Conceito de pena em Gary Becker

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Vide Nikolai Olchanowski (2014).
Foucault explicitamente analisa "Crime and Punishment" (FOUCAULT, pp. 343 e ss.), quando aborda o neoliberalismo americano em "Nascimento da Biopolítica". Sobre a análise de Foucault a respeito de Becker e seu pensamento, vide DILTS (2008) e próprio Becker (BECKER et al., 2012). Para uma crítica moral que incorpora argumentos econômicos, CLEMENTE & WELTERS.
Veja-se Frank R. Reche Maciel (2014), "O aspecto econômico de todo Direito Penal", nossa Dissertação de Mestrado, mais especificamente o Capítulo 2.
Lei de introdução ao Código Penal. Decreto-Lei nº 3.914, 09/12/1941. Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
"Inspired in part by the economist's classic demonstration that monopolies distort the allocation of resources and reduce economic welfare, the United States has outlawed conspiracies and other constraints of trade. In practice, defendants are often simply required to cease the objectionable activity, although sometimes they are also fined, become subject to damage suits, or are jailed".
"What determines the amount and type of resources and punishments used to enforce a piece of legislation? In particular, why does enforcement differ so greatly among different kinds of legislation? The main purpose of this essay is to answer normative versions of these questions, namely, how many resources and how much punishment should be used to enforce different kinds of legislation? Put equivalently, although more strangely, how many offenses should be permitted and how many offenders should go unpunished?"
"... person commits an offense if the expected utility to him exceeds the utility he could get by using his time and other resources at other activities. Some persons become "criminals," therefore, not because their basic motivation differs from that of other persons,
but because their benefits and costs differ."
"One unexpected advantage, therefore, from stressing compensation and fines rather than punishment and deterrence is that the validity of the classical position need not be judged a priori. If valid, compensating fines would discourage all constraints of trade and would achieve the classical aims. If not, such fines would permit the socially desirable constraints to continue and, at the same time, would compensate society for the harm done."
"If compensation were stressed, the main purpose of legal proceedings would be to levy fines equal to the harm inflicted on society by constraints of trade. There would be no point to cease and desist orders, imprisonment, ridicule, or dissolution of companies."
"A "criminal" action would be defined fundamentally not by the nature of the action but by the inability of a person to compensate for the "harm" that he caused. Thus an action would be "criminal" precisely because it results in uncompensated "harm" to others. Criminal law would cover all such actions, while tort law would cover all other (civil) actions"
Fines provide compensation to victims, and optimal fines at the margin fully compensate victims and restore the status quo ante, so that they are no worse off than if offenses were not committed. Not only do other punishments fail to compensate, but they also require "victims" to spend additional resources in carrying out the punishment.
A respeito da crítica de que isso seria imoral, pois equivaleria a permitir que se "comprasse" o direito de cometer uma ofensa por um certo preço, ele afirma que toda ofensa já tem um preço. A diferença seria unicamente a unidade de medida. A pena de prisão, por exemplo, tem o preço medido em tempo. E a de multa em unidades monetárias (BECKER, pp. 64-65).
"Moreover, the determination of the optimal number of offenses and severity of punishments is somewhat simplified by the use of fines. A wise use of fines requires knowledge of marginal gains and harm and of marginal apprehension and conviction costs; admittedly, such knowledge is not easily acquired. A wise user of imprisonment and other punishments must know this too, however; and, in addition, must know about the elasticities of response of offenses to changes in punishments. As the bitter controversies over the abolition of capital punishment suggest, it has been difficult to learn about these elasticities."
Becker reflete sobre a crítica de que seria injusto fixar a pena de multa independentemente da renda do condenado e de que o correto seria estabelecer uma proporcionalidade. Ele rebate à acusação dizendo que se o objetivo é reparar o dano sofrido pela vítima, e não "fazer vingança ou infligir dano aos ofensores" (p. 65), não entra no cálculo da pena considerações sobre raça, sexo, renda etc. Então, ele observa que, segundo o seu modelo, também a pena ótima de prisão deve ser aplicada não em função da renda do condenado, mas em vista dos danos causados, dos custos sociais da ofensa e da finalidade de evitar que infrações ocorram acima de certo nível (p. 65).
Contra a crítica de que essa sistemática seria injusta em relação às pessoas mais pobres, Becker argumenta que o ofensor possui uma "dívida" para com a sociedade (pp. 66-68). E assim como ele adquiriu um ganho sem o consentimento da vítima, a sociedade estaria autorizada a cobrar o débito do ofensor independentemente do seu consentimento. Digamos, então, que se se ele pode pagar com dinheiro, isso seria um privilégio que lhe é concedido. Do contrário, a sociedade estaria autorizada a cobrar de um modo com a qual ele não consentiria. Diz Becker: "Se um homem rico compra um carro e um homem pobre furta um, o primeiro é parabenizado, já o segundo é condenado à prisão. A compra feita pelo homem rico é equivalente a um 'furto' que em seguida é compensado por uma 'multa'. Já o pobre é condenado a prisão porque, de fato, não pode pagar essa 'multa' (BECKER, p. 67). A questão referente à justiça dessa conversão da pena de multa em prisão resumir-se-ia, tão só, a saber se a duração da prisão corresponde ao valor da multa. Nesse sentido, uma pena de 100 mil reais em substituição a uma semana de prisão - digamos nós, parafraseando um exemplo de Becker - seria demasiadamente injusta para pessoas ricas. Exigiria uma quantia muita alta para um tempo de prisão muito pequeno. Por outro lado, quanto às pessoas que efetivamente não possam pagar as multas, Becker sugere que o mais razoável, de acordo com a teoria econômica do crime, seria reduzir o tempo de prisão, considerando os seus custos sociais. Quando à pena multa é aplicada, não há nenhum custo social para a punição - ou esses são mínimos -. Já no caso de prisão, esses custos existem e costumam ser enormes. Uma forma de reduzi-los, então, seria ser "leniente" com os ofensores, reduzindo o tempo de prisão. Dessa forma, o equivalente monetário do tempo de prisão seria menor que o valor da pena de multa ótima, que equivaleria ao dano causado e, assim, à dívida integral do ofensor. Consequentemente, enfim, uma tal pena de prisão (em substituição à multa) não seria injusta.
