Conceito de musicalidade e implicações para a educação musical: Um olhar atravéz da psicologia histórico-cultural

June 14, 2017 | Autor: Kleberson Calanca | Categoria: Educação Musical, Psicologia histórico-cultural, Vigotski, Vigotsky, Leontiev Vigotsky
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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA/ MÚSICA

KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA

CONCEITO DE MUSICALIDADE E IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL: UM OLHAR ATRAVÉS DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

ENGENHEIRO COELHO 2014

KLEBERSON MARCOS COSTA CALANCA

CONCEITO DE MUSICALIDADE E IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO MUSICAL: UM OLHAR ATRAVÉS DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Licenciatura em Música do Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho Orientadora: Prof. Dr. Maria Flávia Silveira Barbosa

ENGENHEIRO COELHO 2014

Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho, do curso de Licenciatura em Música apresentado e aprovado em 09 de Novembro de 2014.

Orientadora: Prof. Dr. Maria Flávia Silveira Barbosa

Prof. Dr. Jetro Meira de Oliveira

Em memória daquela que sempre me incentivou a buscar o conhecimento e a fazer diferença onde quer que eu estivesse: minha mãe Nair Cesário Costa.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus que me deu capacidade e conduziu todos os processos para que este trabalho chegasse a sua conclusão. À minha orientadora Prof. Maria Flávia Silveira Barbosa pelo seu empenho em prol do meu crescimento acadêmico neste e em outros trabalhos realizados. À professora de piano Rita Ramenzoni pela minha formação musical, por ter acreditado na minha capacidade e por ter sempre me instigado a ir além. Ao amigo e parceiro em diversos trabalhos Rafael Beling pelas nossas conversas, trocas de ideias, pelos seus pontos de vista e conselhos tão importantes na condução deste trabalho. Aos amigos Leonardo Moralles, Helena Mendonça e Bruno Nascimento pelos momentos de alegria, afeto e cuidado: sem vocês eu não teria chegado até aqui. Às queridas Liza, Gabriela, Amália e Andréia em quem sempre me inspirei como exemplo de comprometimento, dedicação e sucesso acadêmico. Ao meu primo Thiago Hilário e ao amigo Thiago Pereira pelo apoio, incentivo e patrocínio dedicados para que esta pesquisa fosse possível. À Elizabeth Turcílio e Evany Fávero pelo apoio e cuidado incondicional.

Todo inventor, por genial que seja, é sempre produto de sua época e de seu ambiente. Lev. S. Vigotski As pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os desenhos (...) e a dedicar-me de preferência à geografia, à história, à matemática, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor. Fora desencorajado pelo insucesso de meu primeiro desenho. O Pequeno Príncipe Antoine de Saint-Exupéry

RESUMO O presente trabalho pesquisou a predominância do mito do talento inato nas falas e práticas de diversos grupos de pessoas, incluindo profissionais da música, educadores e leigos. Esta visão, segundo este estudo, de caráter inatista, pode gerar preconceitos e exclusão dentro do âmbito da educação musical. O referencial teórico adotado foi a perspectiva histórico cultural de Lev Vigotski, que postula que o desenvolvimento humano acontece de forma social e histórica, contradizendo pressupostos biologizantes e mecanicistas. Este trabalho, portanto, busca esclarecer que a música é um bem da humanidade e, portanto, deve ser acessível a todos.

Palavras chave: Talento; Musicalidade; Vigotski; Histórico-cultural.

ABSTRACT This study investigated the prevalence of the innate talent myth in the speeches and practices of various groups of people, including music professionals, educators and lay people. This view, according to this study, the innate character, can generate prejudice and exclusion within the scope of music education. The theoretical framework adopted was the cultural historical perspective of Lev Vygotsky, which postulates that human development happens social and historical form, contradicting biologizing and mechanistic assumptions. This paper therefore seeks to clarify that the music is a good of humanity and therefore must be accessible to all.

Keywords: Talent; musicality; Vygotsky; Historical-cultural.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 02 2 METODOLOGIA ............................................................................................................. 06 3 DESENVOLVIMENTO ..................................................................................................... 07 3.1 Sobre música, talento e musicalidade: uma visão da atualidade ................................... 07 3.2 A teoria histórico-cultural de Lev S. Vigotski................................................................. 10 3.3 Música como linguagem ............................................................................................. 14 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 16 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................... 18

