COMUNISMO: OUTRO OLHAR

June 14, 2017 | Autor: R. Mattos Gonçalves | Categoria: Socialismo, Comunismo
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  RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES (Org.)          COMUNISMO:  OUTRO OLHAR                              Quirinópolis  2014 

 

Material didático exclusivo e restrito à UEG, voltado para fins educacionais e de ensino. Proibida a venda.  ­  2 

    RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES (Org.)          COMUNISMO:  OUTRO OLHAR    Material  didático  da  Universidade  Estadual  de  Goiás.  Disciplina  Temas  de  Sociologia  –   Licenciatura  de  História. 

             

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Quirinópolis  2014 

 

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Conselho Editorial – UEG campus Quirinópolis  Edevaldo Aparecido Souza (Curso de Geografia)  Eduardo Batista Silva (Curso de Letras)   Eduardo Henrique Barbosa de Vasconcelos (Curso de História)  Fernando Silva (Educação Física)  Flávia Assumpção Santana (Curso de Biologia)  Joana Correa Goulart (Curso de Pedagogia)   Roberto Barcelos Souza (Curso de Matemática)  Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves (Curso de História)   Revisão deste material: ​ Edevaldo Aparecido Souza  FICHA CATALOGRÁFICA  Gonçalves, Rodrigo Jurucê Mattos (Organizador).     Comunismo:  outro  olhar. Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves (Org.).  Quirinópolis: Edição do organizador, 2014. 91 p.     Material  didático  (Licenciatura  em  História)  –  Universidade  Estadual  de  Goiás. Revisão de Edevaldo Aparecido Souza.  1.  Comunismo  2.  Socialismo  3.  Cuba   4.   História  I.  Gonçalves,  Rodrigo   Jurucê  Mattos II. Universidade Estadual de Goiás III. Título. 

 ​                                                                               CDU    94+32  CDD        900  335    Material  didático  de  uso  exclusivo  e  restrito  à  Universidade  Estadual  de  Goiás.  É  proibida  a  venda  e  a  distribuição  para  fins  comerciais. Material exclusivamente voltado  para  fins  educacionais  e  de  ensino  da  Licenciatura  em  História,  disciplina  Temas  de  Sociologia,  durante  o  ano  letivo  de  2014.  Os  textos  são  de  responsabilidade  de  seus  autores. Todas as fontes estão devidamente citadas. 

 

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                    Dedico  este  trabalho  a  todos  os  trabalhadores  que,  no  seu  cotidiano  e  nas  lutas  da  vida,  buscam  um  mundo melhor, livre  da  exploração  e  das  mazelas  sociais  do  capitalismo.        

 

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                        “...si usted es capaz de temblar de indignación cada vez que se comete una injusticia en el  1

mundo, somos compañeros, que es más importante."   Che Guevara       

 

 ​ “... se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, (então) somos  companheiros, o que é mais importante”.  1

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Resumo    Este  material  didático   reúne  textos  sobre  a  temática  do  comunismo  e  do  socialismo.  O  objetivo  é  contribuir  para  o  debate  da  questão,  bem  como  desmistificar  uma  série  de  ideias  conservadoras   que  são  divulgadas  de  forma  massiva,  especialmente  pela  mídia  burguesa.  Procura­se  ainda  combater  o  obscurantismo  que  geralmente envolve as discussões entorno  do  comunismo e do socialismo.   Palavras­chave: Comunismo, Socialismo, Cuba, União Soviética.         

 

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Sumário     Introdução    Opressivo  e  cinzento?  Não,  crescer  no  comunismo  foi  a  época  mais  feliz de minha  vida ­ Zsuzsanna Clark    92% dos alemães orientais preferem o comunismo no país     Os últimos dias da união soviética​  ­ Fernando Arribas García    Não li e não gostei!​  ­ Mauro Castelo Branco de Moura    O que não se diz sobre os médicos cubanos     Cuba: os próximos 45 anos?​  ­ István Mészáros    O sistema político em cuba: uma democracia autêntica​  ­ Anita Leocadia Prestes    Cuba é o melhor país da América latina para ser mãe  

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Cuba ou a globalização da solidariedade: o internacionalismo humanitário​  ­ Salim 

 

Lamrani 

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Sistema  de  saúde cubano é elogiado por médicos dos EUA ­ Edward W. Campion e 

 

Stephen Morrissey    Os rumos de Cuba segundo os cubanos​  ­ ​ Eduardo Sales De Lima    Che Guevara, exemplo de vida para as novas gerações​  ­ Néstor Kohan    Revolução Cubana: 50 anos de resistência e dignidade​  ­ Tiago Nery 

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Do período especial à ascensão de Raúl​  ­ Stephen Wilkinson   

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Sites com informação alternativa 

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    Introdução     Esse  material  que  agora  o  leitor  tem  em  mãos  nasceu  de  um  debate  na  disciplina  de  Temas  de  Sociologia  que  ministramos  no  1º  ano  do  Curso  de  História  da  UEG,  campus  Quirinópolis.  Trata­se  de  uma  compilação  de  textos  disponíveis  na  internet  ou em periódicos  impressos.  Todas  as  fontes  estão  citadas.  Não  vou  alongar  esta  (breve)  introdução,  mas  é  importante  dizer  que  estes  textos  foram  reunidos  com  o  objetivo  de  que  você,  leitor  interessado,  possa  se  desvencilhar  das  amarras  do  conservadorismo  e  que  possa  ter  um outro  olhar  sobre  as  experiências  socialistas  do  século  XX.  Isso  lhe  permitirá  ver de outro modo as  experiências  socialistas  que  virão.  Aproveito  para  indicar  um  livro  sobre  a  Revolução  Cubana:   AYERBE,  Luis  Fernando.  ​ A  revolução  cubana​ .  São  Paulo:  Unesp,   2004.   (Coleção  Revoluções do século XX).  É  importante  dizer  que  os  textos  aqui  reunidos  são  de  diferentes  autores,  mas  todos  têm  algo  em  comum:  não  compactuam.  Não  compactuam  com  a  ordem  capitalista  ainda  vigente.  Ao  final,  oferecemos  uma  lista  de  sites  nos  quais  se  encontram­se  informações  alternativas,  para  que  possa  se  desvencilhar  da  mídia  oficial   burguesa.  Eventuais  inserções  minhas nos textos estão entre colchetes “[   ]”.   Boa leitura.   Um abraço do Prof. Rodrigo Jurucê.    Quirinópolis. 2014. 

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OPRESSIVO  E  CINZENTO?  NÃO,  CRESCER   NO   COMUNISMO  FOI  A  ÉPOCA  2

MAIS FELIZ DE MINHA VIDA   “Quando  as  pessoas  me  perguntam  como  era  crescer  atrás da Cortina de Ferro, na Hungria  nos  anos  setenta  e  oitenta,  a  maioria espera escutar contos  sobre polícia  secreta, as filas  nas  padarias e outras declarações desagradáveis sobre a vida em um Estado de partido único”.    Zsuzsanna Clark (Hungria)    Eles  ficam  sempre  desapontados  quando  explico  que  a  realidade  era  muito  diferente,  e  a  Hungria  comunista,  longe  de  ser   o   inferno  na  terra,  era,  na  verdade,  um  ótimo  local  para  viver.  Os comunistas proporcionavam  a todos trabalho garantido, boa educação e atendimento  médico gratuito.  Mas  talvez  o melhor de tudo fosse  a sensação primordial da camaradagem, o espírito que falta  em minha adotada Grã­Bretanha e, de igual forma, a cada vez que volto à Hungria atual. 

  A autora do artigo, Zsuzsanna Clark, como estudante de Ensino Primário na Hungria socialista.

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  Este  texto   mostra  uma  visão  bastante  diferenciada  daquela  que  estamos  acostumados  a  ver  nos  meios  de  comunicação:  a do comunismo como uma ditadura perversa, onde todos são escravizados pela “casta” do Partido  único. Originalmente publicado em diarioliberdade.org. 29/11/2012.  

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  Eu  nasci  em  uma  família  de  classe  trabalhadora  em  Esztergom,  uma  cidade  no  norte  da  Hungria,  em  1968. Minha mãe, Juliana, veio do Leste do país, a parte mais pobre. Nascida em  1939,  teve  uma  infância  dura.  Deixou  a  escola  aos  11  anos  e  foi  diretamente  trabalhar  nos  campos.  Ela  recorda  ter  tido que se levantar às 4 da manhã para  caminhar cinco quilômetros e  comprar  um  pão.  De   menina,  ela  tinha  tanta  fome  que  com  frequência  esperavam  junto  à  galinha até que pusesse um ovo. Então o abria e engolia, crua, a gema e a clara.  Foi  o  descontentamento  com  aquelas  condições  dos  primeiros  anos  do  comunismo,  que  conduziu à revolta húngara de 1956.  Os  distúrbios  fizeram  com  que  as  lideranças  comunistas  compreendessem  que  só  poderiam   consolidar  suas  posições  tornando  as   nossas  vidas  mais  toleráveis.  O  stalinismo  acabou  e  o  'comunismo goulash' ­um tipo original de comunismo liberal­ chegou.  Janos  Kadar,  o  novo  líder  do  país,  transformou  a  Hungria  na  barraca  mais  feliz  do  Leste  da  Europa. Tínhamos provavelmente mais liberdades que em qualquer outro país comunista.  Uma  das  melhores  coisas  foi  a  maneira  como  as  oportunidades  de  lazer  e  férias  se  abriram a  todos.  Antes  da  Segunda  Guerra  Mundial,  as  férias  estavam  reservadas para as  classes altas e  médias.  Nos  imediatos  anos  do  pós­guerra  também,  a  maioria  dos  húngaros  estava  trabalhando muito duro para reconstruir o país, as férias ficavam fora de questão.  Porém,  nos  anos  sessenta,  como  em  muitos  outros  aspectos  da  vida,  as  coisas  mudaram  para  melhor.  No  final da década, quase todo mundo podia se dar ao luxo de viajar, graças à rede de  subsídios a sindicatos, empresas e cooperativas de centros de férias.  Meus  pais  trabalhavam  em  Dorog,  uma  cidade  próxima,  por  Hungaroton,  uma  companhia  discográfica  de  propriedade  estatal,  de  modo  que  ficamos  no  acampamento  de  férias  da  fábrica  no  lago  Balaton,  “o  mar  húngaro”.  O  acampamento  era  similar  à  espécie  de  colônias  de  férias  na  moda  na  Grã­Bretanha  da  época,  a  única  diferença  era  que  os  hóspedes  tinham  que  fazer  seu  próprio  entretenimento  às  noites.  Não  havia  campos  de  férias  tipo  Butlins  Redcoats. 

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Algumas  das  minhas  primeiras  lembranças  da  vida  no  lar  são  os  animais  que  meus  pais  mantinham  no  quintal.  A  cria  de  animais  era  algo  que  a  maioria  da  gente  fazia,  bem  como  o  cultivo  de hortaliças. Fora de Budapeste e as grandes cidades, nós éramos uma nação de ‘Tom  e  Barbara  Goods”.  (nota:  referência  à  série  da  BBC  dos  anos  70  “The  Good  Life”,  protagonizada por uma família auto­suficiente)  Meus  pais  tinham  por  volta  de  50  frangos,  porcos,  coelhos,  patos,  pombos  e  gansos.  Mantivemos  os  animais  não  só  para  alimentar  a  nossa  família,  como  também  para  vender  a  carne a nossos amigos. Utilizaram­se as penas de ganso para travesseiros e edredons.  O  governo  entendeu  o  valor  da  educação  e  da  cultura.  Antes  da  chegada  do  comunismo,  as  oportunidades  para  os  filhos  dos  camponeses  e  da  classe  operária  urbana,  como  eu,  para  ascender na escala educativa eram limitadas. Tudo isso mudou após a guerra.  O  sistema  educativo  na  Hungria  era  similar  ao  existente  no  Reino  Unido  na  época.  A  Educação  Secundária  era  dividida  por  níveis:  Elementar,  Secundário  Especializado  e  Formação  Profissional.  As  principais  diferenças  eram  que  estávamos no Ensino Básico até os  14 anos e não até os 11.  Havia  também ensino  noturno, para crianças e para pessoas adultas. Os meus pais, que  tinham  abandonado  a  escola  de  novos,  iam  a  aulas  de  Matemática,  História  e  Literatura  Húngara  e  Gramática.  Eu  adorava  os  ir  à   escola  e  principalmente  fazer  parte  dos Pioneiros ­  um movimento comum  a todos os países comunistas.  Muitos  no  Ocidente  achavam  que  era  uma  bruta  tentativa  de  doutrinar  a  juventude  com  a  ideologia  comunista,  mas sendo pioneiros ensinaram­nos habilidades valiosas para a vida, tais  como  a  cultura  da  amizade  e  a  importância  de  trabalharmos  para  o benefício da comunidade.  “Juntos um para o outro” era nosso lema, e assim foi como nos encorajavam a pensar.  Como  pioneiro,  se  obtinha  bons  resultados  em  teus  estudos,  no  trabalho  comunal  ou  em  competições  escolares,  podia  ser  premiado com uma viagem a  um acampamento de verão. Eu  ia  todos  os  anos,  porque  participava  em  quase  todas  as  atividades  da  escola:  competições,  ginástica, atletismo, coro, fotografia, literatura e biblioteca. 

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Em  nossa  última  noite  no  acampamento  de  Pioneiros,  cantávamos  canções  ao  redor  da  fogueira,  como  o  Hino  Pioneiro:   “Mint a mokus  fenn a fan, az uttoro oly vidam” (“Somos tão  felizes  como  um  esquilo  em   uma  árvore”),  e  outras  canções  tradicionais. Nossos sentimentos  sempre  foram  misturados:  tristeza  diante  da  perspectiva  de irmos embora, mas contentes ante  a ideia de vermos nossas famílias.  Hoje  em  dia,  inclusive  os  que  não  se  consideram  comunistas  olham  para  atrás  com  saudade  para seus dias de pioneiros.  As  escolas  húngaras  não  seguiam  as  chamadas  ideias  “progressistas”  sobre  a   educação  dominantes  no  Ocidente.   Os  padrões  acadêmicos  eram  extremamente  altos  e  a  disciplina  era  estrita.  Minha  professora  favorita  ensinou­nos  que  sem  o  domínio  da  gramática  húngara  iríamos  carecer  de confiança para articular os  nossos pensamentos e sentimentos. Só podíamos  dar um  erro se queríamos atingir a nota mais alta.  Diferentemente   do   Reino  Unido,  tínhamos  exames  orais  em todas as matérias. Em Literatura,  por  exemplo,  tínhamos  que  memorizar  e  recitar  diferentes   textos  e  depois  a/o  estudante  teria  que responder perguntas colocadas oralmente pela professora.  Sempre  que  tínhamos  uma  celebração  nacional,  eu era das que pediam para recitar um poema  ou  verso  em  frente   de toda a escola. A Cultura era considerada extremamente importante pelo  governo.  Os  comunistas  não  queriam  restringir  as  coisas  boas  da  vida  para  as  classes  altas  e  médias – o melhor da música, a literatura e a dança eram para o desfrute de todos.  Isto  significava  subsídios  generosos  para  as  instituições,  incluindo  orquestras,  óperas,  teatros  e  cinemas.  Os  preços  dos  ingressos  eram  subsidiados  pelo Estado, daí que as visitas à ópera e  ao teatro fossem acessíveis.  Abriram­se  “Casas  da  Cultura”  em  cada  vila  e  cidade,  também  provinciais,  para  que a classe  trabalhadora,  como   meus  pais,  pudessem  ter  fácil  acesso  às  artes  cênicas,  bem  como  aos  melhores intérpretes.  A  programação  na  televisão  húngara  refletia  a  prioridade  do  regime  para  levar  a  cultura  às  massas, sem estupidez. 

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Quando  eu  era  adolescente,  a  noite  do  sábado  em  prime  time  pelo  geral  significava  ver  uma  aventura  de  Jules  Verne,  um  recital  de  poesia,  um  espetáculo  de  variedades,  uma  obra  de  teatro ao vivo, ou um simples filme de Bud Spencer.  Grande  parte  da  televisão  húngara  era  feita   com  produção  própria,  mas  alguns  programas  de  qualidade eram importados, não unicamente do Bloco do Leste, mas também do Oeste.  Os  húngaros  de  inícios  dos  anos  70  acompanharam  as  aventuras  e  tribulações  de   Soames  Forsyte  em  The  Forsyte  Saga,  tal   como o público britânico tinha feito poucos anos antes. The  Onedin  Line  foi  uma  outra  das  séries  populares  da  BBC  que  eu  desfrutei,  assim  como  os  documentários de David Attenborough.  No  entanto,  o governo estava atento ao perigo de nos tornarmos uma nação de telespectadores  imbecilizados.  Todas  as  segundas­feiras,  tínhamos  “noite  familiar”.  Aí  a  televisão  estatal  ficava  fora do ar e  isso  encorajava  as   famílias  a  fazerem  outras  coisas  juntas.  Também  era  chamada  "noite  dos  planos  familiares"  e  eu  tenho  certeza  que  um  estudo  do  número   de  crianças  concebidas  durante as segundas­feiras familiares seria uma boa leitura.  Ainda  que  vivêssemos  no  “comunismo  goulash”  e  tivéssemos  sempre  comida suficiente para  comer, não éramos bombardeados com publicidade de produtos que não precisávamos. 

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  Com 14 anos, a Zsuzsanna (à direita) com uma amiga ainda antes da volta da Hungria ao capitalismo. 

  Durante  a  minha  juventude,  vesti  roupas  em  segunda  mão,  como  a  maior  parte  das  pessoas  novas.  A  minha  mochila  escolar  era  da  fábrica  onde  meus  pais  trabalhavam.  Que  diferença  com  a  Hungria  de  hoje,  onde  as  crianças  são  intimidadas,  tal  como  no  Reino  Unido,  por  usarem uns tênis da “pior” marca.  Como a maioria da gente na era comunista, meu pai não tinha obsessão com o dinheiro. Como  mecânico,  ele  cobrava  às  pessoas  com  justiça.  Uma  vez  vi  um  carro  avariado  com  o  capô  aberto  ­  um  espetáculo  que  sempre  o  fazia  reagir.  Pertencia  a  um  turista  da  Alemanha  Ocidental.  Meu  pai  arranjou  o  carro,  mas  negou­se  a  cobrar­lhe,  nem  que  fosse  com  uma  garrafa  de  cerveja.  Para  ele  era  natural  que  a  ninguém  pudesse  aceitar  dinheiro  por  ajudar  a  alguém com problemas.  Quando  o  comunismo  na  Hungria  terminou em 1989, não só  fui surpreendida, também estava  entristecida,  tal  como  muitos  outros.  Sim,  tinha  gente  se  manifestando contra o governo, mas  a maioria das pessoas comuns – eu e minha família incluída – não participou nos protestos. 

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Nossa  voz  –  a  voz  daqueles  cujas  vidas  foram  melhoradas  pelo  comunismo  –  rara  vez  se  escuta  quando  se  trata  de  discussões  sobre  como  era  a  vida  por  trás  da  Cortina  de  Ferro.  Em  troca,  os  relatos  que  se  escutam  no  Ocidente  são  quase  sempre  da   perspectiva  de  emigrantes  ricos ou dos dissidentes anticomunistas com um interesse pessoal.  O  comunismo  na  Hungria  teve  seu  lado  negativo.  Enquanto  as  viagens  a  outros  países  socialistas  não  tinham  nenhuma  restrição,  viajar  para  o  oeste  era  problemático  e  só  era  permitido  a  cada  dois  anos.  Poucos  húngaros   (eu  incluída)  desfrutaram  das  aulas  de   russo  obrigatórias.  Tinha  restrições  menores  e  desnecessários  setores  burocráticos,  e  a  liberdade  para  criticar  o  governo  estava  limitada.  No  entanto,  apesar  disto,  acho  que,  em  seu  conjunto,  as  características positivas ultrapassam as negativas.  Vinte anos depois, a maior parte destes benefícios foram destruídos.  As  pessoas  já  não  têm  estabilidade  no  emprego.  A  pobreza  e  a  delinquência  estão  aumentando.  Pessoas  da  classe  trabalhadora  já  não  podem  se  dar  ao  luxo  de  ir  à  ópera  ou  ao  teatro.  Tal  como  na  Grã­Bretanha,  a  televisão atonta  em um  grau preocupante ­ ironicamente,  nunca  tivemos  Big  Brother  durante  o  comunismo,   mas  hoje  temos.  E  o  mais  triste  de tudo, o  espírito de camaradagem que uma vez se desfrutou quase desapareceu.  Nas  últimas  duas  décadas  é  possível   que  tenhamos  aumentado  o  número  de  shoppings,  a  "democracia" multipartidarista, os celulares e a internet. Mas perdemos muito mais. 

 

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92% DOS ALEMÃES ORIENTAIS PREFEREM O COMUNISMO NO PAÍS   Para  marcar  a  data  da  queda  do  Muro  de  Berlim,  o  [jornal  alemão]  ​ Der   Spiegel   fez  uma  pesquisa,  divulgada  neste  sábado  (10),  com  mil  alemães  que  cresceram  nos  dois  lados  do  país  dividido  até  9  de  novembro  de  1989.  A  conclusão  [é]  para  desespero  do  semanário  alemão [conservador].    11/11/2007. 

Junto  com  a  TNS Forschung, o ​ Spiegel fez a pesquisa com duas gerações distintas de alemães  orientais  e  ocidentais  com  o  objetivo  de  obter  um  retrato  dos  resultados  da  unificação  na  psique  nacional.  A  conclusão   é  que  o  muro  ideológico  ainda  permanece  nas  mentes  alemãs,  quase duas décadas após a reunificação. Foram  entrevistados  500  jovens  na  faixa  etária  de 14 a 24 anos e seus 500 pais na faixa de 35  a  50  anos.  A  primeira,  tinha  no  máximo  seis  anos  quando  o  muro  caiu  e,  evidentemente,  possui  uma  experiência  temporal menor do período em que o país estava dividido pela Guerra  Fria.  Já  a  segunda  geração  tinha  pelo  menos  17  anos,  e  no  máximo  32,  quando  ocorreu  a  débâcle  do  muro.  O  método  da  pesquisa  constatou  que  praticamente  não  há  diferenças   entre  as  gerações mais jovens e mais velhas na sua forma de pensar a reunificação.  Socialismo, uma boa idéia As  maiores  diferenças  na  pesquisa  aparecem  quando  os  entrevistados  orientais  e  ocidentais  compartilham  suas  opiniões  sobre  a  vida  na  antiga  Alemanha  Oriental.  O  Estado  comunista  recebe notas muito mais altas dos que moram no Leste com relação aos que moram no Oeste.  Dos  alemães orientais de  35  a 50 anos, 92% acreditam que um dos maiores atributos da antiga  Alemanha  Oriental  foi  sua  rede  de  segurança  social;  47%  dos  jovens  no  Leste  também 

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 Originalmente publicado em: vermelho.org.br. 11/11/2007. 

 

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pensam  assim.  No  item  ''padrão  de  vida'',  os  jovens  do  Leste  avaliam  a  Alemanha comunista  de maneira ainda mais positiva que seus pais.  Por  outro  lado,  apenas  26%  dos  jovens  ocidentais  e 48% dos seus  pais expressaram a opinião  que  a  Alemanha  Oriental  tinha  um  sistema  mais  forte  de  bem  estar  social  comparado  com  o  de hoje. Os  alemães  orientais  também  estão  menos  satisfeitos  e  menos  otimistas  com  sua  situação  do  que  os  que  vivem  nos  Estados  que  compunham  a  antiga  Alemanha  Ocidental.  Eles  estão  muito  menos  convencidos  das  virtudes  do  capitalismo do que seus colegas ocidentais. Muitos  acreditam  que  o  socialismo  é  uma  boa  idéia  que  simplesmente  não  foi bem implementada no  passado. Contudo,  apesar  da  nostalgia  pela  Alemanha  Oriental, a maior parte dos alemães orientais diz  que  preferiria  morar  no  Oeste,  caso  um  novo  Muro  de  Berlim  fosse  construído  hoje.  O  que  não  é  de  todo  contraditório,  já  que  durante  a  Guerra  Fria,  com  o  apoio de  todo tipo dos EUA  ao  Oeste,  e  também  todo  tipo   de  boicote ao Leste, a Alemanha Ocidental  oferecia muito mais  riqueza, ainda que com alguma desigualdade, do que a Oriental.     Identidades diferentes Os  dados  da  pesquisa revelam que as diferenças ideológicas se refletem  na identidade de cada  grupo,  já  que  67%  dos  jovens  alemães,  e  82%  de  seus  pais, orientais e ocidentais não sentem  que possuem as mesmas identidades.  Quanto  tempo,  entretanto, levará para a Alemanha se unificar ideologicamente? Para 25% dos  jovens  alemães  ocidentais,  e  só  5%  dos  orientais, ''não levará mais do que cinco outros anos''.  Apenas 12% e 4%, respectivamente, de pais concordaram com os filhos. Muitos  jovens  alemães  orientais vêem a  Alemanha de hoje como um lugar onde seus pais têm  dificuldades  para  encontrar  um  caminho.  Apesar  da  geração  mais  nova  praticamente  não  ter  vivenciado  a  vida  sob  o  socialismo,   o   compartilhar  das  lembranças,  opiniões  e  histórias  de  seus pais naturalmente os influenciam. Jovens pensam como seus pais

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Esta  talvez  seja  a  explicação  ­  que  os  comentários  do  ​ Spieguel  tentam  manipular  a  favor  do  Oeste  ­  para  que  os  jovens  alemães  do  Leste  vejam  a  antiga  Alemanha  Oriental  sob  uma  luz  mais otimista do que seus compatriotas no Oeste, e vice­versa.  ''É  uma  opinião  [as  dos  jovens  da  Alemanha  Oriental]  de  lentes  cor­de­rosa,  que  vê  uma  Alemanha  Oriental  com  emprego  para  todos,  creches  para  todas  as  crianças  e  um  sistema  de  bem  estar  social  que  acompanhava  o  cidadão  do  berço  ao   túmulo.  É  claro,  essa  geração  não  foi  exposta  aos  aspectos  negativos   da  vida  sob o domínio comunista ­ como filas de comida e  repressão da polícia'', argumenta o ​ Spiguel​ .  Porém,  a  pesquisa  indica  que  o mesmo argumento de ''lentes cor­de­rosa'' para desqualificar a  opinião  dos  jovens  do  Leste,  sobre  a  Alemanha  Oriental, também  serve  aos  jovens  do  Oeste,  com  relação  a  Alemanha  Ocidental,  com  pelo  menos  um  ponto  de  vantagem  para  os  primeiros.  Quem  viveu  a  Alemanha  comunista  agora  está  vivendo a capitalista,  enquanto que  o inverso não foi possível.    Tiro no pé Como  toda  manipulação  não   se  sustenta  por  muito  tempo,  o  próprio  ​ Spiguel  é  obrigado  a  admitir  a  realidade,  um  verdadeiro  tiro  no  pé,  no  último  parágrafo  da  matéria  que  noticiou  a  pesquisa neste sábado.  ''Ainda  assim,  os  sentimentos  positivos  para  certos   aspectos  da  antiga  Alemanha  Oriental  continuam  altos.  Dos  jovens  alemães  orientais  entrevistados,  60%  disseram  que  achavam   ruim que nada tivesse restado das coisas que se podiam orgulhar da Alemanha Oriental''.  Os  resultados  da  pesquisa  fazem lembrar o seriado alemão que ­  devido ao imenso sucesso no  país  ­  virou  filme  lançado  em  2003,  chamado  ​ Adeus,  Lênin!​ ,  do  diretor  alemão  Wolfgang  Becker.  ''Adeus, Lênin!'' No  longa,  Christiane  Becker  (Kathrin  Sa),  que  mora  na  então  Alemanha  comunista,  é  abandonada  pelo  marido,  tendo  que  criar  seus  dois  filhos,  Alexander (Daniel  Brühl) e Ariane  (Maria Simon), sozinha.

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Uma  vez  recuperada  do  trauma  da  separação,  Christiane  torna­se  uma  cidadã  ativa  e  exemplar,  transformando  o  país  em  um  substituto  de  seu  marido,  abraçando  assim,  o  ideal  comunista.  Mas  ao  ver  Alexander  participando  de  uma  revolta anti­socialista, ela fica gravemente doente   e  acaba   entrando  num  longo  coma  que  a  faz  dormir  durante  a  queda  do  Muro  de  Berlim  e  a  adaptação ao capitalismo de sua Alemanha Oriental.  Ela  acorda  do  coma,  mas  frágil  demais  para  se  deparar  com  o  choque  das  mudanças  do  mundo ao seu redor. Comovido, Alexander precisa forjar a vitória da ideologia do comunismo  e sapatear para criar a ilusão na mãe de que nada mudou. Socialismo vivo Quatro  anos  após  o  lançamento  do  filme,  que  teve  como  pano  de  fundo  o  dilema  da  reunificação  sob  a  égide  capitalista com  o  fim da Guerra  Fria, a pesquisa reafirma que o ideal  comunista  não  morrerá   tão  cedo  nos  corações  dos  alemães  que  viveram  as  primeiras  experiências mais duradouras do regime no mundo.  A manifestação  com   50   mil  pessoas  em  Moscou (Rússia),  no  último  dia  7  de  novembro  [de  2007],  por  ocasião  das  comemorações  dos  90  anos  da  Revolução  Russa,  é  apenas  mais  uma  fotagrafia do quanto por lá esse sentimento continua extremamente vivo. 