Marinoni (2007). Sobre execução indireta, afirma: "A doutrina clássica também faz distinção entre direta e execução indireta, afirmando que essa última não é propriamente execução. A distinção decorre do fato de a execução ser concebida como o ato jurisdicional que substitui a vontade do devedor, fazendo com o que direito seja realizado independentemente do adimplemento. Fala-se, nesse caso, de execução forçada, isto é, de realização forçada do direito, exatamente por ser alheia à vontade do devedor. Exemplo é a penhora e a alienação de bem do devedor, com a sua transformação em dinheiro para o pagamento do credor. A execução indireta, também chamada de coerção indireta, não realiza, por si só, o direito material, mas apenas atua sobre a vontade do devedor com o objetivo de convencê-lo a adimplir. Constitui exemplo de execução indireta o emprego da multa com a finalidade de constranger o demandado ao cumprimento" (pp. 70-71).
A prisão civil existe para devedor inadimplente de pensão alimentícia, como ato que visa coagi-lo ao pagamento. Havia, até muito recentemente, a prisão civil do depositário infiel, mas ela foi declarada ilícita pelo STF. Embora a Constituição a admita, inclusive no mesmo dispositivo em que autoriza a prisão do devedor de alimentos (art. 5º, LXVII), o Supremo entendeu que é ilícita porque viola direitos humanos fundamentais, consoante a proibição da prisão do depositário infiel constante no Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional de direitos humanos, do qual o Brasil é signatário. A posição do STF consolidou-se desde o cancelamento de sua Súmula nº 619, quando do julgamento do HC 92566 (DJe nº 104 de 05/06/2009), e hoje está consubstanciada na sua Súmula Vinculante n° 25 - vide proposta de súmula vinculante n° 31 (DJe nº 27 de 12/02/2010) -.
As justificativas para tornar ilegais ou puníveis certas atividades também abarcam, embora raramente de forma exclusiva, argumentos paternalistas. Nesses casos, embora a pessoa prejudicada participe da transação com o "ofensor" consentindo com o suposto dano que lhe é infligido, ainda assim proíbe-se a atividade. É o caso da criminalização do uso de drogas, por exemplo. Sobre o tema, vide FIORENTINI, 1999, p. 446.
"Reasonable men will often differ on the amount of damages or benefits caused by different activities. To same, any wage rates set by competitive labor markets are permissible, while to others, rates below a certain minimum are violations of basic rights; to some, gambling, prostitution, and even abortion should be freely available to anyone willing to pay the market price, while to others, gambling is sinful and abortion is murder. These differences are basic to the development and implementation of public policy but have been excluded from my inquiry. I assume consensus on damages and benefits and simply try to work out rules for an optimal implementation of this consensus."
"A parte de cima da Tabela 1 lista os custos de vários crimes, o que tem sido interpretado por nós até agora como sendo o valor dos recursos consumidos por esses crimes. Esses recursos são componentes importantes do custo líquido do crime para a sociedade, mas não são idênticos a ele. Por exemplo, o custo do homicídio é medido pela perda nos ganhos das vítimas e exclui, entre outras coisas, o valor atribuído pela sociedade à vida em si mesma; o custo do jogo exclui tanto a utilidade extraída por aqueles que praticam o jogo como a "desutilidade", a externalidade negativa, para clérigos e outros; o custo de "transferências" como furtos por arrombamento e fraudes exclui as atitudes sociais a respeito de redistribuições forçadas de riqueza e também o efeito da possibilidade de furto sobre a acumulação de capital" (BECKER, p. 44).
"A utilidade esperada com o cometimento de um crime depende, dentre outras coisas - como a probabilidade e o valor da punição -, da renda monetária e psicológica proporcionada pelo cometimento do crime" (BECKER, p. 47, nota de rodapé nº 16).
"Of course, as participants in triple-damage suits are well aware, the harm done is not easily measured, and serious mistakes would be inevitable. However, it is also extremely difficult to measure the harm in many civil suits [referência suprimida], yet these continue to function, probably reasonably well on the whole. Moreover, as experience accumulated, the margin of error would decline, and rules of thumb would develop."
"Harper and James said, "Sometimes [compensation] can be accomplished with a fair degree of accuracy. But obviously it cannot be done in anything but a figurative and essentially speculative way for many of the consequences of personal injury. Yet it is the aim of the law to attain at least a rough correspondence between the amount awarded as damages and the extent of the suffering" (1956, p. 1301)."
"Embora existam poucas medidas objetivas dos danos causados pela maioria das ofensas, não é necessária muita imaginação para concluir que ofensas como o homicídio ou o estupro causam danos geralmente maiores do que pequenos furtos ou furto de automóvel" (BECKER, pp. 55-56).
Ver nota de rodapé n° 16.
Sobre pena administrativa, vale mencionar nosso artigo "Contra a discricionariedade em matéria de penas administrativas" (pronto para publicação).
O ato que promove a reparação, diria Kelsen, é chamado "execução". Todas as outras sanções são penas, ou não são propriamente sanções, mas respostas do Estado a fatos não caracterizáveis como conduta (KELSEN, 1999, pp. 76-77).
Kelsen dá como exemplo de "execução" - i.e., a sanção voltada à reparação - o caso da condução coercitiva, realizada para produzir a mesma conduta que deveria ter sido produzida. Ou pense-se no caso do furto de veículo. A reparação exige tão somente a restituição do bem que foi subtraído (KELSEN, 1999, p. 77).
Nesse sentido, "Comércio é circulação econômica. É troca de bens. Bens comerciáveis (res in commercio) são suscetíveis de alienação. Bens incomerciáveis (res extra commercio) ou indisponíveis são os que não podem ser apropriados nem alienados" (AMARAL, 2008, p. 337).
Nesse sentido, ainda Francisco Amaral (2008, 198): "Há três espécies de bens incomerciáveis: a) os insuscetíveis de apropriação por natureza; b) os legalmente inalienáveis; c) os inalienáveis por vontade humana. São bens insuscetíveis de apropriação os que pertencem a todos, res communes omnium, como o ar, a água corrente, a luz do sol. São bens legalmente inalienáveis ou indisponíveis os que a lei proíbe a alienação, como a herança de pessoa viva (…) [entre outros que autor cita, com destaque para] os bens objeto dos direitos da personalidade, em sentido lato. São bens inalienáveis por vontade humana aqueles tornados indisponíveis pela manifestação de vontade pessoal a que a lei reconhece validade [a exemplo do bem de família, citado pelo autor]".
Sobre que bens podem ser considerados disponíveis, nesse sentido, vide o Capítulo 5 de nossa Dissertação de Mestrado: Frank R. Reche Maciel (2014).



