e é integrado pelos seus delegados, dirigentes de organizações de massas e representantes de entidades administrativas. No nível de base, ainda que sem formar parte de maneira orgânica da estrutura do sistema do Poder Popular, nem do Estado, temse a circunscrição eleitoral. A circunscrição eleitoral e o seu delegado são a peçachave, a peça fundamental do sistema. A circunscrição se organiza para efeito das eleições, mas o delegado continua funcionando na área por ela abarcada e, por isso, a mesma continua sendo sempre denominada de circunscrição. Participam das eleições todos os cidadãos cubanos a partir dos 16 anos de idade, que estejam em pleno gozo dos seus direitos políticos e não se incluam nas exceções previstas na Constituição e nas leis do país. Os membros das Forças Armadas têm direito a voto, a eleger e a ser eleitos. A Constituição estabelece que cada eleitor tem direito a um só voto. O voto é livre, igual e secreto. É um direito constitucional e um dever cívico, que se exerce de maneira voluntária, e quem não o fizer não pode ser punido. Diferentemente dos sistemas eleitorais das democracias representativas burguesas, em que os candidatos aos cargos eletivos são escolhidos e apresentados pelos partidos políticos, em Cuba o direito de escolher e apresentar os candidatos a Delegados às Assembléias Municipais do Poder Popular é exclusivamente dos eleitores. Esse direito é exercido nas assembléias gerais dos eleitores das áreas de uma circunscrição eleitoral da qual eles sejam eleitores. A circunscrição eleitoral é uma divisão territorial do Município e constitui a célula fundamental
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 56
do Sistema do Poder Popular. O número de circunscrições eleitorais em cada Município é determinado a partir do número de seus habitantes de maneira que o número de delegados das circunscrições à Assembléia Municipal nunca seja inferior a trinta. O registro eleitoral em Cuba é automático, público e gratuito; todo cidadão, ao atingir os 16 anos de idade e estando em pleno gozo dos seus direitos políticos, é registrado como eleitor. Segundo a lei, no país são realizados dois tipos de eleições: 1) eleições gerais, em que são eleitos, a cada cinco anos, os Deputados à Assembléia Nacional e demais instâncias de âmbito nacional, incluindo o Conselho de Estado, assim como os Delegados às Assembléias Provinciais e Municipais e seus Presidentes e Vicepresidentes; 2) eleições parciais, a cada dois anos e meio, em que são eleitos os Delegados às Assembléias Municipais e seus Presidentes e Vicepresidentes. Devese assinalar que tanto os Deputados à Assembléia Nacional quanto os Delegados às Assembléias Provinciais e Municipais são eleitos diretamente pela população. As eleições são convocadas pelo Conselho de Estado, órgão da Assembléia Nacional que a representa entre os períodos de suas sessões, executa suas decisões e cumpre as funções que a Constituição lhe atribui. Para organizar e dirigir os processos eleitorais, são designadas Comissões Eleitorais Nacional, Provinciais, Municipais, de Distritos, de Circunscrição e, em casos necessários, Especiais. A Comissão Eleitoral Nacional é designada pelo Conselho de Estado, as Comissões Provinciais e Especiais são designadas pela Comissão Eleitoral Nacional, as Comissões Eleitorais Municipais pelas Comissões Eleitorais Provinciais e assim por diante. Todos os gastos com as eleições são assumidos pelo Orçamento do Estado; portanto os candidatos nada gastam durante todo o processo eleitoral. Para elaborar e apresentar os projetos de candidaturas de Delegados às Assembléias Provinciais e de Deputados à Assembléia Nacional e para preencher os cargos que são eleitos por elas e as Assembléias Municipais, são criadas as Comissões de Candidaturas Nacional, Provinciais e Municipais integradas por representantes das organizações de massas e de estudantes e presididas por um representante da Central de Trabalhadores de Cuba, assegurando desta maneira a direção dos trabalhadores em todo o processo eleitoral. A propaganda eleitoral é feita exclusivamente pelas Comissões Eleitorais, garantidas a todos os candidatos condições de igualdade; nenhum candidato pode fazer campanha para si próprio.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 57
Para ser proposto como candidato a Deputado à Assembléia Nacional, é necessário ter sido apresentado como précandidato por uma das organizações de massas do país, que a Comissão Nacional de Candidaturas submeta essa proposta à consideração da Assembléia do Poder Popular do município correspondente, e que esta, pelo voto de mais da metade dos Delegados presentes, aprove a sua designação como candidato por esse território. Será considerado eleito Deputado à Assembléia Nacional o candidato que, tendo sido apresentado pela respectiva Assembléia Municipal, tenha obtido mais da metade dos votos válidos emitidos no Município ou Distrito Eleitoral, segundo o caso de que se trate. As eleições para os demais níveis do Poder Popular seguirão a mesma sistemática. Em Cuba, os Deputados à Assembléia Nacional e os Delegados às demais Assembléias não recebem nenhum tipo de remuneração pelo exercício do mandato popular; continuam exercendo suas profissões em seus locais de trabalho e recebendo o salário correspondente. A Assembléia Nacional se reúne duas vezes ao ano, as Provinciais Municipais com maior frequência. Os Deputados e Delegados exercem seus mandatos junto aos seus eleitores, prestandolhes contas periodicamente e podendo, de acordo com a Lei, serem por eles removidos a qualquer momento, desde que, em sua maioria, considerem que seus representantes não estão correspondendo aos compromissos assumidos perante o povo. Sem espaço para um exame mais detalhado do Sistema Político de Cuba, é esclarecedor, entretanto, abordar o processo de eleição do Presidente do país, que é o Presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros. Para ser eleito Presidente, é necessário ser Deputado e, por isso, deve ter sido eleito por voto direto e secreto da população, da mesma forma que todos os 609 Deputados da Assembléia Nacional. No caso específico, por exemplo, do Presidente Fidel Castro, ele foi designado candidato pela Assembléia Municipal de Santiago de Cuba e eleito pelos eleitores de uma circunscrição do município e, além disso, eleito pela maioria, pois a Lei eleitoral estabelece que nenhum Deputado pode ser eleito sem obter mais de 50% dos votos válidos. Posteriormente, sua candidatura a Presidente do Conselho de Estado foi votada pelos Deputados, devendo alcançar mais de 50% dos votos para ser considerado eleito.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 58
A abordagem realizada do Sistema Político de Cuba, ainda que sucinta, evidencia seu caráter popular e democrático, que é, entretanto, permanentemente distorcido e falsificado pela mídia a serviço dos interesses do grande capital internacionalizado.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 59
CUBA É O MELHOR PAÍS DA AMÉRICA LATINA PARA SER MÃE, DIZ ESTUDO 22
No topo da lista, elaborada entre 176 países, está a Finlândia, enquanto a República Democrática do Congo está em último. Cuba é o melhor país da América Latina para a maternidade e o 33º do mundo, segundo um índice da organização britânica Save the Children . No topo está a Finlândia e a República Democrática do Congo em último. Os Estados Unidos estão em 30º lugar e o Brasil em 78º.
Cubanas comemoram 1º de maio em Havana. País caribenho está à frente de Argentina, Costa Rica e México em índice sobre maternidade.
A ONG, cuja sede fica em Londres, leva em conta fatores como bemestar, saúde, educação e situação econômica das mães, assim como a taxa de mortalidade infantil e materna, para definir a tabela.
22
Originalmente publicado em: operamundi.uol.com.br. 8/5/2013.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 60
Levando em conta somente a América Latina e Caribe, Cuba está à frente da Argentina (36), Costa Rica (41), México (49) e Chile (51). O Haiti está no 164º lugar. Também em postos relativamente baixos estão Honduras (111), Paraguai (114) e Guatemala (128). A Venezuela está em 66º. "Apesar de a América Latina ter conseguido enormes avanços, podemos fazer mais para salvar e melhorar a vida de milhões de mães e bebês recémnascidos que se encontram na maior situação de pobreza", afirmou o diretor da Save the Children para a América Latina, Beat Rohr. Ele disse que os maiores avanços foram registrados no Brasil, Peru, México e Nicarágua. O Índice de Risco do Dia do Parto, elaborado pela primeira vez, revela que 18 % de todas as mortes de crianças menores de 5 anos na América Latina ocorrem durante o dia de nascimento. As principais causas são nascimentos prematuros, infecções graves e complicações durante o parto. Contudo, a mortalidade neonatal na região diminuiu 58 % nas últimas duas décadas, apesar de ainda existir uma grande diferença na atenção dada às pessoas ricas e às com menos recursos, ressalta o estudo. A Save the Children estima que, a nível mundial, mais de um milhão de recémnascidos poderiam ser salvos todos os anos caso o acesso à saúde fosse universal. "Quando as mulheres têm educação, representação política e uma atenção materna e infantil de qualidade, elas e seus bebês têm muito mais probabilidades de sobreviver e prosperar, assim como a sociedade na qual vivem", sublinhou Rohr.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 61
CUBA OU A GLOBALIZAÇÃO DA SOLIDARIEDADE: O INTERNACIONALISMO 23
HUMANITÁRIO 24
Por: Salim Lamrani.
Desde 1963, com o envio da primeira missão médica humanitária à Argélia, Cuba se comprometeu a cuidar das populações pobres do planeta em nome da solidariedade internacionalista. As missões humanitárias cubanas se estendem por quatro continentes e apresentam um caráter único. Com efeito, nenhuma outra nação do mundo, nem sequer as mais desenvolvidas, teceu semelhante rede de cooperação humanitária no planeta. Desde seu lançamento, cerca de 132.000 médicos cubanos, além do pessoal sanitário, atuaram voluntariamente em 102 países. No total, os médicos cubanos atenderam cerca de 100 milhões de pessoas no mundo e salvaram um milhão de vidas. Atualmente, 37.000 médicos colaboradores oferecem seus serviços em 70 nações do Terceiro Mundo. A ajuda internacional cubana se estende a dez países da América Latina e às regiões subdesenvolvidas do planeta. Em outubro de 1998, o furadão Mitch havia assolado a América Central e o Caribe. Os chefes de Estado da região lançaram um chamado à solidariedade internacional. Segundo o PNUD , Cuba foi a primeira a responder positivamente, cancelando a dívida da Nicarágua de 50 milhões de dólares e propondo os serviços de seu pessoal sanitário. Foi elaborado, então, o Programa Integral de Saúde, sendo ampliado a outros continentes, como África e Ásia. Nas regiões onde foi aplicado, O PNUD aponta uma melhora de todos os indicadores de saúde, particularmente uma diminuição notável da taxa de mortalidade infantil.