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OS ÚLTIMOS DIAS DA UNIÃO SOVIÉTICA   Há 20 anos de uma história mal contada e que ainda não terminou.    5

Por: Fernando Arribas García ​ .     Em  26  de  dezembro  de   1991,   o   Soviete  Supremo  da  União  das  Repúblicas  Socialistas  Soviéticas,  órgão  máximo  do  Estado  e  assento  do nível superior do Poder Popular, segundo o  Artigo  108  da  Constituição  até  então  vigente,  se  reuniu  na  sua  sede  do  Grande  Palácio  do  Kremlin  em  Moscou.  A  agenda  do  dia  incluía  um  único  ponto:  a  consideração  da  renuncia  que  havia  apresentado  no  dia  anterior  Mikhail  Gorbachev  ao  cargo  de  Presidente  Executivo  da  União  Soviética  (URSS),  devolvendo  efetivamente  ao  Soviete  Supremo  todos  os  poderes  como  Chefe  de  Estado  que   este  lhe  havia  encomendado  em  sucessivos  procedimentos  desde  outubro de 1988.  O  debate  que  seguiu,  em  um  clima  encrespado, depois de vários meses de grave instabilidade  política  e  institucional,  tomou  um  tom  cada  vez  mais  sombrio.  A  decisão  final adotada nesse  dia,  pese  as  irregularidades  do  procedimento  (não  parecem  haver  cumprido  as  formalidades  de  determinação  de  quórum,  em  vista  da  ausência  obrigada  de  muitos  dos  deputados  comunistas),  é  sem  dúvida  um  dos  acontecimentos  mais  dramáticos  e  transcendentais  da  segunda  metade  do  século   XX:  o  Soviete  Supremo  se  declarou  a si mesmo dissolvido, com o  que  concluía  oficialmente  a  existência  da  URSS,  faltando  dois  dias  para  o  69º  aniversário de  seu estabelecimento.  Quatro  meses  antes,  na   sequência  dos  acontecimentos  de  19  a  21  de  agosto,  Boris  Yeltsin,  então  Presidente  da  República  Federativa  Socialista  Soviética  da  Rússia  (a  maior  das  15  repúblicas  que  formavam  a  URSS),  havia  emitido  um  decreto  proibindo  a  existência  e   as  atividades  do  Partido  Comunista  da  União  Soviética  (PCUS)  no  território  russo,  em violação  da  Constituição  e  das  leis  da  URSS  da  qual  a   Rússia  todavia  fazia  parte,  e  desconhecendo  a 

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 Originalmente publicado em: pcb.org.br. 25/01/2012. Tradução de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves.   Diretor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais “Bolívar­Marx”. 

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legitimidade  da  maioria  dos  deputados  tanto  no  Soviete  Supremo  da  URSS  como  no  da  Rússia,  que  eram membros do agora proscrito PCUS, como o havia sido até esse dia o próprio  Yeltsin.  O  decreto  ordenava  ademais  o  confisco  de  todos  os  bens  do  Partido,  a  interrupção  imediata da publicação de seus órgãos de imprensa e a prisão sumária de seus ativistas.  O golpe de agosto  Yeltsin  havia  emergido  como  o  grande  vencedor  da  confusa  série  de  eventos  de  agosto  de  1991,  que  resultaram  na  erosão  irremediável  dos  poderes  constituídos  e  causaram  à  URSS  uma  ferida  que  finalmente  resultaria  mortal.  O  dia  19,  em  um  intento  nefasto  para  deter  a  crescente   agitação  separatista  que  ameaçava  a  integridade  territorial  do  país,  vários membros  do  Conselho  de  Ministros  da  URSS,  sob  a  direção  do  Vice­presidente  Gennady  Yanayev  e  com  apoio  das  Forças  Armadas  e  da  força  de  segurança  do  Estado,   mas  contra  a  opinião  do  Presidente  Gorbachev,  havia  declarado  o  Estado  de  Emergência.  Por  vários  dias,  este  grupo  de  ministros  se  reuniu  com Gorbachev tratando sem êxito de lhe convencer da necessidade de  atuar  com  maior  energia  para  aplacar  os  movimentos  separatistas  que  começavam  a  tomar  força nas repúblicas bálticas, assim como na Ucrânia, Bielorrússia e até a na própria Rússia.  Diante  da  negativa  de  Gorbachev,  o  grupo  de  ministros  o  desconsiderou  como  Presidente,  estabeleceu  um  Comitê  de  Estado  de  Emergência,  e  designou  a  Yanayev  como  Presidente  Provisório.  Não  se  cumpriram os procedimentos previstos pela Constituição para a declaração  do  Estado de Emergência e para a substituição do Presidente (o Conselho de Ministros não foi  legalmente  constituído  para  tomar  a  decisão),  pelo  que  este  movimento  pode ser considerado  como  um  “golpe  de Estado”. E ainda que a vasta maioria da população seguramente estava de  acordo  com  os  objetivos  últimos  do autoproclamado Comitê (76% do eleitorado havia votado  em  um  referendo  em  março  a  favor  da  preservação  da  URSS),  a  óbvia  ilegalidade  de  procedimento  e  a  falta  de  transparência  das  ações  do  Comitê  semearam  a  desconfiança  e   a  confusão e deram alento a uma decidida minoria a entrar em ação.  No  dia  20,  Yeltsin  saiu  às  ruas  de  Moscou discursando aos  seus seguidores e a organizando a  “resistência”  frente  a  um  ataque  militar  que  supostamente  estava  para  começar.  No  dia  21  houve  efetivamente  alguns  movimentos  de  tropas  até  o  centro  da  cidade,  que  encontraram  certa  resistência  civil;  mas  depois  de  três  mortes  (duas  delas  acidentais),  o  Comitê  titubeou  diante da possibilidade de um massacre e pediu a Gorbachev que reassumisse seu cargo. 

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No  dia  22  ficou  formalmente  restabelecida  a  ordem  constitucional,  mas  o  poder  e o prestígio  da  Presidência  e  de  todo   o   aparato  do  Estado  haviam  sido  irreparavelmente  deteriorados.  Yeltsin,  arroubado pelo seu êxito e pela rápida popularidade que havia obtido, resistiu a acatar  plenamente os poderes restabelecidos e permaneceu em rebeldia frente ao Estado soviético até  que  forçou  Gorbachev  a  renunciar,  e  precipitou  a  última   decisão  do  Soviete  Supremo.  Até  aqui, o relato de uma história bastante conhecida.  Um Pinochet para a URSS  O  que  não  é  tão  conhecido  é  que  a  ideia  de  dar  um  golpe  de  Estado  contra  Gorbachev  havia  sido  alentada  desde  1990  em  diversos  meios  dos  Estados  Unidos  e  do  Reino  Unido,  com  a  esperança  de  que  algum  reformador  pró­capitalista  mais  audacioso  que  o  próprio  Gorbachev  assumisse  o  poder  e  acelerasse  o  desmonte  total  do  Estado  socialista.  Gorbachev havia posto  em  marcha  há vários anos uma série de reformas que inicialmente propugnavam reorganizar a  URSS  com  o  objetivo  de  modernizar  as  instituições  socialistas  e  aumentar  a  eficiência  e  a  produtividade  da  economia  soviética.  Contudo,  à  medida  que  as  reformas  avançavam,  seu  objetivo  foi  se  borrando,  e  em  1990,  segundo  palavras  do  próprio  Gorbachev, a meta já era o  estabelecimento  de  uma  “economia  social  de mercado” que mantivesse um setor público com  indústrias  chaves  sob  controle  estatal  e  permitisse  ao  mesmo  tempo  o  florescimento  de   um  poderoso  setor  capitalista.  Mas  os  planos  de  Gorbachev  requeriam  de  dez  a  quinze  anos  e  manteriam  de   toda  maneira  boa  parte  da  economia  soviética  fora  do  alcance  do  capitalismo;  isto  não  era  suficiente  para  aqueles  que  queriam  aproveitar  o  momento  de  debilidade  da  URSS e apagá­la de imediato e por completo.  Em julho de 1991, durante a reunião da Cúpula do G7 que se desenvolveu em Londres e a que  a  URSS  havia  sido  convidada  pela  primeira  vez,  representantes  do  Fundo  Monetário  Internacional (FMI)  e do Banco  Mundial fizeram Gorbachev saber  que não lhe dariam o apoio  financeiro  necessário  para  continuar  suas  reformas  se  não  acelerasse  o  ritmo  e  abrisse  totalmente  a  economia  soviética  aos  mercados  capitalistas internacionais. Se tratava, segundo  conta  Gorbachev  em  suas  memórias,  de  uma  chantagem  sem  atenuantes  ao  que  se  negou.  Apenas  um  mês  mais  tarde,  o  jornal  estadunidense  ​ The  Washington  Post  publicou  um  artígo  sob  o  insólito  título  de  “O  Chile  de  Pinochet:  modelo  para   a  nova  economia  soviética”,  em  que  se  propunha  abertamente  a  necessidade  de  um  golpe  de  Estado  na  URSS  para remover a 

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Gorbachev,  eliminar   a  resistência às mudanças pró­capitalistas e dar um rumo pleno para uma  economia  de  mercado.  A  mesma  ideia,  e  com  palavras  parecidas,  já  havia  sido  exposta  em  dezembro de 1990 em um artigo da revista britânica ​ The Economist​ .  Quase  ao  mesmo  tempo  em  que  se  publicava  esse  insultante  artigo  do  ​ Washington  Post​ ,  ocorreu  efetivamente  o  golpe  de  Estado  contra  Gorbachev,  ainda  que,  pelo  menos  aparentemente,  inspirado  por  intenções  opostas  às  que  alentava  o  jornal  estadunidense.  Mas,  fossem  quais  fossem  as  intenções  dos  ministros  soviéticos  que  estabeleceram  o  Comitê  de  Estado  de  Emergência,  quando  o  pó se assentou nas ruas de Moscou, evidente, na  prática, seu  movimento  havia  servido  paradoxalmente  para  abrir  caminho  a  um  dirigente suficientemente  inescrupuloso e voraz para cumprir a função de um Pinochet soviético: Boris Yeltsin.  A terapia de choque  Em  poucos  dias,  contrariando  a  orientação  do  governo  da  URSS  e  a  linha  do  PCUS,  Yeltsin  entrou  em  negociações  com  o  FMI,  o  qual  enviou  a  Moscou  seu  assessor  estrela,  Jeffrey  Sachs,  o  principal  promotor  do  conceito  da  “terapia  de  choque”  que  o  Fundo  oferecia  naqueles  anos  como  receita  mágica  para  resolver  os  problemas  econômicos  mundiais.  A  terapia  consistia   na  aplicação  rápida  e  sem  considerações  das  mais  extremas  medidas  neoliberais  (privatização  massiva,  corte  radical  dos  gastos  sociais,  liberação geral dos preços,  desregulação   dos  mercados  internos  e  internacionais).  A  chave  do  êxito,  segundo  Sachs,  era  aplicar  tal   pacote  de  medidas  com  grande  rapidez e rigor absoluto, com o objetivo de tomar o  país  de  surpresa  e  impossibilitar  a  resistência.  Mas  para  isso  era  necessário  um   governante  disposto a tudo, como Pinochet no Chile de 1973. E Yeltsin demonstrou ser esse governante.  Entre  agosto  e  outubro  de  1991,  ao   mesmo  tempo  que  ordenava  a  privatização  de  quase  250  mil  empresas  estatais  e  a  eliminação  dos  subsídios  e  dos  controles  de  preços  sobre  todos  os  bens  e  serviços,  Yeltsin  usou  seu  poder  político  para  esmagar qualquer força que se opusesse  às  mudanças em marcha. O  primeiro alvo, como havia sido no Chile, foi o Partido Comunista.  Seguiram  os  sindicatos,  os  conselhos  de  trabalhadores  e  camponeses,  as  organizações  populares  de massa. No fim de outubro, Sachs e  seus terapeutas de choque estavam confiantes  de  que  o  povo,  privado  de  suas  organizações  e  dirigentes  naturais,  desorientado  e  aturdido  pela  rapidez  das  mudanças,  e  esgotado  após  muitos  meses  de  luta  política,  já  não  ofereceria  maior  resistência.  E  Yeltsin  se  lançou  então  para  consolidar  seu  controle  para  garantir  a 

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continuidade  das  reformas.  Com  o  PCUS  impossibilitado  de  atuar  abertamente,  e  com  todas  outras  formas  de  resistência  anuladas,  Yeltsin  obteve  de  um  Parlamento  controlado  por  seus  cúmplices poderes absolutos para governar por decreto.  Sob  a  orientação  de  Sachs,  e  com  a  colaboração  de  uma  equipe  de  economistas  neoliberais  que  adotaram  com  orgulho  o  apelativo  [epíteto]  de  “os  novos  Chicago  Boys»  (os  Chicago  Boys  originais,  recorde­se,   haviam  sido  os   assessores  de  Pinochet  sob  a  liderança  de  Milton  Friedman),  Yeltsin  havia   logrado,  no  final  de  1992,  apagar  completamente  toda  sombra  da  antiga  Rússia  soviética:  um  terço   da  população  se  encontrava  agora  abaixo  da  linha  de  pobreza,  o  consumo de  alimentos havia reduzido quase pela metade, a inflação superava 2 mil  %, o Produto Interno Bruto havia caído em 54% e o desemprego era generalizado.  O ditador Yeltsin  No  início  de  1993,  o  povo  começou  a  reagir  em  numerosos  protestos  que  reclamavam  pelo  fim  das  políticas  neoliberais.  Em  março,  diante  da  crescente  pressão  popular,  o  Parlamento  votou  a  anulação  dos poderes absolutos de Yeltsin, e aprovou um orçamento contraditório aos  mandatos  de  austeridade  do  FMI.  Mas  já  era  tarde:  Yeltsin  havia  consolidado  seu  controle  sobre os elementos chaves da vida russa. Sem que nada nem ninguém pudesse evitar, decretou  o  Estado  de  Emergência,  desconsiderou  as  decisões  do  Parlamento  e  recuperou  seus  poderes  absolutos.  Mais  tarde,  quando  o  Parlamento  e  a  Corte  Constitucional  protestaram  contra  a  ilegalidade  de  tais  ações, Yeltsin ordenou dissolver o Parlamento e aboliu a nova Constituição   que o mesmo havia promulgado meses antes.  Os  deputados  se  negaram  então  a  abandonar  seus  assentos,  e  Yeltsin  ordenou  ao  exército  cercar  o  edifício  do  Parlamento  e  cortar  a  água,   a  luz  e  os  telefones.  Depois  de  longas  semanas  de  assédio,  e   diante  o  crescente apoio que os deputados estavam recebendo do povo,  Yeltsin  decidiu  acabar  de  uma  vez  por  todas  com  o  problema  e  em  3  de  outubro  ordenou  ao  exército  bombardear,  incendiar  e  tomar  o  Parlamento  a qualquer custo. E, diferentemente dos  temerosos  golpistas  de  agosto  de  1991,  a  Yeltsin  não  lhe  estremeceu  o  pulso  diante  da  possibilidade  de  um  massacre:  no  dia  seguinte  uns  600  civis  foram  mortos,  mais  de  mil  haviam  sido  feridos  e  uns  mil  e  700  haviam  sido  presos.  A Rússia estava agora pela primeira  vez em décadas sob o controle de uma autêntica ditadura sangrenta. 

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Epílogo  Todavia  falta  esclarecer  completamente   as  razões  profundas que foram erodindo o prestígio e  a  vitalidade  do  Estado  soviético,   e  que  o  levaram  à  situação  de  debilidade  institucional  e  estancamento  econômico  no  qual  se  encontrava  nos  anos  80.  Porque  ainda  que  as  reformas  empreendidas  por  Gorbachev  resultaram  em  seu  conjunto  numa  traição  ao  projeto  socialista,  não  nos  cabe  dúvida  de  que  algumas  de  tais  políticas,  pelo  menos  na  sua  intenção  inicial,  respondiam  efetivamente  à  necessidade  urgente  de  corrigir  os  graves  vícios  e  deformações  que  tinham  se  acumulando  por  décadas.  Falta  também  esclarecer  plenamente  o  processo  de  corrupção  interna  que  havia  sofrido  o  PCUS,  e  que  permitiu  que  personagens  do  nível  de  Yeltsin  tenham  escalado  posições  em  sua  estrutura  hierárquica  até  chegar  à  ocupar  postos  chaves  de  direção,  somente  para  trair  o  Partido,  o  socialismo  e  o  país  quando  se  apresentou  uma oportunidade propícia.  Mas  o  que  ficou  bastante  claro  já  desde  o  momento  destes  eventos,  é  que  os  principais  perdedores  com  a  dissolução  da  URSS   e  o  desmantelamento  do  socialismo  foram  os  povos  das  repúblicas  agora  ex­soviéticas.  Vinte  anos  mais  tarde,  continua  em  quase  todas  elas  a  instabilidade  institucional  que  se  iniciou em 1990­93, e se aprofundam os problemas sociais e  econômicos  gerados  pelo  estabelecimento  a  sangue  e  fogo  do  capitalismo.   Sem  o formidável  sistema  de  seguridade  social  integral  da  época  soviética,  e  com   a  economia  completamente  controlada  por  empresários  privados  em  plena  expansão  de  seus  interesses,  estes  povos  enfrentam  uma  situação  de  grave  desamparo  cada  vez  mais  aguda,  como  em  todos  os  outros  países capitalistas com a crise cíclica do sistema.  Assim  não  surpreende  que,  pese  a  proibição  que  se  manteve  por  mais  de   dois  anos   sobre  as   atividades  comunistas  na  Rússia,  pese  a  intensa  e  permanente  campanha  de  desprestígio  e  calúnias  nos  meios  de  comunicação  de  todo  mundo  contra  o  PCUS  e  seus  sucessores,  e pese  as  manobras  de  todo  tipo  que  continuam  até  o  dia  de  hoje  para  dificultar  as  atividades  das  organizações   comunistas   e  para  prevenir  seu  avanço,  o  Partido  Comunista  da  Federação  Russa  (PCFR)  é  hoje  o  segundo  maior  partido  do  país  com  cerca  de  20%  dos  votos  nas  eleições  presidenciais  de  2008  e  nas parlamentarias de 2011 (fica demonstrado que em ambas  oportunidades  o  PCFR  foi  vítima  de  fraudes  que  o  privaram  de  cerca  da  metade  de  sua  votação),  e  o  primeiro  em  algumas  localidades  e  regiões.  Não  pode  surpreender  que  os 

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comunistas  também  estejam  obtendo  inclusive  êxitos  eleitorais  maiores  em  várias  outras  repúblicas  ex­soviéticas,  como  Moldávia,  Letônia  e  Bielorrússia.  A  história  continua  e  suas  melhores páginas ainda estão por escrever.   

 

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NÃO LI E NÃO GOSTEI!  A  REVISTA  ESPAÇO  ACADÊMICO  ABRIU  SUAS  PÁGINAS  AO  VITUPÉRIO  E  À  6

APOLOGIA DO OBSCURANTISMO     7

Mauro Castelo Branco de Moura     “Não  há  entrada  já  aberta  para  a  ciência  e  só  aqueles  que   não   temem  a  fadiga  de  galgar  suas escarpas abruptas  é  que  têm  a  chance  de  chegar  a  seus  cimos luminosos”  Karl Marx    A  pretexto  da  irretorquível  defesa  da  liberdade  de  pensamento  a  REA  abriu  suas  páginas,  infelizmente,  à  apologia  do  mais  abjeto  obscurantismo.  Em  seu  nº  83,  de  abril  do  corrente, o  Diplomata  Paulo  Roberto  de  Almeida,  em  artigo  supostamente  bem  humorado,  intitulado  ​ O  fetiche  do  Capital​ ,  defende  ostensivamente  a  idéia  de  que  não  se  deva  estudar  ​ O  Capital  ​ de   Marx  nas  universidades,  pois  se  trataria,  em  síntese,  de  obra  completamente  ultrapassada.  Mesmo  quando  afirma  “que não tenho nada contra a leitura do ​ Capital​ ” o Diplomata  Almeida  logo  se  apressa  em  acrescentar  a  seguinte  ressalva:  “sempre bem­vinda e interessante quando  se  dispõe de tempo e do lazer necessários a um mergulho na história das idéias econômicas do  século  XIX”.  Em  tom  professoral  o  preocupado  diplomata  adverte:  “Tenho  reparado,  pela  minha  freqüentação  de  listas  de  discussões  e  pela  leitura  de  sites acadêmicos que professores  universitários  brasileiros  continuam  a  insistir  com  seus  alunos  na  leitura  do  ​ Capital​ ,  leitura  que  é  feita  sempre  parcial  e  truncadamente,  pois  que  não   concebo  um  estudante  “normal” de 

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  Este  texto  é  a  denúncia  contra  a  tão  comum  negação do  marxismo  como  ciência fundamental  e indispensável  para  a  evolução  da  humanidade.  A polêmica do professor Mauro de  Moura pode ser endereçada à todos aqueles  que  buscam  desqualificar  e renegar o marxismo. Originalmente publicado em: espacoacademico.com.br. Revista  Espaço Acadêmico, n. 85, junho de 2008.    7  Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outras obras, de ​ Os  Mercadores, o Templo e a Filosofia: Marx e a Religiosidade​ , Coleção “Filosofia” nº 181, Porto Alegre, Editora  da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Edipucrs), 2004. 

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nossas  instituições  de  ensino  superior  mergulhando  na  leitura  sistemática  dos  três  livros  do  Capital  ​ (e  mais  quatro  sobre  a  ​ Teoria  da  Mais­Valia​ ),  sem  correr  seriamente  o  risco  de  ser  reprovado nas demais matérias por falta de estudo, o que seria a suprema ironia”.  Não  deixa  de  ser  curioso  o incômodo provocado em Paulo Roberto de Almeida com o fato de  que,  eventualmente,  algum  professor universitário insista em que seus alunos leiam ​ O Capital  de  Karl  Marx.  Digo,  eventualmente,  porque  todo  aquele  que  freqüente  as  academias  brasileiras  nos  dias  de  hoje  sabe  o  quão  difícil  será  encontrar  algum  professor  que  ministre  aulas  sobre  esta  obra  clássica.  Fica  a  pergunta:  porque este empenho em censurar o ensino de  um clássico, condenando­o ao esquecimento?  O  diplomata  insinua  uma  preocupação  de  exegeta  contra  leituras  parciais  e  truncadas,  já  que  por  sua  extensão  e  (ele  não  afirma,  mas  eu  poderia  acrescentar)  complexidade  a leitura cabal  da  obra  não  estaria  ao  alcance  de  nossas  instituições  de  ensino  superior   e  assim,  em  tom  libertário,  pretende  “livrar”  os  estudantes  brasileiros  deste  penoso  fardo. Destarte, seguindo a  linha  de  raciocínio  do  cioso  diplomata,  deduzo,  como  professor  de  filosofia,  que  o  ensino  de   minha  disciplina  é  absolutamente  inapropriado  nas  universidades  brasileiras.  Como  pedir   a  alunos  que  leiam  a   ​ Crítica  da  Razão  Pura  ​ de  Kant ou a ​ Ciência da Lógica ​ de Hegel uma vez  que  são  obras  extensas  e  reconhecidamente  difíceis?  E  o  ensino   dos  pensadores  antigos,  não  seria  ainda  mais  problemático?  Teria  algum  sentido,  na  perspectiva   do   cioso  diplomata,  ler a  Metafísica  ​ de  Aristóteles,  por  exemplo,  obra  escrita  há  mais  de  dois  mil  anos?  “Livremos  nossos  alunos  de  toda  a  cultura  clássica!”,  é  isso  o  que  apregoa  Paulo  Roberto  de  Almeida?  Devemos fazer o que, ler gibi ou livros de auto­ajuda em sala de aula?  Não  obstante, só ao ​ Capital ​ de Marx o Diplomata Almeida pretendeu defenestrar, só esta obra  mereceu  entrar  em seu índex pessoal... Em sua cruzada por “libertar” os alunos deste penoso e  inútil  fardo  o  cioso  articulista  se  despoja  de  qualquer  rigor  acadêmico  e  inicia  um  vale­tudo  onde  a  pose  inicial   de  exegeta  se  desvanece  completamente.  A  displicência  começa  quando  8

afirma  que  a  “edição  original”  de  ​ O  Capital  ​ teria  sido  em  1863  (​ sic​ )​ .  O  paladino  dos  estudantes  erigiu  seu  moinho  de  vento  (porém,  sem  a  honesta e enlouquecida ingenuidade do  “engenhoso  fidalgo  da  Mancha”)  sem  citar  a  própria  obra  em  questão  uma  única  vez.  Com    O Livro  I de ​ O Capital ​ conheceu três versões quando Marx  ainda em vida. A  primeira delas, em alemão,  veio a  lume em  1867.  Sucederam­na  a  2ª  edição  alemã  (que comporta  diferenças  muito importantes com relação à 1ª),  publicada  em  fascículos  entre 1872 e  1873,  e a versão francesa, traduzida  por Joseph  Roy, mas  substancialmente  reformulada pelo próprio Marx, e publicada, também em fascículos, entre 1872 e 1875.  8

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enorme  desassombro  dedicou­se  a  imprecar  contra  o  clássico   sem qualquer pudor intelectual,  fazendo  tábula  rasa  da  enorme  literatura  crítica  que  o  cerca,  citando  apenas Pareto, porém  no  frágil  contexto  do  ​ magiter   dixit​ .  Isto  numa   revista  denominada  Espaço  Acadêmico...  Qual   seria o objetivo do cioso diplomata?  Decerto  que  não  pretendeu  estimular  o  debate  acerca  da  obra,  o  que  seria,  ​ per  se​ ,  louvável  e  academicamente  salutar,  independentemente  da  posição  que  assumisse.  Aliás,  para  encomiar  ou  para  combater  seria  de  bom  alvitre  certo  distanciamento   crítico,  não  é  o  que  pretendeu  o  Diplomata Almeida. Na verdade, seu primeiro objetivo foi o de tender um cordão sanitário em  torno  da  obra  de  Marx,  convidando  os  que  não  a  leram  a  que  continuassem  a  ignorá­la.  O  mais  tacanho  obscurantismo,  portanto,  moveu­o  em  seu  libelo,  sem  sequer  ser  original  neste  execrável  intuito  (quantos  destruidores  de  livros  a  história  já  conheceu!).  Porém,  ao  fazê­lo  esqueceu  que  aos  clássicos  não  lhes  dá  a  medida  o  pigmeu,  mas  é  a  própria  insignificância  que se revela  sem disfarces na comparação. ​ O Capital​ , como qualquer outra  obra clássica, não  está  ​ sub  judice​ ,  pelo  contrário,  é  ele  que  julga  àqueles  que  pretendem  ajuizá­lo. É como uma  Mona  Lisa  a  espreitar  as  legiões  de  visitantes  do  Louvre  que  dela  se  aproximam,  sempre  haverá  os  que  não  a  estimem  uma  obra  meritória...  Porém,  ela  seguirá lá impávida, julgando,  com seu sorriso enigmático, novas multidões de admiradores...  Lembro­me,  quando  era  ainda  bastante  jovem,  no  tempo  da  ditadura  militar,  que  Mário  Henrique  Simonsen,  à  época  ministro  (da  fazenda se não me engano), escreveu certa feita um  artigo  para  o  caderno  cultural  do  ​ Jornal  do  Brasil  ​ louvando  a  reedição  de  ​ O  Capital​ ,  cuja  primeira  edição  no  Brasil  já  se  achava  esgotada.  Sem  qualquer  suspeição  de  simpatia  pela  obra,  o  ex­  ministro,  como  qualquer  homem  lúcido  e  bem  informado  haveria  de  fazê­lo,  destacava  a  importância  da  obra  (e  só  um  obscurantismo  desvairado a circunscreveria apenas  ao  âmbito  restrito  do  contexto  do  século  XIX).  Porém  Mário  Henrique  Simonsen  não  fez  verão  sozinho.  Raymond  Aron,  por  exemplo,  que  dedicou uma parte relevante de sua extensa  obra  à  crítica   dos  marxistas,  jamais  pretendeu  que  Marx  não  fosse  lido,  pelo  contrário,  tornou­se um excelente especialista, referência para críticos ou admiradores.  Para  continuar  no  âmbito  francês,  Jacques  Attali,  líder  de  uma  comissão  de  notáveis  designada  pelo  Presidente  Nicolas  Sarkozy  (que  não  pode,  de  modo  algum,  ser  acusado  de  “marxismo”!)  para  sugerir  um  plano  de  reformas  ao  governo  francês  por  ele  presidido, 

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conhece  tão  bem   a  vida  e  a  obra de Marx que é autor de uma biografia (​ Karl Marx ou l’esprit  du  monde​ , Paris, Fayard, 2005), relativamente bem documentada, onde destaca,  precisamente,  a  atualidade  do  pensamento  do  autor  que  o  Diplomata  Almeida  quer  ver  confinado  nas  calendas  do  século XIX e  sem ser lido no século XXI. Como se vê, não é necessário  esposar  o  ideário  marxista   para  reconhecer  a  importância  do  legado  de  Marx,  sobretudo  de  ​ O  Capital​ ,  basta algum descortino...  Sem  embargo,  Paulo  Roberto  de   Almeida  não  parou  por  aí.  Tendido  o  cordão  sanitário  em   torno  do  legado  de  Marx,  o  cioso  diplomata  revela  agora,  com toda a clareza, outra faceta (já  antes  esboçada,   mas  de  modo  velado!):  a  de  provocador.  Contrariando  a  expectativa  que  se  tem  dos  egressos  do  prestigioso  Instituto  Rio  Branco,  o  Diplomata  Almeida  não  revela  qualquer  ​ politesse  ​ ao  “resenhar”  na  REA  nº  84,  de  maio  do  corrente,  o  livro  ​ Incontornável  Marx​ ,  organizado  por  Jorge  Nóvoa.  Decerto  que  não  há  nada   de  errado  na  emissão  de  comentários  críticos  acerca  de  uma  obra  resenhada,  porquanto  não  se  exige  de  quem escreve  uma  resenha  uma  postura  neutra.  Pelo  contrário,  é  desejável  que  emita  uma  opinião  argumentada,  se  favorável  ou  desfavorável,  pouco  importa.  Porém,  coloco o “resenhar” entre  aspas porque em momento algum o articulista expôs o conteúdo do livro, apenas limitou­se ao  vitupério  e  ao  achincalhe,  confundindo  imprensa  marrom  com  revista  acadêmica  (e  isto  9

caberia aos editores da REA impedir!) ​ .   Sua  tese,  ou  melhor,  sua  obsessão,  que   começa  no  deselegante  e  desrespeitoso  título,  Marxistas  totalmente  contornáveis​ ,  parece  ser  a  de  demonstrar  que  Marx   é  um  autor  completamente defasado, sem qualquer valor atual e que  o  interesse  por sua obra se confinaria  10

a  nostálgicos  empedernidos  e  sádicos ​ .  Ensandecido  pelas  próprias  diatribes,  o  cioso  diplomata,  convertido  agora  em  paladino  da  causa  do  capitalismo,  atropela  o  conjunto  dos  colaboradores  do  livro,  nacionais  e  estrangeiros,  alguns  de  grande  nomeada,  com  uma  enxurrada  de  adjetivos.  O  menos  defenestrado  por  suas  invectivas  foi  Michael  Löwy,  cujo 

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  O zelo  pela  qualidade  do  material  publicado  não deve  ser confundido com censura. Permitir que as páginas de  uma  revista  acadêmica  respeitada  sejam  conspurcadas  por  um  provocador  raivoso  é  um  sério  desserviço  à  idoneidade da mesma.  10   Segundo o  cioso  diplomata,  paladino  de  indefesos  estudantes,  nas  garras  dos  perversos marxistas,  “As  ações  “Marx”  estão  indiscutivelmente  em  baixa  no  mercado  [...]  são  valorizadas   na  academia  –  hoje,  talvez,  como  método  de   tortura  de  estudantes  que  sequer  sonham em  ser  socialistas  –,  mas  não  correm o  risco  de  passar  ao  setor  real  da economia, pois seriam rapidamente remetidas às camadas geológicas do capitalismo pré­cambriano,  quando não tomadas como brincadeira de sonhadores incuráveis”.   