Introdução

A teoria econômica do crime, conforme formulada por Gary S. Becker em "Crime and Punishment: An Economic Approach", de 1968, aparentemente restringe-se à análise do "crime" propriamente dito, considerando seu significado técnico-jurídico. Mas, mesmo sem muita atenção, é fácil perceber que Becker postula sua aplicação para análise de qualquer "violação" ou "ofensa", não importando se a violação caracteriza crime, um ilícito civil ou administrativo, bastando, no entanto, que haja associação a uma pena. A rigor, nem mesmo importa se a violação é jurídica. Mesmo que não definidas em lei, podem ser objeto de análise dessa teoria, como sugere Becker.
Ocorre, entretanto, que Becker não oferece um conceito claro e expresso de "violação" ou ofensa. Nosso objetivo, então, é esclarecer qual seja esse "ilícito em geral", partindo da análise do próprio texto do autor, do qual procuraremos extrair alguns indícios.
A falta desse conceito, via de regra, não é um problema grave para os estudos econômicos, pois as definições de "crime" ou "ilícito" são dadas operacionalmente, caso a caso, em estudos empíricos, quando o pesquisador entender que isso seja necessário. De qualquer modo, um conceito geral, se não dispensa, ao menos abrevia a formulação de conceitos casuísticos. Além disso, a explicitação desse conceito geral de ilícito demonstra definitivamente a consistência da aplicação da teoria econômica do crime em outras áreas que não somente o Direito Penal.
A aplicação "extrapenal" dessa teoria, porém, não é apenas uma possibilidade. Em alguns casos, ela será necessária. Imagine-se, por exemplo, uma determinada conduta que é punida simultaneamente nas esferas penal e administrativa. A teoria exige que se considere os diversos instrumentos de que o Estado se vale para punir essa conduta, pouco importando a área do Direito a que pertença esse instrumento. Basta que se trate de uma punição. Como veremos, Becker sugere até mesmo que se deva considerar as punições informais.
Daí, então, concluir-se que, enquanto o conceito de ilícito em geral é apenas uma conveniência, o conceito de pena é uma necessidade teórica para essa abordagem.
Paralelamente a isso, percebe-se que Becker define como "violação" ou "ofensa", de interesse da teoria econômica do crime, aquela que esteja sujeita a uma pena. Definir pena, portanto, serve perfeitamente a uma definição de "violação". Nesse sentido, podemos dizer que o objetivo deste estudo é procurar extrair, no texto de Gary Becker, uma definição de pena e, indiretamente, de "ilícito punível".
A princípio, em vistas das proposições do autor, seria necessário procurar elaborar o conceito de ofensa, bem como de pena, independentemente de essas estarem ou não definidas em lei, ou seja, de serem oficiais. Mas nos parece que isso traria algumas dificuldades adicionais que, por ora, entendemos que não precisam ser enfrentadas. Vamos nos restringir, então, aos conceitos legais de ofensa e pena.
Ao procurar explicitar esse conceito geral, pretendemos também esclarecer e aperfeiçoar a teoria, agora de um ponto de vista da teoria do direito, ou daquilo que, na teoria econômica do crime, é na verdade uma teoria do direito. O valor imediato desse esclarecimento é apenas didático e pedagógico. Mas visa, no longo prazo, aproximar o Direito e a Economia, no sentido de facilitar e estimular os estudos interdisciplinares e, mais especificamente, o estudo econômico do crime e outras violações puníveis.
Este nosso estudo tem a pretensão de ser apenas um ensaio. Além disso, não fazemos uma revisão bibliográfica, senão que partimos quase que exclusivamente daquele texto de Becker, em que formulou o modelo original da teoria econômica do crime. Nosso objetivo é tão só responder ao problema específico que foi colocado inicialmente, e de um ponto de vista interno àquele texto. Nessa linha, não temos a pretensão de resolvermos o problema de definir o ilícito punível ou a pena em vista de todas as reflexões travadas na teoria e na filosofia do Direito. Talvez nem mesmo seja possível extrair um conceito claro de pena em Becker, o qual, aparentemente, só oferece indícios quanto a isso. Isso não nos impedirá, contudo, de arriscar uma hipótese interpretativa.
Importante ter em mente que os economistas, ou o "raciocínio econômico", ou ainda o utilitarismo, desempenharam um papel fundamental na concepção moderna de Direito Penal. Becker (p. 79), por exemplo, lembra que Beccaria e Bentham, dois importantes autores "clássicos" da criminologia e da política criminal moderna, explicitamente aplicaram o cálculo econômico em suas obras. O que "Crime and Punishment" propõe, portanto, não é nenhuma novidade. O próprio título enfatiza isso ao repetir, em parte, aquele que foi o título da obra magna de Beccaria.
Por fim, registre-se que este artigo foi elaborado tendo em vista reflexões futuras em torno de questões morais e políticas sobre a teoria econômica do crime e sua adoção, explícita ou não, nas políticas criminais reais. São reflexões como a que Foucault faz, quando a analisa no "Nascimento da Biopolítica", que nos levaram a querer compreender melhor essa abordagem.
Embora inúmeras ressalvas morais possam ser opostas à teoria econômica do crime, é evidente, diante de sua repercussão no meio acadêmico, que ela deva ser estuda por quem pretenda abordar as relações entre Direito Penal e Economia, como vimos fazendo nós. Nem que ao menos esse estudo se destine a compreendê-la para, logo em seguida, criticá-la, seja de um ponto de vista mais filosófico ou a partir da teoria econômica.
Nosso objetivo, por ora, é apenas o de compreendê-la. Algumas considerações críticas, do ponto de vista moral, enfrentadas por Becker no texto analisado, serão mencionadas em nota de rodapé, mas apenas a título de registro.