1 INTRODUÇÃO Muitas pessoas, envolvidas ou não com a música, e até mesmo artigos de jornais e revistas que se dedicam a falar do assunto, na maioria das vezes, tratam os músicos como seres dotados de um “talento especial”. No cotidiano, é comum expressões do tipo “meu filho nasceu para a música, puxou ao pai”, “admiro quem consegue tocar um instrumento ou cantar; queria muito ter esse dom”, “eu não tenho o menor talento pela música, não adianta nem tentar” ou “para fazer isso só se nascer com um talento especial”. Ou seja, a todo o momento estamos rodeados de pessoas que têm como concepção de músico uma pessoa especialmente dotada e veem a música como algo disponível para poucos. Tal conceito apresenta-se tão arraigado no vocabulário das pessoas que é praticamente tomada como consenso. A polêmica que envolve a questão da origem e natureza da musicalidade não é recente. Vários autores já se propuseram discutir esse tema sem, no entanto, chegarem a conclusões satisfatórias. Em sua pesquisa, por exemplo, Ricieri Zorzal (2012, p. 201) elenca vários autores que se propuseram a discutir o tema e afirma que Gagne e Baker “defendem veementemente a existência do talento inato (GAGNE, 1999; 2003; 2007; BAKER, 2007), [enquanto] outros alegam a inexistência de bases científicas para comprová-lo (ERICSSON et al, 1993; SLOBODA, 1985; SLOBODA; HOWE, 1991) ”. Em meados do século XX, Theodor W. Adorno (1903-1969), filósofo e músico alemão da escola de Frankfurt, em sua Introdução à Sociologia da Música, faz uma crítica à visão de talento como um “dom musical”. Segundo o autor,

Caso alguém questionasse o privilégio do dom musical, isso era visto como blasfematório tanto pelos indivíduos musicais, que com isso se sentiam degradados, quanto pelos não musicais, que já não podiam se convencer, diante da ideologia cultural, de que a natureza havia privado-lhes de algo (ADORNO, 2011, p. 272-273).

Contudo, a supracitada premissa encontra-se notoriamente presente, o que nos leva a crer que ainda não fui superada. E ainda que algumas pesquisas nesse campo (cf. PEDERIVA, 2009; SCHROEDER, 2005; BARBOSA, 2009) busquem desenvolver modos eficientes para o ensino-aprendizagem musical, desmistificando tais premissas, o mito do dom inato ainda permanece, atuando como uma justificativa cabal tanto para aqueles que conseguiram

alcançar um certo grau de desenvolvimento musical, quanto para a frustração daqueles que não se dedicaram o suficiente enquanto estiveram em contato com a música em algum momento de sua vida. Portanto, mostra-se relevante, para a educação musical, um esclarecimento acerca desse tema. Penna (2012, p. 29), nesse sentido, elucida que ser musical ou ser sensível a música “não é uma questão mística ou de empatia, não se refere a uma sensibilidade dada, nem a razões de vontade individual ou de dom inato. Trata-se, na verdade de uma sensibilidade adquirida”, e consequentemente, acessível a todos. Logo, se o educador crê que a musicalidade ou a sensibilidade musical é algo nascituro, “então tornará inútil o próprio trabalho” (PENNA, 2012, p. 28). Pederiva (2009, p. 13) acrescenta que “a crença no mito do dom musical, no dom de poucos para poucos, implica, dessa forma, um distanciamento entre seres humanos e a música. Gera descrença nas possibilidades humanas e, assim, a exclusão”. Dentro dessa perspectiva, segundo a autora, “somente corpos biotipicamente conformados, pré-dispostos, seriam os ideais para o adestramento musical” (PEDERIVA, 2009, p. 69). Essa visão, no entanto, induz a uma educação excludente, que condena ao fracasso aqueles que não se adaptam ao padrão de aprendizagem estabelecido pela escola de música formal, gerando, assim, preconceitos. Infelizmente, a exclusão na escola é um acontecimento; ainda que discursivamente negado, é veladamente praticado entre os professores (PEDERIVA, 2009, p. 14). A fim de superar tais preconceitos, encontramos na teoria do desenvolvimento humano do psicólogo soviético L. S. Vigotski1 (1896-1934) e seu grupo2 o aporte teórico que pode trazer uma solução à essa problemática da educação musical. A referida teoria, conhecida como Psicologia Histórico-Cultural, parte da filosofia do materialismo histórico dialético, e entende que está na vida social “o esteio da edificação dos atributos que, de fato, qualificam o homem como ser humano” (MARTINS, 2013, p. 53). As funções psíquicas humanas, aquelas que diferenciam o homem dos outros animais, não são algo concebido a

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Em decorrência de o idioma russo possuir um alfabeto distinto do nosso, têm sido utilizadas diversas formas de escrever o nome desse autor com o alfabeto ocidental. Adotaremos aqui a grafia Vigotski, mas preservaremos nas referências bibliográficas a grafia utilizada em cada edição. 2

Em especial: Alexander R. Luria (1902-1977) e Alexis N. Leontiev (1903-1979).

priori no indivíduo, ou seja, algo com o qual o ser humano já nasce, sendo, portanto, produto de processos de apropriação no decurso da história humana por meio da atividade que vincula o homem a natureza. Barbosa (2001, p. 8), nesse sentido, nos explica que

O processo de tornar-se humano não é resultado do amadurecimento de estruturas já presentes na psique humana ao nascer; ao contrário, a condição de humanidade só pode ser adquirida como resultado da vida em sociedade e da apropriação das habilidades e saberes criados pelo homem ao longo de sua história.