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texto,  no  entanto,  se  enquadraria,  segundo  o  intrépido  diplomata,  na  categoria  “arqueologia  marxista”...  Porém,  a  apoteose  da  “resenha”  é  o  seu  ​ grand  finale​ ,  quando  o  Diplomata  Almeida  deixa  cair  a  máscara  e  se  converte  em  bufão,  esquecendo  completamente  que  o  debate  de  idéias,  pelo  menos  no  seio  da  academia  (e  de  publicações  como  a  REA),  deveria  estar  pautado  pelo  respeito  (se  é  que  se  quer  verdadeiramente  debater),  e  conclui  com  a   seguinte  pérola  de  rasteira  grosseria:  “Pessoalmente,  não  creio  que  o  conteúdo  ontológico  deste  Marx  “incontornável”  valha  o  preço  do  papel  no  qual  ele  foi   impresso.  Pelo  peso  do  volume,  ele  deve  valer  bem  duas  ou  três  pizzas em algum micro­empreendimento capitalista:  assim,  o  seu  dinheiro  estará  muito  melhor  empregado.  O  livro  não  é  apenas  contornável  e  dispensável: ele é totalmente indigesto. Melhor ficar com a pizza...”  Pergunta­se:  se  Marx  e  seus  seguidores  são  carta  fora  do  baralho  da  história,  porque  tanto  empenho  em  atacá­los?  Não  se  pode imaginar que o cioso diplomata não tenha nada melhor a  fazer  em   seus  momentos  de  ócio  do  que  vituperar  e  achincalhar  superados  jurássicos...  Pelo  contrário,  a  provocação não parece um destempero gratuito, mas a obra de alguém obcecado e  que  tem  um  alvo  a  atingir.  Pelo ânimo virulento da linguagem empregada depreende­se que o  Diplomata Almeida arvora­se em paladino de uma causa. Qual seria ela?  Algumas  pistas  podem  estar  no  mesmo  número  da  REA  (84,  de  maio  de 2008) que contém a  aludida  “resenha”.  Num  artigo  intitulado  ​ As  roupas novas do império: 21 teses rápidas ​ Paulo  Roberto  de  Almeida  declina  aos  leitores  da  revista  algumas  pérolas  de  seu  ideário.  Em  suas  próprias  palavras:  “Um  império  é,  basicamente,  um  sistema  extrator  de   recursos  por  meio da  coerção,  o  que  não  ocorre  no  caso  dos  EUA,  que  estão  comprometidos  com  valores  e  princípios  condizentes   com  a  liberdade  de  mercados  e  as  franquias  políticas  democráticas.  Qualquer  afirmação  em  contrário  teria  de  comprovar  que  as  ditaduras  que  os  EUA  apoiaram  em  várias  partes  do  mundo,  na   era  da  Guerra  Fria,  foram  obras  construídas  consciente  e  deliberadamente  pelos  EUA  para  assegurar  um  tipo  qualquer  de  extração  de  recursos  por via  da coerção militar”.  Por  mais  admiração  que  se   tenha  pelos  Estados  Unidos  e,  sobretudo,  pelo  povo  e  cultura  norte­americanos  (e  este  é  o  meu  caso  pessoal!),  só  alguém   cegado  pelo  fanatismo  poderia  afirmar  uma  coisa   assim,  quando  os  contra­exemplos  são  tão  evidentes.  Como  o  Diplomata  Almeida  classificaria  a invasão do Iraque? Em nome da defesa de que “valores”? Ou seria das 

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receitas  das  empresas  apaniguadas  da  Casa  Branca?  Ou  do  controle  do  petróleo  iraquiano?  Quais  “franquias  políticas  democráticas”  são  defendidas  no  Iraque?  E  em  Guantánamo?  Ou  há  algumas  décadas  foram  defendidas  no  Vietnam?  Será  pela  defesa  da  “liberdade  de  mercados”  que   o   etanol  brasileiro  encontra  barreiras  no  mercado americano? Seria infindável  continuar  com  os  contra­exemplos... Porém, a segunda parte da assertiva mereceria um rápido  exame.  Contudo,  para  não   cometer  a  indelicadeza  de  pontificar  sobre  outros  países,  seria  melhor  circunscrever  o  debate  ao  caso  do  Brasil,  nação  à  qual  o  Diplomata  Almeida  é  pago  para servir.  Hoje,  em  virtude  da  documentação  disponibilizada,  não  há  mais  qualquer  dúvida  acerca  da  ingerência  dos  Estados  Unidos  em  apoio  à  quartelada  que  feriu  de  morte  a   ordem  constitucional  brasileira  em  1964  e  isto  foi  feito  tão  “consciente  e  deliberadamente”  que  o  próprio  Embaixador  Americano  no  Brasil  à  época,  Lincoln  Gordon,  admitiu  sua  atuação  em  favor  dos  golpistas.  Imaginar  que  a  participação  americana  na  quartelada  foi  em  defesa  das  “franquias  políticas  democráticas”  dos  brasileiros  e  que  isto  não  propiciou  a  “extração  de  recursos”  do  país  é  de  uma  “ingenuidade”  comovente!  Só  um  fanático,  obcecado  por  uma  idéia,  pode  ter  uma leitura  tão tortuosa da realidade. Contrariando toda a evidência empírica o  destemido  Diplomata  Almeida  perece  acreditar  que  a  Grande  Nação  Americana  é   a  própria  manifestação  terrena  da  Liberdade.  Em  suas  palavras:  “​ Nesse  sistema  de  portas  abertas,  a  única  “ditadura”  suscetível  de  ser  criada  pela  hegemonia  dos  EUA  é  aquela que destrói  todas  as  ditaduras.  ​ Estas  são  as  bases  indiscutíveis  do  “império”  americano:  a  livre  circulação  de  fatores  de  produção  e  de  produtos  da  inteligência  e  da  criatividade  humanas.  Esse  é  um  sistema  destruidor  de  todas  as  hegemonias  conhecidas  historicamente.  Mas  quem  destrói  todas  as  velhas  hegemonias  não  é  o  ​ poder  comercial  ​ ou econômico dos EUA, e sim a  força  das  suas  idéias​ ,  idéias  muito  simples:  liberdade  de  iniciativa,  liberdade  política,  liberdade  de  acumular  e  de  circular  riquezas”.  Fica  aqui  a  pergunta:  se  as  idéias  americanas  são assim tão fortes, porque precisam de tantas armas?  Chega  a  ser  tocante, porém, pouco realista, a admiração que o Diplomata Almeida nutre pelos  Estados  Unidos  (aliás,  por  mim  compartilhada,  porém  sem  este  viés  fanático  e  fundamentalista)   e  é  de  se  perguntar se isso não lhe causa nenhum conflito íntimo quando seu  desempenho  como  diplomata   o   obriga  a  defender  os  interesses  nacionais  frente  aos  do  país  que  tanto  idolatra,  a  menos,  é  claro,  que  pense  como o notório político que não teve qualquer 

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pejo  em  afirmar  que  “o  que  é  bom  para  os  Estados  Unidos  é  bom  para o Brasil”... Em países   menos  tolerantes  que  o  nosso  este  tipo  de  amor  obcecado  a uma potência  alienígena pode ser  considerado  traição  à  pátria,  sobretudo  quando  envolve  pessoal  do  seu  corpo  diplomático.  E  os  próprios  Estados  Unidos,  por  exemplo,  não  costumam  ser   muito  indulgentes  com  seus  concidadãos envolvidos neste tipo de conflito de interesses.   Em  sua  idolatria,  talvez  ao  Diplomata  Almeida  não  lhe  ocorra  interrogar­se,  por  exemplo,  acerca  do  caráter  intrinsecamente antidemocrático do sistema eleitoral americano, pelo menos  quando  comparado  ao  brasileiro.  Em  nosso  país  (sem  deixar  de  reconhecer  as  imensas  imperfeições  do  sistema  político   brasileiro),  porém  onde  tivemos  uma  vasta  campanha  popular  em  prol  de  eleições  diretas,  o  sistema  americano  de  eleições  indiretas  não  pode  despertar  muitas  simpatias.  Ter  um  presidente  eleito  com  menos  votos  do que seu contendor,  como  foi  o  caso  de  Bush  II  em  seu  primeiro  mandato  (sem  falar  da  fraude,  notadamente  na  Flórida  onde  seu  irmão  era   o   Governador)  não  pode  ser  muito  edificante  para quem pretenda  exportar  democracia...  E  a  Liberdade  de  que  fala  Paulo  Roberto  Almeida  não  pode  ser  abstrata,  seria  algo   demasiado  paradoxal  para  a  nação berço do pragmatismo. Não obstante, é  possível  que  muita  gente  nos  próprios  Estados  Unidos  ou  alhures  (sob  os  influxos  dos  mesmos)  não  consiga  experimentar  esta  Liberdade  na  prática,   talvez  por  isso  a  população  carcerária americana seja tão grande e o recurso à pena de morte tão utilizado!  O  Diplomata  Almeida,  em  seu  fundamentalismo  maniqueísta,  habita  em  um  mundo  nostálgico  da  Guerra  Fria.  Se  ela  não  existe  mais,  torna­se  mister  recriá­la!  Há  um  tocante  simplismo  ​ hollywoodiano  ​ em  suas  colocações.  De  um  lado,  o  bem  e  o  Sétimo  de  Cavalaria;  do  outro,  o  mal,  índios,  comunistas  e  quejandos...  Porém,  só  a  crassa  desinformação  e  a  cegueira  do  fanatismo  puderam  conduzir  o  intrépido  combatente  da  Guerra  Fria  rediviva  ao  equívoco  de  afirmar  que:  “As  ações  “Marx”  estão  indiscutivelmente  em  baixa  no  mercado”.  Ledo  engano  Diplomata  Almeida!  Jamais  os  estudos  sobre  Marx  tiveram  tanto  impulso!  A  retomada  do  projeto  editorial  de  publicação  do  conjunto  da  obra  de  Marx  e  Engels  na última  11

década  do  século  passado  já  começa  a  produzir  frutos   e,  na  contramão  dos  desejos  do   A ​ Marx­Engels Gesamtausgabe​ , mais conhecida como ​ Mega2​ , projeto abraçado pelo Internationale Marx­  Engels ­Stiftung (IMES), fundado com este propósito em 1990, com sede em Amsterdam, porém com o apoio de  instituições de  vários  países,  pretende publicar, pela primeira vez com critérios estritamente acadêmicos de rigor  e  cientificidade,  a totalidade  das  obras  de  Marx  e  de  Engels,  já  que  as  outras  tentativas  neste sentido quedaram  inconclusas.   Dos  114  volumes  previstos  (122  tomos),  52  volumes   (56  tomos)  já  foram  publicados   (http://www.bbaw.de/bbaw/Forschung/Forschungsprojekte/mega/de/Ueberblick#Portug).  11

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nostálgico  diplomata,  há  um  expressivo  movimento  de  retomada  nos  estudos  sobre a obra do  ilustre  pensador  renano.  À  esteira  da  ​ Marx­Engels  Gesamtausgabe  ​ os  projetos  de  tradução  também  proliferam.  Acaba  de  ser  lançado  na  Sorbonne,  em  Paris,  o  projeto  GEME  (​ grande  édition  Marx  et  Engels​ )   que  pretende  efetuar  uma  nova  tradução  das obras desses autores em  francês,  proporcionando,  a partir de 2010, uma edição eletrônica das obras. Na Itália, Edizioni  "La  Città  del Sole" retomou a publicação das ​ Opere complete di Marx ed Engels ​ (e já vai pelo  vigésimo  segundo  volume!)  .  No  Brasil  há   um  visível  incremento  no  número  de  títulos  de  Marx  disponíveis  no  mercado  editorial,  para  não  falar  de  obras  sobre  o  pensamento  de  Marx  como o ​ Incontornável Marx​ , cuja primeira tiragem esgotou­se... 

 

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O QUE NÃO SE DIZ SOBRE OS MÉDICOS CUBANOS    

Profundo  conhecedor  da  realidade  de  Cuba  e  membro  do  núcleo  de  estudos  cubanos  da  Universidade  de  Brasília,  o  jornalista  Hélio  Doyle  produziu  diversas  análises  técnicas,  e sem  ranço ideológico, sobre a importação de 4 mil profissionais pelo governo brasileiro. Os  textos  foram  cedidos  ao  247  e  permitem  uma  maior  compreensão  sobre um tema que tem  gerado tanto debate. Leia abaixo seus artigos: O que não se diz sobre os médicos cubanos  A  grande imprensa brasileira, que nos últimos anos exacerbou, por incompetência e ideologia,  a  superficialidade  que  sempre  a  caracterizou,  tem  sido   coerente  ao  tratar  da  vinda  de  quatro  mil  médicos  cubanos:  limita­se   a  noticiar  o  fato  e  reproduzir  as  críticas  das  associações  corporativas  de  médicos   e  dos  políticos  oposicionistas.  Mantém­se  fiel à superficialidade que  é sua marca, acrescida de forte conteúdo ideológico conservador e de direita. Não  conta,  por  exemplo,  que  médicos  cubanos  já  trabalharam  no  Brasil,  atendendo  a  comunidades  pobres  e  distantes  nos  estados   de  Tocantins,  Roraima  e  Amapá.  Não  houve 

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 Originalmente publicado em brasil247.com. 24/08/2013. 

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nenhuma  reclamação  quanto  à  qualidade  desse  atendimento  e  nenhum  problema  com  o  conhecimento  restrito  da  língua  portuguesa.  Os  médicos  cubanos  tiveram  de  deixar  o  Brasil  por  pressão  do  corporativismo  médico  brasileiro  –  liderado  por  doutores  que  gostam  de  trabalhar em clínicas privadas e nas grandes cidades. A  grande  imprensa  não  conta  também  que  há  mais  de  30  mil  médicos  cubanos  trabalhando  em  69  países  da  América  Latina,  da  África,  da  Ásia  e  da  Oceania,  lidando  com  pessoas  que  falam  inglês,  francês,  português  e dialetos locais. Só no Haiti, onde a população fala francês e  o  dialeto  creole,  há  1.200  médicos  cubanos  –  que  sustentam  o  sistema  de  saúde  daquele  país  e,  como  profissionais  com  alto  nível  de  educação  formal,  aprendem  rapidamente  línguas  estrangeiras. O  professor  John  Kirk,  da  Universidade  Dalhousie,  no  Canadá,  estudou  a  participação  de  equipes  de saúde de  Cuba em vários países e é dele a frase seguinte: “A  contribuição de Cuba,  como  ocorre  agora  no  Haiti,  é  o  maior  segredo  do  mundo.  Eles  são  pouco  mencionados,  mesmo  fazendo  muito  do  trabalho  pesado”.  Segredo  porque  a  imprensa  internacional  –  especialmente a estadunidense — não gosta de falar do assunto. Kirk  contesta  o  argumento  de  que  os  médicos  cubanos  que  atendem  as  comunidades  pobres  em  vários  países  não  são  eficientes  por  não  dominar  as  últimas  tecnologias  médicas:  “A  abordagem  high­tech   para  as  necessidades  de  saúde  em  Londres   e  Toronto  é  irrelevante para  milhões  de  pessoas  no  Terceiro  Mundo  que  estão  vivendo  na  pobreza.  É  fácil   ficar  de  fora  e  criticar  a  qualidade,  mas  se  você  está  vivendo  em  algum  lugar  sem   médicos,  ficaria  feliz  quando chegasse algum”. O  problema  dos  que  contestam  a  vinda de médicos estrangeiros e, em especial dos cubanos, é  que  as  pessoas  que  passam   anos  ou  toda  a  vida  sem  ver  um  médico  ficarão  muito  felizes  quando receberem a atenção que os corporativistas do Brasil lhes negam e tentam impedir. Socialismo e guerra fria  Duas  informações  referentes  à  vinda  de  médicos  cubanos  para  o Brasil e que podem ser úteis  aos que querem ir além do que diz a grande imprensa: ­  Cuba  é  um  país  socialista  e  por  isso,  gostemos  ou  não, as coisas não funcionam exatamente  como  em  um  país  capitalista.  Como  é  um  país  socialista,  há  a  preocupação  de  manter baixos 

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os  índices  de  desigualdade  econômica  e  social.  Por  isso  nenhuma  empresa  ou  governo  estrangeiro  contrata  trabalhadores  cubanos  diretamente,  em  Cuba  ou  no  exterior  (nesse  caso  quando  a  contratação  é  resultado  de  um  acordo  entre  estados).  Todos  são  contratados  por  empresas  estatais  que  recebem  do  contratante  estrangeiro  e  pagam  os  salários  aos  trabalhadores,  sem  grande  discrepância  em  relação  ao  que  recebem  os  que  trabalham  em  empresas  ou  organismos  cubanos.  Os   médicos  que  trabalham  no  exterior  recebem  mais  do  que  os  que  trabalham  em  Cuba.  Mas  algo  como  nem muito que seja um desincentivo aos que  ficam, nem tão pouco que não incentive os que saem. ­  O  governo  dos  Estados  Unidos  tem  um  programa  especial  para  atrair  médicos  cubanos que  trabalham  no  exterior.  Eles  são  procurados  por  funcionários  estadunidenses  e  lhes  são  oferecidas  inúmeras  vantagens  para  “desertar”,  como  visto  de  entrada,  passagem  gratuita,  permissão  de  trabalho  e   dispensa  de  formalidades  para  exercer  a  atividade.  Os  que  atuam  na  América  Latina são os  mais procurados e uma condição para serem aceitos no programa é que  critiquem  o  sistema  político  cubano  e  digam  que  os  médicos  no  exterior  são  oprimidos  e  mantidos  quase  como  escravos.  Os   que  aceitam  as  ofertas  dos  Estados  Unidos,  os  que  emigram  para  outros  países   ou   ficam  no  país  que  os  recebe  depois  de  terminado   o   contrato  representam  cerca  de  3%  dos  efetivos.   No  Brasil,  mantida  essa  média,  pode­se  esperar  que  até 120 dos quatro mil médicos cubanos “desertem”. Um sistema irreal  A  citação  a  seguir  é  do  New  England  Journal  of  Medicine:  “O  sistema  de  saúde  cubano  parece  irreal.  Há  muitos  médicos.  Todo  mundo  tem  um  médico  de  família.  Tudo  é  gratuito,  totalmente  gratuito.  Apesar  do  fato  de  que  Cuba  dispõe  de  recursos  limitados, seu sistema de  saúde  resolveu  problemas  que  o  nosso  [dos  EUA]  não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe  agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”. Menções  elogiosas  ao  sistema  de   saúde  cubano  e  a  seus  profissionais  são  frequentes  em  publicações  especializadas  e  ditas  por  autoridades  médicas  e  organizações  internacionais,  como  a  Organização  Mundial  de  Saúde,  a  Organização  Panamericana  de  Saúde  e  o  Unicef.  Mas  mesmo  assim,  querendo  negar  a  realidade,  médicos  e  políticos  brasileiros  insistem  em  negar  o  óbvio,  chegando  ao  absurdo  de  dizer  que  nossa população está correndo riscos ao ser  atendida pelos cubanos.

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Para  começar,  os  indicadores  de  saúde  em  Cuba  são os melhores da América Latina e estão à  frente  dos  de  muitos  países  desenvolvidos.  A  mortalidade infantil, por exemplo (4,8 por mil),  é  menor  do  que  a  dos  Estados  Unidos.  Aliás,  para  os  que  gostam  de  dizer  que  Cuba  estava  melhor  antes  da  revolução  de  1959,  naquela  época  era  de  60  por  mil.  A  expectativa  de  vida  dos cubanos é também elevada: 78,8 anos. Outro  aliás  quanto  aos  saudosistas:  em   1959,   Cuba tinha seis mil médicos, sendo que três mil  correram  para  os  Estados  Unidos  quando  viram  que  não  haveria  mais  lugar  para  o  sistema  privado  de  saúde  e   que  os  doutores elitistas e da elite perderiam seus privilégios. Hoje  tem  78   mil  médicos,  um  para  cada  150  habitantes,  uma das melhores médias do mundo. Isso permite  a  Cuba  manter  mais   de  30  mil  médicos  no  exterior.  Desde  1962,  médicos  cubanos  já  estiveram trabalhando em 102 países. Em  2012  formaram­se  em   Cuba  5.315  médicos  cubanos  em  25  faculdades  públicas  e  5.694  estrangeiros,  que  estudam  de  graça na Escola Latino­Americana  de Medicina (Elam). A Elam  recebe  estudantes  de  116  países,  inclusive  dos  Estados  Unidos,  e  já  formou  24  mil  estrangeiros. Os  médicos  cubanos  se  formam   após  seis  anos  de  graduação,  incluindo  um  de  internato,  e  mais  três  ou  quatro  anos  de  especialização.  Os  generalistas,  que  atendem  no  sistema  Médico  da  Família  (um  médico  e  um  enfermeiro  para  150  a  200  famílias,  e  que  moram  na  comunidade  que  atendem)  são  preparados  para  atuar  em  clínica  geral,  pediatria,  ginecologia­obstetrícia e fazer pequenas cirurgias. Dos  quatro  mil  médicos  que  vêm  para  o  Brasil,  todos  têm  especialização  em  medicina  de  família,  42%  já  trabalharam  em  pelo  menos  dois  países  e  84%  têm  mais  de  16  anos  de  atividade.  Grande  parte  já  atuou  em países de língua portuguesa, na África e em Timor­Leste.  Foi em Timor, a propósito, que ocorreu o fato seguinte: o embaixador estadunidense exigiu do  então  presidente  Xanana  Gusmão  que  expulsasse  os  médicos  cubanos.  Xanana  perguntou  quantos  médicos  dos  Estados  Unidos  havia  no  Timor­Leste  e  quantos  o  país  mandaria  para  substituir  os  mais  de  duzentos  cubanos  que   estavam  lá.  Diante  da  resposta,  de  que  havia   apenas  um,  que  atendia  os   diplomatas  norte­americanos,  e  que  não  viria  mais  nenhum,  Xanana, simplesmente, disse que os cubanos ficariam. E estão lá até hoje. Falando português. 

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CUBA: OS PRÓXIMOS 45 ANOS?     Por: István Mészáros.   1  Dia  1º  de  Janeiro  Cuba  celebrou  o  quadragésimo  quinto  aniversário  de  sua  vitoriosa  revolução:  uma  grande  conquista  histórica.  E  quando  nos  lembramos  de  que  a   revolução  cubana  –  a  ação  duradoura  de  uma  nação  de  apenas onze milhões de pessoas – sobreviveu ao  longo  de  quarenta  e  cinco  anos  contra  todos  os  riscos,  confrontando  a inimizade declarada, o  cerco  e  bloqueio  internacionais  determinados  pelos  Estados Unidos, assim como as tentativas  de  subverter  e  derrubar  a  ordem  pós­revolucionária  pela   mais  preponderante  potência  econômica  e  militar,  até  mesmo  esse  simples  acontecimento  põe  em  relevo  a  magnitude  e  a  significância  da  atual  intervenção  cubana  no  processo  histórico de nosso tempo. Somos todos  contemporâneos  de  uma   vitória  cujas  reverberações  chegam  bem  além  dos  limites  do  tendenciosamente  propagandeado  “Hemisfério  Americano”,  oferecendo  sua  mensagem  de  esperança também para o resto do mundo.  Em  1999,  três anos antes de o governo americano ter negativamente decretado que Cuba fazia  14

parte  do  “eixo  do  mal”,  visando  eliminar  o  ​ “círculo  vicioso”    numa  fase  inicial  do  agressivamente  promovido  “novo  século  americano”,  escrevi  no  prefácio  de  ​ Socialismo  ou  Barbárie ​ :  Chegou  ao  fim  o  século  XX,  descrito  pelos   apologistas  mais  entusiasmados  como  o  “século  americano”.  Essas  opiniões   se  manifestam  como  se  não  houvesse  ocorrido  a  Revolução  de  Outubro  de  1917,  nem  as  revoluções  Chinesa  e  Cubana,  nem  as lutas pela libertação colonial  das  décadas  seguintes,   isso  sem  mencionar  a  humilhante  derrota  dos  Estados  Unidos  no 

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  Originalmente  publicado   em:   resistir.info.  12/01/2004.  Nascido na  Hungria  em  1930,  István  Mészáros  é  um  dos   maiores  pensadores  vivos.  É  autor de  diversas  obras,  como “Para  além  do  capital”  (São  Paulo:  Boitempo,  2002).   14   Lincoln  Diaz­Ballart,  “amigo  íntimo  e  assessor  do  Presidente  Bush,  fez  essa  declaração  enigmática  a  uma  estação de TV  de Miami: 'não posso entrar em detalhes, mas estamos tentando quebrar esse ​ círculo vicioso ​ .' Que  métodos  eles  estarão  considerando  para  lidar  com  esse  círculo  vicioso?  Minha  eliminação  com  os  recursos  sofisticados  que  desenvolveram,  como  prometeu  Mr.  Bush  no  Texas  antes das eleições? Ou  pelo  ataque a Cuba  tal  como  atacaram  o Iraque?”  Do  discurso  do  Presidente  Fidel  Castro  pronunciado  no  dia  Primeiro  de  Maio de  2003.  