Observações preliminares sobre o conceito de "crime"

De início, acompanhando a ordem de exposição do texto, importa ressaltar que os crimes a que se refere a teoria econômica do crime não são apenas aqueles que um direito criminal natural poderia sugerir, isto é, crimes mala in se, como costumam ser interpretado os crimes contra à pessoa e à propriedade, a exemplo do homicídio, do roubo, do estupro etc.
Como nota Becker (p. 39), desde o início do século XX, o Estado contemporâneo cada vez mais distanciou-se do modelo liberal, em que se limitaria a direito penal mínimo, correspondente também a um Estado mínimo, de laissez faire, e que na seara penal consistiria basicamente no combate de violações à pessoa e à propriedade. O Estado tomou para si o combate à discriminação de minorias, aos cartéis, às infrações de regras de trânsito e de regulamentos de inúmeras outras atividades.
Na dogmática penal, essa nova fase histórica da política penal costuma ser estudada sob título impreciso de Direito Penal Econômico. Ela promove especialmente a punição de crimes mala prohibita, quase sempre muito distantes de qualquer noção de crime natural.
A nosso ver, é primeiro para ressaltar que irá tratar não apenas de crimes naquele sentido anterior, que Becker explicita que faz uso o termo "crime" tão somente para "minimizar inovações terminológicas", mas que, com o termo, quer designar não apenas "felonies" - crimes como o assassinato, o roubo e a lesão corporal, exemplos esses citados pelo próprio Becker -. Afinal, diz ele, citando também estes exemplos, irá tratar igualmente da evasão fiscal, de crimes de colarinho branco, do tráfico e de quaisquer outras "violações" (p. 40).
A questão que surge é se por quaisquer "outras violações" deve-se entender apenas o que possa ser qualificado como "crime". No caso americano, por exemplo, isso significaria especialmente incluir junto às "felonies" as chamadas "misdemeanors", que são crimes punidos com penas menores, a semelhança de nossas "contravenções". Mas Becker parece ir além.
Ele logo irá acrescentar, como exemplo, as violações à legislação que protege os empregados contra a discriminação no trabalho ("fair-employment law"), referindo-se à dissertação de Willian Landes (1966). Consultando um paper de Landes (1968), embasado naquela sua dissertação, pode-se verificar que, nesse caso, as violações acarretam, especialmente, o dever de reverter ou interromper a discriminação praticada, o que deverá ser perseguido judicialmente por agências governamentais incumbidas da fiscalização de tais leis. Caso as ordens judiciais, então, não sejam acatadas pelo empregador, ele estará sujeito a multas e à prisão, por exemplo.
Como se vê, essas a violações e penas mencionadas por Becker não caracterizam crimes ou penas propriamente criminais. Diríamos que algo do gênero, em nosso ordenamento, seria caracterizado como de natureza administrativa ou mesmo civil. De qualquer modo, embora não o diga expressamente, fica claro que Becker emprega o termo "crime" para designar "violações" não apenas propriamente criminais.
Na verdade, também seria possível, conforme Becker, aplicar o seu modelo a "ilícitos puníveis" não oficiais. Ele mesmo aplica a teoria econômica do crime para analisar cartéis, máfias e outros tipos de colusões, seja em mercados legais ou ilegais. Vê uma perfeita compatibilidade do modelo para investigar as violações e punições a esses acordos ilegais que constituem as colusões ilícitas.
Também importa notar que Becker não restringe o que seja "violação" ao fato de ser punida com um tipo específico de pena (p. 49). Em suma, ao menos de um ponto de vista qualitativo, Becker encara as penas de multa ou a suspensão do direito de dirigir como "pena" tanto quanto o seriam as penas de morte, suplício ou banimento. Basta o que ato em questão possa ser caracterizado como "pena".
Isso é bem diverso, por exemplo, do que ocorre com a definição de crime no Brasil, onde crimes (ou contravenções) são legalmente definidos como a conduta punível (possivelmente) com pena de prisão. A definição de crime ou violação, em Becker, não depende um tipo de pena específico.
Em que pese toda essa diversidade - que vai de crimes gravíssimos a infrações administrativas ou mesmo civis, e da pena de morte à de multa - que é incorporada na teoria econômica do crime, Becker não se preocupa com identificar o elemento comum entre violações ou penas tão distintas.
De fato, a princípio, não parece exigível a conceituação do que seria a "violação" em geral, apesar de isso trazer algumas vantagens e, por isso mesmo, ser conveniente. É o que indicamos acima, na introdução. Porém, como lá ressalvamos, mostra-se necessário, por sua vez, um conceito claro de pena. Ele é fundamental para uma aplicação empírica consistente do próprio modelo.
Essa necessidade deriva do próprio objetivo a que se propõe a teoria, que é o de contribuir para o cálculo de minimização do custo social total da política punitiva, como veremos melhor em seguida. Em vista dele, o custo das diversas formas de punir efetivamente empregadas pelo Estado, frente a determinada violação, deve ser considerado. Nenhuma punição utilizada pode ser negligenciada, venha ela de que ramo do Direito for.
Aliás, registre-se, Becker sugere até mesmo que seria necessário incluir nos custos da punição - mais especificamente, nos custos sofridos pelo ofensor -, o que chama de "additional punishments", referindo-se logo depois a Sutherland (1960, pp. 267-268), que as haveria enumerado exemplarmente. Tratam-se de penas informais, não jurídicas ou não oficiais. De nossa parte, nesta oportunidade, nos concentraremos na explicitação de um conceito de pena formal ou oficial, sem prejuízo de que, com os ajustes necessários, num estudo futuro, possa a vir a ser adaptado ao campo extralegal.
Considerando as penas oficiais, então, não importa se o instrumento usado para enfrentar determinada violação provém do Direito Penal ou não. Temos em mente, aqui, certas violações que são simultaneamente punidas pelo Direito Penal e em outra seara jurídica. Nesse sentido, Becker cita o seguinte exemplo.