Vigotski, Luria e Leontiev reconhecem o cérebro como substrato material dos processos psíquicos, porém, o funcionamento psicológico se fundamenta nas relações sociais entre o indivíduo e o mundo exterior. O homem transforma sua própria natureza biológica em natureza sócio-histórica, por meio da atividade mediada pelas relações e pelas objetivações humanas social e historicamente produzidas. Isso só acontece porque o homem, durante sua vida social, apropria-se da sua segunda natureza: a cultural; uma vez que cada pessoa não nasce pronta e acabada, mas com a possibilidade de vir a ser humana. “As funções biológicas não desaparecem com a emergência das culturais, mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história humana” (PINO, 2000, p. 51 – grifos do autor). Dentro dessa teoria, toda função psicológica ocorre primeiro como uma forma de colaboração entre os homens, como categoria coletiva interpsíquica e, em seguida, como um meio de comportamento individual; como categoria intrapsíquica (VIGOTSKII, 2012). Desse modo, “o desenvolvimento do psiquismo humano identifica-se com a formação da imagem subjetiva da realidade objetiva” (MARTINS, 2013, p. II). Em suma, entendemos que:

todo o desenvolvimento das funções psíquicas características do homem são resultado, são produto da história (história particular de cada indivíduo e da história conjunta da humanidade e suas conquistas); não é um dado a priori, mas o resultado do trabalho ou das atividades que o indivíduo desenvolve ao longo da vida, não de maneira solitária, mas em contato estreito com seus pares e com o conhecimento (os diversos sistemas sígnicos produzidos ao longo dos séculos) (BARBOSA, 2009, p. 42).

Por assumir a natureza histórica e cultural do desenvolvimento humano, a Psicologia Histórico-cultural permite compreender a musicalidade não como resultado de dados a priori. Podemos afirmar que o desenvolvimento da musicalidade pode ser entendido como algo apreendido socialmente através da vivência, pelo contato dinâmico entre o indivíduo e a música. Pois, ao considerarmos a música parte da cultura, ou seja, como uma atividade essencialmente humana, fica difícil submeter o desenvolvimento da musicalidade a fatores biológicos ou maturacionais (SCHROEDER, 2005). A visão de música como algo inato é excludente. Um professor, um pai ou até o aluno pensar que a música é uma capacidade para poucos vai contra a ideia de inserir a música na escola regular, conforme dita a lei 11.769/08. Propomo-nos, portanto, com esse estudo: a) identificar e desmistificar conceitos equivocados acerca de como percebemos a música; b) compreender a musicalidade, à luz da psicologia histórico-cultural. Nosso objetivo é apresentar elementos para a compreensão da forma como aprendemos e apreendemos a música. Isso pode ser o caminho para uma educação musical mais igualitária.

2 METODOLOGIA

Para a elaboração deste trabalho de conclusão de curso, na modalidade de análise teórica, foi feito, primeiramente, um levantamento bibliográfico e fichamentos de artigos e livros que abordam o tema da musicalidade. Concomitantemente, procurou-se em depoimentos informais, revistas científicas e não científicas desvelar as concepções usuais sobre a musicalidade. O próximo passo foi elaborar o capítulo de fundamentação teórica, à luz da psicologia histórico-cultural, cujo principal elaborador foi o psicólogo soviético Lev Semionovich Vigotski, que defende que para compreender qualquer fenômeno humano complexo, temos que reconstruir suas formas mais primitivas e simples e acompanhar seu desenvolvimento até seu ponto atual – em outras palavras, estudar a sua história. Por fim, chamamos a contribuição de educadores musicais que assumem a perspectiva histórico-cultural do conhecimento para compreendermos as possibilidades desse referencial no que toca ao conceito de musicalidade e, consequentemente, à educação musical.