23
Originalmente publicado em: operamundi.uol.com.br. 5/6/2013. Salim Lamrani é doutor em Estudos Ibéricos e Latinoamericanos da Universidade Paris SorbonneParis IV, professor titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro é intitulado “ The economic war against Cuba. A historical and legal perspective on the U.S. Blockade ” (“A guerra econômica contra Cuba. Uma perspectiva histórica e legal sobre o bloqueio norteamericano”), Nova York, Monthly Review Press, 2013, com um prólogo de Wayne S. Smith e prefácio de Paul Estrade. 24
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 62
25
A ALBA O primeiro país que se beneficiou do capital humano foi, logicamente, a Venezuela, graças à eleição de Hugo Chávez em 1998 e à relação especial estabelecida com Cuba. A universalização do acesso à educação, implementada em 1998, teve resultados excepcionais. Cerca de 1,5 milhão de venezuelanos aprenderam a ler e a escrever graças à campanha de alfabetização chamada Misión Robinson I. Em dezembro de 2005, a Unesco decretou que o analfabetismo havia sido erradicado da Venezuela. A Misión Robinson II foi lançada para levar a população ao alcance do nível secundário. A isso se somam as missões Ribas e Sucre, que permitiram que dezenas de milhares de jovens começassem estudos universitários. Em 2010, 97% das crianças venezuelanas estavam escolarizadas . Em relação à saúde, foi criado o Sistema Nacional Público, para garantir o acesso gratuito à atenção médica a todos os venezuelanos. A missão Barrio Adentro I possibilitou a realização de 300 milhões de consultas nos 4.469 centros médicos criados desde 1998. Cerca de 17 milhões de pessoas puderam ser atendidas, enquanto que, em 1998, menos de 3 milhões de pessoas tinham acesso regular à saúde. Foram salvas mais de 104.000 vidas. A taxa de mortalidade infantil foi reduzida a menos de 10 por mil . Na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Venezuela passou do posto 83 no ano 2000 (0,656) ao posto 73 em 2011 (0,735), e entrou na categoria das nações com o IDH mais elevado . Além disso, também segundo o PNUD, a Venezuela ostenta o coeficiente Gini mais baixo da América Latina, e é o país da região onde há menos desigualdade. Luis Alberto Matos, economista e especialista em energia, salientou a “cooperação emblemática” entre Cuba e Venezuela. “Quem pode negar a imensa contribuição dessa nação à Venezuela em relação ao aprimoramento do setor de saúde, na agricultura, nos esportes, na cultura ?” Graças à ALBA e ao programa social lançado pelo governo de Evo Morales entre 2006 e julho de 2011, a Brigada Médica cubana presente na Bolívia cuidou de mais de 48 milhões de
25
A Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA) é uma alternativa aos tratados comerciais capitalistas, desvantajosos para os países menos industrializados, como a ALCA (Área de livre comércio das Américas), capitaneada pelo imperialismo estadunidense. A ALBA é baseada na ideia da integração social, política e econômica entre os países da América. São países integrantes da ALBA: Antígua e Barbuda, Estado Plurinacional da Bolívia, República de Cuba, Comunidade da Dominica, República do Equador, República da Nicarágua, São Vicente e Granadinas e República Bolivariana da Venezuela.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 63
pessoas e salvou 49.821 vidas. A Bolívia pôde melhorar seus indicadores de saúde com uma diminuição da mortalidade infantil de 58 a cada mil, em 2007, para 51 a cada mil em 2009, ou seja, uma redução de 14% em três anos . Entre 2006 e 2009, foram criados quase 545 centros de saúde em todo o país. Quanto à educação, a Unesco declarou que a Bolívia é um território livre de analfabetismo em 20 de dezembro de 2008, com a alfabetização de 824.000 pessoas. Foram construídos cerca de 1.540 estabelecimentos escolares. Quanto ao Ensino Superior, foram criadas três universidades indígenas. A pobreza extrema foi reduzida a 6%, passando de 37,8% a 31,8%. Na Nicarágua, o programa Yo, sí puedo permitiu que a Unesco declarasse que o país estava livre do analfabetismo em 2009. Graças à Alba, a Nicarágua também conseguiu resolver sua grave crise energética, que às vezes provocava apagões de 16 horas diárias. Foram construídos vários hospitais equipados integralmente em todo o país, com acesso gratuito à atenção médica para toda a população. Eles operam, em grande parte, graças à presença do pessoal médico cubano . No Equador, a chegada de Rafael Correa ao poder em 2006 também ocasionou uma revolução social sem precedentes. Dessa forma, o orçamento de saúde aumentou de 437 milhões de dólares em 2006 para 3.430 milhões em 2010. O orçamento de educação passou de 235 milhões em 2006 para 940,7 milhões em 2010. A taxa de escolaridade até o nível universitário da quinta parte mais pobre da população passou de 30% para 40% entre 2006 e 2010. A cobertura da cesta básica passou de 68% para 89%. A pobreza diminuiu 7% no mesmo período em nível nacional, e 13% para os afroequatorianos. Mais de 70.000 pessoas dos 5 milhões de indigentes que havia no país em 2006 saíram da pobreza. Assim, o IDH passou de 0,716 em 2009 para 0,720 em 2011, e agora ocupa a posição 83. O Equador prevê erradicar a desnutrição infantil em 2015 e assim alcançar Cuba, o único país da América Latina e do Terceiro Mundo livre dessa praga, segundo a Unicef. A Brigada Henry Reeve Em 19 de setembro de 2005, após a tragédia que o furacão Katrina provocou em Nova Orleans, Cuba criou a Brigada Henry Reeve, um contingente médico composto por 10.000 profissionais da saúde e especializado em catástrofes naturais. Naquela época, Havana
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 64
ofereceu a Washington o envio de 1.586 médicos para atender as vítimas, mas o presidente Bush negou a oferta. A Brigada Henry Reeve interveio em vários continentes. Assim, após o terremoto de novembro de 2005, que assolou o Paquistão, 2.564 médicos cubanos viajaram para lá a fim de atender as vítimas durante mais de oito meses. Foram montados 32 hospitais de campanha, que logo foram doados às autoridades de saúde do país. Mais de 1,8 milhão de pessoas foram atendidas e 2.086 vidas foram salvas. Nenhuma outra nação ofereceu uma ajuda tão importante, nem mesmo os Estados Unidos – principal aliado de Islamabad –, que estabeleceu apenas dois hospitais de campanha e ficou por oito semanas. O jornal britânico The Independent ressaltou o fato de que a brigada médica cubana foi a primeira a chegar ao Paquistão e a última a deixar o país. Anteriormente, após o tsunami que devastou a região do Pacífico em 2004, Cuba enviou várias missões humanitárias para oferecer atenção médica às vítimas, muitas vezes abandonadas pelas autoridades locais. Várias áreas rurais em Kiribati, Timor Leste ou Sri Lanka ainda dependem da ajuda médica cubana. Foi inaugurada uma escola de medicina no Timor Leste para formar jovens estudantes do país. As Ilhas Salomão, assim como a PapuaNova Guiné, acenaram à Havana para se beneficiar de uma ajuda similar e firmar acordos de cooperação. Após o terremoto ocorrido em maio de 2006 em Java, na Indonésia, Cuba enviou várias missões médicas. Ronny Rockito, coordenador regional para a saúde, elogiou o trabalho dos 135 profissionais cubanos que instalaram dois hospitais de campanha. Segundo ele, seu trabalho teve um impacto mais importante do que qualquer outro país. “Aprecio muito as brigadas médicas cubanas. Seu estilo é muito amistoso e seu nível de atenção médica, muito elevado. Tudo é gratuito e não há nenhum apoio por parte do meu governo para isso. Agradecemos Fidel Castro. Muitos moradores suplicaram aos médicos cubanos para que ficassem”, enfatizou. O caso mais recente e mais emblemático da cooperação médica cubana diz respeito ao Haiti. O terremoto de janeiro de 2010, de magnitude 7, causou dramáticos danos humanos e materiais . Segundo as autoridades haitianas, o balanço foi de 230.000 mortos, 300.000
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 65
feridos e 1,2 milhão de pessoas sem teto . A brigada médica cubana, presente desde 1998, foi a primeira a auxiliar as vítimas e atendeu cerca de 40% delas. Em outubro de 2010, soldados nepaleses das Nações Unidas introduziram inadvertidamente o vírus do cólera no Haiti. Segundo a ONU, a equipe médica do doutor Jorge Luis Quiñones descobriu a epidemia. Cerca de 6.600 pessoas perderam a vida e 476.000 foram infectadas, o que representa 5% da população de um total de 10 milhões de habitantes. Era a taxa de cólera mais elevada do mundo, segundo as Nações Unidas. O New York Times ressaltou, em uma reportagem, o papel chave dos médicos cubanos: “A missão médica cubana, que desempenhou um papel importante na detenção da epidemia, ainda está presente no Haiti e recebe a cada dia a gratidão dos doadores e dos diplomatas por sua presença nas linhas de frente e por seus esforços de reconstrução do carcomido sistema de saúde do país”. Por sua vez, Paul Farmer, enviado especial das Nações Unidas, salientou que, em dezembro de 2010, quando a epidemia atingiu seu pico, com uma taxa de mortalidade sem precedentes e o mundo estava com os olhos em outros lugares, “a metade das ONGs haviam ido embora, ao passo que os cubanos ainda estavam presentes”. Segundo o Ministério da Saúde haitiano, os médicos cubanos salvaram mais de 76.000 pessoas nas 67 unidades médicas sob sua responsabilidade, com apenas 272 falecimentos, ou seja, 0,36%, contra uma taxa de 1,4% no resto do país. Desde dezembro de 2010, não faleceu nenhum paciente tratado pelos médicos cubanos. Nações Unidas saúdam uma política solidária Segundo o PNUD, a ajuda humanitária cubana representa, proporcionalmente ao PIB, uma porcentagem superior à média das 18 nações mais desenvolvidas. Ressalta, em um informe, que: “A cooperação oferecida por Cuba se inscreve em um contexto de cooperação SulSul. Não persegue um objetivo de lucrar, mas, ao contrário, se oferece como a expressão de um princípio de solidariedade e, na medida do possível, a partir de custos compartilhados. No entanto, durante anos, Cuba proporcionou ajuda de qualidade com doações aos países mais pobres, e se mostrou muito flexível quanto à forma ou à estrutura da colaboração […]. Em quase a totalidade dos casos, a ajuda cubana foi gratuita, ainda que, a partir de 1977, com
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 66
alguns países de alta renda, principalmente os petroleiros, se desenvolveu uma cooperação sob uma forma de compensação. O desenvolvimento elevado que Cuba alcançou nos campos da saúde, educação e esporte fizeram com que a cooperação contemplasse esses setores, ainda que tenha havido uma participação em outras áreas, como, por exemplo, a construção, a pesca e a agricultura ”. O internacionalismo humanitário elaborado por Cuba demonstra que a solidariedade pode ser um vetor fundamental nas relações internacionais. Assim, uma pequena nação do Terceiro Mundo com recursos limitados e vítima de um estado de sítio sem precedentes por parte dos Estados Unidos consegue reunir os recursos necessários para ajudar os mais pobres e oferece ao mundo um exemplo, como diria o herói nacional cubano José Martí, que Pátria pode ser Humanidade.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 67
26
SISTEMA DE SAÚDE CUBANO É ELOGIADO POR MÉDICOS DOS EUA Um modelo diferente: a atenção médica em Cuba. Por: Edward W. Campion e Stephen Morrissey.