Inspirado em parte pela clássica demonstração econômica de que os monopólios distorcem a aplicação de recursos e reduzem o bem-estar econômico, o Estado americano tem proibido colusões e outras restrições do mercado. Na prática, dos acusados se exige simplesmente que cessem a atividade proibida, embora algumas vezes eles também sejam multados, sujeitados ao pagamento de indenizações e à prisão (BECKER, p. 68-69, tradução nossa).

Se a conduta anticoncorrencial é punida não somente com prisão, que é a típica pena criminal, mas também com multas na seara administrativa, ambas as coisas devem ser consideradas quando da aplicação do modelo. Conforme a isso, tem menos importância saber se certa punição provém do Direito Penal do que saber se a medida, venha de onde vier, é ou não uma punição.
Ainda assim, pode-se dizer que seria necessário somente um conceito de pena para Becker, mas não um conceito de "ofensa" ou "violação", que poderia continuar a ser intuído ou elaborado caso a caso. Bastaria que, definida certa "violação" para um estudo específico, não se ignorasse nenhuma das penas efetivamente aplicadas a essa violação.
Ocorre que, apesar de inexistir uma definição explícita do que seja "violação", é fácil concluir, a partir do que já vimos, que Becker a define como tal justamente porque está sujeita a uma pena. A pena, então, é o elemento chave para definir o que seja a "violação" ou a "ofensa" a que ele se refere.
Para nossos objetivos, essa punição que importa para definição de ilícito punível é uma punição estatal, ou jurídica, oficial, assim como o é, por consequência, a "violação" considerada. Já o dissemos, contudo, que essa restrição é apenas conveniência, e que a teoria econômica do crime, a rigor, exige no mínimo um conceito extraoficial de pena.
Esses que até agora vimos são apenas indícios muito remotos do que Becker possa entender como ilícito punível. Porém, ele aproxima-se muito de uma definição clara quando aborda a diferença entre o que seja, de um lado, a compensação e a responsabilidade civil e, de outro, a legislação criminal.
Essa diferenciação é um tema transversal aos demais assuntos abordados por Becker e, eventualmente, supõe que se tenha em mente alguns pressupostos antes apresentados por ele. Dessa forma, a seguir, veremos a diferenciação aparecer através e com base na formulação do modelo - que permitiria calcular o nível ótimo de ofensas a serem toleradas -, na análise de cenários em que o nível ótimo de infrações seria zero - ou em que, apesar de acima de zero, isso significaria não um prejuízo social, mas um aumento do bem-estar geral -, nas relações entre vingança, prevenção e compensação e, finalmente, na proposição da pena de multa como pena mais adequada ao modelo. Por último, antes de concluirmos, analisaremos os distintos significados que Becker dá ao termo "irreparabilidade", fundamental para extrairmos de seu pensamento algum conceito de pena e ilícito punível.
Comecemos, então, pela apresentação do modelo de cálculo do ponto ótimo.

Condições de otimização da política punitiva para minimizar o custo social do crime

Becker observa que, dado que a obediência às regras não está garantida, é preciso investir recursos para prevenir as ofensas, condenar os ofensores e puni-los. Ele, então, se pergunta:

O que determina a quantidade e o tipo de recursos e punições usados para assegurar o cumprimento de certa legislação? E, em particular, porque isso difere tanto entre diferentes tipos de legislação? O objetivo principal deste ensaio é responder versões normativas desses questionamentos, quer dizer: quanto recurso e que punições deveriam ser usados para assegurar o cumprimento de diferentes tipos de legislação? Para dizer o mesmo, embora de um modo mais estranho, quantas ofensas deveriam ser permitidas e quantos ofensores deveriam ser deixados impunes? (pp. 39-40, tradução nossa)

A sua resposta, basicamente, será um modelo matemático que permita calcular os custos ou prejuízos de diferentes crimes em relação aos custos de descobrir, condenar e punir (de diferentes formas e em diferentes quantidades).
Nessa linha, segundo Becker, quanto mais severa a pena e maior for a probabilidade de o autor de um crime ser descoberto e condenado, menor será o nível de crimes. O nível de crimes também é determinado por outras variáveis, como a renda que pode ser obtida em atividades lícitas ou em outras atividades ilegais, "a disposição para cometer um ato ilegal" (p. 47), diferenças de "inteligência, idade, educação, histórico quanto a prévias infrações, saúde, educação familiar etc." (p. 48) e até mesmo o tempo que a pessoa passa presa, já que isso a impediria de cometer crimes fora da prisão. A despeito de todas essas diferenças, Becker dá como certo que

... uma pessoa comete uma ofensa porque a utilidade esperada com o cometimento da ofensa excede a utilidade que ele poderia obter usando seu tempo e recursos em outras atividades. Algumas pessoas se tornam "criminosas", portanto, não porque suas motivações básicas diferem das motivações de outras pessoas, mas porque seus custos e benefícios são diferentes (p. 46, tradução nossa).