3 DESENVOLVIMENTO

3.1 Sobre música, talento e musicalidade: uma visão da atualidade

Testes e estudos em psicologia da música – de base cognitivista – ainda não compreenderam a natureza da musicalidade (HALLAM, 2006; ZORZAL, 2012; SLOBODA, 2008). Consequentemente, um consenso sobre os termos música e musicalidade ainda não foi alcançado uma vez que cada autor segue seu próprio parâmetro ao apresentar suas definições. Para alguns, a musicalidade vem sendo apresentada “como sinônimo do ser musical, ou seja, aqueles que tem habilidade para música, em oposição ao amusical, aqueles que não possuem habilidades musicais” (PEDERIVA, 2009, p. 21 – grifos do autor). De forma geral, é a primeira coisa que se espera de um músico, vista como “facilidades musicais, chamadas genericamente de ‘talento’, e que, na maioria das vezes manifestam-se precocemente” (SCHROEDER, 2005, p. 43), levando a crer que esse talento seja uma condição sine qua non para o músico. Durante a apuração de dados para a pesquisa, notamos que o conceito do dom como o arcabouço da musicalidade, ou o talento musical como algo disponível a poucos indivíduos está arraigado nas falas de algumas pessoas, inclusive entre profissionais da área musical. Apresentamos alguns exemplos: Em entrevista concedida a Revista Concerto, Elizabeth del Grande, percursionista da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), declara que iniciou seus estudos entre os 9 e 10 anos de idade. Nas suas palavras: “fazia tudo de ouvido, nunca ninguém me ensinou a pegar na baqueta” (FRÉSCA, 2013, p. 18 – grifo nosso). Tal precocidade e autodidatismo da prática musical sugere a ideia de que os bons músicos já trazem consigo um saber inato sobre a música, restando apenas trazê-los à consciência e organizar tais conhecimentos. Esse pensamento corrobora a epistemologia apriorista, isto é, a que afirma o que é posto antes como condição do que vem depois. No senso comum, é representada frequentemente pelo uso de frases como “filho de peixe, peixinho é” ou “tal pai, tal filho” numa tentativa de “comprovar” que as pessoas que nascem em famílias de músicos, herdam “no sangue” esse talento. Corrobora esse pensamento, Seashore (citado por ZORZAL, 2012, p. 202), ao afirmar que

O talento musical é um dom concedido de maneira muito desigual aos indivíduos. Não somente é o dom da música em si inato, como inato em tipos específicos. Esses tipos podem ser detectados precocemente na vida, antes do início de uma educação musical mais séria (SEASHORE, 1919, p. 6).

Em outro exemplo, Marcelo Sussekind – músico, engenheiro de som e produtor musical que fez parte das bandas “A Bolha” e “Erva Doce” e produziu os primeiros discos de Lobão, Paralamas do Sucesso, além de Capital Inicial, Ira!, Engenheiros do Hawaii, 14 Bis, Lulu Santos, Daniela Mercury, entre outros – em artigo escrito para o site territoriodamusica.com, evidencia um certo conflito de ideias no que se refere a qualidade de ser musical, ou, em suas palavras, “ser músico”. Segundo ele, “ser músico é bem diferente de escolher uma profissão qualquer. Os verdadeiros músicos que existem no mercado foram tomados por um vírus – o vírus da música. E isso não é qualquer um que tem, não” (SUSSEKIND, 2004 – grifo nosso). Nesse exemplo, percebemos que, mesmo na tentativa de explicar a aptidão musical – ou, como Sussekind citou, a qualidade de “ser músico” – como algo adquirido partindo de algo exterior – no caso, o “vírus musical”, no qual o indivíduo se apropria, interioriza, ou se “contamina” –, existe ainda a premissa de que a musicalidade seja algo disponível para alguns poucos. No livro O Fole Roncou! Uma história do forró, o sanfoneiro Geraldo Correia declara que “tem muita gente que quer tocar, tá tocando porque acha bonito: mas é boniteza que só ele acha. Não tem música dentro dele, a música não gosta dele” (MARCELO; RODRIGUES, 2012, p. 459 – grifo nosso). Esse trecho aponta outra visão muito comum que define a estética (a “boniteza”, como disse o sanfoneiro) como fator determinante da “musicalidade” ou do talento. Ou seja, a pessoa só é musical se aquilo que toca/canta condiz com o padrão estabelecido pelo grupo social que detém aquela técnica. Essas premissas são levantadas por Levitin (2010, p. 220). O autor afirma que a “qualificação musical é definida em termos de empreendimento técnico – o domínio de um instrumento ou dos métodos de composição”. O autor explica que Michel Howe em conjunto com seus colaboradores Jane Davidson e John Sloboda iniciaram uma discussão a respeito do conceito leigo de “talento”, levantando o debate da possibilidade de se defender esse tema do ponto de vista científico. Esses autores

definem talento como algo que (1) tem origem em estruturas genéticas; (2) pode ser identificado desde as primeiras manifestações por pessoas

treinadas antes mesmo que sejam alcançados níveis excepcionais de desempenho; (3) pode ser usado para prever quem tem probabilidade de se destacar; e (4) pode ser encontrado apenas numa minoria, pois se todos fossem “talentosos” o conceito perderia o significado (LEVITIN, 2010, p. 221).

Analisando materiais da educação musical, notamos a presença de concepções inatistas do desenvolvimento musical no discurso de alguns educadores musicais, servindo essa perspectiva inclusive de base para suas teorias educacionais. Violeta de Gainza, educadora musical argentina, acredita que as capacidades musicais já existem em estado latente no indivíduo e se afloram quando estimuladas por fatores internos ou externos. Nas suas palavras,

uma determinada porcentagem de crianças costuma demonstrar precocemente condições especiais para a compreensão, execução e criação musicais. Essas condições aparecem em maior ou menor grau nos diversos tipos individuais, devido a um claro impulso interno ou por ação de estímulos externos que atuam como desencadeantes (GAINZA, 1972, p. 59.3 – grifos nossos)4.