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Vietnã.  De  fato,  os  defensores  acríticos  da  ordem  estabelecida  antecipam  confidencialmente  que  não  apenas  o  século  XXI,  mas  todo  o  próximo  milênio,  está  destinado  a se conformar às  15

regras incontestáveis da “Pax Americana”.   Evidentemente,  todos  os  que  se  engajam  na  tentativa  fútil  de reescrever a história se recusam  a  reconhecer  até  o  mais óbvio: ou seja, que os grandes eventos históricos, como os que acabei  de  mencionar,  não  podem  ser desfeitos para se ajustar às contingências políticas do momento.  Esses  eventos  resultam  de  contradições  sociais  absolutamente  fundamentais,  e  não  perdem  a  relevância  histórica  e  ardente  realidade  enquanto  determinações  arraigadas  não   forem  atendidas  de  forma  positiva  e  duradoura  por  um  estágio  mais  avançado  de  desenvolvimento.  Nem  quando  pensamos  no  tipo  de  reversão  capitulacionista  que  vimos  na  antiga  União  Soviética. Teremos  coragem  de  pensar  nos  próximos  quarenta  e  cinco  anos? A resposta é simplesmente  que  isso  é  necessário.  Pois  as  mudanças  históricas  da  magnitude  da  que  consideramos  aqui,  embora  tenham  impacto  dramático  imediato,  só  realizam  todo  o  seu  potencial  numa  perspectiva  mais  longa.  Tanto  mais  porque  o  adversário  histórico  entrincheirado  sempre  ajusta  suas  próprias  estratégias  –  restringidas  apenas  pelos  limites  últimos  de  suas  determinações  sistêmicas  –  para  anular  todo  movimento  do  adversário  progressista.  É  assim  quando  os  ajustes  signifiquem  algumas  concessões  reformistas  temporárias,  ou  quando,  pelo  contrário,  signifiquem  a  adoção  implacável  das  ações  mais  destrutivas.  E  por  isso a noção  de  Kruschev  de  uma  “competição  pacífica” com a produção capitalista, como o juiz mutuamente  aceito  de  objetivos  rivais,   foi  tão  ingênua,  para  não  dizer  coisa  mais  grave,  quando  a  verdadeira   aposta  histórica  era  nada  menos  que  a  instituição  de  uma  alternativa  radical  hegemônica  à  ordem  social  do  capital.  O  antagonista  capitalista   firmemente  estabelecido  nunca teve a espécie de ilusão que cobra o pagamento de alto preço.  Nesse  contexto  não  devemos  nos   esquecer  de  que  se  existe  uma  interrogação  acerca  dos  próximos  quarenta  e  cinco  anos  de Cuba, a mesma interrogação paira sobre  o  futuro de toda a  humanidade.  Pois  na  atual  fase  do  desenvolvimento  histórico  do  capital,  em  resultado  do  aprofundamento  da  crise  estrutural  do  sistema,  não  somente  as  concessões  reformistas  do  passado  terão  de  ser  retomadas  –  como  já  estão  sendo  –  até  mesmo  nos  países  capitalistas   István Mészáros, ​ O Século XXI: Socialismo ou Barbárie, ​ Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 15/16.  

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mais  avançados,  mas,  dada  a  insuficiência  crônica  dos  remédios  produtivamente disponíveis,  surge  claramente  no  horizonte  a  ​ mortal  irracionalidade  ​ da  adoção  do  curso  de  ação  mais  destrutivo  em  escala  global,  tentando  se  impor  como  ​ solução  racional  ​ de  todos  os  nossos  problemas.  Cuba  está  ao  lado  dos  Estados  Unidos  e  pode  ser  atingida  militarmente  com  a  maior  facilidade.  Mas,  é  claro,  a  mesma  facilidade  de  ataque  está  em  preparação  ativa  –  tanto  para  fins  de  chantagem,  inclusive  a  nuclear,  quanto  para  disparar  uma   ação  militar  devastadora  –  para  atingir  os  cantos  mais  remotos  do  mundo.  O  projeto  “Guerra  nas  Estrelas”  de  ontem  ainda  podia  ser  apresentado  como  um  escudo  defensivo,  mesmo  que  na  verdade  não  fosse  nada  dessa  espécie.  Mas  o  sucessor  altamente  aperfeiçoado,   cujo  nome  de  código  é “Falcão”  (sigla  em  inglês  para  Aplicação  e  Lançamento  de  Força  a   partir  dos  Estados  Unidos  Continentais)  não  pode  ser  considerado  outra  coisa  que  não  um  sistema  de  armamentos  escandalosamente   ofensivo,  a ser lançado contra o mundo inteiro. A primeira fase operacional  desse  sistema  estará  completa  em  meados  de  2006,  e  os  testes  iniciais  começarão  em  2004.  Completamente  desenvolvidos,  os  veículos  não   tripulados  “serão  capazes  de  atingir  alvos  a  9.000  milhas  marítimas  (16679,25  km)  de  distância  em  não  mais  que  duas  horas”.  Além  disso,  levarão  uma  carga  de  até  12.000  libras  (5436  kg)  e  voarão  a  velocidades  de  até  10  vezes  a  velocidade  do  som.”  O  objetivo  dessa  máquina  de  guerra  infernal  é  permitir  que  os  Estados  Unidos  ataquem  sozinhos  qualquer  país  que  queiram  dominar  ou  destruir,  no  seu  projeto  de  conquistar  a  dominação  do  mundo  como  indiscutível  e  inatacável  governante  do  imperialismo  hegemônico  global.  Como  comentou  John  Pike,   chefe  do  ​ think  tank  “globalsecurity.org”,  sobre  o  novo  sistema  de  armas:  ​ Trata­se  de  explodir  povos  do  outro  16

lado do mundo, mesmo que nenhum país do mundo nos permita usar seu território ​ .   2  O  fracasso  da  persistente  política  do  governo  americano  contra   Cuba  é  amplamente  reconhecido.  Mesmo  um  antigo  ministro  do  governo  conservador  de  Margatet  Thatcher  tem  grandes  reservas  acerca  dessa  postura  anticubana  dos  americanos  e  de  sua  adoção  pelos  governos da Europa, como deixou claro num artigo recente: 

 Julian Borger, “US­based missiles to have global reach”, ​ The Guardian ,​  1 de julho de 2003.  

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É  extremamente  ingênuo  quem  pensa  que  na era pós­Castro Cuba vá se tornar efetivamente o  51º  estado  dos  Estados  Unidos. Ainda assim, é exatamente nisso que muitos na administração  americana,  e  até  desse  lado  do  Atlântico,  parecem acreditar. Na verdade, é mais provável que  ocorra  exatamente o contrário. ... É preciso evitar o perigo de tomar emprestado o instrumento  cego  que  é  a   marreta  política  dos  Estados  Unidos  [e  de  ver  Cuba]  através  dos  binóculos  17

desfocados dos desejos americanos.   Desnecessário   dizer,  visões  críticas,  ainda  quando  não  possam  ser  acusadas  de  “tendenciosamente  esquerdistas”,  não  fazem  qualquer  diferença  para  os  reacionários  formuladores  de  política  da  administração  dos  Estados  Unidos.  Um de seus subsecretários de  estado,  John  Bolton,  acusou  Cuba  de  ser  o  fornecedor  de  armas  biológicas  para   os  inimigos  dos  Estados  Unidos,  tomando  por  “base”  o  fato  de  os  cubanos  terem  uma  indústria  farmacêutica  avançada.  Foi  uma  das  primeiras  tentativas  de  caracterizar  Cuba  como  alvo  “moralmente   justificável”  para  um  ataque  militar  dos  Estados  Unidos.  Eu  mesmo  comentei  sarcasticamente  à  época  (junho  de  2002),  num  programa  de  entrevistas  da  TV  brasileira,  “Roda  Viva”,  que  esses  homens  não  têm  moral  nem  qualquer  respeito  pela  verdade.  Não  causa surpresa que tentativas dessa espécie de acusar Cuba de crimes anti­americanos fictícios  sejam  constantemente  renovadas.  Fidel  Castro  relatou  no  seu  discurso  de  Primeiro  de  Maio  um caso muito recente e ameaçador:  A  política  do  governo  dos  Estados  Unidos é de tão escandalosamente provocadora que  no  dia  25  de  abril  o  sr Kevin Whitaker, chefe do Birô Cubano do Departamento de Estado, informou  ao  chefe  da  Seção  que  cuida  dos  nossos  interesses  em  Washington  que  o  Departamento  de  Segurança  Interna do Conselho de  Segurança Nacional considerava os  constantes seqüestros a  partir  de  Cuba  uma  ameaça  grave  à  segurança  nacional  dos  Estados  Unidos,  e  exigiu  que  o  governo  cubano  adote  todas  as  medidas  necessárias  para  evitar  essas   ações.  Disse  isso  como  se  não fossem eles quem provocava e incentivava esses seqüestros, como se não fôssemos nós  que adotávamos medidas drásticas para evitá­los. 

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  Colin Moynihan,  “Cuba  has  been left  out  for  too  long:  Britain  and  Europe must break with 40 years of failed  US policy”, ​ The Guardian ​ , 1 de julho de 2003.  

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A  controvérsia  internacional  acerca da condenação dos seqüestradores teve muito a ver com o  desprezo  pela   ameaça  militar  direta  a  que  o  país   estava  –  e  ainda  está  –  submetido  por  esse  motivo.  A  continuação  cínica  de  atos  de  provocação  e  a hipócrita justificação mentirosa nos meios de  comunicação  de   massa  permanecem  como as características definidoras da política americana  com  que  Cuba  está  condenada  a  conviver  no  futuro  previsível,  ainda que não pelos próximos  quarenta  e  cinco  anos.  Certamente  não  pelos  próximos  quarenta  e  cinco  anos!  Pois  é  inconcebível  que  a  fase  atual,  extremamente  agressiva  do  imperialismo  hegemônico  global  –  que  agora  tenta  absurdamente  “compensar”  o  perdularismo   incurável  de  seu  sistema  de  produção  destrutiva  ​ por  meio  dos  gastos  astronômicos  em  armamentos  e  aventuras  militares  associadas,  financiados  pelo  buraco  negro  do  endividamento  americano  –  seja capaz de durar  tanto tempo, exterminando toda  a humanidade se não for interrompido bem antes de decorrido  esse tempo.  Por  muito  tempo,  Cuba  foi  forçada  a  viver  em  estado  de  emergência.  As  grandes  privações  que  tiveram  de  ser  vencidas  sob  tais  circunstâncias  não  se  limitam  às  conseqüências  do  bloqueio  americano.  Depois  do  desmoronamento  do  sistema  soviético  a  situação  se  agravou  ainda  mais,  não  somente  através  do  endurecimento  do  bloqueio  americano,  na  vã  esperança  de  precipitar  um  colapso  imediato,  mas  também  devido  à  perda  pelo  país   de  seus  principais  mercados  e  fontes   de  suprimentos.  Por isso, a absorção de calorias e proteínas  pela população  caiu  praticamente  à  metade, e os anos dolorosos do “período especial” foram necessários para  restaurar os requisitos nutricionais da população ao nível anterior.  Desnecessário   dizer,  as  condições  do  estado  de  emergência   são  desfavoráveis  à  conquista  de  muitos  objetivos  desejáveis,  tanto  no  plano   político­cultural,  quanto  no  econômico.  Mas  não  se  pode  simplesmente  esperar  que  elas  deixem  de  existir,  nem  elas  devem  ser  prolongadas  além do historicamente justificável, uma vez que as condições se alterem para melhor.  Nesse  ponto  vemos  um grande contraste com a experiência soviética. Como  sabemos, durante  alguns  anos  depois  da  Revolução  de   Outubro  o  país  teve  de  enfrentar  a  extrema  privação  de  um  autêntico  estado  de  emergência.  Mais  tarde,  entretanto,  Stalin  prolongou  artificialmente  durante  décadas  o  estado  de  emergência  antes  plenamente  justificável,  pois  essa  continuação 

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lhe  ofereceu  uma  opção  mais  fácil  para  implementar  suas  políticas  autoritárias.  Mas  seguir  assim  a  “linha  de  resistência  mínima”  –  já  que,  na  visão  de  Stalin,  todo  questionamento  das  políticas  decretadas  poderia  ser  facilmente  esmagado  –  resultou  na  instituição dos campos de  trabalho  forçado,  com  terríveis  conseqüências  para  a  produtividade  do  trabalho,  trazendo  consigo  a  violação  brutal  da  legalidade  que  em  1956  Kruschev  condenou  com  toda  razão.  Ademais,  quando  foi  forçado  em 1952 a admitir que a produtividade do trabalho soviético era  seriamente  problemática,  Stalin  tentou  resolver  a  situação  pela  estipulação  de  mais  uma  solução  autoritária,  propondo  a  imposição  pela  administração  da  disciplina   do   trabalho.  Em  seu  último  texto  importante  –  sobre  os  “Problemas  Econômicos  do  Socialismo  na  URSS”  –  ele  decretou  a  validade  eterna  da  “lei  do  valor”,  a  permanência  da  divisão  “não­essencial”  entre  o  trabalho  físico  e  o  mental,  e  a  separação  justificável  da  sociedade  entre  o  “pessoal  executivo  socialista”  (“nossos  executivos  empresariais”)  bem  remunerado,  e  a  “força  de  trabalho  físico”  firmemente  controlada  não  apenas  politicamente,  mas  também  por  práticas  institucionais  “racionais”  sucedâneas  do  mercado.  Insistiu  na  necessidade  de  “produção  e  circulação  adequada  de  mercadorias”,   a  ser  regulada  com  base  na  “contabilidade  de  custos  e  na  lucratividade”,  deixando  para  o  futuro  um  perigoso  legado  e  também  conferindo  “legitimidade  socialista”  ao  autoritarismo  tradicional  do  “mercado  disciplinador”  cujas  18

fatídicas conseqüências todos conhecemos bem.   Evidentemente,  não  existe  nada  de  artificial no dolorosamente longo  estado de  emergência de  Cuba  diante  das  ameaças  militares  constantemente  renovadas  e  intensificadas  de  seu  adversário  preponderante.  No  entanto,  ninguém  poderá  negar  que  todo  o  potencial  da  revolução  cubana  só  será  fruído  num  futuro  em  que,  em  resultado  de  uma   mudança  fundamental  das  circunstâncias  e  da  relação  global  de  forças,  será  possível  dizer  que  a  obrigação  quase   proibitiva  de  enfrentar  as  forças  destrutivas  do  capital  pertence  irremediavelmente ao passado.  3  A  vitoriosa  revolução  cubana  é  única  e  tem  significância   universal.  É  única  no sentido de ter  resultado  de  duzentos  anos de luta ressurgente, inicialmente contra o colonialismo espanhol,  e    Os  leitores  interessados  encontrarão  uma  discussão  documentada  dessas  questões  no  capítulo  17 de  ​ Beyond  Capital  ​ (Merlin  Press,  Londres,  e  Monthly  Review  Press,  Nova  Iorque,  1995;   em  português,  ​ Para  além  do  capital  ​ ,  Boitempo  Editorial,  São  Paulo,   2002),  especialmente  na  seção  17.3,  que   trata  de  “O  fracasso  da   desestalinização e o colapso do 'socialismo realmente existente'”.   18

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mais tarde contra a dominação imperialista pelos Estados Unidos. A grande figura histórica de  José  Martí  –  que  mais  de  cem  anos   depois  de  sua  morte  continua  sendo  uma  tremenda   inspiração  para  o  presente  –  com  sua  visão  de  longo  alcance  ligou  diretamente as duas fases,  antecipando  claramente,  muito  antes  da  conclusão  da  luta  contra  a  Espanha,  que  Cuba  só  conquistaria sua emancipação quando conseguisse derrotar a nova dominação americana.  Mas  a  revolução  cubana  também  é  única  no  sentido  de  que  a  derrubada  do  regime  servil  de  Batista  foi  precedido  por  três  anos  de  luta  armada,  sustentada  por  um  número   sempre  crescente  da população do país. A isso se acrescenta o fato de  que à época da tomada do poder  o  governo  americano  ainda  acalentava  a  ilusão  de que seria capaz de dominar o país a seu bel   prazer  também   sob  as  novas  circunstâncias,  ainda  que  de  forma  ligeiramente  alterada.  Ademais,  dado  o esmagador apoio popular à derrubada do regime cliente dos Estados Unidos,  ele foi forçado a produzir ruídos favoráveis à mudança.  Quando  fracassaram  as  tentativas  de  voltar  a  impor  a  antiga  dominação por outros meios, ele  imediatamente  adotou  uma  atitude  abertamente  hostil.  É  por  isso  que  se  vê  claramente  que o  adversário  histórico  ajusta  inevitavelmente  suas  estratégias  quando  é  forçado  a  enfrentar  um  desfio  significativo,  o  que  ele  faz  para  reverter  a  situação,  ou  pelo  menos  para  evitar  novas  ocorrências  daquilo  que  o  “surpreendeu”,  ou  melhor,  a  que  foi   submetido.  Dessa  forma,  as  políticas  americanas  não  somente  para  Cuba,  mas  para toda a América Latina (e não somente  para  ela)   –   sob  a  forma  de  derrubada  violenta  de  regimes  democraticamente  eleitos  (cinicamente  em  nome  da  “democracia  e  liberdade”)  e  imposição  de  ditaduras  brutais  –  acentua  fortemente  esse  ponto.  A  revolução  cubana  é  assim  única  também  sob  o  aspecto  de  que  na  sua  esteira até mesmo os primeiros sinais de qualquer luta armada anti­imperialista em  potencial  tiveram   de  ser  esmagados  pela  intervenção  direta  ou  indireta  dos  Estados  Unidos,  como o demonstra também o destino trágico de Che Guevara.  Entretanto,  se  a  unicidade  da  revolução  cubana  se  afirma  dessa  forma  –  por  várias  razões  importantes,  inclusive  a  constituição  histórica  de  sua liderança, de José Martí até o presente –  ela  não  pode  ser   imitada  ou  repetida,  muito  menos  transformada  no  modelo  compulsório   de  transformação   revolucionária,  assim  como  não  se  pode  dar  toda  a   ênfase  necessária  à  sua  significância  universal.  A  tentativas  passadas  de  imposição  do  modelo  soviético,  sob Stalin e  seus  sucessores,  causaram   prejuízo  imenso  ao  movimento  socialista  em  toda  parte.  Não  se 

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pode  permitir  que  isso  se  repita  no  futuro,  por  maiores  que  sejam  as  tentações.  Ninguém  o  afirma com mais clareza que o próprio Fidel Castro. Falando de nossos problemas, ele diz:  Surgem  movimentos  de  massa  que  se   formam  com  tremenda  força,  e  eu  creio  que  esses  movimentos  desempenharão  papel  fundamental  nas  lutas  futuras.  Serão  outras  táticas,  já  não  será  a  tática   no   estilo  bolchevique,  nem  mesmo  ao  nosso  estilo,  porque  pertenceram  a  um  mundo  diferente.  Nesse   de  agora  devem  surgir  novas  táticas,  sem  que  isso  signifique  desânimo  para  ninguém,  em  lugar  algum,  e  fazê­lo  da  forma  que  se   considere  conveniente.  Mas  tratemos  de  ver  e  analisar  com  a  maior  objetividade  possível  o  quadro  atual  e  o  desenvolvimento  da  luta  sob  o  domínio  unipolar  de  uma  superpotência:  Estados  Unidos.  Serão  outros  caminhos  e  outras  vias  pelos   quais  irão  se  criando  as  condições  para  que  esse  19

mundo global se transforme em outro mundo.   Os  apologistas  do  capital  geralmente  tentam  racionalizar  e  “explicam  para  longe”  suas  próprias  contradições  e  problemas  como  se  fossem  o resultado de terem sido “exportadas” de  um  território  estrangeiro  por  uma  “força  subversiva”,  e  conspiratoriamente  impostas  a  eles.  Como  claramente  indicam  as  linhas  citadas  acima,  nada  poderia  estar  mais  longe  de  uma  estratégia  genuína  de  transformação  socialista.  Pois  uma  estratégia   bem  fundamentada  deve  sempre  advogar  o  acionamento  das  verdadeiras  alavancas  transformadoras pelos movimentos  sociais  existentes  sob  as  condições  sociais  predominantes  e  alterar  dinamicamente  as  circunstâncias históricas.  O  significado  universal da revolução cubana reside na sua grande afinidade com as aspirações  de  todos  aqueles  que  pretendem  se  libertar  das  restrições  paralisantes  da  ordem  social  do  capital. Embora,  num  sentido  geral,  essa  aspiração  se  aplique  a  todos  que  participam  da  causa  da  emancipação   humana,  é  compreensível  que  os  ecos  gerados  pela  revolução  cubana  tenham  sido  os  maiores  na  América  Latina.  Pois  os  países  daquele  continente  foram,  e  ainda  são,  todos  dominados  pela  mesma  potência  imperialista,  e  seus  esforços  para  remediar  sua  situação  foram  constantemente  frustrados  e  afinal  anulados,  tanto   por  razões  internas  quanto 

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  Fidel  Castro  Ruz,  “El  mundo  caótico  al  que  conduce   la  globalización  neoliberal  no   puede  sobrevivir”,  Granma​ ,  25  de junho de 1998,  p.  6.  Citado em Gilberto Valdés Gutiérrrez, “El sistema de dominación múltiple”.  Manuscrito.    

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externas,  pelo  mesmo  sistema  social sob o qual eles tiveram que reproduzir suas condições de  existência. A mensagem da revolução cubana para eles é portanto dupla.  Primeiro,  ela  focaliza a questão da recuperação de sua soberania dos Estados Unidos, e do seu  poder  de  decisão,   libertando­se  assim  da  dominação  militar,  política  e   econômica  de  seu  vizinho avassalador.  E,  segundo,  ao  mesmo  tempo  as  questões  fundamentais  do  sistema  reprodutivo  socioeconômico  em   seu  conjunto  teriam  de  ser  submetidas  a  uma  crítica  radical,  tanto  por  causa  da  insuportável  dominação  da  ordem  capitalista  pelos  Estados  Unidos,  quanto,  o  que é  mais  importante,  por  causa  do  anacronismo  histórico  e  perdularismo  das  determinações  metabólicas  do  capital  em  geral  no  atual estágio da história. Noutras palavras, todos os países  da  América  Latina  (e  não  somente  eles)  tiveram  de  lutar  para  sair  de  seu  próprio  ​ círculo  vicioso  ​ de  tentar  resolver  seus  imensos  problemas  na  cinicamente inflada margem mínima da  “ajuda  econômica”  americana,  quando  na  realidade  é  a  economia  dos  Estados  Unidos  quem  permanece  maciçamente  dependente  dos  recursos  que  deve  transferir  do  resto  do  mundo,  de  muitas  formas  diferentes,  para  sua  própria  esfera  de  produção  e  consumo.  E  a  desanimadora  verdade  é  que  o  verdadeiro  círculo  vicioso  deve  ser  operado  –  não  como  uma  questão  de  política  iníqua,  mas  de  uma  política  que  se  pode  corrigir  por  uma  “visão  esclarecida”,  como  advoga  a  “teoria  do desenvolvimento modernizador”, mas, pelo contrário – como a imposição  fundamentalmente  inalterável  de  um  ​ sistema  historicamente  anacrônico  e  estruturalmente   restrito  ​ para  o  qual  “não  existe  alternativa”  (como  os  políticos  do  sistema  não  se  cansam  de  repetir), com os Estados Unidos no seu ponto alto.  Desde  o  início,  a  mensagem  da  revolução  cubana  focalizava  esses  dois  conjuntos  de  problemas  que  afetam  profundamente  ​ todos  ​ os  países  da  América  Latina.  Assim,  não  importando  quando  ou  com  que   sucesso  os  países  interessados  possam  agir  no  interesse  da  realização  dos  objetivos  profundamente  interligados  que  têm  diante  de  si,  a  mensagem dupla  da  revolução  cubana  –  convocando não apenas para a luta anti­imperialista, mas também para  uma  mudança  ​ estrutural  e  sistêmica ​ da sociedade como a condição última do sucesso daquela  luta  –  está  destinada  a  ressoar  com  crescente intensidade, até nas circunstâncias mais difíceis,  por todo o continente. 

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4  Quanto  ao  tempo  que  nos  resta,  não  pode  haver  dúvida  de  que  os  desafios  e  perigos  continuarão  enormes,  apesar  de  todas  as  conquistas.  A  ameaça  militar   dos  Estados   Unidos  contra  Cuba  foi  intensificada  nos  últimos   anos,  paralelamente  à  crescente  agressividade  da  política americana em todo o mundo. De fato, como já mencionamos antes,  Cuba foi apontada  como  um  dos  estados  que  constituem  o  “eixo  do  mal”,  com  todas  as  sinistras implicações de  tal  caracterização.  Mas  os  formuladores  da  política  americana  devem  também  se  lembrar  de  seu  humilhante  fiasco   na “Baía dos Porcos”. Devem entender que a afirmação de Fidel Castro  no  discurso  do  dia  primeiro  de  maio  de  2003  não é uma ameaça vazia, quando ele insiste que  caso  Cuba  seja atacada, como o foi o Iraque, “​ os agressores não estariam apenas enfrentando  um  exército,  mas  milhares  de  exércitos  que  constantemente  se  reproduziriam  e  fariam  o  inimigo  pagar  preço  tão  alto  em  baixas  que  excederia  em  muito  o  custo  em  vidas  de  seus  filhos  e  filhas  que  o  povo  americano  estaria  disposto  a  pagar  pelas  aventuras  e  idéias  do  Presidente Bush”.   Na  verdade,  o  projeto americano de dominação imperialista global não tem futuro melhor que  as  variedades  anteriores  do  imperialismo  –  que  no  final  sempre  fracassaram.  Mais  cedo  ou  mais  tarde,  a  sobre­extensão  dos  agressores  os  levará  à  derrota,  mesmo  que  na  estrada  que  leva  ao  fracasso  final  eles possam destruir as condições de existência humana neste planeta. E  nesse  sentido  literalmente  vital,  superar  a ameaça militar  a que Cuba  está submetida é a causa  comum de toda a humanidade.  Naturalmente,  os  perigos  não   estão  confinados  ao  plano  militar.  Sua  outra  dimensão  crucialmente  importante  é  a  guerra  econômica  e  política  a  que  Cuba  foi  submetida  nos  últimos  quarenta  e  cinco  anos,  constantemente  intensificada  e  que  assumiu  formas   novas  e  mais  perigosas.  Hoje  ela  assume   a  forma de uma enorme pressão pela “marketização”, que se  torna  mais  problemática  diante  do  fato  de  que  a  aceitação  de  uma  ideologia  de  mercado  contribuiu  significativamente  para  a  desintegração  do  sistema  soviético  no  governo  de  Gorbachev e seus colaboradores.  Quando  Stalin  formulou  em  1952  a  sua   primeira  versão  da  disciplina  de mercado – pela qual  se  compensaria  com  “bens  de  consumo  lucrativamente  produzidos”  a  “força de trabalho” por 

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sua  aceitação  de  tal  disciplina  –  muito  do  que  ele  decretou  era  completamente  infundado  e  teve  de  permanecer  no  reino  da  fantasia.  Pois  o  sistema  soviético  não   poderia  operar na base  da  produção  e  circulação  de  mercadorias,  sob  a  lei  do  valor,  principalmente  pela  razão  simples  de  não  ter  um  mercado  adequado,  muito  menos  um  mercado  de  trabalho.  E  muitas  coisas  podem  ser  reguladas  numa  economia  com  confiabilidade  tolerável  com  a  ajuda  de um  pseudomercado,  que   de  fato  existiu  na  União  Soviética,  mas  evidentemente  não  existiu  um  mercado para a alocação e o controle firme da força de trabalho. Até mesmo Kruschev resistiu  à  tentação  de   ampliar  as  mudanças  inspiradas  por Stalin nesse campo  perigoso. Somente com  Gorbachev  se   deu  o  passo crítico de estabelecer um verdadeiro mercado de trabalho, trazendo  consigo  conseqüências  catastróficas  para  a  economia  e  sociedade  soviéticas  em  geral,  sem  conseguir realizar as expectativas irreais dos formuladores dessa política.  É  nesse  ponto  que  encontramos  a  ​ linha  crucial  de  demarcação​ .  Naturalmente,  falar  de  marketização  pode  cobrir  muitas  coisas,  e  freqüentemente  não  implica  nada  além  do  melhor  uso  dos  recursos  materiais  e   humanos.  É  uma  preocupação  perfeitamente  legítima  em  qualquer  circunstância.  Na  verdade,  ela  é  grosseiramente violada, apesar de todas as fantasias  em  contrário,  exatamente  na  atual  fase  de  ​ produção  e  consumo   irremediavelmente  perdulários  ​ do  capital:  o  inimigo  jurado  de   toda  e  qualquer  preocupação  com  a  economia  e  com  a  correspondente  alocação  racional  de  recursos.  A  questão  que  exige  resposta  é:  quem  detém  o  controle   efetivo  dos  recursos  combinados  da  sociedade,  os  “produtores  associados”  ou  uma  força  externa  de  formulação  de  decisões,  ainda  que  esta  seja  ideologicamente  adornada  com o nome da imaginária e benevolente “mão invisível”  de Adam Smith? Uma vez  que  o  trabalho  seja  transformado  em  mercadoria  como  qualquer outra, manipulado de acordo  com  as  exigências  ​ fetichísticas  e  mistificadoras  ​ –  tudo  menos  ​ objetivas  ​ –  do  mercado  de  trabalho,  fecham­se  firmemente  todas  as  portas  para  as  aspirações  à  realização  dos  tão  necessários  objetivos  socialistas  do  povo.  Em   seu  lugar,  tudo  é  lançado  no  remoinho  da  restauração  capitalista,  como  nos  informa  a  amarga  experiência  histórica.  Somente  a  forma  mais  ansiosa  de  “doce  ilusão”  há  de  esperar  a  capitulação  de  Cuba  nessa  questão  de  vital  importância.  A  revolução  cubana  demonstrou  sua  solidariedade,  da  forma  mais  tangível,  com  a  causa  da  emancipação   humana  em  muitas  ocasiões.  Mas  solidariedade  é   uma  rua  de  duas  mãos.  A 

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solidariedade  internacional  tem  condições  de  dar  uma  contribuição  significativa  para  os  próximos quarenta e cinco anos da revolução cubana. 