De todas aquelas variáveis, Becker irá considerar especialmente o impacto na disposição de alguém (para cometer um crime) quando ocorre um aumento no risco de ser descoberto e condenado. Tudo o mais mantido constante, quando alguém não tem aversão ao risco ("risk preferrers"), um aumento na probabilidade de condenação tem mais efeito (na redução de crimes) que um aumento análogo na quantidade de punição. E o inverso vale para quem tem aversão ao risco (risk avoiders): um aumento na pena tem mais efeito para reduzir o nível de crimes do que um aumento análogo na probabilidade de condenação (p. 48). Se for possível distinguir "risk avoiders" de "risk preferrers" - por exemplo, talvez, pelo tipo de crime, que em sua maioria seriam cometidos por "risk prefferes", segundo Becker -, a política criminal deveria levar isso conta.
Do ponto de vista exclusivo da política criminal - ou política punitiva, para abranger aqui outras "violações", e não apenas crimes -, estão sujeitas ao controle social somente as seguintes duas variáveis: (1) probabilidade de descobrir a ofensa e condenar o ofensor; (2) severidade da punição, incluída aqui a forma específica de punir - v.g. prisão, multa, pena de morte etc. - (p. 51). As demais variáveis são tomadas como "dadas", ou variáveis independentes. Elas interagem com as duas primeiras variáveis na medida em que determinam o grau de reação, sensibilidade ou "elasticidade" da reposta ou efeito no nível de atividade da "indústria" do crime - ou número total de crimes cometidos num dado período - (pp. 48-49 e 59-60). Como no exemplo anterior, a variável "inclinação ao risco" compromete o efeito (no nível de crimes) de um aumento na punição, mas favorece a medida de aumentar a probabilidade de condenação.
Dessa forma, nos custos sociais de combater ofensas estão incluídos os gastos com descobrir e condenar, e os gastos com a punição aplicada. Quanto mais severa a pena, via de regra é maior o seu custo para o Estado, que a executa. Fora isso, há um custo para o próprio ofensor ou seus dependentes, como quando deixa de perceber renda porque está preso. Da mesma forma, aumentar a probabilidade de descobrir e condenar também implica um aumento de custos para agentes públicos ou privados engajados nessa tarefa. A esses custos todos, para simplificar, vamos chamá-los de "custos indiretos" do crime.
De outro lado, há os custos provocados diretamente pelas ofensas cometidas, ou "custos diretos". Nesse caso, Becker distingue o "custo bruto" e o "custo líquido" (pp. 42-44). O custo líquido é o custo bruto, que são os danos sofridos pelas vítimas, menos o ganho obtido pelo ofensor. Essa diferenciação terá ainda uma importância especial para os casos - que Becker diz serem presumivelmente poucos, de qualquer forma -, em que o ganho privado exceda o dano causado. Mas Becker presume que, na maioria das vezes, o dano exceda o ganho.
O custo social total do crime é a soma de seus custos diretos e indiretos (p. 51). É em consideração a esse custo social total que Becker elabora seu modelo de otimização da política punitiva.
Os custos do Estado, assim como os custos sofridos pelas vítimas e pelo próprio ofensor ou seus dependentes - quando preso, por exemplo -, são todos "custos sociais" (indiretos) que, como os custos (diretos) do crime, minimizam o bem-estar social. Isso levará Becker a concluir que que existe um "nível ótimo" de crimes a serem punidos. Dito de outra forma, há um "nível ótimo" de ofensas a serem toleradas. Isso porque, acima de certo ponto, custará mais à sociedade reprimi-los do que tolerá-los, em vista de que o prejuízo que causam (custos diretos) não supera o custo de eliminá-los (custos indiretos). O modelo permitiria calcular qual é esse nível ótimo.
Embora não o diga peremptoriamente, ele se apoia nalguns estudos para concluir que, geralmente, as políticas reais ("actual policies") efetivamente correspondem a esse "nível ótimo" ("optimal policies"), ou tendem a ele (p. 78). De qualquer forma, Becker oferece a Economia como ciência auxiliar da política criminal, vez que ela contribuiria para apontar qual seria, nesse campo, a forma ótima de alocar os recursos e maximizar o bem-estar social (p. 79).

O nível ótimo de infrações igual ou acima de zero

O nível ótimo de ofensas será muito provavelmente maior que zero. Raramente será igual a zero. Quando é maior que zero, porém, certo nível de infrações pode corresponder à política ótima por razões distintas, como veremos abaixo.
Raramente o custo social total seria igual a zero. A tendência é que ele seja sempre maior, o quer dizer que a sociedade deva aceitar certo nível de ofensas porque o custo de eliminá-las é maior do que o de tolerá-las.
Numa situação hipotética, contudo, o custo social poderia ser zero se os custos com descobrir e condenar fossem zero, assim como se o custo de punir de determinada forma fosse zero (p. 61). O custo de punir seria zero, por exemplo, se a pena empregada fosse a multa. Nesse caso, como diz Becker, haveria simplesmente uma transferência de recursos do condenado para a sociedade (p. 60-61), com a vantagem de que essa transferência "compensaria" os danos sofridos pelas vítimas, contribuindo para minimizar o custo social até zero.
Nesse caso, a sociedade poderia aumentar a probabilidade de descobrir e condenar até o nível de 100%, e aplicar penas suficientemente altas para cobrir todos os danos causados pelo crime. E isso equivaleria a maximizar o bem-estar social, levando o custo social total do crime a zero.
Nessa situação hipotética, surge a interessante questão - cuja análise contribuirá decisivamente para encaminhar este nosso estudo - de saber se a pena aplicada deve ir além dos danos causados pela ofensa ou limitar-se a esses danos.
Isso não seria uma questão se os danos causados pelo crime sempre excedessem o ganho privado dos autores. Se é assim, aplicar penas suficientes para cobrir os danos causados equivaleria a aplicar penas maiores do que os ganhos havidos pelos ofensores. De acordo com a teoria econômica, isso seria suficiente para desencorajar que novas ofensas viessem a ser cometidas - i.e., prevenir -. E, ao mesmo tempo, como enfatiza Becker, seria suficiente para compensar a vítima, o que seria típico da responsabilidade civil. O custo social final seria zero (pp. 50 e 61).
Porém, quando o crime gera danos menores do que os ganhos privados - o que seria verdade para algumas poucas infrações -, o custo (direto) líquido do crime é um valor menor que zero. Quer dizer, um valor positivo. O crime contribuiu, então, para o aumento do bem-estar social. Nesse caso, se a pena aplicada for igual ao dano, ela será suficiente para compensar a vítima, mas não para desestimular a repetição da ofensa. E se ela for maior que o ganho, para prevenir a repetição, ela irá provocar uma redução do bem-estar social (pp. 60-61).
Isso levará Becker a concluir que penas ótimas são aquelas que procuram compensar o dano causado. Se a pena não for suficiente para desestimular a prática do crime, é porque o ganho privado tem excedido o dano causado a vítima e, dessa forma, contribuído para o aumento do bem-estar social.
Na prática, isso significaria que, no ponto ótimo, a política criminal deveria tolerar algumas poucas infrações não porque o custo de eliminá-las excede o de tolerá-las, mas simplesmente porque eliminá-las reduziria o bem-estar social que elas produzem.
Isso soa absurdo se tivermos em mente um crime de estupro ou homicídio, por exemplo. Porém, soa muito razoável, no seguinte caso, apresentado por Becker.
Voltando mais uma vez ao caso da punição de restrições da concorrência, Becker informa que os economistas se dividem, tradicionalmente, entre duas posições a respeito. De um lado, há aqueles que condenam por princípio qualquer restrição da concorrência, porque entendem que disso necessariamente resultará uma redução do bem-estar social - posição adotada pela legislação americana no começo do século XX, por exemplo -. De outro, há aqueles que entendem que as restrições da concorrência, como cartéis, não necessariamente reduzem o bem-estar social e, eventualmente, podem sim contribuir para incrementá-lo - posição que que é conhecida como tendo sido adotada exemplarmente no Direito alemão -. Diante dessa divergência, Becker apresenta uma solução neutra para a questão de saber se se deve ou não punir as restrições da concorrência.