Esse pensamento, do mesmo modo, coaduna com o de Edgar Willem, conhecido pedagogo belga, que expõe que é papel do educador “levar em conta as possibilidades potenciais do aluno e, por conseguinte, a natureza dos primeiros elementos do ‘dom’ musical: instinto rítmico, ouvido e compreensão musical em suas diferentes manifestações” (WILLEMS, 1969, p. 197)5. Dentro de sua perspectiva, capacidades como o sentido de ritmo, de escala, dos acordes e até mesmo o senso de tonalidade são encaradas como “qualidades congênitas ou hereditárias”6 (Ibid., p. 23). Para Sloboda (2008, p. 257),

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Todas as traduções presentes nesse estudo são de nossa responsabilidade.

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No original: “Un determinado porcentaje de niños, suele demonstrar desde temprano condiciones especiales para la comprensión, ejecución o creación musicales. Dichas condiciones afloran en mayor o menor grado en los diversos tipos individuales, por obra de un claro impulso interno o por acción de estímulos externos que actúan como desencadenantes” (GAINZA, 1972, p. 59). 5

No original: “debe, en efecto, tener en cuenta las posibilidades potenciales del alumno y por consiguiente la naturaleza de los primeros elementos del ‘don’ musical: instinto rítmico, oído e inteligencia musicales en sus diferentes manifestaciones” (Willems, 1969, p. 197). 6

No original: “cualidades musicales congénitas o hereditarias” (Ibid., p. 23).

A habilidade musical é adquirida através da interação com um meio musical. Consiste na execução de alguma ação cultural específica em relação aos sons musicais. Entretanto, a habilidade musical é construída sobre uma base de competências e tendências inatas. Todo desenvolvimento humano envolve alguma forma de construção a partir daquilo que já é presente.

Partindo de um referencial teórico cognitivista, “Sloboda também entende a ‘habilidade musical’ como resultado da interação com o meio musical sob a base de características internas (‘competências e tendências inatas’) ” (BELING; BARBOSA, 2014, p. 4). Howard (1984, p. 46), entretanto, chega a ser mais radical ao afirmar, em seu livro A Música e a Criança, que “não existe uma única faculdade humana que não tenha existido pelo menos uma vez em algum dos membros da imensa série de ascendentes sob forma perfeita”. Segundo o autor, todas as faculdades humanas, em especial a música, são transmitidas de forma hereditária bastando “descobrir entre seus ascendentes um parente distante [...] excepcionalmente dotado para a música, para que, num só golpe, sentissem surgir neles o mesmo dom” (Ibid., p. 47). É possível afirmar que os dados acima apresentados, apesar de remotos, não foram superados, pois ainda é latente a discussão sobre esse tema em trabalhos hodiernos (SCHROEDER, 2005; PEDERIVA, 2009; BELING; LIMA, 2013; ZORZAL, 2012; LEVITIN, 2010). Isso posto, pode-se afirmar que pesquisadores estão em busca de uma compreensão de maneiras mais eficientes para o processo de ensino-aprendizagem.

3.2 A teoria histórico-cultural de Lev S. Vigotski

Lev Semenovich Vigotski nasceu em 1896 em Orsha, Bielo-Rússia e morreu prematuramente, aos 38 anos vítima de uma tuberculose. Proveniente de uma família judaica de grande desenvolvimento intelectual, Vigotski era um grande conhecedor da filosofia e da psicologia. Formou-se em Direito, Filologia e Medicina. Foi tradutor de obras importantes dos grandes psicólogos da época: Sigmund Freud (1856-1939) e Kurt Koffka (1986-1941), e liderou em Moscou um grupo de estudos – também chamado troika – juntamente com Alexander R. Luria (1902-1977) e Alexis N. Leontiev (1903-1979). Juntos trabalharam, na década de vinte, em torno do desafio de edificar uma base comum à psicologia. Empenharam-se na criação de um novo modelo de estudo dos processos