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O SISTEMA POLÍTICO EM CUBA: UMA DEMOCRACIA AUTÊNTICA   Cuba  constitui  um  sistema  de  poder  popular  único,  autóctone,  que  não  é  cópia  de  nenhum  outro.    “O governo do povo, pelo povo e para o povo”  (Abraham Lincoln)  21

Por: Anita Leocadia Prestes.     Ao  estudar  o  sistema  político  vigente  em  Cuba,  é necessário  lembrar  que  seus  antecedentes  remontam  ao  ano  de  1869,  quando  o  povo  da  pequena ilha caribenha lutava de armas na mão  pela  independência  do  jugo  colonial  espanhol.  Seus  representantes  se  reuniram  na  parte  do  território  já  liberado  e  constituíram  a  Assembléia  Legislativa,  que  aprovou  a  primeira  Constituição  da  República  de  Cuba  em  armas.  Era assim estabelecida a igualdade de todos os  cidadãos  perante  a  lei  e  abolida  a  escravidão  até   então  existente.  Essa  primeira  Assembléia  Constituinte  elegeu  o  Parlamento cubano daquela época e também, de forma democrática, seu  Presidente,  assim  como  o  Presidente  da  República  de  Cuba  em  armas,  designando  ainda  o  Chefe do Exército que levaria adiante a luta pela independência.  Cuba  socialista  reconheceu  a  importância  de  tal  herança  e,  inspirada  também  nos  ensinamentos do grande pensador e  líder revolucionário José Martí, chegou a  criar um sistema  político  que  constitui  um  Sistema  de  Poder  Popular  único,  autóctone,  que  não  é  cópia  de  nenhum  outro.  Em  Cuba  não  existem  os  chamados  três  poderes  (executivo,  legislativo  e  judiciário),  característicos  do  sistema  político  burguês.  Há  um  só  poder  –  o  poder  popular.  Como  o  povo  exerce  o  poder?  Segundo  a  Constituição,  o  povo  o  exerce  quando  aprova  a  Constituição  e  elege  seus  representantes  e, em outros momentos, mediante as Assembléias do 

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 Originalmente publicado em brasildefato.com.br. Novembro de 2013.     Anita  Leocadia  Prestes  é  professora  do  Programa  de  Pós­graduação  em  História  Comparada  da  UFRJ  e  presidente  do  Instituto   Luiz  Carlos  Prestes.  Sua  história  ficou  conhecida  no   filme  “Olga”  (2004),  de  Jayme  Monjardin. Filha  de  Olga Benário Prestes e do revolucionário brasileiro Luiz Carlos Prestes, Anita nasceu no em   Berlim, em um cárcere nazista, em 1936.    21

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Poder  Popular  e  outros  órgãos  que  são  eleitos  por  estas  Assembléias,  como  é  o  caso  do  Conselho  de  Estado,  órgão  da  Assembléia  Nacional.  Portanto,  o  poder  popular  é  único  e  exercido através das Assembléias do Poder Popular.  Outro  elemento  importante  do  sistema  político  cubano  é a  existência,  de  acordo  com  a  Constituição,  de  um único partido – o Partido  Comunista. Não  se trata de um partido eleitoral,  e  por  isso  não  participa  do  processo  eleitoral,  designando  ou  propondo  candidatos  ou  realizando  campanha  a  favor  de  determinados  candidatos.  Seguindo   o   caminho  apontado  por  José  Martí,  fundador  do  Partido  Revolucionário  Cubano  ­  partido  único  como  única  via  para  conquistar  a  unidade  de   todo  o  povo  na  luta  pela  independência  e  a  soberania  do  país,  e  também  na  luta  por  justiça  social  ­,  o  Partido  Comunista  de  Cuba  se  diferencia  do  conceito  clássico  de  partidos  políticos;  além  de  não  ser  um  partido  eleitoral,  é  o  partido  dirigente  da  sociedade,  cujas  funções  e  cujo  papel  são  reconhecidos  pela  imensa  maioria  do  povo.  A  definição  do  seu  papel  está inscrita na Constituição, aprovada em referendo público, mediante  voto livre, direto e secreto de 97,7% da população.  É  importante  ressaltar que  o  PC é constituído pelos cidadãos mais avançados do país, o que se  garante  mediante  um  processo  de  consulta  das  massas.  São  os  trabalhadores  que  não  pertencem  ao  PC  que  propõem,  em  assembléias,  as  pessoas  que  devem  ser  aceitas  em  suas  fileiras.  Depois  que  o  Partido  toma  decisão  sobre  as  propostas  dos  trabalhadores,  se  reúne  novamente  com  eles  para  informá­los.  Quando  toma  decisões  em  seus  congressos,  o  PC  as  discutiu  antes  com  a  população.  O  Partido  não  dá  ordens  à  Assembléia  Nacional  do  Poder  Popular  nem  ao  Governo.  O  PC,  após  consultar   o   povo,   sugere e propõe aos órgãos do Poder  Popular e ao Governo as questões que somente a essas instituições cabe o papel de decisão.  O  Parlamento  cubano  se  apóia  em  cinco  pilares  de  uma  democracia  genuína  e  verdadeira,  a  saber:  ●

O povo propõe e nomeia livre e democraticamente os seus candidatos. 



Os candidatos são eleitos mediante voto direto, secreto e majoritário dos eleitores. 



O mandato dos eleitos pode ser revogado pelo povo a qualquer momento. 



O povo controla sistematicamente os eleitos. 

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O povo participa com eles da tomada das decisões mais importantes. 

O  sistema do Poder Popular em Cuba é constituído pela Assembléia Nacional, as Assembléias  Provinciais,  as  Assembléias  Municipais,  o  Conselho  Popular  e   a  Circunscrição  Eleitoral, que  é  o  degrau  básico   de  todo  o  sistema.  Nenhum  desses  órgãos  está  subordinado  a  outro,  mas  todos  funcionam  de  forma  que   suas  funções  e  atividades  sejam  complementares,  tendo  em  vista alcançar o objetivo de que o povo possa exercer o governo de maneira prática e efetiva.  O  sistema  do  Poder  Popular  se  apresenta  atualmente  em  Cuba  da  seguinte  maneira:  no  nível  nacional,  a  Assembléia  Nacional  do  Poder  Popular;  em  cada  uma  das  14  províncias,  as  Assembléias  Provinciais  do  Poder  Popular  e nos 169 municípios, as Assembléias Municipais;  no  nível  de  comunidade,  os   Conselhos  Populares  (1540);  cada  Conselho  agrupa  várias  circunscrições   eleitorais  e  é  integrado  pelos  seus  delegados,  dirigentes  de  organizações  de  massas  e  representantes  de  entidades  administrativas. No nível de base, ainda que sem formar  parte  de  maneira  orgânica  da  estrutura  do  sistema do Poder Popular, nem do Estado, tem­se a  circunscrição  eleitoral.  A  circunscrição  eleitoral  e  o  seu  delegado  são  a  peça­chave,  a  peça  fundamental  do  sistema.  A   circunscrição  se  organiza  para efeito das  eleições, mas o delegado  continua  funcionando  na  área  por  ela  abarcada  e,  por  isso,  a  mesma  continua  sendo  sempre  denominada de circunscrição.  Participam  das  eleições  todos  os  cidadãos  cubanos  a  partir  dos  16 anos de idade, que estejam  em  pleno  gozo  dos  seus  direitos  políticos  e  não  se  incluam  nas  exceções  previstas  na  Constituição  e  nas  leis  do  país.  Os   membros  das Forças Armadas têm direito a voto, a eleger  e  a  ser  eleitos.  A  Constituição  estabelece  que  cada  eleitor  tem  direito  a  um  só  voto. O voto é  livre,  igual  e  secreto.  É  um  direito constitucional e um dever cívico, que se exerce de maneira  voluntária, e quem não o fizer não pode ser punido.  Diferentemente   dos  sistemas  eleitorais  das  democracias  representativas  burguesas, em que os  candidatos  aos  cargos   eletivos  são  escolhidos  e  apresentados  pelos  partidos  políticos,  em  Cuba  o  direito  de  escolher e apresentar os candidatos a Delegados às Assembléias Municipais  do  Poder  Popular  é  exclusivamente  dos  eleitores.  Esse  direito  é  exercido  nas  assembléias  gerais  dos  eleitores  das  áreas  de  uma  circunscrição  eleitoral  da  qual  eles  sejam  eleitores.  A  circunscrição  eleitoral  é  uma  divisão  territorial  do  Município e constitui a célula fundamental 

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do  Sistema  do  Poder  Popular.  O  número  de  circunscrições  eleitorais  em  cada  Município  é  determinado  a  partir  do número de seus habitantes de maneira que o número de delegados das  circunscrições à Assembléia Municipal nunca seja inferior a trinta.  O  registro  eleitoral  em  Cuba  é   automático,  público  e  gratuito;  todo  cidadão,  ao  atingir os 16  anos  de  idade  e  estando  em  pleno  gozo  dos  seus  direitos  políticos,  é  registrado  como  eleitor.  Segundo  a  lei,  no  país  são  realizados  dois  tipos  de  eleições:  1)  eleições  gerais,  em   que  são  eleitos,  a cada cinco anos, os Deputados à Assembléia Nacional e demais instâncias de âmbito  nacional,  incluindo  o  Conselho  de  Estado,  assim  como  os  Delegados  às  Assembléias  Provinciais  e  Municipais  e  seus  Presidentes  e  Vice­presidentes;  2)  eleições  parciais,  a  cada  dois  anos  e  meio,  em  que  são  eleitos  os  Delegados  às  Assembléias  Municipais  e  seus  Presidentes  e  Vice­presidentes.  Deve­se  assinalar  que  tanto  os  Deputados  à  Assembléia  Nacional  quanto  os  Delegados  às  Assembléias  Provinciais  e  Municipais  são  eleitos  diretamente pela população.  As  eleições  são  convocadas  pelo  Conselho  de  Estado,  órgão  da  Assembléia  Nacional  que  a  representa  entre  os  períodos  de suas sessões, executa suas decisões e  cumpre  as funções que a  Constituição  lhe  atribui.  Para  organizar  e  dirigir  os  processos  eleitorais,  são  designadas  Comissões  Eleitorais  Nacional,  Provinciais,  Municipais,  de  Distritos,  de  Circunscrição  e,  em  casos  necessários,   Especiais.  A  Comissão  Eleitoral  Nacional  é  designada  pelo  Conselho   de  Estado,  as  Comissões  Provinciais  e  Especiais  são  designadas  pela  Comissão  Eleitoral  Nacional,  as  Comissões  Eleitorais  Municipais  pelas  Comissões  Eleitorais Provinciais e assim  por  diante.  Todos  os  gastos  com  as  eleições  são  assumidos  pelo  Orçamento  do  Estado;  portanto os candidatos nada gastam durante todo o processo eleitoral.  Para  elaborar  e  apresentar  os  projetos  de  candidaturas  de   Delegados  às  Assembléias  Provinciais  e  de  Deputados  à  Assembléia  Nacional e para preencher os cargos que são eleitos  por  elas  e  as  Assembléias   Municipais,   são  criadas  as  Comissões  de  Candidaturas  Nacional,  Provinciais  e  Municipais  integradas  por  representantes  das  organizações   de  massas  e  de  estudantes  e  presididas  por  um  representante  da  Central  de  Trabalhadores  de  Cuba,  assegurando  desta  maneira  a  direção  dos  trabalhadores  em  todo  o  processo  eleitoral.  A  propaganda  eleitoral  é  feita  exclusivamente  pelas  Comissões  Eleitorais,  garantidas  a todos os  candidatos condições de igualdade; nenhum candidato pode fazer campanha para si próprio. 

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Para  ser  proposto  como  candidato  a  Deputado  à Assembléia  Nacional,  é necessário  ter  sido  apresentado  como  pré­candidato  por  uma  das  organizações  de  massas  do  país,  que  a  Comissão  Nacional  de  Candidaturas  submeta  essa  proposta  à  consideração da Assembléia do  Poder  Popular  do  município  correspondente,  e  que  esta,  pelo  voto  de  mais  da  metade  dos  Delegados  presentes,  aprove  a  sua  designação  como  candidato  por  esse  território.  Será  considerado  eleito  Deputado  à  Assembléia  Nacional  o  candidato  que,  tendo  sido apresentado  pela  respectiva   Assembléia  Municipal,  tenha  obtido  mais  da  metade  dos  votos  válidos  emitidos  no  Município  ou  Distrito  Eleitoral,  segundo  o  caso   de  que  se  trate. As eleições para  os demais níveis do Poder Popular seguirão a mesma sistemática.  Em  Cuba,  os  Deputados  à Assembléia  Nacional  e  os  Delegados  às  demais  Assembléias  não  recebem  nenhum  tipo  de  remuneração  pelo  exercício   do   mandato  popular;  continuam  exercendo  suas  profissões  em  seus  locais de trabalho e recebendo o salário correspondente. A  Assembléia  Nacional  se  reúne  duas  vezes  ao  ano,  as  Provinciais  Municipais  com  maior   frequência.   Os  Deputados  e  Delegados  exercem  seus  mandatos  junto  aos  seus  eleitores,  prestando­lhes  contas  periodicamente  e  podendo,  de  acordo  com  a  Lei,  serem  por  eles  removidos  a  qualquer  momento,  desde  que,  em  sua  maioria,  considerem  que  seus  representantes não estão correspondendo aos compromissos assumidos perante o povo.  Sem  espaço  para   um  exame  mais  detalhado  do  Sistema  Político  de  Cuba,  é esclarecedor,  entretanto,  abordar  o  processo  de  eleição  do  Presidente  do  país,  que  é o  Presidente  do  Conselho  de  Estado  e  do  Conselho  de  Ministros.  Para   ser  eleito  Presidente,  é  necessário  ser  Deputado  e,  por  isso,  deve  ter  sido  eleito  por  voto  direto  e  secreto  da  população,  da  mesma  forma  que todos os 609 Deputados da Assembléia Nacional. No caso específico, por exemplo,  do  Presidente  Fidel  Castro,  ele  foi  designado  candidato  pela  Assembléia  Municipal  de  Santiago  de  Cuba  e  eleito   pelos  eleitores  de  uma  circunscrição  do  município  e,  além  disso,  eleito  pela  maioria,  pois  a  Lei  eleitoral  estabelece  que  nenhum  Deputado  pode  ser eleito sem  obter  mais  de  50%  dos  votos  válidos.  Posteriormente,   sua  candidatura  a  Presidente  do  Conselho  de  Estado  foi  votada   pelos  Deputados,  devendo  alcançar  mais  de  50%  dos  votos  para ser considerado eleito. 

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A  abordagem  realizada  do  Sistema  Político  de  Cuba,  ainda  que sucinta, evidencia seu caráter  popular  e  democrático,  que é, entretanto, permanentemente distorcido e falsificado pela mídia  a serviço dos interesses do grande capital internacionalizado. 

 

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CUBA  É  O  MELHOR  PAÍS DA AMÉRICA LATINA PARA SER MÃE, DIZ ESTUDO 22

 

No  topo  da  lista,  elaborada  entre  176  países,  está  a  Finlândia,  enquanto  a  República  Democrática  do  Congo  está  em  último.  Cuba  é  o  melhor  país  da  América   Latina  para   a   maternidade  e  o  33º  do  mundo,  segundo  um  índice  da  organização  britânica ​ Save  the  Children​ .  No  topo  está  a  Finlândia  e  a  República  Democrática  do  Congo  em  último. Os  Estados Unidos estão em 30º lugar e o Brasil em 78º. 

Cubanas  comemoram  1º de maio em Havana. País caribenho está à frente de Argentina, Costa  Rica e México em índice sobre maternidade.

A  ONG,  cuja  sede  fica  em Londres, leva em conta fatores como bem­estar, saúde, educação e  situação  econômica  das  mães,  assim  como  a  taxa  de  mortalidade  infantil  e  materna,  para  definir a tabela.

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 Originalmente publicado em: operamundi.uol.com.br. 8/5/2013. 

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Levando  em  conta  somente  a  América  Latina  e  Caribe,  Cuba  está  à frente da Argentina (36),  Costa  Rica  (41),  México  (49)  e  Chile  (51).  O  Haiti  está  no  164º  lugar.  Também   em  postos  relativamente  baixos  estão  Honduras  (111),  Paraguai  (114)  e  Guatemala  (128).  A  Venezuela  está em 66º. "Apesar  de  a  América  Latina  ter  conseguido  enormes  avanços,  podemos  fazer  mais  para  salvar  e  melhorar  a  vida  de  milhões  de  mães  e  bebês  recém­nascidos  que  se  encontram  na  maior  situação  de  pobreza",  afirmou  o  diretor  da  Save   the  Children  para  a  América  Latina,  Beat  Rohr.  Ele  disse  que  os  maiores  avanços  foram  registrados  no  Brasil,  Peru,  México  e  Nicarágua. O  Índice  de  Risco  do  Dia  do  Parto,  elaborado  pela  primeira  vez,  revela que 18 % de todas as  mortes  de  crianças  menores  de  5  anos  na  América  Latina  ocorrem  durante  o  dia  de  nascimento.  As  principais  causas   são  nascimentos  prematuros,  infecções  graves  e  complicações durante o parto. Contudo,  a mortalidade neonatal na região diminuiu 58 % nas últimas duas décadas, apesar de  ainda  existir  uma  grande  diferença  na atenção dada às pessoas ricas e às com menos recursos,  ressalta  o  estudo.  A  Save  the  Children  estima  que,  a  nível  mundial,  mais  de  um  milhão  de  recém­nascidos poderiam ser salvos todos os anos caso o acesso à saúde fosse universal. "Quando  as   mulheres  têm  educação,  representação  política  e  uma  atenção  materna  e  infantil  de  qualidade,  elas  e  seus  bebês  têm  muito  mais  probabilidades  de  sobreviver  e  prosperar,  assim como a sociedade na qual vivem", sublinhou Rohr. 

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CUBA  OU  A  GLOBALIZAÇÃO  DA  SOLIDARIEDADE:  O INTERNACIONALISMO  23

HUMANITÁRIO     24

Por: Salim Lamrani.  

Desde  1963,  com  o  envio  da  primeira  missão  médica  humanitária  à  Argélia,   Cuba  se  comprometeu  a  cuidar  das  populações  pobres  do  planeta  em  nome  da  solidariedade  internacionalista.  As   missões  humanitárias  cubanas  se  estendem  por  quatro  continentes  e  apresentam  um  caráter  único.  Com  efeito,  nenhuma  outra  nação  do  mundo,  nem  sequer  as  mais  desenvolvidas,  teceu  semelhante  rede  de  cooperação  humanitária  no  planeta.  Desde seu  lançamento,  cerca  de  132.000  médicos  cubanos,  além  do  pessoal  sanitário,  atuaram  voluntariamente  em   102   países.   No  total,  os  médicos  cubanos  atenderam  cerca  de  100  milhões  de  pessoas  no  mundo  e  salvaram  um  milhão  de  vidas.  Atualmente,  37.000  médicos  colaboradores oferecem seus serviços em 70 nações do Terceiro Mundo. A  ajuda  internacional  cubana  se  estende  a  dez  países  da  América  Latina  e  às  regiões  subdesenvolvidas  do  planeta.  Em outubro de 1998, o furadão Mitch havia assolado a América  Central  e  o  Caribe.  Os  chefes  de  Estado  da  região  lançaram  um  chamado  à  solidariedade  internacional.   ​ Segundo  o  PNUD​ , Cuba foi a primeira a responder positivamente, cancelando a  dívida da Nicarágua de 50 milhões de dólares e propondo os serviços de seu pessoal sanitário. Foi  elaborado,  então,  o  Programa  Integral  de  Saúde,  sendo  ampliado  a  outros  continentes,  como  África  e   Ásia. Nas regiões onde foi aplicado, O PNUD aponta uma melhora de todos  os  indicadores de saúde, particularmente uma diminuição notável da taxa de mortalidade infantil.

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 Originalmente publicado em: operamundi.uol.com.br. 5/6/2013.     Salim  Lamrani  é  doutor  em  Estudos  Ibéricos  e  Latino­americanos  da  Universidade  Paris  Sorbonne­Paris IV,  professor   titular  da  Universidade  de  la  Reunión  e  jornalista,  especialista  nas  relações  entre  Cuba  e  Estados  Unidos.  Seu  último livro é intitulado “​ The economic war  against Cuba. A historical and legal perspective  on the  U.S.  Blockade​ ”  (“A  guerra  econômica  contra  Cuba.  Uma  perspectiva   histórica  e  legal  sobre  o  bloqueio  norte­americano”),  Nova  York, Monthly  Review  Press, 2013, com um prólogo de Wayne S. Smith e prefácio de  Paul Estrade.  24

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A ALBA   O  primeiro  país  que  se  beneficiou  do  capital  humano  foi,  logicamente,  a Venezuela, graças à  eleição  de  Hugo  Chávez  em  1998  e  à  relação  especial  estabelecida  com  Cuba.  A  universalização   do   acesso  à  educação,  implementada   em  1998,  teve  resultados  excepcionais.  Cerca  de  1,5  milhão  de  venezuelanos  aprenderam  a  ler  e  a  escrever  graças  à  campanha  de  alfabetização  chamada  Misión  Robinson  I.  Em  dezembro  de  2005,  a  Unesco  decretou  que  o  analfabetismo  havia  sido  erradicado  da  Venezuela.  A  Misión  Robinson  II  foi  lançada  para  levar  a  população  ao  alcance  do  nível  secundário. A isso se somam as  missões Ribas e Sucre,  que permitiram que dezenas de milhares de jovens começassem estudos universitários. Em  2010,  97%  das  crianças  venezuelanas  ​ estavam  escolarizadas​ .   Em  relação  à  saúde,  foi  criado o Sistema Nacional Público, para garantir o acesso gratuito à atenção médica a todos os  venezuelanos.  A  missão  Barrio  Adentro  I  possibilitou  a  realização  de  300  milhões  de  consultas  nos  4.469  centros  médicos  criados   desde  1998.  Cerca  de  17  milhões  de  pessoas  puderam  ser  atendidas, enquanto que, em 1998, menos de 3 milhões de pessoas tinham acesso  regular  à  saúde.  Foram  salvas  mais  de  104.000  vidas.  A  taxa  de  mortalidade  infantil  foi   reduzida  a  ​ menos  de  10  por  mil​ .   Na  classificação  do  Índice  de  Desenvolvimento  Humano  (IDH)  das  Nações   Unidas  para  o  Desenvolvimento  (PNUD),  a Venezuela passou do posto 83  no  ano  2000  (0,656)  ao  posto  73  em  2011  (0,735),  e  entrou  na  categoria  das  nações  com  o  IDH  mais  elevado​ .   Além  disso,  também segundo o PNUD, a Venezuela ostenta o coeficiente  Gini mais baixo da América Latina, e é o país da região onde há menos desigualdade. Luis  Alberto  Matos,  economista  e  especialista  em  energia,  salientou  a  “cooperação  emblemática”  entre  Cuba  e  Venezuela.  “Quem  pode  negar a imensa contribuição dessa nação  à  Venezuela  em  relação  ao  aprimoramento  do  setor  de  ​ saúde,  na agricultura, nos esportes, na  cultura​ ?” Graças  à   ALBA  e  ao  programa  social  lançado  pelo  governo  de  Evo   Morales  entre  2006  e  julho  de  2011,  a  Brigada Médica cubana presente na Bolívia cuidou de mais de  48  milhões de 

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  A  Aliança  Bolivariana  para  as  Américas  (ALBA)   é  uma  alternativa  aos  tratados   comerciais  capitalistas,  desvantajosos  para  os  países  menos  industrializados,  como   a  ALCA  (Área  de  livre  comércio  das  Américas),  capitaneada  pelo  imperialismo  estadunidense.  A  ALBA  é  baseada  na  ideia  da  integração  social,  política  e  econômica  entre  os  países  da  América.   São   países  integrantes  da  ALBA:  Antígua  e  Barbuda,   Estado  Plurinacional  da  Bolívia,  República  de  Cuba,  Comunidade  da  Dominica,  República  do  Equador, República  da  Nicarágua, São Vicente e Granadinas e República Bolivariana da Venezuela.   