Para um visitante dos Estados Unidos, Cuba desorienta. Automóveis norteamericanos estão em todo lugar, mas todos datam dos anos 50. Nossos cartões bancários, cartões de crédito e telefones inteligentes não funcionam. O acesso à internet é praticamente inexistente. E o sistema de saúde também parece irreal. Há médicos demais. Todo mundo tem um médico da família. Tudo é de graça, totalmente de graça — e não precisa de aprovação prévia ou de algum tipo de pagamento. Todo o sistema parece de cabeça para baixo. É tudo muito organizado e a prioridade absoluta é a prevenção. Embora Cuba tenha recursos econômicos limitados, seu sistema de saúde resolveu alguns problemas que o nosso [dos Estados Unidos] ainda nem enfrentou. Médicos de família, junto com enfermeiras e outros profissionais de saúde, são os responsáveis por dar atendimento primário e serviços preventivos para seu grupo de pacientes — cerca de mil pacientes por médico em áreas urbanas. Todo o cuidado é organizado no plano local e os pacientes e seus profissionais de saúde geralmente vivem na mesma comunidade. Os dados médicos em fichas de papel são simples e escritos à mão, parecidos com os que eram usados nos Estados Unidos 50 anos atrás. Mas o sistema é surpreendentemente rico em informação e focado na saúde da população. Todos os pacientes são categorizados de acordo com o nível de risco de saúde, de I a IV. Fumantes, por exemplo, estão na categoria de risco II, e pacientes com doença pulmonar crônica, mas estável, ficam na categoria III.
26
Originalmente publicado em: susbrasil.net. 1/4/2013. The New England Journal of Medicine, January 24, 2013.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 68
As clínicas comunitárias informam regularmente ao distrito sobre quantos pacientes tem em cada categoria de risco e sobre o número de pacientes com doenças como a hipertensão (bem controlada ou não), diabetes, asma, assim como sobre o status de imunização, data do último teste de Papanicolau e casos de gravidez/cuidado prénatal. Todo paciente é visitado em casa uma vez por ano e aqueles com doenças crônicas recebem visitas mais frequentes. Quando necessário, os pacientes podem ser direcionados a policlínicas distritais para avaliação de especialistas, mas eles retornam para as equipes comunitárias para acompanhamento. Por exemplo, a equipe local é responsável por garantir que o paciente com tuberculose siga as recomendações sobre o regime antimicrobial e que faça os exames. Visitas em casa e conversas com familiares são táticas comuns para fazer com que os pacientes sigam as recomendações médicas, não abandonem o tratamento e mesmo para evitar gravidez indesejada. Numa tentativa de evitar infecções como a dengue, a equipe de saúde local visita as casas para fazer inspeções e ensinar as pessoas sobre como se livrar da água parada. Este sistema altamente estruturado, orientado para a prevenção, produziu resultados positivos. As taxas de vacinação de Cuba estão entre as mais altas do mundo. A expectativa de vida de 78 anos de idade é virtualmente idêntica à dos Estados Unidos. A taxa de mortalidade infantil em Cuba caiu de 80 por mil nos anos 50 para menos de 5 por mil — menor que nos Estados Unidos, embora a taxa de mortalidade materna esteja bem acima daquela dos países desenvolvidos e na média para os países do Caribe. Sem dúvida, os resultados são consequência de melhorias em nutrição e educação, determinantes sociais básicos para a saúde pública. A taxa de alfabetização de Cuba é de 99% e o ensino sobre saúde é parte do currículo obrigatório das escolas. Um recente programa nacional para promover a aceitação de homens que fazem sexo com homens foi desenhado para reduzir as taxas de doenças sexualmente transmissíveis e aumentar a aceitação e adesão aos tratamentos. Os cigarros já não são oferecidos na cesta básica mensal e o número de fumantes decresceu, embora as equipes médicas locais digam que continua difícil convencer fumantes a deixar o
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 69
vício. Os contraceptivos são gratuitos e fortemente encorajados. O aborto é legal, mas considerado um fracasso do trabalho de prevenção. Não se deve romantizar o sistema de saúde cubano. O sistema não é desenhado para escolha do consumidor ou iniciativas individuais. Não existe sistema de saúde privado pago como alternativa. Os médicos recebem benefícios do governo como moradia e alimentação, mas o salário é de apenas 20 dólares por mês. A educação é gratuita e eles são respeitados, mas é improvável que obtenham riqueza pessoal. Cuba é um país em que 80% dos cidadãos trabalham para o governo e o governo é quem gerencia orçamentos. Nas clínicas de saúde comunitárias, placas informam aos pacientes quanto o sistema custa ao Estado, mas não há forças de mercado para promover eficiência. Os recursos são limitados, como descobrimos ao ter contato com médicos e profissionais de saúde cubanos como parte de um grupo de editoresvisitantes dos Estados Unidos. Um nefrologista de Cienfuegos, a 240 quilômetros de Havana, tem uma lista de 77 pacientes em diálise na província, o que em termos de população dá 40% da taxa dos Estados Unidos — similar ao que era nos Estados Unidos em 1985. Um neurologista nos informou que seu hospital só recebeu um CT scanner doze anos atrás. Estudantes norteamericanos de universidades médicas cubanas dizem que o trabalho nas salas de cirurgia é rápido e eficiente, mas com pouca tecnologia. Acesso à informação via internet é mínimo. Um estudante informou que tem 30 minutos por semana de acesso discado. Esta limitação, como muitas outras dificuldades de recursos que afetam o progresso, é atribuída ao embargo econômico dos Estados Unidos [imposto em 1960], mas podem existir outras forças no governo central trabalhando contra a comunicação fácil e rápida entre cubanos e os Estados Unidos. Como resultado do estrito embargo econômico, Cuba desenvolveu sua própria indústria farmacêutica e agora fabrica a maior parte das drogas de sua farmacopeia básica, mas também alimenta uma indústria de exportação. Recursos foram investidos no desenvolvimento de expertise em biotecnologia, em busca de tornar Cuba competitiva no setor com os países avançados.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 70
Existem jornais médicos acadêmicos em todas as especialidades e a liderança médica encoraja fortemente a pesquisa, a publicação e o fortalecimento de relações com outros países latinoamericanos. As universidades médicas de Cuba, agora 22, continuam focadas em atendimento primário, com medicina familiar exigida como primeira residência de todos os formandos, embora Cuba já tenha hoje o dobro dos médicos per capita que os Estados Unidos. Muitos dos médicos cubanos trabalham fora do país, como voluntários num programa de dois anos ou mais, pelo qual recebem compensação especial. Em 2008, havia 37 mil profissionais de saúde cubanos trabalhando em 70 paises do mundo. A maioria trabalha em áreas carentes, como parte da ajuda externa de Cuba, mas alguns estão em áreas mais desenvolvidas e seu trabalho traz benefício financeiro para o governo cubano (por exemplo, subsídios de petróleo da Venezuela). Todo visitante pode ver que Cuba continua distante de ser um país desenvolvido em infraestrutura básica, como estradas, moradias e saneamento. Ainda assim, os cubanos começam a enfrentar os mesmos problemas de saúde de países desenvolvidos, com taxas crescentes de doenças coronárias, obesidade e uma população que envelhece (11,7% dos cubanos tem 65 anos de idade ou mais). O seu incomum sistema de saúde enfrenta estes problemas com estratégias que evoluíram da peculiar história política e econômica de Cuba, um sistema que — com médicos para todos, foco em prevenção e atenção à saúde comunitária — pode informar progresso também para outros países.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 71
27
OS RUMOS DE CUBA SEGUNDO OS CUBANOS Estudantes, agricultores, artistas. Cubanos falam de suas perspectivas em relação ao processo de abertura econômica sob o marco do socialismo. Por: Eduardo Sales de Lima, Enviado do jornal Brasil de Fato à Havana, Matanzas, Playa Girón e Varadero (Cuba).
Havana se destaca pelo estilo Art Déco Os cubanos vivem as maiores mudanças no país desde a vitória da revolução comandada por Fidel Castro em 1959. Todo o processo de abertura econômica está funcionando como uma prova à certeza socialista do povo cubano e à capacidade de controle do governo. Em abril de 2011, para reverter o processo de estagnação econômica da ilha, os dirigentes do Partido Comunista Cubano (PCC), o único do país, realizaram o VI Congresso, com o objetivo de “atualizar” o modelo. Por sinal, boa parte das decisões tomadas levaram em consideração a opinião da população por meio dos conselhos. Além do embargo econômico estadunidense, que permaneceu na gestão de Barack Obama, Cuba ainda sente os efeitos da crise econômica mundial. Para vencer a estagnação econômica e diminuir o caráter paternalista do Estado, o governo cubano vem enxugando a burocracia
27
Originalmente publicado em: brasildefato.com.br. 27/05/2013.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 72
estatal (demitindo de forma paulatina funcionários) e emitindo milhares de licenças para ampliar o trabalho privado e cooperativista, como pequenos negócios como salões de cabeleleiros, restaurantes e serviços de táxi.