psicológicos humanos que viesse a superar os enfoques idealistas ou materialistas mecanicistas7 vigentes. Vigotski, entretanto, busca superar esse dualismo entendendo que, embora o ser humano tenha características biológicas (por exemplo, o cérebro e suas sinapses físico-químicas), o que o torna humano não são suas características herdadas biologicamente, mas aquilo de que efetivamente ele vai se apropriando nas relações com outros homens, no meio em que está inserido. Com isso, “romperam com explicações biologizantes e mecanicistas, sem deixar de reconhecer no cérebro o substrato material dos processos psíquicos, e, da mesma forma, com concepções abstratas idealistas, sem perder de vista a propriedade ideal dos referidos processos” (MARTINS, 2013, p. 53). A situação da psicologia da época era paradoxal, pois as estratégias utilizadas nas pesquisas a transformavam em uma ciência natural. Vigotski e seus colaboradores queriam mostrar que a multiplicidade teórica entre os psicólogos da ciência natural e os psicólogos fenomenólogos havia criado teorias que impossibilitavam o estudo científico do psiquismo e suas funções complexas. Segundo Alves (2010, p. 9), “Vigotsky critica os pesquisadores em psicologia que buscam compreender os fenômenos psicológicos a partir do isolamento dos elementos mais simples desses fenômenos e da análise desses elementos em si e por si mesmos”. Vigotski questiona:

o que é que tem em comum todos os fatos que a psicologia estuda, o que é que converte os fenômenos mais diversos em fatos psíquicos – desde a salivação dos cachorros até o prazer pela tragédia – que tem em comum os devaneios de um louco e os rigorosíssimos cálculos de um matemático? A psicologia tradicional responde: o que tem em comum é que todos são fenômenos psíquicos, que não se desenvolvem no espaço e só são acessíveis à percepção do sujeito que os vive. A reflexologia responde: o que tem em comum é que todos esses fenômenos são fatos do comportamento, processos correlativos de atividade, reflexos, atos de resposta do organismo. Os psicanalistas dizem: o que há de comum entre todos esses fatos, o mais primário, o que os une e constitui sua base é o inconsciente. Portanto, essas três respostas estabelecem três significados distintos da psicologia geral, a qual definem como ciência: 1) do psíquico e suas propriedades; 2) do comportamento, ou, 3) do inconsciente (VYGOTSKI, 1997, p. 266 apud MARTINS, 2013, p. 18).

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A psicologia idealista defende que as características humanas vêm do pensamento, das ideias, enquanto a psicologia mecanicista materialista tem suas teorias pautadas na visão fisiológica do indivíduo, sendo Ivan Pavlov (1849-1936) seu principal representante.

Em contraposição a esse contexto, o autor postula a necessidade da psicologia resolver a sua crise. Para tanto, defendeu a formulação de uma psicologia geral que teve como base o materialismo histórico e dialético.

A tarefa de conceber uma nova representação da psicologia não seria resolvida com a acumulação de dados organizados a partir das posições dominantes do saber psicológico, mas sim, por meio de uma nova representação teórica que atuaria como modelo para gerar novas zonas de sentido na produção do conhecimento psicológico. Tal dimensão teóricometodológica seria o materialismo histórico-dialético, que na sua essência se apresenta como um método capaz de gerar núcleos de sentido a partir da noção de contradição (ALVES, 2010, p. 11).

Utilizando-se do método materialista histórico-dialético, Vigotski se apropria dos conhecimentos produzidos pelos teóricos e propõe novos pressupostos na busca da superação das ideias apresentadas pelos pesquisadores da época. Vigotski adota, assim, a dialética para a construção do conhecimento científico em psicologia. Segundo Alves (2010, p. 5),

o componente dialético afirma que a realidade concreta não é uma substância estática numa unidade indiferenciada, mas uma unidade que é diferenciada e especificamente contraditória: o conflito de contrários faz avançar a realidade num processo histórico de transformação progressiva e constante.

Ou seja, a dialética vem a ser a grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não pode ser considerado como um conjunto complexo de coisas acabadas; nesse processo, o conceito de transformação é fundamental. O que o método dialético considera é que nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido quando encarado isoladamente. “O materialismo dialético pode ser definido como a filosofia do materialismo histórico, ou o corpo teórico que pensa a ciência da história” (Ibid. p. 1). Em vista disso, a base da teoria históricocultural da psicologia é a compreensão do caráter histórico do desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Dentro da teoria formulada por Lev Vigotski, o psiquismo humano se revela como unidade material e ideal: material na medida em que é estrutura orgânica e é ideal em razão de ser o reflexo da realidade representada subjetivamente. Inaugura-se, então, uma forma

especial de relação entre sujeito e objeto, isto é, uma forma de relação mediada pela consciência – em especial, a linguagem (VIGOTSKII et al., 2012). Segundo Vigotski (2012), o desenvolvimento das funções psicológicas superiores – memória lógica, atenção voluntária, pensamento verbal, linguagem intelectual, domínio de conceitos, planejamento etc. – é um processo único que se desenvolve na criança de acordo com uma lei fundamental. De acordo com essa lei fundamental,

todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso de desenvolvimento da criança: a primeira vez nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais. Como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas (VIGOTSKII, 2012, p. 114).