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pessoas  e  salvou  49.821  vidas.   A  Bolívia  pôde  melhorar  seus indicadores de saúde com uma  diminuição  da mortalidade  infantil de 58 a cada mil, em 2007, para 51 a cada mil em 2009, ou  seja,  uma  redução  de  14%  ​ em  três  anos​ .   Entre 2006 e 2009, foram criados quase 545 centros  de  saúde  em  todo  o  país.  Quanto  à   educação,  a Unesco declarou que a Bolívia  é um território  livre  de  analfabetismo  em  20  de  dezembro  de  2008,  com  a alfabetização de 824.000 pessoas.  Foram  construídos  cerca  de  1.540  estabelecimentos  escolares.  Quanto  ao   Ensino  Superior,  foram  criadas   três  universidades  indígenas.  A  pobreza  extrema  foi  reduzida  a  6%,  passando  de 37,8% a 31,8%. Na  Nicarágua,  o  programa  Yo,  sí  puedo  permitiu  que  a  Unesco  declarasse  que  o  país  estava  livre  do  analfabetismo  em  2009.  Graças  à  Alba,  a  Nicarágua  também  conseguiu  resolver  sua  grave  crise  energética,  que  às  vezes  provocava  apagões  de  16  horas  diárias.  Foram  construídos  vários  hospitais  equipados  integralmente  em  todo  o  país,  com  acesso  gratuito  à  atenção  médica  para  toda  a  população.  Eles  operam,   em  grande  parte,  graças  à   presença  do  pessoal médico cubano​ . No Equador, a chegada de Rafael Correa ao poder em 2006 também ocasionou uma revolução  social  sem  precedentes.  Dessa  forma,  o  orçamento  de  saúde  aumentou  de  437  milhões  de  dólares  em  2006  para  3.430  milhões  em  2010.  O  orçamento  de  educação  passou  de  235  milhões  em  2006  para  940,7  milhões  em  2010.  A   taxa  de  escolaridade  até  o  nível  universitário  da  quinta  parte  mais  pobre  da  população  passou  de  30%  para  40%  entre 2006 e  2010.  A  cobertura  da  cesta  básica  passou  de  68%  para  89%.  A  pobreza  diminuiu  7%  no  mesmo  período  em  nível  nacional,  e  13%  para  os  afroequatorianos.  Mais  de  70.000  pessoas   dos 5 milhões de indigentes que havia no país em 2006 saíram da pobreza. Assim,  o  IDH  passou  de  0,716  em  2009  para  0,720  em  2011,  e  agora  ocupa  a  posição  83. O  Equador prevê erradicar a desnutrição infantil em 2015 e assim alcançar Cuba, o único país da  América Latina e do Terceiro Mundo livre dessa praga, segundo a Unicef. A Brigada Henry Reeve  Em  19  de  setembro  de  2005,  após  a   tragédia  que  o  furacão  Katrina  provocou  em  Nova  Orleans,  Cuba  criou  a   Brigada  Henry  Reeve,   um  contingente  médico  composto   por  10.000  profissionais  da  saúde  e  especializado  em  catástrofes  naturais.  Naquela  época,  Havana 

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ofereceu  a  Washington  o  envio  de  1.586  médicos  para  atender  as  vítimas,   mas  o  presidente  Bush negou a oferta. A  Brigada  Henry  Reeve  interveio  em  vários  continentes.  Assim,  após  o  terremoto  de  novembro  de  2005, que assolou o Paquistão, 2.564 médicos cubanos viajaram para lá a fim de   atender  as  vítimas   durante  mais  de  oito  meses.  Foram  montados  32  hospitais  de  campanha,  que  logo  foram  doados  às  autoridades  de  saúde do país. Mais de 1,8 milhão de pessoas foram  atendidas  e  2.086  vidas  foram   salvas.  Nenhuma  outra  nação  ofereceu  uma  ajuda  tão  importante,  nem mesmo os Estados Unidos – principal aliado de Islamabad –, que estabeleceu  apenas  dois  hospitais  de  campanha  e  ficou  por  oito  semanas.   O  jornal  britânico The  Independent ressaltou  o  fato  de  que  a  brigada  médica  cubana  foi  a  primeira  a  chegar  ao   Paquistão e a última a deixar o país. Anteriormente,  após  o  tsunami  que  devastou  a  região  do  Pacífico  em  2004,  Cuba  enviou  várias  missões  humanitárias   para  oferecer  atenção  médica  às  vítimas,  muitas  vezes  abandonadas  pelas   autoridades  locais.  Várias  áreas  rurais  em  Kiribati,  Timor  Leste  ou  Sri  Lanka  ainda  dependem  da  ajuda  médica  cubana.   Foi  inaugurada  uma  escola  de  medicina  no  Timor  Leste  para  formar  jovens  estudantes  do  país.  As  Ilhas  Salomão,  assim  como  a  Papua­Nova  Guiné,  acenaram  à  Havana  para  se  beneficiar  de  uma  ajuda  similar  e  firmar  acordos de cooperação. Após  o  terremoto  ocorrido  em  maio  de  2006  em  Java,  na  Indonésia,  Cuba  enviou  várias  missões  médicas.  Ronny  Rockito,  coordenador  regional  para  a  saúde,  elogiou  o  trabalho  dos   135  profissionais  cubanos  que  instalaram  dois  hospitais   de  campanha.  Segundo  ele,  seu  trabalho  teve  um   impacto  mais  importante  do  que  qualquer  outro  país.  “Aprecio  muito  as   brigadas  médicas  cubanas.  Seu  estilo  é  muito  amistoso  e  seu  nível  de  atenção  médica,  muito  elevado.  Tudo  é  gratuito  e  não  há  nenhum  apoio  por  parte  do  meu  governo  para  isso.   Agradecemos  Fidel  Castro.  Muitos  moradores   suplicaram  aos  médicos  cubanos  para  que  ficassem”, enfatizou. O  caso  mais  recente  e  mais  emblemático  da  cooperação  médica  cubana  diz respeito ao Haiti.  O  terremoto  de  janeiro  de  2010,  de  magnitude  7,  causou  dramáticos  danos  ​ humanos  e  materiais​ .   Segundo  as  autoridades  haitianas,  o  balanço  foi  de  230.000  mortos,  300.000 

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feridos  e  1,2  milhão  de  ​ pessoas  sem  teto​ .   A brigada médica cubana, presente desde  1998,  foi  a primeira a auxiliar as vítimas e atendeu cerca de 40% delas. Em  outubro  de  2010,  soldados nepaleses das Nações Unidas introduziram inadvertidamente o  vírus  do  cólera  no  Haiti.  Segundo  a  ONU,  a  equipe  médica  do  doutor  Jorge  Luis  Quiñones  descobriu  a  epidemia.  Cerca  de  6.600  pessoas  perderam  a  vida  e 476.000 foram infectadas, o  que  representa  5%  da  população  de um total de 10 milhões de habitantes. Era a taxa de cólera  mais  elevada  do  mundo,   segundo  as  Nações  Unidas.  O  New  York  Times  ressaltou,  em  uma  reportagem,  o  papel   chave  dos  médicos  cubanos:  “A  missão  médica  cubana,  que  desempenhou  um  papel  importante  na  detenção  da  epidemia,  ainda  está  presente  no  Haiti  e  recebe  a  cada  dia  a  gratidão  dos  doadores  e  dos  diplomatas  por  sua  presença  nas  linhas  de  frente e por seus esforços de reconstrução do carcomido sistema de saúde do país”. Por  sua  vez,  Paul  Farmer,  enviado  especial  das  Nações  Unidas,  salientou  que,  em  dezembro  de  2010, quando a epidemia atingiu seu pico, com uma taxa de mortalidade  sem precedentes e  o  mundo  estava  com  os olhos em outros lugares, “a metade das ONGs haviam ido embora, ao  passo  que  os  cubanos  ainda  estavam  presentes”.  Segundo  o  Ministério  da  Saúde  haitiano,  os  médicos  cubanos  salvaram   mais  de  76.000  pessoas  nas  67  unidades  médicas  sob  sua  responsabilidade,  com  apenas  272  falecimentos,  ou  seja,  0,36%,  contra  uma  taxa  de 1,4% no  resto  do  país.  Desde  dezembro  de  2010,  não  faleceu  nenhum  paciente  tratado  pelos  médicos  cubanos. Nações Unidas saúdam uma política solidária  Segundo  o  PNUD,  a  ajuda  humanitária  cubana  representa,  proporcionalmente  ao  PIB,  uma  porcentagem  superior  à  média  das  18  nações  mais  desenvolvidas.  Ressalta,  em  um  informe,  que: “A  cooperação  oferecida  por  Cuba  se  inscreve  em  um  contexto  de  cooperação  Sul­Sul.  Não  persegue  um  objetivo  de  lucrar,  mas,  ao  contrário,  se  oferece  como  a  expressão  de  um  princípio  de  solidariedade  e,  na  medida  do  possível,  a  partir  de  custos  compartilhados.  No  entanto,  durante  anos,  Cuba  proporcionou  ajuda  de  qualidade  com  doações  aos  países  mais  pobres,  e  se  mostrou  muito  flexível  quanto  à  forma  ou  à  estrutura  da  colaboração  […].  Em  quase  a  totalidade  dos  casos,   a  ajuda  cubana  foi  gratuita,  ainda  que,  a  partir  de  1977,  com 

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alguns  países  de  alta  renda,  principalmente  os  petroleiros,  se  desenvolveu   uma  cooperação  sob  uma  forma  de  compensação.  O  desenvolvimento  elevado que Cuba alcançou nos campos  da  saúde,  educação e esporte fizeram com que a cooperação contemplasse esses setores, ainda  que  tenha  havido  uma participação em outras áreas, como, por exemplo,  a ​ construção, a pesca  e a agricultura​ ”. O  internacionalismo  humanitário   elaborado  por  Cuba  demonstra  que a solidariedade pode ser  um  vetor  fundamental  nas  relações  internacionais.  Assim,  uma  pequena   nação  do  Terceiro  Mundo  com  recursos  limitados  e  vítima  de  um  estado  de  sítio  sem  precedentes  por  parte dos  Estados  Unidos  consegue  reunir  os  recursos  necessários  para  ajudar  os mais pobres e oferece  ao  mundo  um  exemplo,  como  diria  o  herói  nacional  cubano  José  Martí,  que  Pátria  pode  ser   Humanidade. 

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SISTEMA DE SAÚDE CUBANO É ELOGIADO POR MÉDICOS DOS EUA   Um modelo diferente: a atenção médica em Cuba.    Por: Edward W. Campion e Stephen Morrissey.

Para  um  visitante  dos  Estados  Unidos,  Cuba  desorienta.  Automóveis  norte­americanos  estão  em  todo  lugar,  mas  todos  datam  dos  anos  50.  Nossos  cartões   bancários,  cartões  de  crédito  e  telefones  inteligentes   não  funcionam.  O  acesso  à  internet  é  praticamente  inexistente.  E  o  sistema de saúde também parece irreal. Há médicos demais. Todo  mundo  tem  um  médico  da  família.  Tudo  é  de  graça,  totalmente  de  graça  —  e  não  precisa  de  aprovação  prévia ou de algum tipo de pagamento. Todo o sistema parece de cabeça   para  baixo.  É  tudo  muito  organizado  e  a  prioridade  absoluta  é  a  prevenção.  Embora  Cuba  tenha  recursos  econômicos  limitados,  seu  sistema  de  saúde  resolveu  alguns  problemas  que   o   nosso [dos Estados Unidos] ainda nem enfrentou. Médicos  de  família,   junto  com  enfermeiras  e  outros  profissionais  de  saúde,  são  os  responsáveis  por  dar   atendimento primário e serviços preventivos para seu grupo de pacientes  — cerca de mil pacientes por médico em áreas urbanas. Todo  o  cuidado  é  organizado  no  plano  local  e  os  pacientes  e  seus  profissionais  de  saúde  geralmente  vivem na mesma  comunidade. Os dados médicos em fichas de papel são simples e  escritos  à  mão,  parecidos  com  os  que  eram  usados  nos  Estados  Unidos  50  anos  atrás.  Mas  o  sistema é surpreendentemente rico em informação e focado na saúde da população. Todos  os  pacientes  são  categorizados  de  acordo  com  o  nível  de  risco  de   saúde,  de  I  a  IV.  Fumantes,  por  exemplo,  estão   na  categoria  de  risco  II,  e  pacientes  com  doença  pulmonar  crônica, mas estável, ficam na categoria III.

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  Originalmente  publicado   em:   susbrasil.net.  1/4/2013.  The   New  England  Journal  of  Medicine,  January   24,  2013. 

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As  clínicas  comunitárias  informam  regularmente  ao  distrito  sobre  quantos  pacientes  tem  em  cada  categoria  de  risco  e  sobre  o  número  de pacientes com doenças como a hipertensão (bem  controlada  ou  não),  diabetes,  asma,  assim  como  sobre  o  status  de  imunização, data do último  teste de Papanicolau e casos de gravidez/cuidado pré­natal. Todo  paciente  é  visitado  em  casa  uma  vez  por  ano  e  aqueles  com  doenças  crônicas  recebem  visitas  mais  frequentes.  Quando  necessário,  os  pacientes  podem  ser  direcionados  a  policlínicas  distritais  para  avaliação  de  especialistas,  mas  eles   retornam  para  as  equipes  comunitárias  para  acompanhamento.  Por  exemplo,  a  equipe  local  é  responsável  por  garantir  que  o  paciente  com  tuberculose  siga  as  recomendações  sobre  o  regime  antimicrobial  e  que  faça os exames. Visitas  em  casa  e  conversas  com  familiares  são  táticas  comuns  para  fazer  com  que  os  pacientes  sigam  as  recomendações  médicas,  não  abandonem  o  tratamento  e  mesmo  para  evitar  gravidez   indesejada.  Numa  tentativa  de  evitar  infecções  como  a  dengue,  a  equipe  de  saúde  local  visita  as   casas  para  fazer  inspeções  e  ensinar  as  pessoas  sobre  como  se  livrar  da  água parada. Este  sistema  altamente estruturado, orientado para a prevenção,  produziu resultados positivos.  As taxas de vacinação de Cuba estão entre as mais altas do mundo. A  expectativa  de   vida  de  78  anos  de  idade  é  virtualmente  idêntica  à  dos  Estados  Unidos.  A  taxa  de  mortalidade  infantil  em  Cuba  caiu  de 80 por mil nos anos 50 para menos de 5 por mil  —  menor  que  nos  Estados  Unidos,  embora  a  taxa  de  mortalidade  materna  esteja  bem  acima  daquela dos países desenvolvidos e na média para os países do Caribe. Sem  dúvida,  os  resultados  são  consequência  de  melhorias  em  nutrição  e  educação,  determinantes  sociais  básicos  para  a saúde pública. A taxa de alfabetização de Cuba é de 99%  e  o  ensino  sobre  saúde  é  parte  do  currículo  obrigatório  das  escolas.  Um  recente  programa  nacional  para  promover  a  aceitação  de  homens  que   fazem  sexo  com  homens  foi  desenhado  para  reduzir  as  taxas  de  doenças  sexualmente  transmissíveis  e  aumentar  a  aceitação  e adesão  aos tratamentos. Os  cigarros  já  não  são  oferecidos  na  cesta  básica  mensal  e  o  número  de  fumantes  decresceu,  embora  as  equipes  médicas  locais  digam  que  continua  difícil  convencer  fumantes  a  deixar  o 

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vício.  Os  contraceptivos  são  gratuitos  e  fortemente  encorajados.  O  aborto  é  legal,  mas  considerado um fracasso do trabalho de prevenção. Não  se  deve  romantizar  o  sistema  de  saúde  cubano.  O  sistema  não  é  desenhado  para escolha  do  consumidor  ou  iniciativas  individuais.  Não  existe  sistema  de  saúde  privado  pago  como  alternativa.   Os  médicos  recebem  benefícios  do  governo  como  moradia  e  alimentação,  mas  o  salário  é  de  apenas  20  dólares  por  mês.  A  educação  é  gratuita  e  eles  são  respeitados,  mas  é  improvável que obtenham riqueza pessoal. Cuba  é  um  país  em  que  80%  dos  cidadãos  trabalham  para  o  governo  e  o  governo  é  quem  gerencia  orçamentos.  Nas  clínicas  de  saúde  comunitárias,  placas  informam  aos  pacientes  quanto o sistema custa ao Estado, mas não há forças de mercado para promover eficiência. Os  recursos  são  limitados,  como  descobrimos  ao   ter  contato  com  médicos  e  profissionais  de  saúde  cubanos  como  parte  de  um  grupo  de  editores­visitantes  dos  Estados  Unidos.  Um  nefrologista  de  Cienfuegos,  a   240   quilômetros  de  Havana,  tem  uma  lista  de  77  pacientes  em  diálise  na  província,  o  que  em  termos  de  população  dá  40%  da  taxa   dos  Estados   Unidos  —  similar ao que era nos Estados Unidos em 1985. Um  neurologista  nos  informou  que  seu  hospital  só  recebeu  um  CT  scanner  doze  anos  atrás.  Estudantes  norte­americanos  de  universidades  médicas  cubanas  dizem   que  o  trabalho  nas  salas  de  cirurgia  é  rápido  e  eficiente,  mas  com  pouca  tecnologia.  Acesso  à  informação  via  internet é mínimo. Um estudante informou que tem 30 minutos por semana de acesso discado. Esta  limitação,  como  muitas  outras  dificuldades  de  recursos  que  afetam  o  progresso,  é  atribuída  ao  embargo  econômico  dos  Estados  Unidos  [imposto  em  1960],  mas  podem  existir  outras  forças  no  governo  central  trabalhando  contra  a  comunicação  fácil  e  rápida  entre  cubanos e os Estados Unidos. Como  resultado  do  estrito  embargo  econômico,  Cuba  desenvolveu  sua  própria  indústria  farmacêutica  e agora fabrica a maior parte das drogas de sua farmacopeia  básica,  mas também  alimenta  uma  indústria  de  exportação.  Recursos  foram  investidos  no  desenvolvimento  de  expertise  em  biotecnologia,  em  busca  de  tornar  Cuba  competitiva  no  setor  com  os  países  avançados.

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Existem jornais médicos acadêmicos em todas as especialidades e a liderança médica encoraja  fortemente  a  pesquisa,   a  publicação  e  o  fortalecimento  de  relações  com  outros  países  latino­americanos.  As  universidades  médicas  de  Cuba,  agora  22,  continuam  focadas  em  atendimento  primário,  com  medicina  familiar  exigida  como  primeira  residência  de  todos  os  formandos,  embora  Cuba  já  tenha  hoje  o  dobro  dos  médicos  per  capita  que  os  Estados  Unidos. Muitos  dos  médicos  cubanos  trabalham fora do país, como voluntários num programa de dois  anos  ou  mais,  pelo  qual  recebem  compensação  especial.  Em  2008,  havia 37 mil profissionais   de  saúde  cubanos  trabalhando  em  70  paises  do  mundo.  A maioria trabalha em áreas carentes,  como  parte  da  ajuda  externa  de  Cuba,  mas  alguns  estão  em  áreas  mais  desenvolvidas  e  seu  trabalho  traz  benefício  financeiro  para  o  governo  cubano  (por exemplo, subsídios de petróleo  da Venezuela). Todo  visitante  pode  ver   que  Cuba  continua  distante  de  ser  um  país  desenvolvido  em  infraestrutura  básica,  como  estradas,  moradias  e  saneamento.   Ainda  assim,  os  cubanos  começam  a  enfrentar  os  mesmos  problemas  de  saúde  de  países  desenvolvidos,  com  taxas  crescentes  de  doenças  coronárias,  obesidade  e  uma  população  que  envelhece  (11,7%  dos  cubanos tem 65 anos de idade ou mais). O  seu  incomum  sistema  de  saúde  enfrenta  estes  problemas  com  estratégias  que evoluíram da  peculiar  história   política   e  econômica  de  Cuba,  um  sistema  que  —  com  médicos  para  todos,  foco  em  prevenção  e  atenção  à  saúde  comunitária  —  pode  informar  progresso  também  para  outros países. 

 

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OS RUMOS DE CUBA SEGUNDO OS CUBANOS   Estudantes,  agricultores,  artistas.  Cubanos  falam  de  suas  perspectivas  em  relação  ao  processo de abertura econômica sob o marco do socialismo.  Por: Eduardo Sales de Lima,   Enviado do jornal Brasil de Fato à Havana, Matanzas, Playa Girón e Varadero (Cuba). 

  Havana se destaca pelo estilo Art Déco  Os  cubanos  vivem  as  maiores  mudanças  no  país  desde  a  vitória  da revolução comandada por  Fidel  Castro  em  1959.  Todo  o  processo  de  abertura  econômica  está  funcionando  como  uma  prova à certeza socialista do povo cubano e à capacidade de controle do governo.  Em  abril  de  2011,  para  reverter  o  processo  de  estagnação econômica da ilha, os dirigentes do  Partido  Comunista  Cubano  (PCC),  o  único  do  país,  realizaram  o  VI  Congresso,  com  o  objetivo  de  “atualizar”  o  modelo.  Por  sinal,  boa  parte  das  decisões  tomadas  levaram  em  consideração a opinião da população por meio dos conselhos.  Além  do  embargo  econômico  estadunidense,  que  permaneceu  na  gestão  de  Barack  Obama,  Cuba  ainda sente os efeitos da crise econômica  mundial. Para vencer a estagnação econômica  e  diminuir  o  caráter  paternalista  do  Estado,  o  governo  cubano  vem  enxugando  a  burocracia 

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 Originalmente publicado em: brasildefato.com.br. 27/05/2013. 

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estatal  (demitindo  de  forma  paulatina  funcionários)  e  emitindo  milhares  de   licenças  para  ampliar  o  trabalho  privado  e  cooperativista,  como  pequenos  negócios  como  salões   de  cabeleleiros, restaurantes e serviços de táxi. 

  O ministro do Turismo de Cuba, Manuel Marrero  “O  turismo  não­estatal  já  está  presente  nos  restaurantes  privados”,  lembra  o  ministro  do  Turismo  de  Cuba,  Manuel  Marrero,  destacando  um  dos  setores  que  tende  a  ganhar  mais  impulso com as mudanças econômicas.  O  embaixador  brasileiro   em  Cuba,  José  Felício  Martín,  está  no  país  há  dois  anos  e  meio  e  afirma  testemunhar  uma  pujança  econômica  na  Ilha,   com  a  abertura  de  muitos  pequenos  negócios.  Como  exemplo,  ele  cita  que  antes  do  processo  de  atualização  do  modelo,  todo  o  material  de  construção  era controlado pelo governo. Isso porque, agora, a propriedade  privada urbana está  liberada para ser comercializada, enquanto que a rural ainda não.  Em  relação  ao   abastecimento  de  produtos  nos  supermercados,  as  mudanças  também  são  sensíveis.  “Antes,  apenas  determinados  produtos ocupavam prateleiras inteiras. Hoje,  pode­se  notar uma diversidade de produtos, vindos sobretudo do Brasil, México e Espanha”, reforça.  Turistas A  convite  do  Ministério  do  Turismo  de  Cuba,  a   reportagem  do  ​ Brasil de Fato ​ visitou quatro  cidades cubanas: Havana, Varadero, Matanzas e Playa Girón. 

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Repleta  de  construções   ao  estilo  ​ art  decó  ​ do início do século, as ruas em Havana se destacam  pela  limpeza.  À  noite,  embora  sejam  mal­iluminadas,  as  famílias  sentam­se   nas  calçadas,  e  violões  remetem  ao  modo  de  vida  das  pequenas  cidades  do  interior  do  Brasil.  Os  cubanos  gostam de falar, com orgulho, do baixíssimo índice de criminalidade vigente no país. 

 

   ​ Manuel, primeiro à esquerda, viveu dois anos na capital paulista   

  

Caminhando  pelo  centro  histórico  da  capital  cubana,  conhecido  como  Havana  Velha,  em  pleno calor de 35º graus de uma segunda­feira de maio, Manuel e Joandry, que trabalham com  charretes, chamam a atenção.  Manuel,  quando  nota  a  presença  de  brasileiros,  não  se  faz  de  rogado  e  passa  a  cantar  “​ Manuel​ ”,  do  cantor  Ed  Motta.  Ele  viveu  dois  anos  em  São  Paulo  (SP),  no  início  dos  anos  2000.  “O  Brasil  é  um  país  capitalista,  irmão!  Tem  gente  com  muito  dinheiro  e  outros  com  pouco.  Lá  há  muitas  drogas.  Aqui  existe  muito  controle,  as  leis  são  muito  mais  pesadas”,  afirma.  Cuba  tem  salários  relativamente  baixos,  porém,  as  garantias  e  subsídios  que  o  Estado  dá  aos  cidadãos  colocam  o  debate  em  outro  patamar.  Manuel  lembra  que  a  maior  parte  das  pessoas  que  conhece   vive  com  muito  pouco.  Somente  quem  trabalha  com  turismo  consegue  ganhar  mais que a média da população.  “Há  pessoas  que  se  matam  no  escritório  para  poder  comprar  um  par  de  sapatos.  Com  os  turistas sempre é possível ganhar mais 20, 30 pesos a mais, seja no táxi ou na charrete.” 

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Todos  os  cubanos,  empregados  ou  não,  têm  acesso  aos  produtos  da  cesta  básica.  O  que  se  ouviu  com frequência  de guias turísticos, todos funcionários de agências estatais, é que alguns  pedintes,  a  maior  parte  crianças  e  velhos,  agem  assim  não  para  suprir  suas  necessidades  básicas, mas para adquirir outros bens, como o par de sapatos citado por Manuel.  Ainda  em  Havana,   o   taxista  Geovani  critica  o  paternalismo  estatal.  Primeiro,  ele  diz  que  “90%  das  pessoas  não  trabalham  em  Havana”,  mas  se  corrige,  afirmando  que  boa  parte  dos  cidadãos  começa  sua  jornada  de  trabalho  somente  após  as 10h da manhã. Contudo,  ele elogia  as mudanças econômicas e as consequências diretas em seu trabalho.  “Agora,  além  de  transportar  cubanos,  posso  transportar  turistas  e  até  mesmo  abrigá­los,  cobrando­lhes aluguel”, afirma Geovani.  “Olha pra mim!”   

  O agricultor e vendedor Pedro, 67 anos  Na  cidade  Matanzas,  a  105  km  de  Havana,  o  agricultor  e   vendedor  Pedro,  67,  revelou  ao  Brasil  de  Fato  ​ estar  agradecido  ao  governo  revolucionário  por  ajudá­lo,  há  décadas,  em  sua  produção de tomate, banana e mandioca. Ele cultiva os alimentos em 6 hectares.  Pedro  cita,  contudo, que desde  o  início dos anos  1990,  com o fim da ex­URSS, os agricultores  tiveram menos acesso a  máquinas, o que prejudicou a produção e forçou muitos camponeses a 

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residirem  nos centros urbanos.  “Meus filhos tiveram que ir morar na cidade; eles são torneiros  mecânicos”, revela.  Em  Cuba,  somente  metade   da  área  agricultável  é  utilizada  e  pelo  menos  70%  dos  alimentos  consumidos  no  país  são  importados.  Ainda  em  Matanzas,  do  outro  lado  da  rua,  pedalando  numa bicicleta, estava o indignado Roberto, 57. “Demoro  demais  para  haver  mudanças.  Olha  pra  mim!  Minha  irmã  também  é  velha,  que  oportunidades tivemos?”, questionava. 

  Roberto critica as mudanças tardias na área econômica 

  Miguel se emociona em lembrar da Batalha da Baía dos Porcos 

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Roberto  trabalhou  por  muito  anos  numa   fábrica  de  pisos  de  cerâmica,  mas   a  partir  de  1991  decidiu  trabalhar  por  conta  própria, fazendo bicos. Ressentido com o regime, que segundo ele  não  lhe  deu  condições  de  ter  uma  vida  melhor,  afirma  que  “há  muito   tempo   os  negócios  teriam que ser assim, pagando impostos, como ocorre em outros países”.  Da  cidade  Matanzas  à  Playa  Girón,  ao  sul  do  Província  de  Matanzas.  Diferentemente  de  Roberto,  Miguel  Pérez,  60,  está  otimista  e  também  se  diz  agradecido  à  revolução.  Assim   como  o  taxista  Geovani,   ele  comemora  a  permissão  de  receber  turistas  em  sua  casa,  sendo  apenas  necessário  informar  ao  setor  de  imigração.  “E  isso  tem  aumentado  a  renda  da  população”, conta.  Miguel  trabalha  como  vigia  no  Museu  Girón.  Tinha  apenas 8 anos de idade quando ocorreu a  Batalha  da  Baía  dos   Porcos  (tentativa  frustrada  de  invasão  do  sul  de  Cuba  por  forças  de  exilados cubanos anticastristas capitaneada pelos Estados Unidos).  Miguel  se  emociona ao lembrar a Batalha da Baía dos Porcos, em 1961, e agradece a coragem  que  tiveram  seus  heróis.  “Graças à revolução e a essas pessoas, tivemos as condições de viver  bem, com boa saúde e educação para nossas famílias”.  O  vigia  fala,  com  orgulho,  ter  uma  filha  enfermeira.  Na  época,  ele  e  sua  família  cultivavam  cana­de­açúcar,  arroz  e  feijão,  em  Sancti  Spírictus,  a  200  km  de  Girón. Compreende­ se, daí,  sua  pele curtida pelo sol. Para ele, como o “pouco” que ganha de salário, ainda é difícil ter um  celular, mas gostaria de tê­lo para poder se comunicar com a família.  “Não me afetou” 

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  A paradisíaca Varadero atrai principalmente europeus e canadenses  Enquanto  a  reportagem  do  ​ Brasil  de  Fato  ​ passava  na  paradisíaca  Varadero,  pôde  conhecer  Antônio  Calderón.  Ele  é   representante  em  Cuba  de  uma  empresa  siderúrgica  espanhola  chamada Plecosan.  Como  boa  parte  dos  cubanos,  possui  uma  retórica  notável.  Casado  com  uma mulher de cerca  de  30  anos  (ele  tem  62),  adepta  da  cultura  iorubá,  brincava,  dizendo  que  ela  não  é  sua  filha.  “Como os brasileiros, os cubanos prezam muito a cultura iorubá”.  Esse  foi  o  primeiro  assunto  que  lançou  mão  para  se  aproximar  da  reportagem.  Apesar  de  gozar  de  uma  vida  com  acesso  a  bens  de  luxo  e  conforto,  afirma  ser  totalmente  a  favor  do  governo cubano.  Mesmo  trabalhando  para  uma  empresa  espanhola,  não  tem  do  que  se  queixar  em  relação  aos  negócios  da  siderúrgica  em Cuba.“A crise econômica não afetou meu trabalho”, conta. O país  busca retomar e ampliar a exportação de níquel e tabaco.​     

Amor à humanidade 

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  A cantora Flor defende a cubanía, ou cubanidade, no famoso Havana Club 

  Arledes e Mailin querem ajudar as pessoas e seguir a revolução  Não  é  incomum  presenciar  cenas  que  denotam  o  orgulho  do  povo.  De  volta  a  Havana,  Alfredo,  um  senhor  de  quase 70 anos se aproxima da reportagem bradando palavras de ordem  como  “​ Viva  el   Comandante  Fidel​ ”  e  “​ Pátria  o  Muerte​ ”.  Ele  entrega  o  ​ Granma​ ,  periódico  oficial do governo.  A  cantora  Flor,  que  se  apresenta  com  seu  grupo  no  Havana  Club,  enfatiza  que  o  mais  importante  é  que   a  “​ cubanía​ ”,  o  amor  à  pátria,  nunca  saia  dos  corações  dos  cubanos.  “As  mudanças politicoeconômicas, sobretudo para nós, artistas, têm sido muito positivas”, afirma. 