O ministro do Turismo de Cuba, Manuel Marrero “O turismo nãoestatal já está presente nos restaurantes privados”, lembra o ministro do Turismo de Cuba, Manuel Marrero, destacando um dos setores que tende a ganhar mais impulso com as mudanças econômicas. O embaixador brasileiro em Cuba, José Felício Martín, está no país há dois anos e meio e afirma testemunhar uma pujança econômica na Ilha, com a abertura de muitos pequenos negócios. Como exemplo, ele cita que antes do processo de atualização do modelo, todo o material de construção era controlado pelo governo. Isso porque, agora, a propriedade privada urbana está liberada para ser comercializada, enquanto que a rural ainda não. Em relação ao abastecimento de produtos nos supermercados, as mudanças também são sensíveis. “Antes, apenas determinados produtos ocupavam prateleiras inteiras. Hoje, podese notar uma diversidade de produtos, vindos sobretudo do Brasil, México e Espanha”, reforça. Turistas A convite do Ministério do Turismo de Cuba, a reportagem do Brasil de Fato visitou quatro cidades cubanas: Havana, Varadero, Matanzas e Playa Girón.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 73
Repleta de construções ao estilo art decó do início do século, as ruas em Havana se destacam pela limpeza. À noite, embora sejam maliluminadas, as famílias sentamse nas calçadas, e violões remetem ao modo de vida das pequenas cidades do interior do Brasil. Os cubanos gostam de falar, com orgulho, do baixíssimo índice de criminalidade vigente no país.
Manuel, primeiro à esquerda, viveu dois anos na capital paulista
Caminhando pelo centro histórico da capital cubana, conhecido como Havana Velha, em pleno calor de 35º graus de uma segundafeira de maio, Manuel e Joandry, que trabalham com charretes, chamam a atenção. Manuel, quando nota a presença de brasileiros, não se faz de rogado e passa a cantar “ Manuel ”, do cantor Ed Motta. Ele viveu dois anos em São Paulo (SP), no início dos anos 2000. “O Brasil é um país capitalista, irmão! Tem gente com muito dinheiro e outros com pouco. Lá há muitas drogas. Aqui existe muito controle, as leis são muito mais pesadas”, afirma. Cuba tem salários relativamente baixos, porém, as garantias e subsídios que o Estado dá aos cidadãos colocam o debate em outro patamar. Manuel lembra que a maior parte das pessoas que conhece vive com muito pouco. Somente quem trabalha com turismo consegue ganhar mais que a média da população. “Há pessoas que se matam no escritório para poder comprar um par de sapatos. Com os turistas sempre é possível ganhar mais 20, 30 pesos a mais, seja no táxi ou na charrete.”
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 74
Todos os cubanos, empregados ou não, têm acesso aos produtos da cesta básica. O que se ouviu com frequência de guias turísticos, todos funcionários de agências estatais, é que alguns pedintes, a maior parte crianças e velhos, agem assim não para suprir suas necessidades básicas, mas para adquirir outros bens, como o par de sapatos citado por Manuel. Ainda em Havana, o taxista Geovani critica o paternalismo estatal. Primeiro, ele diz que “90% das pessoas não trabalham em Havana”, mas se corrige, afirmando que boa parte dos cidadãos começa sua jornada de trabalho somente após as 10h da manhã. Contudo, ele elogia as mudanças econômicas e as consequências diretas em seu trabalho. “Agora, além de transportar cubanos, posso transportar turistas e até mesmo abrigálos, cobrandolhes aluguel”, afirma Geovani. “Olha pra mim!”
O agricultor e vendedor Pedro, 67 anos Na cidade Matanzas, a 105 km de Havana, o agricultor e vendedor Pedro, 67, revelou ao Brasil de Fato estar agradecido ao governo revolucionário por ajudálo, há décadas, em sua produção de tomate, banana e mandioca. Ele cultiva os alimentos em 6 hectares. Pedro cita, contudo, que desde o início dos anos 1990, com o fim da exURSS, os agricultores tiveram menos acesso a máquinas, o que prejudicou a produção e forçou muitos camponeses a
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 75
residirem nos centros urbanos. “Meus filhos tiveram que ir morar na cidade; eles são torneiros mecânicos”, revela. Em Cuba, somente metade da área agricultável é utilizada e pelo menos 70% dos alimentos consumidos no país são importados. Ainda em Matanzas, do outro lado da rua, pedalando numa bicicleta, estava o indignado Roberto, 57. “Demoro demais para haver mudanças. Olha pra mim! Minha irmã também é velha, que oportunidades tivemos?”, questionava.
Roberto critica as mudanças tardias na área econômica
Miguel se emociona em lembrar da Batalha da Baía dos Porcos
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 76
Roberto trabalhou por muito anos numa fábrica de pisos de cerâmica, mas a partir de 1991 decidiu trabalhar por conta própria, fazendo bicos. Ressentido com o regime, que segundo ele não lhe deu condições de ter uma vida melhor, afirma que “há muito tempo os negócios teriam que ser assim, pagando impostos, como ocorre em outros países”. Da cidade Matanzas à Playa Girón, ao sul do Província de Matanzas. Diferentemente de Roberto, Miguel Pérez, 60, está otimista e também se diz agradecido à revolução. Assim como o taxista Geovani, ele comemora a permissão de receber turistas em sua casa, sendo apenas necessário informar ao setor de imigração. “E isso tem aumentado a renda da população”, conta. Miguel trabalha como vigia no Museu Girón. Tinha apenas 8 anos de idade quando ocorreu a Batalha da Baía dos Porcos (tentativa frustrada de invasão do sul de Cuba por forças de exilados cubanos anticastristas capitaneada pelos Estados Unidos). Miguel se emociona ao lembrar a Batalha da Baía dos Porcos, em 1961, e agradece a coragem que tiveram seus heróis. “Graças à revolução e a essas pessoas, tivemos as condições de viver bem, com boa saúde e educação para nossas famílias”. O vigia fala, com orgulho, ter uma filha enfermeira. Na época, ele e sua família cultivavam canadeaçúcar, arroz e feijão, em Sancti Spírictus, a 200 km de Girón. Compreende se, daí, sua pele curtida pelo sol. Para ele, como o “pouco” que ganha de salário, ainda é difícil ter um celular, mas gostaria de têlo para poder se comunicar com a família. “Não me afetou”
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 77
A paradisíaca Varadero atrai principalmente europeus e canadenses Enquanto a reportagem do Brasil de Fato passava na paradisíaca Varadero, pôde conhecer Antônio Calderón. Ele é representante em Cuba de uma empresa siderúrgica espanhola chamada Plecosan. Como boa parte dos cubanos, possui uma retórica notável. Casado com uma mulher de cerca de 30 anos (ele tem 62), adepta da cultura iorubá, brincava, dizendo que ela não é sua filha. “Como os brasileiros, os cubanos prezam muito a cultura iorubá”. Esse foi o primeiro assunto que lançou mão para se aproximar da reportagem. Apesar de gozar de uma vida com acesso a bens de luxo e conforto, afirma ser totalmente a favor do governo cubano. Mesmo trabalhando para uma empresa espanhola, não tem do que se queixar em relação aos negócios da siderúrgica em Cuba.“A crise econômica não afetou meu trabalho”, conta. O país busca retomar e ampliar a exportação de níquel e tabaco.
Amor à humanidade
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 78
A cantora Flor defende a cubanía, ou cubanidade, no famoso Havana Club
Arledes e Mailin querem ajudar as pessoas e seguir a revolução Não é incomum presenciar cenas que denotam o orgulho do povo. De volta a Havana, Alfredo, um senhor de quase 70 anos se aproxima da reportagem bradando palavras de ordem como “ Viva el Comandante Fidel ” e “ Pátria o Muerte ”. Ele entrega o Granma , periódico oficial do governo. A cantora Flor, que se apresenta com seu grupo no Havana Club, enfatiza que o mais importante é que a “ cubanía ”, o amor à pátria, nunca saia dos corações dos cubanos. “As mudanças politicoeconômicas, sobretudo para nós, artistas, têm sido muito positivas”, afirma.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 79
Seria cubanía sinônimo de solidariedade? Na praça central da cidade de Matanzas, Arledes, Mailin, Gieji e Aelana, todas com 16 anos, aproveitam a hora do almoço no colégio para conversar. Mailin, quando questionada de que forma os jovens podem auxiliar na continuação da revolução, lembra que basta que os jovens que têm a mesma faixa etária dela tenham o sentimento de solidariedade. “Penso em fazer faculdade porque quero ajudar”, reforça. Entram na escola pelas 9h da manhã, têm duas horas de almoço, e permanecem até as 16h. Além das aulas normais, praticam esportes, música e preparação militar. Uma vez por semana ou a cada 15 dias, os estudantes trocam as salas de aula por aulas em espaços históricos, como praças ou museus. Todas as quatro meninas fazem questão de dizer que gostam muito de ir a festas e teatro. Aliás, como conta Betsy Olivares Bitencourt, guia de turismo desde 1988 em Cuba, o acesso à cultura não é caro. Segundo ela, desde cedo os cubanos são estimulados a participar, como artistas ou plateia, de encontros de dança e de teatro. Também questionado como se faz para manter a revolução viva nos corações cubanos, o ministro do Turismo de Cuba, Manuel Marrero, reforça a idéia de que “a pátria é a humanidade”. “Nosso processo revolucionário, entre muitas coisas, tem se sustentado pela solidariedade e pelo internacionalismo, e sempre defendemos a ideia de que Cuba compartilha não o que lhe sobra, mas o que possui, e assim será”, atesta. Cuba quer atrair brasileiros Há um processo de abertura que também se passa no turismo cubano. O setor do turismo responde por 20% do PIB cubano. Como comparação, Cuba (de 11 milhões de habitantes) foi visitada, ano passado, por 2,8 milhões de turistas; o Brasil recebeu 5 milhões. De acordo com o que disse o ministro do Turismo de Cuba, Manuel Marrero, por ocasião da 33ª Feira Internacional de Turismo de Cuba (FitCuba), entre os lineamentos aprovados pela nova política econômica, existem 14 pontos voltados ao turismo que, segundo ele, permitirão impulsionar o setor.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 80
Desenvolver algumas áreas, como a tecnologia, é muito difícil tendo em vista o bloqueio dos Estados Unidos, mas, para Marrero, é necessário que o próprio país desenvolva novas possibilidades a partir da própria indústria cubana e do Ministério de Comunicação, impulsionando redes wifi nos hotéis e divulgando o turismo em Cuba por meio de redes sociais. No ano passado foram inaugurados 8 hotéis no país. Houve 16 mil turistas brasileiros. Questionado de que forma o Brasil pode contribuir economicamente com Cuba, Marrero foi enfático: “Como o Brasil pode nos ajudar? Nos mandando turistas!” (Colaboraram Ana Gusmão, Bruno Pilon, Freddy Charlson, Suzanne Durães e Vanessa Galassi). (Fotos: Eduardo Sales de Lima)
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 81
28
CHE GUEVARA, EXEMPLO DE VIDA PARA AS NOVAS GERAÇÕES 29
Por: Néstor Kohan . Este livro que agora está em suas mãos condensa um trabalho de muitos anos de investigação, estudo e militância. Nosso primeiro contato com o pensamento de Che Guevara ocorreu nos últimos anos da 30
escola secundária, ainda sob a ditadura militar argentina . Um companheiro nos presenteou com umas fotocópias totalmente gastas e sem cor de sua irmã mais velha que, para nós, significaram a jóia mais valiosa. Se tratava do livro de Michael Löwy O pensamento de Che Guevara. Naqueles anos, havíamos lido e estudado aproximadamente umas 50 vezes, talvez mais, a mensagem de Che a juventude (que os companheiros cubanos publicaram com o título 31
O que deve ser um jovem comunista? ). Na escola secundária, os primeiros cartazes do Grêmio de Estudantes que fizemos, sempre sob a ditadura militar, inauguramos com um papelão branco com a cara de Che e sua querida Carta a meus filhos reproduzida com tinta de marcadores e canetas escolares. Nossa primeira revista escolar se chamou A trincheira . Sua primeira capa levava o rosto de Che e uma estrela vermelha de cinco pontas, também pintada artesanalmente com marcadores (uma por uma). Durante o movimento dessa revista, saímos pela rua e tomamos a escola, nossos amigos acabaram expulsos e nós terminamos presos na delegacia de polícia. Che nos acompanhou desde nossa primeira militância na adolescência, quando um setor importante da esquerda institucional argentina — a que caiu viva logo com o 32
genocídio do general Videla — o via como “um extremista”, “um romântico idealista”, “um aventureiro” ou simplesmente como “um guerrilheiro”.