Contrariando teorias vigentes no início do século XX, que entendiam o desenvolvimento do psiquismo humano como um processo dependente de fatores biológicos vinculados a maturação, os autores russos (Vigotski, Luria e Leontiev) afirmavam que a interação entre as pessoas e a apropriação da cultura ocupava um papel central nesse desenvolvimento. Por intermédio do trabalho e da capacidade de transformação da natureza, o homem desenvolve suas funções psicológicas superiores. Chegamos, portanto, ao ponto nevrálgico da teoria defendida pela troika: a historicidade do desenvolvimento humano. A maneira como o homem se torna um ser cultural é, sem dúvida alguma, um detalhe muito importante, pois “é o caráter histórico que diferencia a concepção de desenvolvimento humano de Vigotski das outras concepções psicológicas e lhe confere um valor inovador ainda nos dias de hoje” (PINO, 2000, p. 48). Leontiev, portanto, esclarece que

no decurso do seu desenvolvimento ontogênico o homem entra em relações particulares, específicas, com o mundo que o cerca, mundo feito de objetos e de fenômenos criados pelas gerações humanas anteriores. Esta especificidade é antes de tudo determinada pela natureza desses objetos e fenômenos. Por outro lado, é determinada pelas condições em que se instauram as relações em questão. O mundo real, imediato, do homem, que mais do que tudo determina a sua vida, é um mundo transformado e criado pela atividade humana. Todavia, ele não é dado imediatamente ao indivíduo, enquanto mundo de objetos sociais, de objetos encarnados pelas aptidões humanas formadas no decurso do desenvolvimento da prática sóciohistórica; enquanto tal, apresenta-se a cada indivíduo como um problema a

resolver (LEONTIEV, 1978, p. 166 apud BARBOSA, 2009, p. 41 – itálico do autor).

As formulações de Lev Vigotski e seus colaboradores sobre a origem social e histórica das funções psíquicas superiores nos permitem entender a musicalidade de uma forma diferente: como sistema de signos constituído pelos homens nas relações sociais. Partindo dessa premissa, iniciaremos uma análise de como as relações sociais podem desenvolver a musicalidade nos indivíduos.

3.3 Música como linguagem

Para esse momento, então, chamamos à discussão Silvia Schroeder (2005), que em sua tese de doutoramento, intitulada Reflexões sobre o conceito de musicalidade: em busca de novas perspectivas teóricas para a educação musical, esclarece – à luz da perspectiva histórico-cultural de Vigotski – a relação entre o desenvolvimento e a aprendizagem musical. Como já exposto na introdução deste trabalho, a autora esclarece que ao considerarmos a música como sendo parte da cultura do homem, como uma atividade específica do ser humano, não existe a possibilidade de atrelarmos o desenvolvimento musical aos fatores da maturação. Segundo Schroeder (2005, p. 95),

estando totalmente vinculada ao desenvolvimento histórico do indivíduo, qualquer tipo de capacidade musical depende integralmente de um processo de aprendizagem. Sem ela, ou seja, sem a interferência de outros indivíduos, não há como ativar mecanismos biológicos exigidos para o desenvolvimento de capacidades musicais, mesmo que o indivíduo possua todos os prérequisitos necessários a esse fim.

Schroeder, assim como Barbosa (2001; 2009) e Pederiva (2009), entende que a música, como patrimônio cultual humano, só pode ser aprendida/apreendida no âmbito das relações sociais. Essa concepção de música parece ser endossada também por outros autores como Penna (2012), por exemplo, que mesmo partindo de outro viés, que nos parece ser mais adepto às ciências sociais, chega à concepções que se coadunam com as ideias dos autores citados acima. Para a autora, a música poderia ter semelhança a uma forma de linguagem; uma linguagem culturalmente construída. A música seria, portanto, uma “atividade

essencialmente humana, através da qual o homem constrói significações na sua relação com o mundo” (PENNA, 2012, p. 17). Vale salientar, todavia, que compreender a música como forma de linguagem precisa ser assimilado com algumas ressalvas. É comum o equívoco de considera-la uma linguagem universal. Porém, salientamos que a música não se constitui como uma linguagem universal, uma vez que o fazer musical varia, diferenciando-se conforme o momento histórico e o espaço social na qual se encontra. Em seu livro Música(s) e seu ensino, Penna (2012, p. 23-24) afirma:

Na medida em que alguma forma de música está presente em todos os tempos e em todos os grupos sociais, podemos dizer que é um fenômeno universal [...]. Esperamos, portanto, deixar claro que a música não é uma linguagem universal. É, sem dúvida, um fenômeno universal, mas como linguagem é culturalmente construída (2012, p. 23-24).