Umas das vantagens inesperadas desse método é que, por focar na compensação e nas multas mais do que em punição ou prevenção, a validade da teoria tradicional [a de que restrições da concorrência são sempre negativas para o bem-estar social] não precisa ser julgada a priori. Se ela for válida, multas compensatórias irão desencorajar qualquer restrição da competição e, assim, cumprirão os objetivos da teoria tradicional. Porém, se não for válida, tais multas permitirão que restrições da competição continuem a ser praticadas e, simultaneamente, irão compensar a sociedade pelos danos causados (BECKER, p. 69, tradução nossa).

Tudo resumir-se-ia, perceba-se, a estimar os danos corretamente. Estimados, se a pena aplicada de acordo com eles não for suficiente para desestimular a repetição da conduta, então é porque a conduta contribui para o aumento do bem-estar social e ainda é suficiente para reparar os danos que causa a terceiros. Isso equivaleria, digamos, a pagar um "royalty" para as vítimas da conduta. E se, por outro lado, os ganhos forem menores que os danos, a sociedade será compensada e, ainda, a repetição da infração será desestimulada.

Vingança, reparação e prevenção

Neste momento, estamos aptos a progredir em direção a algum conceito de punição, em Becker, conforme aquela distinção entre responsabilidade civil e legislação criminal.
Voltemos mais uma vez àquele exemplo da conduta anticoncorrencial. Becker diz que se o único objetivo de tornar ilegal a conduta fosse o de compensar as vítimas, bastaria

... impor multas que equivalessem ao dano infligido à sociedade em função das restrições anticoncorrenciais. Não haveria por que ordenar a cessação ou desistência da atividade, nem a prisão de algum dirigente e tampouco a condenação ou dissolução da companhia (p. 69, tradução nossa).

Como nesse exemplo, se o único objetivo de qualquer procedimento legal fosse compensar as vítimas pelo dano que sofreram, "muito da legislação criminal tradicional tonar-se-ia um ramo da responsabilidade civil" (p. 68). Referindo-se a casos em que uma coletividade é atingida, diz ele que haveria uma "uma responsabilidade civil 'social' ('social torts', no original), por assim dizer, que consistiria em que o público perseguisse coletivamente o dano 'público' sofrido" (p. 68). Dessa forma,

... a natureza criminal de certa conduta não seria assim definida pela natureza da ação, mas pela impossibilidade de o ofensor compensar o dano que ele causou. Portanto, a conduta seria 'criminal' precisamente porque dela resultam danos "irreparáveis" ("uncompensated 'harms'", no original) para terceiros. A legislação criminal cobriria todos esses casos, enquanto que a responsabilidade civil cobriria todas as outras condutas civis ("all other (civil) actions", no original) (p. 68, tradução nossa).

Para as condutas que se submetessem a essa "lógica" da responsabilidade civil, o objetivo primordial seria compensar as vítimas, e não fazer vingança ou prevenir infrações futuras. Por outro lado, por meio da compensação das vítimas, eventualmente a "pena" serviria para os fins de prevenir ou fazer vingança.
Algumas condutas criminais tradicionais não se submeteriam à lógica da responsabilidade civil, justamente porque delas necessariamente resultam "uncompensated harms". O próprio Becker assente, pois: "É claro que, muitas das condutas criminais tradicionais, como o homicídio e o estupro, ainda seriam criminais" (p. 68, nota de rodapé nº 54).
Antes de progredirmos, estamos certos quanto a concluir o seguinte até aqui. Becker admite que, através da pena, usualmente se realizam dois objetivos, que são o de prevenir e "fazer vingança".
Esse último objetivo, por tudo o que o autor propõe, parece incompatível com o seu modelo, já que não guarda nenhuma relação ou dependência com o cálculo de minimização do custo social do crime. Entretanto, ele não o descarta absolutamente, pois, como entende, ele seria perseguido através do objetivo de compensar a vítima. Da mesma forma, até o objetivo de prevenção estaria subordinado ao de compensação. Em suma, eles ainda existiriam, mas sempre de forma subordinada.
Frise-se que Becker demonstra que a prevenção é inerente à compensação sempre que ela, estabelecida em função dos danos causados por uma ofensa, exceda os ganhos que o autor da ofensa obteve ao cometê-la. Isso nos leva a concluir que a prevenção não seja uma exclusividade da pena, como muitas vezes se pensa na dogmática tradicional. Até mesmo o objetivo de fazer vingança, ou retribuir o mal com outro mal - o que Becker parece encarar como propriamente punitivo - pode ser em parte perseguido pela compensação, na medida em que o ofensor satisfaça os danos causados à sociedade, pagando seu débito.
A compensação, por sua vez, assumiria o papel central a ser desempenhado por toda a política punitiva. A melhor forma de realizá-lo seria através da pena de multa, como ainda veremos melhor.
Então, vale perguntar, na medida em que a compensação se torne o objetivo da política punitiva, essa política ainda será punitiva? Faz sentido Becker falar em "pena" de multa? Por que não, simplesmente, falar em "compensação"? O termo pena não deveria ser reservado exclusivamente para aqueles "danos irreparáveis", únicos casos aos quais se aplicariam penas não limitadas ao dano causado, isto é, "penas" efetivamente? Nesse caso, inclusive, a compensação mesma seria impossível, e cederia lugar às únicas finalidades realizáveis, que seriam as de prevenir infrações e realizar vingança.
Aparentemente, portanto, apesar de seu equívoco técnico-jurídico de falar em "pena" quando deveria falar simplesmente em compensação, poderíamos concluir que Becker meramente defende a revogação de parte da legislação criminal e sua inclusão na responsabilidade civil, na medida em que alguns danos hoje considerados irreparáveis não o mais o seriam, segundo sua proposta. Assim, a pena de multa a que se refere não seria propriamente uma pena, mas tão somente uma compensação.
Acreditamos, porém, que a insistência de Becker em falar em "pena" não seja simplesmente um equívoco técnico-jurídico. Esperamos demonstrar que Becker entende pena como aquilo que é direcionado contra atos que "são" irreparáveis, mas discorda que todos eles devam ser "tratados" como irreparáveis. Ou melhor, haveria um meio-termo entre as duas coisas, em que penas ainda seriam aplicáveis, embora com a finalidade de compensação. Isso está de acordo com o fato de que Becker define pena como algo que pode ser resumido à decisão de "tratar" certa conduta como se produzisse danos irreparáveis. Embora não negue esses danos, sua proposta é tratá-los como reparáveis.