28
Originalmente publicado em pcb.org.br. Ano de 2011. Tradução de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves. Filósofo, intelectual e militante marxista argentino, pertencente à nova geração de marxistas latinoamericanos. Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina. 30 Assim como o Brasil, a Argentina passou por uma Ditadura que durou de 1976 a 1983. Nota do Tradutor. 31 GUEVARA, Ernesto Che. O que deve ser um jovem comunista? (1962). Disponível em: . Nota do tradutor. 32 O general Jorge Rafael Videla ficou conhecido na história das ditaduras latino americanas por ter liderado um grande genocídio durante a ditadura argentina. É um dos personagens mais sangrentos da história latinoamericana. Nota do tradutor. 29
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 82
Muitos anos depois fomos a Cuba. Conhecemos companheiros seus que haviam combatido 33
junto com ele na Sierra Maestra , no Congo, na Bolívia. Entrevistamos eles. Também conversamos e gravamos os principais especialistas na sua obra. Trouxemos uma carga de livros e materiais. Seguimos estudando profundamente. Nosso primeiro escrito teórico sobre o pensamento de Che foi publicado em 1989, em meio ao desastre ideológico da União Soviética (URSS) e do sandinismo (Nicarágua), enquanto militávamos na favela “Carlos Gardel” (localizada na província de Buenos Aires), durante os 34
nefastos tempos de Raúl Alfonsín (cujos intelectuais riam de Guevara e o caracterizavam como “o outro demônio” equiparável ao terrorismo de Estado). Então, nesse primeiro ensaio, 35
intitulado Marxismo e humanismo , confrontávamos Che Guevara e sua leitura de O Capital com Louis Althusser (e, em elipse, com Marta Harnecker, sua principal discípula latinoamericana, de grande influência na Argentina e em todo o continente). Logo, em 1992, em pleno auge do neoliberalismo à escala mundial, fomos a Bolivia. Então, junto a guevaristas bolivianos, publicamos nosso segundo texto teórico sobre Che (esboço do artigo “Che Guevara e a filosofía da praxis”, incorporado nesse livro). Até que em 1997, auxiliados pelo Centro Che Guevara de Havana, inauguramos a primeira Cátedra Che Guevara na Universidade de Buenos Aires (UBA), como parte de un coletivo de trabalho bastante heterogêneo. As Cátedras Che Guevara proliferaram por toda Argentina. Percorremos inúmeras cidades argentinas com a seguinte mensagem. Che era — para nós — 36
o melhor antídoto contra o neoliberalismo de Carlos Saúl Menem , um dos personagens mais bizarros e miseráveis de nossa história política. Desde aquele distante ano de 1997, até hoje, passou muito tempo. As modas vão mudando. A “onda do momento” é muito errática. Alguns companheiros abandonaram o barco, já não se sentiam com a mesma afinidade. Se transformaram em entusiastas do pósmodernismo de Antonio Negri. Outros e outras mudaram de forma dissimulada para o multiculturalismo e o autonomismo. As opções “da moda” foram as mais variadas. Nós continuamos lutando com a Cátedra Che Guevara e a formação política da militância de base. Na Universidade Popular 33
A Sierra Maestra, localizada no sul do oriente cubano, foi reduto dos revolucionários liderados Por Fidel Castro e Che Guevara. Nota do tradutor. 34 Raúl Alfonsín foi presidente da Argentina entre 1983 e 1989. Nota do tradutor. 35 O autor se refere à obra máximo do marxismo, O Capital, de Karl Marx. Nota do tradutor. 36 Carlos Saúl Menem foi presidente da Argentina entre 1989 e 1999. Nota do tradutor.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 83
37
38
Mães da Praça de Maio , no Hotel Bauen (recuperado ), na fábrica têxtil Brukman (recuperada), na escola piquetera de formação política 22 de agosto “Heróis de Trelew” que funcionou em uma fábrica têxtil de Florencio Varela (bairro periférico da província de Buenos Aires), na favela “11114” do Baixo Flores (favela localizada em plena capital federal), na Universidade de Buenos Aires, agora na Universidade dos Trabalhadores inaugurada na fábrica metalúrgica IMPA (recuperada) ou onde quer que seja. Também inauguramos Cátedras Che Guevara no Chile e na Bolívia e a Escola de Quadros “Manuel Marulanda” na Venezuela, além de participar na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do Movimento Sem Terra [MST] de Brasil. Com o vento a favor, com o vento contra. Sempre remando e fazendo trabalho de formiga na mesma direção, tendo como farol e 39
40
horizonte Che Guevara, Mariátegui e Bolívar . Com o pessimismo da razão, no entanto com o irrenunciável otimismo da vontade. Todos as análises e estudos incorporados ao livro En la selva constituem o produto dessa história pessoal que, ao mesmo tempo, é uma história política coletiva. Sua fonte de inspiração pode ser resumida em duas atividades paralelas. Por um lado, anos e anos de investigação (o material inédito de Che Guevara na Bolivia nos entregou generosamente Tristán Bauer há mais ou menos dez anos... bastante tempo para investir em um livro, não é uma investigação redigida com pressa em um fim de semana). Nós levamos a sério a tarefa de indagar, aprofundar e estudar Che. Não nos satisfaz repetir três palavras de ordem superficiais. Guevara é merecedor de estudo sério. Por outro lado, anos e anos de militância voluntária (jamais cobramos um só centavo) na Cátedra Che Guevara e em todos os espaços de formação antes mencionados.
37
As Mães da Praça de Maio é uma organização composta por mães que tiveram seus filhos mortos e desaparecidos durante a ditadura argentina. Muitas crianças foram retiradas de seus pais e colocadas para doação. Outros filhos, já adultos, foram mortos e desaparecidos. Nota do tradutor. 38 O autor se refere várias vezes às empresas “recuperadas”, que são geridas pelos trabalhadores que as expropriaram de seus patrões principalmente no decurso da crise argentina (19992001), durante o governo de Fernando de La Rúa. Nota do tradutor. 39 José Carlos Mariátegui (18941930), nascido no Peru, é um dos mais importantes marxistas latinoamericanos. Mariátegui era conhecido como amauta , que na língua quíchua significa sábio. Nota do tradutor. 40 Simón Bolívar (17831830) liderou o processo de independência da Bolívia, da Colômbia, do Equador, do Panamá, do Peru, e da Venezuela. Bolívar queria que todas essas nações estivessem sob uma única bandeira para que pudessem se contrapor ao imperialismo estadunidense. Nota do tradutor.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 84
Militância, investigação e estudo. Esse é o “segredo” deste livro. Assim o fizemos. Como atualmente (fim de maio de 2011) continuamos impulsionando a Cátedra Che Guevara que utilizaremos para continuar a batalha das ideias e a formação da militância de base com o objetivo de formar quadros revolucionários. Hoje, novos jovens se aproximam de Che. Oxalá sejam seus continuadores. Como dizia Lenin, não há nada mais divertido… que lutar pela revolução. Mesmo sendo gestado e escrito na Argentina, En la selva saiu publicada pela primeira vez na Venezuela, graças ao apoio dos companheiros bolivarianos da Missão Consciência, da escolinha “Um grão de milho” e o periódico Debate socialista . A primeira apresentação de todas ocorreu junto aos operários e operárias do petróleo, organizados na agrupação sindical Vanguarda Operária Socialista (VOS) e nos núcleos sindicais de trabalho voluntário da costa oriental do lago de Maracaibo. O livro foi distribuido gratuitamente, principalmente entre os trabalhadores e na juventude. E, ademais, foi publicado na internet, tanto na página web de nossa Cátedra Che GuevaraColetivo Amauta como em várias outras páginas amigas de comunicação alternativa (Rebelión, La Haine, La Rosa Blindada, Kaos en la red, Revolución o muerte etc.). No momento em que redigíamos essa introdução a edição argentina, o livro En la selva já foi traduzido para o galegoportuguês e está sendo publicado —nos referimos a edições em papel, não só digitais— na Galícia e Portugal pelas organizações Primeira Linha (comunista independentista da Galícia) e Política Operária (de Portugal). Nesse momento, está sendo avaliada uma edição por parte de companheiros brasileiros a partir dessa mesma tradução ao 41
42
português . Também está sendo traduzido ao idioma euskara e publicado pelos 43
revolucionários abertzales (patriotas) que lutam pela independência e pelo socialismo de Euskal Herria (o País Basco). Em Leão (dentro do Estado espanhol) militantes do sindicato ferroviário propuseram editar o livro com dinheiro de seus salários para a formação de sua militância sindical e da juventude.