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Seria  ​ cubanía  ​ sinônimo  de  solidariedade?  Na  praça  central  da  cidade  de  Matanzas,  Arledes,  Mailin,  Gieji  e  Aelana,  todas  com  16  anos,  aproveitam  a  hora  do  almoço  no  colégio  para  conversar.  Mailin,  quando  questionada de que forma os jovens podem auxiliar na continuação  da  revolução,  lembra  que  basta  que  os  jovens  que  têm  a  mesma  faixa  etária  dela  tenham  o  sentimento de solidariedade. “Penso em fazer faculdade porque quero ajudar”, reforça.  Entram  na  escola  pelas  9h  da  manhã,  têm  duas  horas  de  almoço,  e  permanecem  até  as  16h.  Além  das  aulas  normais, praticam esportes, música e preparação militar. Uma vez por semana  ou  a cada 15 dias, os estudantes trocam as salas de aula por aulas em espaços históricos, como  praças ou museus.  Todas  as  quatro  meninas  fazem  questão  de  dizer  que  gostam  muito  de  ir  a  festas  e  teatro.  Aliás, como conta Betsy Olivares Bitencourt, guia de turismo desde 1988 em Cuba, o acesso à  cultura  não  é  caro.  Segundo  ela,  desde  cedo  os  cubanos  são  estimulados  a  participar,  como  artistas ou plateia, de encontros de dança e de teatro.  Também  questionado  como  se  faz  para  manter  a  revolução  viva  nos   corações  cubanos,  o  ministro  do  Turismo  de  Cuba,  Manuel  Marrero,  reforça  a  idéia  de  que  “a  pátria  é  a  humanidade”.  “Nosso  processo  revolucionário,  entre  muitas  coisas,  tem  se  sustentado  pela  solidariedade  e  pelo  internacionalismo,  e  sempre  defendemos  a  ideia  de  que  Cuba  compartilha  não o que lhe  sobra, mas o que possui, e assim será”, atesta. Cuba quer atrair brasileiros Há  um  processo  de  abertura  que  também  se  passa  no  turismo  cubano.  O  setor  do  turismo  responde  por  20%  do  PIB cubano.  Como comparação, Cuba (de 11 milhões de habitantes) foi  visitada, ano passado, por 2,8 milhões de turistas; o Brasil recebeu 5 milhões.  De  acordo  com  o  que  disse  o  ministro  do  Turismo  de  Cuba,  Manuel  Marrero, por ocasião da  33ª  Feira  Internacional  de  Turismo  de  Cuba  (FitCuba),  entre  os  ​ lineamentos  ​ aprovados  pela  nova  política  econômica,  existem  14  pontos  voltados  ao turismo que, segundo ele, permitirão  impulsionar o setor. 

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Desenvolver  algumas  áreas,  como  a  tecnologia,  é  muito  difícil  tendo  em vista o bloqueio dos   Estados  Unidos,  mas,  para  Marrero,  é  necessário  que  o  próprio  país  desenvolva  novas  possibilidades  a  partir  da   própria  indústria  cubana  e  do  Ministério  de  Comunicação,  impulsionando  redes  ​ wi­fi​ nos  hotéis  e  divulgando  o  turismo  em  Cuba  por  meio  de  redes  sociais.  No  ano  passado  foram   inaugurados  8  hotéis  no  país.  Houve  16  mil  turistas  brasileiros.  Questionado  de  que  forma  o  Brasil   pode  contribuir  economicamente  com  Cuba,  Marrero  foi  enfático:  “Como  o  Brasil  pode   nos  ajudar?  Nos  mandando  turistas!” ​ (Colaboraram  Ana  Gusmão, Bruno Pilon, Freddy Charlson, Suzanne Durães e Vanessa Galassi).  (Fotos: Eduardo Sales de Lima)   

 

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CHE GUEVARA, EXEMPLO DE VIDA PARA AS NOVAS GERAÇÕES     29

Por: Néstor Kohan ​ .    Este  livro  que  agora está em suas mãos condensa um trabalho de muitos anos de investigação,  estudo e militância.  Nosso  primeiro  contato  com  o  pensamento  de  Che  Guevara  ocorreu  nos  últimos  anos  da  30

escola  secundária,  ainda  sob  a  ditadura  militar  argentina ​ .  Um  companheiro  nos  presenteou  com  umas  fotocópias  totalmente   gastas  e  sem  cor  de  sua  irmã  mais  velha  que,  para  nós,  significaram  a  jóia  mais  valiosa.  Se  tratava  do  livro  de  Michael  Löwy  ​ O  pensamento  de Che  Guevara.  ​ Naqueles   anos,  havíamos  lido  e  estudado  aproximadamente  umas  50  vezes,  talvez  mais,  a mensagem de Che a juventude (que os companheiros cubanos publicaram com o título  31

O  que  deve  ser   um  jovem  comunista? ​ ).  Na  escola  secundária,  os  primeiros  cartazes  do  Grêmio  de  Estudantes  que  fizemos,  sempre  sob  a  ditadura  militar,  inauguramos  com  um  papelão  branco  com  a cara de Che e sua querida ​ Carta a meus filhos reproduzida com tinta de  marcadores  e  canetas  escolares.  Nossa  primeira  revista   escolar  se  chamou  ​ A  trincheira​ .  Sua  primeira  capa   levava  o  rosto  de  Che  e  uma estrela vermelha de cinco pontas, também pintada  artesanalmente  com  marcadores  (uma  por  uma).  Durante  o  movimento  dessa  revista,  saímos  pela  rua  e  tomamos  a  escola,  nossos  amigos  acabaram  expulsos  e  nós  terminamos  presos  na  delegacia  de   polícia.  Che  nos  acompanhou  desde  nossa  primeira  militância  na  adolescência,  quando  um setor importante da esquerda institucional argentina — a que caiu viva logo com o  32

genocídio  do  general  Videla   —  o via como “um extremista”, “um romântico idealista”, “um  aventureiro” ou simplesmente como “um guerrilheiro”. 

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 Originalmente publicado em pcb.org.br. Ano de 2011. Tradução de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves.    Filósofo, intelectual e militante  marxista argentino, pertencente  à nova geração de marxistas latino­americanos.  Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina.   30  Assim como o Brasil, a Argentina passou por uma Ditadura que durou de 1976 a 1983. Nota do Tradutor.   31   GUEVARA,  Ernesto  Che.  ​ O  que  deve  ser   um  jovem  comunista?  ​ (1962).  Disponível  em:  . Nota do tradutor.   32   O general  Jorge Rafael  Videla  ficou  conhecido na história das ditaduras latino americanas por ter liderado um  grande  genocídio  durante  a  ditadura  argentina.  É  um  dos  personagens  mais  sangrentos  da  história   latino­americana. Nota do tradutor.  29

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Muitos  anos  depois  fomos  a  Cuba.  Conhecemos  companheiros  seus  que  haviam  combatido  33

junto  com  ele  na  Sierra  Maestra ​ ,  no  Congo,  na  Bolívia.  Entrevistamos  eles.  Também  conversamos  e  gravamos  os  principais  especialistas  na  sua  obra.  Trouxemos  uma  carga  de  livros e materiais. Seguimos estudando profundamente.  Nosso  primeiro  escrito  teórico  sobre  o  pensamento  de  Che  foi  publicado  em  1989,  em  meio  ao  desastre  ideológico  da  União  Soviética  (URSS)  e  do  sandinismo  (Nicarágua),  enquanto  militávamos  na  favela  “Carlos  Gardel”  (localizada  na  província  de Buenos Aires), durante os  34

nefastos  tempos  de  Raúl  Alfonsín   (cujos  intelectuais  riam  de  Guevara  e  o  caracterizavam  como  “o  outro  demônio”   equiparável  ao  terrorismo  de  Estado). Então, nesse primeiro ensaio,  35

intitulado  ​ Marxismo  e  humanismo​ ,  confrontávamos  Che  Guevara  e  sua leitura de ​ O Capital   com  Louis  Althusser  (e,  em  elipse,  com  Marta  Harnecker,  sua  principal  discípula  latino­americana,  de  grande  influência  na  Argentina  e  em todo o continente). Logo, em 1992,  em  pleno  auge  do  neoliberalismo  à  escala  mundial,  fomos  a  Bolivia.  Então,  junto  a  guevaristas  bolivianos,  publicamos  nosso  segundo  texto  teórico  sobre  Che  (esboço  do  artigo  “Che Guevara e a filosofía da praxis”, incorporado nesse livro).  Até  que  em  1997,  auxiliados   pelo  Centro  Che  Guevara  de  Havana,  inauguramos  a  primeira  Cátedra  Che  Guevara  na  Universidade  de  Buenos  Aires (UBA), como parte de un coletivo de  trabalho  bastante  heterogêneo.  As  Cátedras  Che  Guevara  proliferaram  por  toda  Argentina.  Percorremos  inúmeras   cidades  argentinas  com  a  seguinte  mensagem.  Che  era  —  para nós —  36

o  melhor  antídoto  contra  o neoliberalismo de Carlos Saúl Menem ​ , um dos personagens mais  bizarros e miseráveis de nossa história política.  Desde  aquele  distante   ano  de  1997,  até hoje, passou muito tempo. As modas vão mudando. A  “onda  do  momento”  é  muito  errática.  Alguns  companheiros  abandonaram  o  barco,  já  não  se  sentiam  com  a  mesma  afinidade.  Se  transformaram  em  entusiastas  do  pós­modernismo  de  Antonio  Negri.  Outros  e  outras  mudaram  de  forma  dissimulada  para  o  multiculturalismo  e  o  autonomismo.  As  opções  “da  moda”  foram as mais variadas. Nós continuamos lutando com a  Cátedra  Che  Guevara  e  a  formação  política  da  militância  de  base.  Na  Universidade  Popular  33

  A  Sierra  Maestra,  localizada  no  sul  do  oriente  cubano,  foi   reduto  dos  revolucionários  liderados  Por  Fidel  Castro e Che Guevara. Nota do tradutor.  34  Raúl Alfonsín foi presidente da Argentina entre 1983 e 1989. Nota do tradutor.  35  O autor se refere à obra máximo do marxismo, ​ O Capital,​  de Karl Marx. Nota do tradutor.  36  Carlos Saúl Menem foi presidente da Argentina entre 1989 e 1999. Nota do tradutor. 

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Mães  da  Praça  de  Maio ​ ,  no  Hotel  Bauen  (recuperado ​ ),  na  fábrica  têxtil  Brukman  (recuperada),  na  escola  piquetera  de  formação  política  22  de  agosto  “Heróis  de  Trelew”  que  funcionou  em  uma  fábrica  têxtil  de  Florencio  Varela  (bairro  periférico  da  província  de  Buenos  Aires),  na  favela  “1­11­14”  do  Baixo  Flores  (favela  localizada  em  plena  capital  federal),  na  Universidade  de  Buenos  Aires,  agora  na  Universidade  dos  Trabalhadores  inaugurada  na  fábrica  metalúrgica  IMPA  (recuperada)  ou  onde  quer  que  seja.  Também  inauguramos  Cátedras  Che  Guevara  no  Chile  e  na  Bolívia  e  a  Escola  de   Quadros  “Manuel  Marulanda”  na   Venezuela,  além  de  participar   na  Escola  Nacional  Florestan  Fernandes  (ENFF)  do Movimento Sem Terra [MST] de Brasil. Com  o  vento a favor, com o vento contra.  Sempre  remando  e  fazendo  trabalho  de  formiga  na  mesma  direção,  tendo  como  farol  e  39

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horizonte Che Guevara, Mariátegui  e Bolívar ​ . Com o pessimismo da razão, no entanto com  o irrenunciável otimismo da vontade.  Todos  as  análises  e  estudos  incorporados  ao  livro  ​ En  la  selva  constituem  o  produto  dessa  história  pessoal  que,  ao  mesmo   tempo,   é  uma  história  política  coletiva.  Sua  fonte  de  inspiração pode ser resumida em duas atividades paralelas.   Por  um  lado,  anos  e  anos  de  investigação  (o  material  inédito  de  Che  Guevara  na  Bolivia  nos  entregou  generosamente  Tristán  Bauer  há  mais  ou  menos  dez  anos...  bastante   tempo  para  investir em um livro, não é uma investigação redigida com pressa em um fim de semana).  Nós  levamos  a  sério  a  tarefa  de  indagar,  aprofundar  e  estudar  Che.  Não  nos  satisfaz  repetir  três  palavras de ordem superficiais. Guevara é merecedor de estudo sério.  Por  outro  lado,  anos  e  anos  de  militância  voluntária  (jamais  cobramos  um  só  centavo)  na  Cátedra Che Guevara e em todos os espaços de formação antes mencionados. 

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  As  Mães  da  Praça  de  Maio   é  uma  organização  composta  por  mães  que  tiveram  seus  filhos  mortos  e  desaparecidos  durante  a  ditadura  argentina.  Muitas  crianças  foram  retiradas   de  seus  pais  e   colocadas  para  doação. Outros filhos, já adultos, foram mortos e desaparecidos. Nota do tradutor.   38   O  autor  se  refere  várias  vezes   às  empresas  “recuperadas”,  que  são  geridas   pelos  trabalhadores   que  as  expropriaram  de  seus  patrões  principalmente  no  decurso  da  crise  argentina  (1999­2001),  durante  o  governo  de  Fernando de La Rúa. Nota do tradutor.  39   José  Carlos Mariátegui (1894­1930), nascido no Peru, é um dos mais importantes  marxistas latino­americanos.  Mariátegui era conhecido como ​ amauta​ , que na língua quíchua significa sábio. Nota do tradutor.  40   Simón  Bolívar  (1783­1830)  liderou  o  processo  de  independência  da   Bolívia,  da  Colômbia, do  Equador,  do  Panamá,  do  Peru, e  da Venezuela. Bolívar queria que todas essas nações estivessem sob uma única bandeira para  que pudessem se contrapor ao imperialismo estadunidense. Nota do tradutor. 

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Militância,  investigação  e  estudo.  Esse  é  o  “segredo”  deste  livro.  Assim  o  fizemos.  Como  atualmente  (fim  de  maio  de  2011)  continuamos  impulsionando  a  Cátedra  Che  Guevara  que  utilizaremos  para  continuar  a  batalha  das  ideias  e  a  formação  da  militância  de  base  com  o  objetivo  de  formar  quadros  revolucionários.  Hoje,  novos  jovens se aproximam de Che. Oxalá  sejam  seus  continuadores.  Como  dizia  Lenin,  não  há  nada  mais  divertido…  que  lutar  pela  revolução.  Mesmo  sendo  gestado  e  escrito  na  Argentina,  ​ En  la selva saiu publicada pela primeira vez na  Venezuela,   graças  ao  apoio  dos  companheiros  bolivarianos  da  Missão  Consciência,  da  escolinha  “Um  grão  de  milho”  e  o  periódico  ​ Debate  socialista​ .  A  primeira  apresentação  de  todas  ocorreu  junto  aos  operários  e  operárias  do  petróleo,  organizados  na  agrupação  sindical  Vanguarda  Operária  Socialista  (VOS)  e  nos  núcleos  sindicais  de  trabalho  voluntário  da costa  oriental  do  lago  de   Maracaibo.  O  livro  foi  distribuido  gratuitamente,  principalmente  entre  os  trabalhadores  e  na  juventude.  E,  ademais,  foi  publicado  na  internet,   tanto   na  página  web  de  nossa  Cátedra  Che  Guevara­Coletivo  Amauta  como  em  várias  outras  páginas  amigas  de  comunicação  alternativa  (Rebelión,  La  Haine,  La  Rosa  Blindada,  Kaos  en  la red, Revolución  o muerte etc.).  No  momento  em  que  redigíamos  essa  introdução  a  edição argentina, o livro ​ En la selva  ​ já foi  traduzido para o galego­português e está sendo publicado —nos referimos a edições em papel,  não  só  digitais—  na  Galícia  e  Portugal  pelas  organizações  Primeira  Linha  (comunista  independentista  da   Galícia)  e  Política  Operária  (de  Portugal).  Nesse  momento,  está  sendo  avaliada  uma  edição  por  parte  de  companheiros  brasileiros  a   partir  dessa  mesma  tradução  ao  41

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português ​ .  Também  está  sendo  traduzido  ao  idioma  euskara   e  publicado  pelos  43

revolucionários  ​ abertzales   (patriotas)  que  lutam  pela  independência  e  pelo  socialismo  de  Euskal  Herria  (o  País  Basco).  Em  Leão  (dentro  do  Estado  espanhol)  militantes  do  sindicato  ferroviário  propuseram  editar  o  livro  com  dinheiro  de  seus  salários  para   a  formação  de  sua  militância sindical e da juventude. 

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 Versão em PDF em espanhol: .    Euskara  é  o   idioma   do  País  Basco,  atualmente  sob  domínio  espanhol.  Esse  idioma  se tornou  uma  das  mais  importantes ferramentas de luta e resistência cultural contra o jugo espanhol. Nota do tradutor.   43  “Patriotas”, do original ​ abertzale ​ no idioma euskara. Nota do tradutor.  42

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Do  mesmo  modo,  ​ En  la  selva  ​ está  sendo   publicado  neste  momento  na  Venezuela  e  na  Colômbia  pela  nova  editora  vinculada  ao  Movimento  Continental  Bolivariano (MCB), Gente  do  Sul­Insur­gente,  acompanhado  de  uma  extensa  introdução  (na  realidade  um  estudo  preliminar)  do  comandante  Jesús  Santrich,  integrante  do  estado  maior  central  das  FARC­EP  (Forças  Armadas  Revolucionárias  da  Colômbia  –  Exército  do  Povo).  Também  está  sendo  publicado  no  Chile  por  iniciativa  do  FPMR  (Frente   Patriótico  Manuel  Rodríguez)  e  no  Uruguai pelo Movimento 26 de Março (M­26).  Agradecemos  de  coração  a  todos  esses  companheiros  da  América  Latina  e  do  mundo  que  se  sentiram  representados  pelo  que  este  livro  busca  compartilhar,  tanto  pelo   que  Che  Guevara  escreveu  e  sobre  o  que  refletiu  nos  seus  últimos  dias  de  combate  como  pelos  estudos  que  acompanham esses textos.   Evidentemente  que  o guevarismo não é algo “nostálgico”, um produto mercantil fora de moda  e  sepultado  nos  anos  1960  ou  um  inofensivo  ícone  pós­moderno.  As principais forças sociais  e  políticas  insurgentes,  e  inclusive  político  militares,  em  pleno  século  XXI  seguem  lutando  por  um  mundo  melhor,  se  apropriaram  deste  livro  e  o  publicaram  como  material  próprio  de  suas  organizações.  Isso  nos  enche  de  orgulho  e  de  honra  (oxalá  alguém  o  traduza  e  possa  aproximá­lo  também  dos  companheiros  e  irmãos  palestinos).  Nenhuma  dessas  edições  busca  dinheiro  nem  pretendem  converter  Che  em  uma  mercadoria  de  shopping.  Essas organizações  irmãs,  insurgentes,  bolivarianas  e  guevaristas,  publicam  ​ En  la  selva  ​ para  que  sirva  na  luta  contra o sistema capitalista mundial. Isso está mais que claro, não é certo?  Se  essas  são  algumas  das  principais  edições  que  estão  sendo  gestadas  e  publicando  em  diversos  países  do  mundo,  pelo  menos  até  agora  (final  de  maio  de  2011),  duas  palavras  específicas para esta edição argentina.  Aqui,  na  Argentina,  o  livro  sai  publicado  em  conjunto  por  dois  selos  editoriais:  “Amauta  insurgente” e “Hombre Nuevo”.  O  primeiro,  “Amauta  insurgente”,  corresponde  a  nossa  Cátedra  Che   Guevara  e  ao  nosso  Coletivo.  Ao  longo  de  todos  esses  anos  de  militância  e  trabalho  de  formação  política  publicamos muitíssimos materiais — incluindo algumas  jóias de difícil acesso que resgatamos  do  esquecimento  —  mas  como  nunca  temos  dinheiro,  já  que  sempre  realizamos  nossa  tarefa 

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com  trabalho  voluntário,  editamos   nossos  materiais  em  formato  digital  pela  internet.  Os  disponibilizamos  em www.amauta.lahaine.org. Também publicamos numerosas brochuras em  papel, mas em formato artesanal. Esse é o primeiro livro que editamos.  O  outro  editorial,  “Hombre  Nuevo",  que  em  seu  momento  conhecemos graças a nosso amigo  em  comum  Orlando  Borrego  (amigo  e  colaborador  de  Ernesto  Guevara,  e  enviado  a  nossa  cátedra  em  várias  oportunidades),  tem  sua  própria  história.  Ao  longo  de  anos,  nos  reencontramos  com  estes  companheiros  graças aos amigos da fábrica  recuperada IMPA, onde  funciona a Universidade dos Trabalhadores y nossa cátedra.  Além  de  constituir a continuidade da publicação dos livros guevaristas de Orlando Borrego ​ El  camino  del  fuego  ​ e  ​ Recuerdos  en  ráfaga  ​ por  eles  editados  (e  apresentados  na  nossa  Cátedra  Che  Guevara),  concordamos  em  publicar em comum, junto com os companheiros  do  editorial  “Hombre  Nuevo”  porque  consideramos  que  a  revolução  na  Argentina  terá  que  contar  necessariamente com a convergência de diversas forças.   44

Nós  dedicamos expressamente ​ En la selva ​ a Mario Roberto Santucho  e a corrente guevarista  que  Robi  [Santucho]  representou  (o  Partido  Revolucionário  dos  Trabalhadores­Exército   Revolucionário  do  Povo)  e  com   a  qual  nos sentimos ideológica e politicamente identificados.  45

Mas  ao  mesmo  tempo  dedicamos  esta  obra  a  nossos  30.000  companheiros  desaparecidos ​ ,  onde  indubitavelmente  também  estão  —entre  muitos  outros  e  outras—  os  companheiros  e  46

companheiras  dos  Montoneros ​ .  Nós  reivindicamos sinceramente, sem oportunismo algum, a  todos  os  companheiros  caídos  e  desaparecidos,  não somente dos Montoneros mas todo o arco  47

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do  peronismo  revolucionário  em  seu  conjunto,  incluindo  também  as  FAR ​ ,  as  FAP ​ ,  o  49

Peronismo  de  Base,  a  ARP   e  a  resistência  ao  golpe  gorila  de  1955.  Todos  são  nossos  companheiros!  

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  Mario   Roberto   Santucho  (1936­1976),  um  dos  maiores  revolucionários  argentinos,   foi  para  a  luta  armada  contra a ditadura argentina. Nota do tradutor.  45  O autor se refere aqui a todos os mortos e desaparecidos durante a ditadura argentina. Nota do tradutor.  46   Montoneros  foi  um  grupo  guerrilheiro  que   buscavam  derrubar  a  ditadura   argentina.  Os  Montoneros  foram  sistematicamente perseguidos e desaparecidos durante a ditadura. Nota do tradutor.  47   As  Forças  Armadas  Revolucionárias  (FAR)  foram uma organização  guerrilheira  marxista  que  se  fundiu  com  os Montoneros, que, por sua vez, tinham o peronismo como ideologia. Nota do tradutor.   48  Forças Armadas Peronistas (FAP). Nota do tradutor.  49  Ação Revolucionária Peronista (ARP). Nota do tradutor. 

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Sem  nenhuma  dúvida  Rodolfo  Walsh,  Carlos  Olmedo,  Marcos  Osatinsky,  Rodolfo  Puiggrós,  Rodolfo  Ortega  Peña,  Alicia  Eguren  e  John  William  Cooke,  também  são  nossos  companheiros  e  nossos  guias,  ainda  que  sintamos  maior  afinidade  política  e  ideológica   pela  corrente  guevarista  de  Robi  Santucho,  Raymundo  Gleyzer,  Haroldo  Conti,  Silvio  Frondizi,  entre outros.  O  Che  Guevara   não tem dono nem é propriedade privada de ninguém. Por isso o editamos em  conjunto  editoriais  com  orientações diversas. Cada um o interpela desde sua própria história e  sua  própria  identidade.  ​ En  la  selva  ​ constitui  nossa  maneira de interpelá­lo e trazê­lo ao nosso  presente.  Nada  mais  que  isso.  Como  demonstram  outras  insurgências,  a  revolução  socialista  argentina,  necessariamente  deverá  recuperar  todas  as rebeldias do passado, incluindo também  —casualmente—  os  anarquistas  da  Patagônia  rebelde  de  inícios  do  século  XX  e toda a gente  que  lutou  e  morreu  para  mudar  este  país  que  tanto  resiste  a  mudar  mas  que  alguma  vez  lograremos, por fim, dar a volta completa e reordenar desde a raiz.   Oxalá  este  modesto  livro   sirva  fundamentalmente  para  a  gente  jovem, para  começar a formar  novos  militantes  revolucionários  do  campo   popular  que,  seguindo  o  exemplo  insurgente  do  Che,  estejam  dispostos  a  por  em  risco  sua  vida,  não  por  dinheiro  nem  por  um  carguinho  político ou alguma outra mesquinhez medíocre, mas senão por um projeto coletivo mediante o  qual  logremos  a  felicidade  de  nosso  povo,  a  Pátria  Grande  latino­americana,  a  revolução  socialista e nossa segunda e definitiva independência.    50

No aniversário do Cordobazo ​ ,   Boedo, 29 de maio de 2011.  Néstor Kohan 

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  O Cordobazo  foi  um  importante movimento  popular  ocorrido em  Córdoba, uma das mais importantes  cidades   industriais  da  Argentina,  em  29  de  maio  de  1969.  A consequência  mais imediata foi a derrubada do governo e  a  volta do peronismo. Nota do tradutor. 

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REVOLUÇÃO CUBANA: 50 ANOS DE RESISTÊNCIA E DIGNIDADE

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Arrancados  de  séculos  de opressão e atraso, os cubanos jamais se resignarão. Como um país  pobre  pode  construir  uma  sociedade  mais  justa  para  todos.  Depois de 50 anos da revolução,   Cuba  tem  a  mais  baixa  taxa  de  mortalidade  infantil  e  um  dos  maiores  pólos  culturais  da  América Latina. 

Por: Tiago Nery.

Equilibrando­se  entre  o  realismo  e  a  utopia,  a  Revolução  Cubana  está  completando  50  anos.  Nos  primeiros  dias  de  janeiro  de   1959,   após  pouco  mais  de  dois  anos  de  luta  guerrilheira,  o  Exército  Rebelde,  liderado  por  Fidel,  Raul,  Camilo  e  Guevara,  entrava  triunfalmente  em  Havana,  iniciando  um  novo  capítulo  na  história  do  país.  O  impacto  da  Revolução  iria  transcender  em  muito  seus  limites  territoriais,  repercutindo  sobre  sucessivas  gerações  de  jovens,  trabalhadores  e  intelectuais  de  várias  partes  do  mundo,  sobretudo  da América Latina.  Pela  primeira  vez,  a  própria  idéia  de  revolução,  que  soava  sempre  tão  distante  para  os  latino­americanos  (a  exemplo  das  revoluções  mexicana,  russa  e  chinesa),  passava  a  ser  um  tema da atualidade.  A  polarização  da  época  da  Guerra  Fria  fez   com  que  muitas  análises  sobre  a  Revolução  Cubana  estivessem  impregnadas  pelo  clima  daquele  período  e  ignorassem  as  verdadeiras  origens  do  movimento  comandado  por  Fidel  Castro.  A  revolução  de  1959  tem  profundas  raízes  na  trajetória  histórica  nacional,  cujos  antecedentes  remontam  ao  período  da  luta  pela  independência.  Cuba  foi  a  última  colônia  da  América  Latina  a  libertar­se  da  Espanha,  em  1898,  num  processo  que  se  estendeu  por  um  período  de  30  anos,  em  que  se  sucederam  duas  guerras  de  independência.  A  primeira,  conhecida como a "Guerra dos dez anos" (1868­1878),  foi  liderada  pelo  advogado  e proprietário de terras Carlos Manuel de Céspedes,  considerado o  "pai  da  pátria".  A  segunda,  iniciada  em  1895,  teve  como   principal  ideólogo  o  advogado,  jornalista  e  poeta  José  Martí,  principal  intelectual  cubano  e  um  dos  mais  importantes  do  continente, que desencadeou um movimento mobilizando amplos setores populares.  51

 Originalmente publicado em: diplomatique.org.br. 12/1/2009. 