É importante compreender que cada grupo social, em seu tempo e espaço, seleciona aquilo que será seu material sonoro, aquilo que lhe trará significado, e que pode não ser considerado música por outro grupo que não partilha das mesmas seleções. Esses significados também podem ser modificados com o tempo deixando de ser significativo em outro momento da história daquele grupo social. Assim, podemos afirmar que a música, enquanto um fenômeno, é universal, pois está presente em todas as culturas humanas, mas como linguagem é culturalmente construída. Tal compreensão da música apresenta-se como sendo muito relevante, pois uma vez que a ‘linguagem’ musical só pode ser apreendida/aprendida através das relações socioculturais o próprio processo de aprendizagem dessa linguagem pode ser interpretado de forma diferente. Se o processo de aprendizagem musical se constitui apenas nas relações sociais, o ensino de música, na escola regular, por exemplo, não só pode como deve ser visto de uma nova forma: se a linguagem musical só pode ser aprendida nas relações sociais e se tal linguagem varia de local para local e de cultura para cultura, chegamos a promissora conclusão de que, dada as devidas ferramentas, essa linguagem pode ser acessível a todos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao entendermos a teoria de Lev Vigotski, que diz que todo o desenvolvimento cultural ocorre primeiro no âmbito social para só depois ocorrer no individual, veremos que, quando aplicada ao processo de aprendizagem musical, essa tese pode ser totalmente pertinente no que se refere a vencer os preconceitos criados a respeito da capacidade musical do indivíduo. Somente ao imergir o indivíduo no universo da música, tornando-a significativa, é possível, então, criar mecanismos que venham possibilitar as capacidades musicais. Através dos estudos realizados durante esta pesquisa, feitos em material bibliográfico, sites e revistas, notou-se uma marcante presença do mito do talento inato nas falas de diversos autores, músicos e artistas. O que confirma a problemática levantada de que a música ainda é vista como sendo algo hereditariamente herdado e reservado a poucos escolhidos. Porém, selecionar as artes, e em especial a música, como algo especial reservado apenas para poucos não corrobora com a educação musical que buscamos para o futuro. Entender o desenvolvimento do ser humano à luz da psicologia histórico-cultural mostrou que grande parte das ações do homem não são movidas por motivos estritamente biológicos. A musicalidade é um bem acessível a todos, pois se depender das nossas possiblidades humanas, “todos somos capazes de nos expressar musicalmente, de expressar nossas emoções por meio dos sons, do mesmo modo como, de modo geral, se depender da anatomia e da fisiologia humana, todos somos capazes de nos expressar por meio da linguagem falada” (PEDERIVA, 2009, p. 38). Compreender a teoria histórico cultural de Vigotski “abriu caminhos para o estabelecimento de estreitas relações entre a qualidade do desenvolvimento psíquico e o papel da educação escolar” (MARTINS, 2013 p.1). Como educadores musicais, temos que ter a consciência e a missão de defender um ensino de música que seja acessível a todos. Pois, como afirma Duarte (2006, p. 282), “toda vez que um ser humano é impedido de apropriar-se daquilo que faça parte da riqueza do gênero humano, estamos perante um processo de alienação, um processo que impede a humanização desse indivíduo”. De acordo com Schroeder (2005, p. 158),

Todo processo de musicalização deve passar, necessariamente, por uma internalização. […] Não é exatamente a música como um sistema lógico que é internalizada e à qual, posteriormente, se atribui um significado, mas,

inversamente, são os sentidos musicais, nos seus vários níveis que, uma vez internalizados, possibilitarão a absorção do sistema.

A intenção desse trabalho foi compreender a origem e a natureza da musicalidade à luz de uma teoria que nos permite atribuir tal capacidade a todos os indivíduos, desde que disponibilizadas as devidas ferramentas. Tal teoria mostrou-se bastante pertinente na compreensão dos processos da formação das capacidades humanas, oferecendo uma base que possibilita vencer os preconceitos criados a respeito da musicalidade. Segundo SOBREIRA (2013, p. 64),

Ao submeter os alunos a um pesado programa de aprendizado multidisciplinar ao longo dos anos escolares, não se questionam os talentos e habilidades especiais de cada um para as diversas áreas do conhecimento. Entretanto, ao se falar de artes e, mais especificamente, de atividades musicais, surge o pressuposto fundamental que diz respeito ao “dom” musical. Como se a prática musical fosse reservada aos alunos que geneticamente apresentem “dotes musicais”. Tal exigência, que reserva a prática musical com exclusividade para os grandes talentos quer seja na escola, nas famílias e mesmo nos conservatórios, talvez seja a causa importante de muitos equívocos relacionados ao aprendizado da música.

Almejando uma educação que modifique o ser humano e ofereça-lhe subsídios para seu desenvolvimento, concluímos este trabalho nos apropriando da fala de Leontiev (citado por PEDERIVA, 2009, p. 54):

Escolhi o problema do biológico e do social porque hoje ainda muitos sustentam a tese fatalista de uma determinação do psiquismo do homem pela herança biológica. Esta tese vem alimentar, em psicologia, as ideias da discriminação racial e nacional, do direito ao genocídio e às guerras de exterminação. Ela ameaça a paz e a segurança da humanidade.

8 REFERÊNCIAS

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