41
Versão em PDF em espanhol: . Euskara é o idioma do País Basco, atualmente sob domínio espanhol. Esse idioma se tornou uma das mais importantes ferramentas de luta e resistência cultural contra o jugo espanhol. Nota do tradutor. 43 “Patriotas”, do original abertzale no idioma euskara. Nota do tradutor. 42
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 85
Do mesmo modo, En la selva está sendo publicado neste momento na Venezuela e na Colômbia pela nova editora vinculada ao Movimento Continental Bolivariano (MCB), Gente do SulInsurgente, acompanhado de uma extensa introdução (na realidade um estudo preliminar) do comandante Jesús Santrich, integrante do estado maior central das FARCEP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo). Também está sendo publicado no Chile por iniciativa do FPMR (Frente Patriótico Manuel Rodríguez) e no Uruguai pelo Movimento 26 de Março (M26). Agradecemos de coração a todos esses companheiros da América Latina e do mundo que se sentiram representados pelo que este livro busca compartilhar, tanto pelo que Che Guevara escreveu e sobre o que refletiu nos seus últimos dias de combate como pelos estudos que acompanham esses textos. Evidentemente que o guevarismo não é algo “nostálgico”, um produto mercantil fora de moda e sepultado nos anos 1960 ou um inofensivo ícone pósmoderno. As principais forças sociais e políticas insurgentes, e inclusive político militares, em pleno século XXI seguem lutando por um mundo melhor, se apropriaram deste livro e o publicaram como material próprio de suas organizações. Isso nos enche de orgulho e de honra (oxalá alguém o traduza e possa aproximálo também dos companheiros e irmãos palestinos). Nenhuma dessas edições busca dinheiro nem pretendem converter Che em uma mercadoria de shopping. Essas organizações irmãs, insurgentes, bolivarianas e guevaristas, publicam En la selva para que sirva na luta contra o sistema capitalista mundial. Isso está mais que claro, não é certo? Se essas são algumas das principais edições que estão sendo gestadas e publicando em diversos países do mundo, pelo menos até agora (final de maio de 2011), duas palavras específicas para esta edição argentina. Aqui, na Argentina, o livro sai publicado em conjunto por dois selos editoriais: “Amauta insurgente” e “Hombre Nuevo”. O primeiro, “Amauta insurgente”, corresponde a nossa Cátedra Che Guevara e ao nosso Coletivo. Ao longo de todos esses anos de militância e trabalho de formação política publicamos muitíssimos materiais — incluindo algumas jóias de difícil acesso que resgatamos do esquecimento — mas como nunca temos dinheiro, já que sempre realizamos nossa tarefa
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 86
com trabalho voluntário, editamos nossos materiais em formato digital pela internet. Os disponibilizamos em www.amauta.lahaine.org. Também publicamos numerosas brochuras em papel, mas em formato artesanal. Esse é o primeiro livro que editamos. O outro editorial, “Hombre Nuevo", que em seu momento conhecemos graças a nosso amigo em comum Orlando Borrego (amigo e colaborador de Ernesto Guevara, e enviado a nossa cátedra em várias oportunidades), tem sua própria história. Ao longo de anos, nos reencontramos com estes companheiros graças aos amigos da fábrica recuperada IMPA, onde funciona a Universidade dos Trabalhadores y nossa cátedra. Além de constituir a continuidade da publicação dos livros guevaristas de Orlando Borrego El camino del fuego e Recuerdos en ráfaga por eles editados (e apresentados na nossa Cátedra Che Guevara), concordamos em publicar em comum, junto com os companheiros do editorial “Hombre Nuevo” porque consideramos que a revolução na Argentina terá que contar necessariamente com a convergência de diversas forças. 44
Nós dedicamos expressamente En la selva a Mario Roberto Santucho e a corrente guevarista que Robi [Santucho] representou (o Partido Revolucionário dos TrabalhadoresExército Revolucionário do Povo) e com a qual nos sentimos ideológica e politicamente identificados. 45
Mas ao mesmo tempo dedicamos esta obra a nossos 30.000 companheiros desaparecidos , onde indubitavelmente também estão —entre muitos outros e outras— os companheiros e 46
companheiras dos Montoneros . Nós reivindicamos sinceramente, sem oportunismo algum, a todos os companheiros caídos e desaparecidos, não somente dos Montoneros mas todo o arco 47
48
do peronismo revolucionário em seu conjunto, incluindo também as FAR , as FAP , o 49
Peronismo de Base, a ARP e a resistência ao golpe gorila de 1955. Todos são nossos companheiros!
44
Mario Roberto Santucho (19361976), um dos maiores revolucionários argentinos, foi para a luta armada contra a ditadura argentina. Nota do tradutor. 45 O autor se refere aqui a todos os mortos e desaparecidos durante a ditadura argentina. Nota do tradutor. 46 Montoneros foi um grupo guerrilheiro que buscavam derrubar a ditadura argentina. Os Montoneros foram sistematicamente perseguidos e desaparecidos durante a ditadura. Nota do tradutor. 47 As Forças Armadas Revolucionárias (FAR) foram uma organização guerrilheira marxista que se fundiu com os Montoneros, que, por sua vez, tinham o peronismo como ideologia. Nota do tradutor. 48 Forças Armadas Peronistas (FAP). Nota do tradutor. 49 Ação Revolucionária Peronista (ARP). Nota do tradutor.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 87
Sem nenhuma dúvida Rodolfo Walsh, Carlos Olmedo, Marcos Osatinsky, Rodolfo Puiggrós, Rodolfo Ortega Peña, Alicia Eguren e John William Cooke, também são nossos companheiros e nossos guias, ainda que sintamos maior afinidade política e ideológica pela corrente guevarista de Robi Santucho, Raymundo Gleyzer, Haroldo Conti, Silvio Frondizi, entre outros. O Che Guevara não tem dono nem é propriedade privada de ninguém. Por isso o editamos em conjunto editoriais com orientações diversas. Cada um o interpela desde sua própria história e sua própria identidade. En la selva constitui nossa maneira de interpelálo e trazêlo ao nosso presente. Nada mais que isso. Como demonstram outras insurgências, a revolução socialista argentina, necessariamente deverá recuperar todas as rebeldias do passado, incluindo também —casualmente— os anarquistas da Patagônia rebelde de inícios do século XX e toda a gente que lutou e morreu para mudar este país que tanto resiste a mudar mas que alguma vez lograremos, por fim, dar a volta completa e reordenar desde a raiz. Oxalá este modesto livro sirva fundamentalmente para a gente jovem, para começar a formar novos militantes revolucionários do campo popular que, seguindo o exemplo insurgente do Che, estejam dispostos a por em risco sua vida, não por dinheiro nem por um carguinho político ou alguma outra mesquinhez medíocre, mas senão por um projeto coletivo mediante o qual logremos a felicidade de nosso povo, a Pátria Grande latinoamericana, a revolução socialista e nossa segunda e definitiva independência. 50
No aniversário do Cordobazo , Boedo, 29 de maio de 2011. Néstor Kohan
50
O Cordobazo foi um importante movimento popular ocorrido em Córdoba, uma das mais importantes cidades industriais da Argentina, em 29 de maio de 1969. A consequência mais imediata foi a derrubada do governo e a volta do peronismo. Nota do tradutor.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 88
REVOLUÇÃO CUBANA: 50 ANOS DE RESISTÊNCIA E DIGNIDADE
51
Arrancados de séculos de opressão e atraso, os cubanos jamais se resignarão. Como um país pobre pode construir uma sociedade mais justa para todos. Depois de 50 anos da revolução, Cuba tem a mais baixa taxa de mortalidade infantil e um dos maiores pólos culturais da América Latina.
Por: Tiago Nery.
Equilibrandose entre o realismo e a utopia, a Revolução Cubana está completando 50 anos. Nos primeiros dias de janeiro de 1959, após pouco mais de dois anos de luta guerrilheira, o Exército Rebelde, liderado por Fidel, Raul, Camilo e Guevara, entrava triunfalmente em Havana, iniciando um novo capítulo na história do país. O impacto da Revolução iria transcender em muito seus limites territoriais, repercutindo sobre sucessivas gerações de jovens, trabalhadores e intelectuais de várias partes do mundo, sobretudo da América Latina. Pela primeira vez, a própria idéia de revolução, que soava sempre tão distante para os latinoamericanos (a exemplo das revoluções mexicana, russa e chinesa), passava a ser um tema da atualidade. A polarização da época da Guerra Fria fez com que muitas análises sobre a Revolução Cubana estivessem impregnadas pelo clima daquele período e ignorassem as verdadeiras origens do movimento comandado por Fidel Castro. A revolução de 1959 tem profundas raízes na trajetória histórica nacional, cujos antecedentes remontam ao período da luta pela independência. Cuba foi a última colônia da América Latina a libertarse da Espanha, em 1898, num processo que se estendeu por um período de 30 anos, em que se sucederam duas guerras de independência. A primeira, conhecida como a "Guerra dos dez anos" (18681878), foi liderada pelo advogado e proprietário de terras Carlos Manuel de Céspedes, considerado o "pai da pátria". A segunda, iniciada em 1895, teve como principal ideólogo o advogado, jornalista e poeta José Martí, principal intelectual cubano e um dos mais importantes do continente, que desencadeou um movimento mobilizando amplos setores populares. 51
Originalmente publicado em: diplomatique.org.br. 12/1/2009.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 89
Antes de se tornar socialista, a Revolução Cubana foi um movimento de afirmação da soberania nacional. Já Fidel e Guevara representavam a sublimação do tradicional caudilho latinoamericano em líder autenticamente popular No momento em que a vitória das forças independentistas estava próxima a concretizarse, o governo dos EUA resolveu entrar no conflito, provocando uma guerra contra a Espanha. Vitoriosos, os norteamericanos reconheceram a independência de Cuba, apesar de imporem, em 1902, uma emenda constitucional (emenda Platt), que permitia aos Estados Unidos exercerem o direito de intervenção no sentido de "preservar a independência cubana". Com isso, Cuba tornavase, na realidade, um protetorado dos EUA. A atuação norteamericana frustrou as expectativas de liberdade e soberania que alimentaram o movimento desde o início. A desilusão com o desfecho serviria como elemento crucial para a formação de uma singular consciência nacionalista, que passaria a reivindicar uma terceira guerra emancipatória contra o imperialismo estadunidense. Dessa forma, o processo revolucionário que derrubou a ditadura de Fulgencio Batista retomaria a trajetória dos movimentos independentistas do século 19, vinculando a libertação nacional e social aos desafios da Guerra Fria (Ayerbe, 2004). O movimento revolucionário de 1959, iniciado em 1953, com a criação do Movimento 26 de Julho, guarda profundas conexões com aquele liderado por Martí algumas décadas antes. Em A história me absolverá, histórica autodefesa de Fidel Castro por ocasião de sua prisão, após a frustrada tentativa de tomar o quartel de Moncada, o futuro líder da revolução afirmou: "Impediram que chegassem às minhas mãos os livros de Martí. Parece que a censura da prisão os considerou demasiado subversivos. Ou será porque considerei Martí o autor intelectual do 26 de Julho?" (Castro, 1979, p. 22). Percebese, dessa forma, que antes de se tornar socialista, a Revolução Cubana foi um movimento de afirmação da soberania nacional. A guerra revolucionária não recebeu nenhuma ajuda da então URSS, assim como o Partido Socialista Popular (comunista), que inicialmente rejeitara as ações armadas e havia condenado o assalto ao Moncada, só apoiaria a guerrilha em sua fase final. Comentando sobre a originalidade do processo cubano, o crítico literário Antonio Candido (1992) afirmou que líderes como Fidel e Guevara representavam uma formação política