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Antes  de  se  tornar  socialista,  a  Revolução  Cubana  foi  um  movimento  de  afirmação  da  soberania  nacional.  Já  Fidel  e  Guevara  representavam  a  sublimação  do  tradicional  caudilho latino­americano em líder autenticamente popular  No  momento  em  que  a  vitória   das  forças  independentistas  estava  próxima  a concretizar­se, o  governo  dos  EUA  resolveu  entrar  no  conflito,  provocando  uma  guerra  contra  a  Espanha.  Vitoriosos,  os  norte­americanos  reconheceram  a  independência  de  Cuba,  apesar de imporem,  em  1902,  uma  emenda  constitucional  (emenda  Platt),  que  permitia  aos  Estados  Unidos  exercerem  o  direito  de  intervenção  no  sentido  de  "preservar  a  independência  cubana".  Com  isso, Cuba tornava­se, na realidade, um protetorado dos EUA.  A  atuação  norte­americana  frustrou  as  expectativas  de  liberdade e soberania que alimentaram  o  movimento  desde  o  início.  A  desilusão com o desfecho serviria como elemento crucial para  a  formação   de  uma  singular  consciência  nacionalista,  que  passaria  a  reivindicar  uma  terceira  guerra  emancipatória  ­  contra  o  imperialismo  estadunidense.  Dessa  forma,  o  processo  revolucionário  que  derrubou  a  ditadura  de  Fulgencio  Batista  retomaria   a  trajetória  dos  movimentos  independentistas  do  século  19,  vinculando  a  libertação  nacional  e  social   aos  desafios da Guerra Fria (Ayerbe, 2004).  O  movimento  revolucionário  de  1959,  iniciado  em  1953,  com  a  criação do Movimento 26 de   Julho,  guarda  profundas  conexões  com  aquele  liderado  por  Martí  algumas décadas antes. Em  A  história me absolverá, histórica  autodefesa de Fidel Castro por ocasião de sua prisão,  após a  frustrada  tentativa  de  tomar  o  quartel  de  Moncada,  o  futuro  líder  da  revolução  afirmou:  "Impediram que chegassem às minhas mãos os livros de Martí. Parece que  a censura da prisão  os  considerou  demasiado  subversivos.  Ou  será  porque  considerei  Martí  o autor intelectual do  26  de  Julho?"  (Castro,   1979,  p.  22). Percebe­se, dessa forma, que antes de se tornar socialista,  a  Revolução  Cubana  foi  um  movimento   de  afirmação  da  soberania  nacional.  A  guerra  revolucionária  não   recebeu  nenhuma  ajuda  da  então  URSS,  assim  como  o  Partido   Socialista  Popular  (comunista),  que  inicialmente  rejeitara  as  ações  armadas e havia condenado o assalto  ao Moncada, só apoiaria a guerrilha em sua fase final.  Comentando  sobre  a  originalidade  do  processo  cubano,  o  crítico  literário  Antonio  Candido  (1992)  afirmou  que  líderes  como  Fidel  e  Guevara  representavam  uma  formação  política 

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singular  e  aparentemente  impossível:  a  sublimação  do  tradicional  caudilho  latino­americano  em  líder  autenticamente  popular.  Dessa  maneira,  assim  como  em  Cuba  o  caudilho  potencial  transformou­se  em  líder  responsável,  comprometido  com  o  socialismo,  a  tradição  radical,  vinda  de  pensadores  como  José  Martí,  permitiria  que  o  marxismo  se  ajustasse  à  realidade  do  país.  As  experiências  socialistas  do  século  20  foram  obrigadas  a  dividir  seus  esforços  entre  a  sobrevivência  em  relação   aos  inimigos   externos  e  a  construção  de  uma  sociedade que se  pretendia mais justa e avançada.  A  queda  do  Muro  de  Berlim  e  o  fim  da  URSS  só  viriam  confirmar  que  Cuba  não  era  um  satélite  soviético.  Por  acreditar  que,  sem  o  apoio  do  bloco  socialista,  a  queda  do  regime  cubano  seria  apenas  uma  questão  de  tempo,  o  governo  dos  EUA  endureceu  o  bloqueio  econômico  nos  anos  1990, por meio de medidas  extraterritoriais como a emenda  Torricelli e a  lei  Helms­Burton.  De  acordo  com  o  direito  internacional,  o  embargo unilateral é considerado  uma  medida  ilegal.  Recentemente,  a  Assembléia  Geral  das  Nações  Unidas  aprovou,  pela  17ª  vez  consecutiva,  uma  resolução  que  condena  os  EUA  pelo  bloqueio  imposto  a  Cuba  há  47  anos. Dos 192 países que pertencem à ONU, 185 condenaram o embargo estadunidense.  Mesmo  com  o  recrudescimento  das  sanções,  o  governo  cubano  conseguiu não apenas  manter  mas  também  melhorar  algumas  das  principais  conquistas  sociais  da  revolução.  No  âmbito da  saúde,  Cuba  atingiu  recentemente  a  mais  baixa  taxa  de  mortalidade  infantil  da  sua  história:  5,3  em  cada  mil  nascidos  vivos.  Trata­se  da  segunda  menor  taxa  das  Américas,  ao  lado  do  Canadá.  Na  área  cultural,  a  Casa  das  Américas,  fundada   por  Haydée  Santamaría,  continua  sendo  um importante centro de difusão da literatura latino­americana. Igual importância tem o  festival internacional de cinema de Havana, que acaba de realizar sua 30ª edição.  Além  dos  avanços,  a  Revolução  Cubana  também  apresenta  contradições   e  problemas.  Por  exemplo,  muitos  questionam  o  regime  de  partido  único, o monopólio da imprensa estatal e as  restrições  a  algumas  liberdades  individuais.  Ademais,  nos  últimos  anos,  em  virtude  das  reformas  econômicas  introduzidas  com  o  colapso  do  campo  socialista,  a  sociedade  cubana  passou a experimentar um nível de desigualdade ao qual não estava acostumada. 

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No  entanto,  entre  as  principais  fragilidades  das  críticas  endereçadas  a  Cuba,  ressalta­se  a  ausência  de  perspectiva  histórica,  que  ignora  os  contextos  e  os  desafios  que  influenciaram as  escolhas  dos  dirigentes  cubanos,  sempre  condicionadas  pela  ação  dos  sucessivos  governos  norte­americanos.  Além  disso,   deve­se  observar  que  as  experiências  socialistas  do  século  20  foram  obrigadas  a   dividir  seus  esforços  entre  a  sobrevivência  em   relação  aos  inimigos  externos  e  a  construção  de  uma  sociedade  que se pretendia mais justa e avançada. No caso de  Cuba,  a  pressão  do  exterior  tem  sido  incessante  ao  longo  dos  últimos  50  anos.  Segundo  o  historiador  Luis  Fernando  Ayerbe,  "nenhum  sistema  pode  desenvolver  suas  potencialidades  vivendo  em  clima  de  permanente  conflito,  que  é  justamente  o  mais  favorável  ao  fortalecimento das tendências autoritárias existentes" (Ayerbe, 2004, p.119).  Com  seus  erros  e  acertos,  a  Revolução  Cubana  mostrou  a  muitos  povos  que  um  país  pobre  pode  construir  uma  sociedade  mais  justa  para  todos.  Trata­se  de  uma  ilha,  arrancada  de  séculos  de  opressão  e  atraso,  que  se  ergueu  para  construir  uma  nova   história,   a  que  lhe  foi  negada.  Darcy  Ribeiro  afirmou  certa  vez  que,  na   América  Latina,  só  havia  dois  destinos:  ser  resignado ou ser indignado. Os cubanos jamais se resignarão.    Referências Bibliográficas:  AYERBE,  Luis  Fernando.  ​ A  Revolução  Cubana​ .  São  Paulo: Editora UNESP,  2004.  (Coleção  Revoluções do século XX)  CANDIDO,  Antonio.  ​ Cuba  e  o  socialismo​ .  In:  SADER,  Emir  (Org.)  ​ Por  que  Cuba?​ .  Rio  de  Janeiro: Revan, 1992.  CASTRO, Fidel. ​ A história me absolverá​ . 3ª ed. São Paulo: Alfa ­ Omega, 1979.    

 

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DO PERÍODO ESPECIAL À ASCENSÃO DE RAÚL   “Está  claro  que  tem  havido  uma  resistência  estóica  a  fim   de  preservar  tudo  o  que  é  considerado  ganho  da  revolução.  O  envolvimento  radical  com  o  Estado  ficou  evidente  em  amplos  setores  da  classe  trabalhadora  e  o  governo  tem  se  esforçado  para  engajar  e  incorporar a população, especialmente os jovens”.    53

Por: Stephen Wilkinson ​ .    Raúl  Castro  assumiu  o poder em Cuba numa época propícia. Economicamente, o país acabara  54

de  emergir do “Período Especial”  e, internacionalmente, o governo de George W. Bush dava  mostras  de  que  seu  mandato  chegava ao fim, com os partidários do embargo à ilha já bastante  inferiorizados. Havia um enorme espaço para manobras e mudanças.  Uma  das  primeiras medidas do novo presidente foi uma ampla consulta à população: milhares  55

de  encontros  aconteceram  por  todo  o país  e um intenso debate sobre os problemas nacionais  tomou  conta  da  sociedade.  Desde  então,  os  ministérios  e  as  empresas  vêm  tendo  maior  autonomia  e  há mais abertura para a crítica direta na  imprensa sobre as falhas do sistema. Não  resta  dúvida  de  que  Raúl  prefere  delegar  a  controlar  ele  mesmo,  estilo  muito  diferente  do  de  seu  irmão.  Com  base  nos  resultados  da  consulta  nacional,  ele  introduziu  uma  série  de  reformas  econômicas,  incluindo  a  eliminação  de  restrições   na  aquisição  de  aparelhos  eletrônicos,  como  computadores  e  celulares.  Além  disso,  aqueles  que  vivem  em   conjuntos  habitacionais  do  Estado  terão  a  possibilidade  de  comprar  seus  imóveis.  E  o acesso aos hotéis  52

 Originalmente publicado em diplomatique.org.br. 04/07/2008.    Stephen  Wilkinson  é  pesquisador  do  Internaional  Institute  for  the  Study  of  Cuba,  da  Metropolitan University  de Londres.  54   O termo “Período  Especial  de  Paz”  deriva  da  expressão “Período Especial em Tempo de  Guerra”, nome dado  ao  plano  de  sobrevivência  preparado  por Cuba durante a Guerra Fria, para  o caso de  estourar um conflito entre  a  União   Soviética  e  os  Estados  Unidos.  Em  um  cenário  desses,  o  país   possivelmente  estaria   sob  bloqueio  completo,  de  modo  que  foi criada uma tática de contingência para assegurar uma resposta coordenada à escassez  de   alimentos  e  combustíveis.  Por  fim,  a  guerra  não  veio,  mas  quando  o  bloco  soviético  entrou  em  colapso,  em   1991,  Cuba  ficou   sem  seu  principal  parceiro  comercial  e  protetor  econômico.  Na  prática,  era  uma   situação  extremamente similar àquela que os cubanos haviam vislumbrado, mas em tempo de paz.  55   Isso  ocorreu  de  modo  semelhante  ao que  foi feito no início do Período  Especial, quando houve uma série sem  precedentes  de  consultas  à  população.  Os  assim  chamados  “parlamentos de trabalhadores” foram instituídos por  todo o  país  para  discutir  os  problemas  e  sugerir  soluções.  À  eles seguiu­se,  em  1991,  um  Congresso do Partido  Comunista,  em  que  decisões­chaves  foram  tomadas  para  delinear   a  estratégia  do  governo  ao  longo  da  década  seguinte.  Pela primeira  vez, permitiu­se  que pessoas  de diferentes convicções religiosas figurassem abertamente  nos  quadros do  partido.  Logo  depois,  o  sistema  eleitoral foi reformado para permitir que a Assembléia Nacional  fosse  eleita  por  sufrágio  direto.  Essas  medidas  proporcionaram  aos  cubanos  uma  sensação  de   maior  envolvimento direto com as decisões  53

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de  luxo,  antes  reservados  aos  turistas  estrangeiros,  foi  liberado  para  todos  os  cidadãos.  Raúl   anunciou  também  que o VI Congresso do Partido Comunista será realizado no final de 2009 –  o  primeiro  em  12  anos  –  para   delinear  o  futuro  econômico  e  político  do  país.  Fala­se  até  mesmo da revogação da exigência de autorização para viagens ao exterior.   Sem  dúvida,  a  chave  dessas  mudanças  passa  pelo  novo  comitê  executivo  do Bureau Político,  composto  pelo  vice­presidente  José  Ramón  Machado  Ventura  e  pelos  vice­presidentes  do  Conselho  de  Estado  Juan  Almeida   Bosque,   Abelardo  Colomé  Ibarra,  Carlos  Lage  Dávila,  Esteban  lazo  Hernández  e  Julio  Casas  Regueiro,  além  de  Raúl  Castro.  Juntos,  os  membros  desse  grupo  carregam  todo  o  peso  e  experiência  da  Revolução  Cubana  em  um  corpo  único,  capaz  de   conduzir  o  futuro  do  Partido  Comunista,  das  organizações  de  massa  e  do  governo.  Essa  instância  surgiu  para  substituir  o  comitê  provisório,  fundado  em  31  de  julho  de  2006,  quando Fidel entregou o poder a Raúl, e marca a transferência final de autoridade na ilha.  O  Bureau  Político  aumentou  ainda  mais   a  descentralização  e  criou  sete  comissões  parlamentares  permanentes  subordinadas  a  ele.  Elas compreendem assuntos como ideologia e  cultura,  economia,  alimentos  e  agricultura,  substitutos  de  importados  e  aumento  das  exportações,  educação,  ciência  e  esportes,  saúde  e  relações  internacionais.  As  decisões  permanecem  baseadas  no  consenso,  com  o  presidente  arbitrando  no  caso  de  significativo  desacordo.  No  conjunto,  essas  medidas indicam que os líderes cubanos começam a preparar o  Partido Comunista para a eventual transição de poder a uma geração mais jovem.   Correndo  paralelamente  às  reformas  na  estrutura  do  governo,  há  um  programa  de  amplo  espectro  para  revitalizar  o  setor  agrícola.  O  controle  agropecuário  do  país  está  passando  das  mãos  de  funcionários  no  Ministério   da  Agricultura  para  mais  de  150  delegações  locais.  A  ação  é  parte  do  programa  multifacetado para impulsionar a produção de alimentos e baixar os  custos  da  importação:   em  2007,  Cuba  gastou  US$  1,7  bilhão  com  a  compra  de  gêneros  alimentícios,  um  montante  absurdo.  O  governo  também  planeja  desmanchar  104  fazendas  estatais  que  dão prejuízo e embargar as demais em operação. Camponeses têm relatado que as  decisões, do uso da terra à alocação de recursos, estão se  deslocando  para a esfera local. Tanto  que,  pela  primeira  vez  em  décadas,  armazéns  estão  sendo  abertos  para  que  os  cubanos  comprem suprimentos diretamente dos produtores locais.   Está  claro  que  tem havido uma resistência estóica a fim de preservar tudo o que é considerado  ganho  da  revolução.  O  envolvimento  radical  com  o  Estado  ficou  evidente   em amplos setores 

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da  classe  trabalhadora  e  o  governo  tem  se  esforçado  para  engajar  e  incorporar  a  população,  especialmente os jovens. Seu apoio durante a transição de poder constituiu o principal  fator na  sobrevivência do processo revolucionário até agora.   Ao  mesmo  tempo,  é  evidente  que  a  revolução  está  entrando  em  um  estágio   novo   e  sem  precedentes.   De  modo  exemplar,  a  filha  de  Raúl  Castro,  Mariela,  lidera  uma  campanha  de  modificação  da  lei  para  permitir  o  casamento  entre  pessoas  do  mesmo sexo e possibilitar que  transexuais  façam  operações  de  mudança  de  sexo  custeadas  pelo  Estado.  Suas  propostas  resultam,  sem  dúvida,  de   alterações  que  vêm  ocorrendo  desde  o  Período  Especial,  principalmente  em   relação  aos  papéis  sociais:  no  caso  das  mulheres,  por  exemplo,  as  responsabilidades  cada  vez  maiores,  conseqüência  das  mudanças  econômicas,  também  lhes  propiciaram  mais   direitos  dentro da  sociedade. Em anos recentes,  muitas cubanas optaram por  exercer  esse  poder  na  pista  de  dança,  ao  som  do  lânguido  e  sensual  reggaeton,  com  seus  movimentos  explícitos  altamente   controversos.  Paralelamente  a  esse  estilo,  que  enfatiza  a  dança  e  o  corpo  feminino  sem  qualquer  preocupação  com  o  conteúdo  das letras, o hip hop se  desenvolveu  como  um  movimento  socialmente  consciente  e  influenciado  pelos  efeitos  da  conversão de Cuba em uma “economia mista”.  Oportunidades para o capital estrangeiro  Mas  o  Período  Especial  não  moldou   apenas  a  cultura:  permitiu  também  mudanças  em  áreas  cruciais  com  as  quais  o  governo  de  Raúl  Castro  se  depara  agora.  A  primeira  delas  foi  a  legalização  do  dólar.  Ao  consentir  que  os  cubanos  possuíssem  dólares  e  mantivessem  contas  bancárias  nessa  moeda,  o  governo  tornou  possível  às famílias no exterior remeterem dinheiro  para  ajudar   seus  parentes.  Junto  com  o  incremento  do  turismo,  a  dolarização  permitiu  que os  turistas  gastassem  em  moeda  forte,  enquanto  os  cubanos  usavam  o  peso  no  dia­a­dia.  A  taxa  permaneceu  firme,  em  torno  de  1  para  25  ao  longo  da  maior  parte  do  período.  É  esse  diferencial  que   alimentou  o  mercado  paralelo  e  criou  uma  “dupla  moralidade”:  não  era  possível,  nem  para  o  mais  ardoroso  socialista,  deixar  de  ingressar  no  setor  informal  de  um  jeito  ou  de  outro  para  conseguir  chegar  ao  fim  do  mês  com  alguma  renda.  Em  2006,  o  dólar  foi  retirado  de  circulação  e  substituído  por  um  peso  conversível,  gesto  que  contou  com   a  acolhida  popular:   além  de  significar  a  rejeição  do  “dinheiro  inimigo”,  impunha  um  imposto  extra  sobre  ele,  a  fim  de  encorajar  a  introdução  de  outras  moedas  na  economia.  Em  seu 

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primeiro  discurso  como  presidente  de  fato,  em  24  de  fevereiro  de  2008,  Raúl Castro aludiu à  moeda dupla em circulação dando a entender que algo seria feito para unificá­las.   A lei de investimentos estrangeiros é outra medida do Período Especial que está sendo revista.  Introduzida  em  1993,  ela  permitiu  o  investimento  estrangeiro  direto  em  todos  os  setores  da  economia  cubana,   exceto  na  defesa,  saúde  e  educação.  Em  poucos  anos,  mais  de  400  ​ joint  ventures  ​ haviam  sido  formadas   em  áreas  como  extração  e  refino  de  níquel,  turismo  e  produção  de tabaco e  rum, principalmente com empresas canadenses e da Europa ocidental. O  número  de  ​ joint  ventures   declinou  após  2000,  quando  o  governo  começou  a  restringi­las  às  grandes  corporações  estrangeiras,  mas  desde  a  chegada  de  Raúl  Castro  à  presidência  parece  haver  sinais  de  que  ocorrerá  um  novo  relaxamento e que serão oferecidas mais oportunidades  para o capital vindo de fora.  Este  é  um  dos  indícios  de  que  a  economia  cubana  está  experimentando  um  amadurecimento  inédito,  mas  ainda  há  um  longo  caminho  a  ser  percorrido.  Afinal,  o  lado  negativo  do  relacionamento  com  a  União  Soviética  e  o  Comecon  (Conselho  para  Assistência   Econômica  Mútua)  era  o  modo  como  a  ilha  havia  trocado  uma  forma  de  dependência,  a  dos  Estados  Unidos,  por  outra,  sem  diversificar  suficientemente  seus  mercados  e  sua indústria, e apenas a  partir do Período Especial esse estado de coisas começou a ser alterado.   O  gráfico  da  página  ao  lado  mostra  claramente  como  essa  transformação  ocorreu  e  como  a  economia  resgatou  sua  capacidade  de  lucrar  com  as  exportações,  ao  mesmo  tempo  que  o  açúcar  perdeu  seu  domínio.  O  crescimento  se  acelerou  notadamente  a  partir  de  2004  por  intermédio  do  aumento  de   ganhos  originários  de  “outros  serviços”,  que  representam,  principalmente,  acordos  de  troca  de  capital  humano  (professores,  médicos  etc.),  o  mais  importante  deles  com  a  Venezuela  de  Hugo  Chávez.  Vale  observar  também  como  a  exportação  de  medicamentos  se  tornou  uma  fonte  de rendimentos pequena, mas  crescente, de  2000  em  diante.  Infelizmente  o  aumento  da  produção  de  petróleo,  que  constitui  significativa  contribuição  para   o   PIB,  não   está  representado  no  gráfico,  mas  é  importante  mencionar  que  Cuba  reequipou  suas  instalações   de  geração  de  energia   para  funcionar  com  óleo  diesel  produzido internamente e se tornou auto­suficiente em eletricidade.  Leis de efeito contrário  Já  a  política  exterior  é  e  sempre  foi  uma  preocupação  central  para  o  governo  revolucionário,   principalmente  devido   à  proximidade  da  ilha  com  os  Estados  Unidos  e  a  animosidade 

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mostrada  pelo  poderoso  vizinho  desde  o  início.  Após  a  Crise  dos  Mísseis,  em  outubro  de  1962,  a  ilha  passou  a  gozar  de  uma  relação  favorável   sem  precedentes  com  a  antiga  União  Soviética,  que  de  muito  bom  grado  subsidiou  pesadamente  a  aliada  caribenha,  situada  bem  debaixo  do  nariz  do  inimigo  na   Guerra  Fria.  Nesse  contexto,  os  Estados  Unidos  justificaram  sua  política  de embargo baseados no fato de haver um representante do regime soviético perto  de  sua  fronteira,   o   que  seria  uma  ameaça  a  sua  segurança.  Ao  longo  da  década  de  1990,  porém,  com  o  declínio  e  a  queda  da  URSS,  o  Congresso americano continuou aprovando leis  que  potencializaram  as  restrições  econômicas.  A  Emenda  Mack,  de  outubro  de 1990, proibiu  “todo  comércio  com  Cuba  por  parte  de  companhias  subsidiárias  dos Estados Unidos fora dos  Estados  Unidos”.  Antes  da  aprovação  dessa  lei,  70%  dos  negócios  entre  Cuba  e   empresas  subsidiárias  dos  Estados  Unidos  eram  direcionados   a  alimentos  e  medicamentos.  A  Lei  Torricelli,  de   outubro  de  1992,  além  de  reforçar  a  anterior,  acrescentou  o  veto  a  viagens  de  americanos  para  a  ilha  e  ao  fornecimento  de  assistência   financeira  para  familiares.  Também  impediu  que  barcos  que  tivessem  atracado  em  Cuba  visitassem  portos  americanos  por  seis  meses.  Contudo,  essa  legislação  permitiu  a  grupos  privados  fornecer  ajuda  humanitária  novamente,  na  forma   de  alimento  e  remédios.  Em março de 1996 surgiu a Lei Helms­Burton,  que  impôs  penalidades  às  empresas  estrangeiras  que  realizassem  negócios  com  Cuba  e  permitiu  aos  cidadãos   dos  Estados   Unidos  processar  investidores  internacionais  que  utilizassem de alguma forma propriedades de americanos tomadas pelo governo cubano.   Em  vez  de  provocar  uma  mudança  nos  rumos  políticos  da  ilha,  todas  essas  leis  fizeram  com  que  o  sistema  cubano  se  tornasse  ainda  mais  arraigado.  Tanto  que,  desde  que  assumiu  o  poder,  Raúl  Castro  tem  reiterado  que  Cuba não vai negociar com os americanos,  a menos que  o  governo  vizinho  aceite  firmar  os  diálogos  sem  quaisquer  precondições  e  respeitando  a  soberania de cada nação.  Cuba  tem  continuamente  pressionado  países  estrangeiros  para  estabelecerem  vínculos  comerciais  e  investirem  na  ilha.  Ao  mesmo  tempo,  o  governo  revolucionário  não  retrocedeu  em  nenhum  de seus programas de ajuda médica e outros projetos. Assim, os observadores que   prevêem  uma  mudança  na  relação  entre  Cuba  e   Estados  Unidos   estão  de  olho  antes  nas  eleições americanas do que nas transformações experimentadas pela ilha.  Desde  a  chegada  de  Hugo  Chávez  ao  poder  na  Venezuela  e  a  introdução  de  uma  nova  ajuda  chinesa,  a  partir  de  2003,  ficou  evidente que a economia cubana está se saindo melhor do que 

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muitos  esperavam.  Desse  modo,  a  convicção  dentro  dos  Estados  Unidos  de  que  a  política  de  embargo  é  um  fracasso  vem  ganhando  terreno.  Além  do  mais,  essa  estratégia  está  permeada  de  contradições,  sendo  a  mais  óbvia  de  todas  a  exceção  à  venda  de  alimentos.  Desde  2001,  quando  uma emenda que  permitiu às companhias americanas vender produtos alimentícios foi  aceita  por  George  W.  Bush,  Cuba  se  tornou  o  nono  cliente  das  exportações  dos  Estados  Unidos  para  o  setor.  Outra  contradição  evidente  se  refere  à  migração.  A  partir  de  um  acordo  de  1995,  os  Estados  Unidos  vêm  acolhendo  20  mil  imigrantes   legais  por  ano,  possibilitando  que  os  insatisfeitos  e  potenciais  integrantes  de  um  movimento  de  oposição  dentro  da  ilha  invariavelmente  partam  e  fixem  residência  em  solo  americano.  Esse  fator,  mais  do  que  qualquer outro, explica a fraqueza dos oposicionistas à família Castro.   A  política  americana  é,  assim,  um  tiro  pela  culatra,  já  que  não  fomenta  o  descontentamento  nem  ajuda  na  criação  de  um  movimento  contrário  ao  regime.  A  oposição  que  resta  por  lá  permanece  reduzida  e  é  facilmente  isolada  pelo  governo  cubano.  Além  do  mais,  esses  novos  imigrantes  que  hoje  moram   em  Miami  estão  se  registrando  para  poder  votar  e  devem  pressionar  os  candidatos  por  mudanças  nas  regras.  Afinal  eles  têm  um  interesse  direto  em  enviar  dinheiro  para  seus  parentes  e  gostariam  de  visitá­los  sempre  que  possível.  Na  percepção  dos  imigrantes  mais  antigos,  que  lideram  o  lobby  de  direita  anticastrista,  isso  constitui  um  trunfo  para  o  odiado  regime  fundado  por  Fidel.  Foram  eles  que,  em  2004,  conseguiram  fazer  com  que  o  governo  Bush  restringisse  as  remessas  de  dinheiro  e  as   visitas  familiares,  e  isso  provocou  uma  cisão  na  comunidade  cubano­americana,  que  ganhou  representação  pela  primeira  vez  na  campanha  eleitoral  da  Flórida.  Se  vencer  as  eleições,  Barack  Obama   já prometeu acabar com essas proibições e admitiu conversar com Raúl Castro  sem  precondições.  No  plano  doméstico,  candidatos  democratas  cubano­americanos  com  credibilidade   estão  concorrendo  contra  a  velha  guarda  direitista  republicana.  Não  seria  nenhum  exagero  esperar  que  da  próxima  eleição  americana  saia  alguma  solução  para  o  impasse do embargo a Cuba, independentemente dos rumos que a ilha tome.  Sem  dúvida,  o  processo  de  reformas  conduzido  sob  a  batuta  de  Raúl  Castro  deve  apresentar  conseqüências  mais  a  longo  prazo  que  aquelas  do Período Especial. Ao mesmo tempo,  novos  desafios  se  apresentam  diante  do  país  –  em  particular,  a  crise  mundial  ecológica  e  de  alimentos,  que  requer  toda  a  atenção  do  governo. O que precisa ser percebido, contudo, é que  as  políticas  adotadas   objetivam   assegurar  a  continuidade  do  processo  revolucionário  que 

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começou  em  1959.  Sem  dúvida  elas  terão  um  impacto  na  opinião  pública  americana  em  um  ano  eleitoral,   mas  não  farão  Cuba  adotar  um  “processo  de  democratização”,  como  ora  imaginou  Washington.  Enquanto  Fidel  Castro  viver  e  seu  irmão  permanecer  no  poder,  isso  nunca acontecerá. 

 

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Sites com informação alternativa 

  Jornal Le Monde Diplomatique Brasil: .  Jornal Brasil de Fato: .  Resistir (Portugal): .  Diário Liberdade (Galícia e países lusófonos): .  Correio da Cidadania: .   RT Internacional (em espanhol – notícias diárias): .   Rebelión (em espanhol): .   Diario do Centro do Mundo: .  

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