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 90
singular e aparentemente impossível: a sublimação do tradicional caudilho latinoamericano em líder autenticamente popular. Dessa maneira, assim como em Cuba o caudilho potencial transformouse em líder responsável, comprometido com o socialismo, a tradição radical, vinda de pensadores como José Martí, permitiria que o marxismo se ajustasse à realidade do país. As experiências socialistas do século 20 foram obrigadas a dividir seus esforços entre a sobrevivência em relação aos inimigos externos e a construção de uma sociedade que se pretendia mais justa e avançada. A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS só viriam confirmar que Cuba não era um satélite soviético. Por acreditar que, sem o apoio do bloco socialista, a queda do regime cubano seria apenas uma questão de tempo, o governo dos EUA endureceu o bloqueio econômico nos anos 1990, por meio de medidas extraterritoriais como a emenda Torricelli e a lei HelmsBurton. De acordo com o direito internacional, o embargo unilateral é considerado uma medida ilegal. Recentemente, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, pela 17ª vez consecutiva, uma resolução que condena os EUA pelo bloqueio imposto a Cuba há 47 anos. Dos 192 países que pertencem à ONU, 185 condenaram o embargo estadunidense. Mesmo com o recrudescimento das sanções, o governo cubano conseguiu não apenas manter mas também melhorar algumas das principais conquistas sociais da revolução. No âmbito da saúde, Cuba atingiu recentemente a mais baixa taxa de mortalidade infantil da sua história: 5,3 em cada mil nascidos vivos. Tratase da segunda menor taxa das Américas, ao lado do Canadá. Na área cultural, a Casa das Américas, fundada por Haydée Santamaría, continua sendo um importante centro de difusão da literatura latinoamericana. Igual importância tem o festival internacional de cinema de Havana, que acaba de realizar sua 30ª edição. Além dos avanços, a Revolução Cubana também apresenta contradições e problemas. Por exemplo, muitos questionam o regime de partido único, o monopólio da imprensa estatal e as restrições a algumas liberdades individuais. Ademais, nos últimos anos, em virtude das reformas econômicas introduzidas com o colapso do campo socialista, a sociedade cubana passou a experimentar um nível de desigualdade ao qual não estava acostumada.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 91
No entanto, entre as principais fragilidades das críticas endereçadas a Cuba, ressaltase a ausência de perspectiva histórica, que ignora os contextos e os desafios que influenciaram as escolhas dos dirigentes cubanos, sempre condicionadas pela ação dos sucessivos governos norteamericanos. Além disso, devese observar que as experiências socialistas do século 20 foram obrigadas a dividir seus esforços entre a sobrevivência em relação aos inimigos externos e a construção de uma sociedade que se pretendia mais justa e avançada. No caso de Cuba, a pressão do exterior tem sido incessante ao longo dos últimos 50 anos. Segundo o historiador Luis Fernando Ayerbe, "nenhum sistema pode desenvolver suas potencialidades vivendo em clima de permanente conflito, que é justamente o mais favorável ao fortalecimento das tendências autoritárias existentes" (Ayerbe, 2004, p.119). Com seus erros e acertos, a Revolução Cubana mostrou a muitos povos que um país pobre pode construir uma sociedade mais justa para todos. Tratase de uma ilha, arrancada de séculos de opressão e atraso, que se ergueu para construir uma nova história, a que lhe foi negada. Darcy Ribeiro afirmou certa vez que, na América Latina, só havia dois destinos: ser resignado ou ser indignado. Os cubanos jamais se resignarão. Referências Bibliográficas: AYERBE, Luis Fernando. A Revolução Cubana . São Paulo: Editora UNESP, 2004. (Coleção Revoluções do século XX) CANDIDO, Antonio. Cuba e o socialismo . In: SADER, Emir (Org.) Por que Cuba? . Rio de Janeiro: Revan, 1992. CASTRO, Fidel. A história me absolverá . 3ª ed. São Paulo: Alfa Omega, 1979.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 92
52
DO PERÍODO ESPECIAL À ASCENSÃO DE RAÚL “Está claro que tem havido uma resistência estóica a fim de preservar tudo o que é considerado ganho da revolução. O envolvimento radical com o Estado ficou evidente em amplos setores da classe trabalhadora e o governo tem se esforçado para engajar e incorporar a população, especialmente os jovens”. 53
Por: Stephen Wilkinson . Raúl Castro assumiu o poder em Cuba numa época propícia. Economicamente, o país acabara 54
de emergir do “Período Especial” e, internacionalmente, o governo de George W. Bush dava mostras de que seu mandato chegava ao fim, com os partidários do embargo à ilha já bastante inferiorizados. Havia um enorme espaço para manobras e mudanças. Uma das primeiras medidas do novo presidente foi uma ampla consulta à população: milhares 55
de encontros aconteceram por todo o país e um intenso debate sobre os problemas nacionais tomou conta da sociedade. Desde então, os ministérios e as empresas vêm tendo maior autonomia e há mais abertura para a crítica direta na imprensa sobre as falhas do sistema. Não resta dúvida de que Raúl prefere delegar a controlar ele mesmo, estilo muito diferente do de seu irmão. Com base nos resultados da consulta nacional, ele introduziu uma série de reformas econômicas, incluindo a eliminação de restrições na aquisição de aparelhos eletrônicos, como computadores e celulares. Além disso, aqueles que vivem em conjuntos habitacionais do Estado terão a possibilidade de comprar seus imóveis. E o acesso aos hotéis 52
Originalmente publicado em diplomatique.org.br. 04/07/2008. Stephen Wilkinson é pesquisador do Internaional Institute for the Study of Cuba, da Metropolitan University de Londres. 54 O termo “Período Especial de Paz” deriva da expressão “Período Especial em Tempo de Guerra”, nome dado ao plano de sobrevivência preparado por Cuba durante a Guerra Fria, para o caso de estourar um conflito entre a União Soviética e os Estados Unidos. Em um cenário desses, o país possivelmente estaria sob bloqueio completo, de modo que foi criada uma tática de contingência para assegurar uma resposta coordenada à escassez de alimentos e combustíveis. Por fim, a guerra não veio, mas quando o bloco soviético entrou em colapso, em 1991, Cuba ficou sem seu principal parceiro comercial e protetor econômico. Na prática, era uma situação extremamente similar àquela que os cubanos haviam vislumbrado, mas em tempo de paz. 55 Isso ocorreu de modo semelhante ao que foi feito no início do Período Especial, quando houve uma série sem precedentes de consultas à população. Os assim chamados “parlamentos de trabalhadores” foram instituídos por todo o país para discutir os problemas e sugerir soluções. À eles seguiuse, em 1991, um Congresso do Partido Comunista, em que decisõeschaves foram tomadas para delinear a estratégia do governo ao longo da década seguinte. Pela primeira vez, permitiuse que pessoas de diferentes convicções religiosas figurassem abertamente nos quadros do partido. Logo depois, o sistema eleitoral foi reformado para permitir que a Assembléia Nacional fosse eleita por sufrágio direto. Essas medidas proporcionaram aos cubanos uma sensação de maior envolvimento direto com as decisões 53
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 93
de luxo, antes reservados aos turistas estrangeiros, foi liberado para todos os cidadãos. Raúl anunciou também que o VI Congresso do Partido Comunista será realizado no final de 2009 – o primeiro em 12 anos – para delinear o futuro econômico e político do país. Falase até mesmo da revogação da exigência de autorização para viagens ao exterior. Sem dúvida, a chave dessas mudanças passa pelo novo comitê executivo do Bureau Político, composto pelo vicepresidente José Ramón Machado Ventura e pelos vicepresidentes do Conselho de Estado Juan Almeida Bosque, Abelardo Colomé Ibarra, Carlos Lage Dávila, Esteban lazo Hernández e Julio Casas Regueiro, além de Raúl Castro. Juntos, os membros desse grupo carregam todo o peso e experiência da Revolução Cubana em um corpo único, capaz de conduzir o futuro do Partido Comunista, das organizações de massa e do governo. Essa instância surgiu para substituir o comitê provisório, fundado em 31 de julho de 2006, quando Fidel entregou o poder a Raúl, e marca a transferência final de autoridade na ilha. O Bureau Político aumentou ainda mais a descentralização e criou sete comissões parlamentares permanentes subordinadas a ele. Elas compreendem assuntos como ideologia e cultura, economia, alimentos e agricultura, substitutos de importados e aumento das exportações, educação, ciência e esportes, saúde e relações internacionais. As decisões permanecem baseadas no consenso, com o presidente arbitrando no caso de significativo desacordo. No conjunto, essas medidas indicam que os líderes cubanos começam a preparar o Partido Comunista para a eventual transição de poder a uma geração mais jovem. Correndo paralelamente às reformas na estrutura do governo, há um programa de amplo espectro para revitalizar o setor agrícola. O controle agropecuário do país está passando das mãos de funcionários no Ministério da Agricultura para mais de 150 delegações locais. A ação é parte do programa multifacetado para impulsionar a produção de alimentos e baixar os custos da importação: em 2007, Cuba gastou US$ 1,7 bilhão com a compra de gêneros alimentícios, um montante absurdo. O governo também planeja desmanchar 104 fazendas estatais que dão prejuízo e embargar as demais em operação. Camponeses têm relatado que as decisões, do uso da terra à alocação de recursos, estão se deslocando para a esfera local. Tanto que, pela primeira vez em décadas, armazéns estão sendo abertos para que os cubanos comprem suprimentos diretamente dos produtores locais. Está claro que tem havido uma resistência estóica a fim de preservar tudo o que é considerado ganho da revolução. O envolvimento radical com o Estado ficou evidente em amplos setores
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 94
da classe trabalhadora e o governo tem se esforçado para engajar e incorporar a população, especialmente os jovens. Seu apoio durante a transição de poder constituiu o principal fator na sobrevivência do processo revolucionário até agora. Ao mesmo tempo, é evidente que a revolução está entrando em um estágio novo e sem precedentes. De modo exemplar, a filha de Raúl Castro, Mariela, lidera uma campanha de modificação da lei para permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo e possibilitar que transexuais façam operações de mudança de sexo custeadas pelo Estado. Suas propostas resultam, sem dúvida, de alterações que vêm ocorrendo desde o Período Especial, principalmente em relação aos papéis sociais: no caso das mulheres, por exemplo, as responsabilidades cada vez maiores, conseqüência das mudanças econômicas, também lhes propiciaram mais direitos dentro da sociedade. Em anos recentes, muitas cubanas optaram por exercer esse poder na pista de dança, ao som do lânguido e sensual reggaeton, com seus movimentos explícitos altamente controversos. Paralelamente a esse estilo, que enfatiza a dança e o corpo feminino sem qualquer preocupação com o conteúdo das letras, o hip hop se desenvolveu como um movimento socialmente consciente e influenciado pelos efeitos da conversão de Cuba em uma “economia mista”. Oportunidades para o capital estrangeiro Mas o Período Especial não moldou apenas a cultura: permitiu também mudanças em áreas cruciais com as quais o governo de Raúl Castro se depara agora. A primeira delas foi a legalização do dólar. Ao consentir que os cubanos possuíssem dólares e mantivessem contas bancárias nessa moeda, o governo tornou possível às famílias no exterior remeterem dinheiro para ajudar seus parentes. Junto com o incremento do turismo, a dolarização permitiu que os turistas gastassem em moeda forte, enquanto os cubanos usavam o peso no diaadia. A taxa permaneceu firme, em torno de 1 para 25 ao longo da maior parte do período. É esse diferencial que alimentou o mercado paralelo e criou uma “dupla moralidade”: não era possível, nem para o mais ardoroso socialista, deixar de ingressar no setor informal de um jeito ou de outro para conseguir chegar ao fim do mês com alguma renda. Em 2006, o dólar foi retirado de circulação e substituído por um peso conversível, gesto que contou com a acolhida popular: além de significar a rejeição do “dinheiro inimigo”, impunha um imposto extra sobre ele, a fim de encorajar a introdução de outras moedas na economia. Em seu
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 95
primeiro discurso como presidente de fato, em 24 de fevereiro de 2008, Raúl Castro aludiu à moeda dupla em circulação dando a entender que algo seria feito para unificálas. A lei de investimentos estrangeiros é outra medida do Período Especial que está sendo revista. Introduzida em 1993, ela permitiu o investimento estrangeiro direto em todos os setores da economia cubana, exceto na defesa, saúde e educação. Em poucos anos, mais de 400 joint ventures haviam sido formadas em áreas como extração e refino de níquel, turismo e produção de tabaco e rum, principalmente com empresas canadenses e da Europa ocidental. O número de joint ventures declinou após 2000, quando o governo começou a restringilas às grandes corporações estrangeiras, mas desde a chegada de Raúl Castro à presidência parece haver sinais de que ocorrerá um novo relaxamento e que serão oferecidas mais oportunidades para o capital vindo de fora. Este é um dos indícios de que a economia cubana está experimentando um amadurecimento inédito, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Afinal, o lado negativo do relacionamento com a União Soviética e o Comecon (Conselho para Assistência Econômica Mútua) era o modo como a ilha havia trocado uma forma de dependência, a dos Estados Unidos, por outra, sem diversificar suficientemente seus mercados e sua indústria, e apenas a partir do Período Especial esse estado de coisas começou a ser alterado. O gráfico da página ao lado mostra claramente como essa transformação ocorreu e como a economia resgatou sua capacidade de lucrar com as exportações, ao mesmo tempo que o açúcar perdeu seu domínio. O crescimento se acelerou notadamente a partir de 2004 por intermédio do aumento de ganhos originários de “outros serviços”, que representam, principalmente, acordos de troca de capital humano (professores, médicos etc.), o mais importante deles com a Venezuela de Hugo Chávez. Vale observar também como a exportação de medicamentos se tornou uma fonte de rendimentos pequena, mas crescente, de 2000 em diante. Infelizmente o aumento da produção de petróleo, que constitui significativa contribuição para o PIB, não está representado no gráfico, mas é importante mencionar que Cuba reequipou suas instalações de geração de energia para funcionar com óleo diesel produzido internamente e se tornou autosuficiente em eletricidade. Leis de efeito contrário Já a política exterior é e sempre foi uma preocupação central para o governo revolucionário, principalmente devido à proximidade da ilha com os Estados Unidos e a animosidade
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 96
mostrada pelo poderoso vizinho desde o início. Após a Crise dos Mísseis, em outubro de 1962, a ilha passou a gozar de uma relação favorável sem precedentes com a antiga União Soviética, que de muito bom grado subsidiou pesadamente a aliada caribenha, situada bem debaixo do nariz do inimigo na Guerra Fria. Nesse contexto, os Estados Unidos justificaram sua política de embargo baseados no fato de haver um representante do regime soviético perto de sua fronteira, o que seria uma ameaça a sua segurança. Ao longo da década de 1990, porém, com o declínio e a queda da URSS, o Congresso americano continuou aprovando leis que potencializaram as restrições econômicas. A Emenda Mack, de outubro de 1990, proibiu “todo comércio com Cuba por parte de companhias subsidiárias dos Estados Unidos fora dos Estados Unidos”. Antes da aprovação dessa lei, 70% dos negócios entre Cuba e empresas subsidiárias dos Estados Unidos eram direcionados a alimentos e medicamentos. A Lei Torricelli, de outubro de 1992, além de reforçar a anterior, acrescentou o veto a viagens de americanos para a ilha e ao fornecimento de assistência financeira para familiares. Também impediu que barcos que tivessem atracado em Cuba visitassem portos americanos por seis meses. Contudo, essa legislação permitiu a grupos privados fornecer ajuda humanitária novamente, na forma de alimento e remédios. Em março de 1996 surgiu a Lei HelmsBurton, que impôs penalidades às empresas estrangeiras que realizassem negócios com Cuba e permitiu aos cidadãos dos Estados Unidos processar investidores internacionais que utilizassem de alguma forma propriedades de americanos tomadas pelo governo cubano. Em vez de provocar uma mudança nos rumos políticos da ilha, todas essas leis fizeram com que o sistema cubano se tornasse ainda mais arraigado. Tanto que, desde que assumiu o poder, Raúl Castro tem reiterado que Cuba não vai negociar com os americanos, a menos que o governo vizinho aceite firmar os diálogos sem quaisquer precondições e respeitando a soberania de cada nação. Cuba tem continuamente pressionado países estrangeiros para estabelecerem vínculos comerciais e investirem na ilha. Ao mesmo tempo, o governo revolucionário não retrocedeu em nenhum de seus programas de ajuda médica e outros projetos. Assim, os observadores que prevêem uma mudança na relação entre Cuba e Estados Unidos estão de olho antes nas eleições americanas do que nas transformações experimentadas pela ilha. Desde a chegada de Hugo Chávez ao poder na Venezuela e a introdução de uma nova ajuda chinesa, a partir de 2003, ficou evidente que a economia cubana está se saindo melhor do que
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 97
muitos esperavam. Desse modo, a convicção dentro dos Estados Unidos de que a política de embargo é um fracasso vem ganhando terreno. Além do mais, essa estratégia está permeada de contradições, sendo a mais óbvia de todas a exceção à venda de alimentos. Desde 2001, quando uma emenda que permitiu às companhias americanas vender produtos alimentícios foi aceita por George W. Bush, Cuba se tornou o nono cliente das exportações dos Estados Unidos para o setor. Outra contradição evidente se refere à migração. A partir de um acordo de 1995, os Estados Unidos vêm acolhendo 20 mil imigrantes legais por ano, possibilitando que os insatisfeitos e potenciais integrantes de um movimento de oposição dentro da ilha invariavelmente partam e fixem residência em solo americano. Esse fator, mais do que qualquer outro, explica a fraqueza dos oposicionistas à família Castro. A política americana é, assim, um tiro pela culatra, já que não fomenta o descontentamento nem ajuda na criação de um movimento contrário ao regime. A oposição que resta por lá permanece reduzida e é facilmente isolada pelo governo cubano. Além do mais, esses novos imigrantes que hoje moram em Miami estão se registrando para poder votar e devem pressionar os candidatos por mudanças nas regras. Afinal eles têm um interesse direto em enviar dinheiro para seus parentes e gostariam de visitálos sempre que possível. Na percepção dos imigrantes mais antigos, que lideram o lobby de direita anticastrista, isso constitui um trunfo para o odiado regime fundado por Fidel. Foram eles que, em 2004, conseguiram fazer com que o governo Bush restringisse as remessas de dinheiro e as visitas familiares, e isso provocou uma cisão na comunidade cubanoamericana, que ganhou representação pela primeira vez na campanha eleitoral da Flórida. Se vencer as eleições, Barack Obama já prometeu acabar com essas proibições e admitiu conversar com Raúl Castro sem precondições. No plano doméstico, candidatos democratas cubanoamericanos com credibilidade estão concorrendo contra a velha guarda direitista republicana. Não seria nenhum exagero esperar que da próxima eleição americana saia alguma solução para o impasse do embargo a Cuba, independentemente dos rumos que a ilha tome. Sem dúvida, o processo de reformas conduzido sob a batuta de Raúl Castro deve apresentar conseqüências mais a longo prazo que aquelas do Período Especial. Ao mesmo tempo, novos desafios se apresentam diante do país – em particular, a crise mundial ecológica e de alimentos, que requer toda a atenção do governo. O que precisa ser percebido, contudo, é que as políticas adotadas objetivam assegurar a continuidade do processo revolucionário que
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 98
começou em 1959. Sem dúvida elas terão um impacto na opinião pública americana em um ano eleitoral, mas não farão Cuba adotar um “processo de democratização”, como ora imaginou Washington. Enquanto Fidel Castro viver e seu irmão permanecer no poder, isso nunca acontecerá.
Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda. 99
Sites com informação alternativa
Jornal Le Monde Diplomatique Brasil: . Jornal Brasil de Fato: . Resistir (Portugal): . Diário Liberdade (Galícia e países lusófonos): . Correio da Cidadania: . RT Internacional (em espanhol – notícias diárias): . Rebelión (em espanhol): . Diario do Centro do Mundo: .
Lihat lebih banyak...
Comentários