Multa, danos reparáveis e irreparáveis

De acordo com o que já vimos, Becker propõe a multa como a modalidade de "pena" mais vantajosa, orientada tão somente pela finalidade de compensar os danos. Seus argumentos "implicam a conclusão de que o bem-estar social aumenta se a multa for usada sempre que possível" (p. 63), isto é, no caso em que seja possível "reparar" os danos.
A pena de multa, em relação as demais, dispensa o uso de recursos sociais, gastos, por exemplo, no caso da pena privativa de liberdade, com "guardas, supervisores pessoais, oficiais de probation e o próprio tempo do ofensor" (p. 63). Afinal, ela é apenas uma transferência de recursos.

A multa provê a compensação da vítima. E multas aplicadas em um nível ótimo, na margem, compensam inteiramente as vítimas e restauram o status quo ante. Assim, é como se as ofensas não houvessem sido cometidas. As demais formas de pena não somente falham em compensar as vítimas, como exigem ainda outras "vítimas" para arcarem com recursos adicionais necessários à consecução da pena (BECKER, p. 64, tradução nossa).

A pena de multa também simplifica o ajuste das penas ao cálculo da alocação ótima de recursos.

Além disso, a determinação do nível ótimo de ofensas e de severidade da pena de alguma forma seria simplificado pelo uso de multas. Um uso inteligente de multas exigiria um conhecimento de ganhos, danos e custos de descobrir e condenar [leiam-se, para ser fiel ao texto, ganhos, danos e custos "marginais"]. Admitamos que esse conhecimento não é fácil de ser adquirido. Entretanto, um uso inteligente da pena de prisão e de outras formas de punir também exigem esse conhecimento. E mais. Exigem conhecer a elasticidade das respostas às mudanças na severidade das penas. Uma das mais amargas controvérsias sobre a pena de morte, por exemplo, é justamente a dificuldade de conhecer essa elasticidade (BECKER, p. 64, tradução nossa).

É importante observar que a multa a que Becker se refere é estabelecida em função de compensar o prejuízo sofrido pela vítima ou, noutras palavras, o dano causado (p. 65). Desse modo, assim como a pena de prisão costuma ser calculada, a pena de multa não irá variar de acordo com a renda de cada condenado. Perceba-se que isso é muito diverso do que ocorre no Brasil, por exemplo, onde a pena de multa criminal varia conforme a renda - vide art. 60 do Código Penal -.
Outra diferença é que a multa referida por Becker se destina tanto a reparar os danos causados às vítimas, como o dano à terceiros, à sociedade. Diz ele que "Por 'vitimas' deve-se entender também a sociedade e não apenas as pessoas diretamente ofendidas" (p. 62, nota de rodapé nº 36). Ele não diz, mas, por consequência óbvia, a pena de multa eventualmente (ou em parte) deve entregue à vítima (ou às vítimas) ou então destinada a um fundo público, quando não puder ser a atribuída a uma ou mais pessoas em particular. É algo bem distinto do que ocorre no caso da multa criminal no caso do Brasil, por exemplo, em que toda ela é destinada a um fundo público - vide art. 49 do Código Penal -, e a indenização da vítima, quando for o caso, deve ser procurada no juízo cível, embora o juízo criminal deva já na sentença fixar um valor mínimo a título de indenização - vide art. 387, IV do Código de Processo Penal -.
Uma crítica enfrentada por Becker é a de que há certos crimes tão odiosos ou abomináveis, como o homicídio e o estupro - exemplos citados por ele (p. 66) -, que nenhuma quantidade de dinheiro poderia compensar o dano infligido. Retomando ao que vimos antes, e que Becker dirá mais à frente no texto, tratam-se em geral de crimes que geram "uncompensated harms", isso querendo dizer "danos irreparáveis".
Ele dá razão, então, a essa crítica. E propõe um princípio geral segundo o qual "sempre que os danos excedam os recursos dos ofensores, a pena não pode restringir-se à multa exclusivamente" (p. 66). Nesse caso, as vítimas não poderão ser compensadas inteiramente e à pena de multa devem ser acrescidas a pena de prisão e/ou outras punições, com o fim de desencorajar que novas ofensas sejam cometidas, ou mesmo de "fazer vingança" - sem desconsiderar, como alertaria Becker, a alocação ótima de recursos sociais na política punitiva -.
No caso dos "uncompensated harms", típicos de crimes gravíssimos, como o homicídio e o estupro, os danos serão sempre irreparáveis porque sempre excederão os recursos dos ofensores, quem quer que seja a pessoa. Nesse caso, outras penas, que não somente a de multa, deverão sempre ser aplicadas.
Porém, aí vem mais uma polêmica conclusão de Becker. Diz ele que, nos casos em que a multa (exclusivamente) pode ser aplicada, outras penas devem ser impostas subsidiária e alternativamente, se a pessoa apenada não puder arcar com a multa. Perceba-se que, nesse caso, trata-se igualmente de aplicar aquele princípio geral, conforme o qual "sempre que os danos excedam os recursos dos ofensores, a pena não pode restringir-se à multa exclusivamente".
No brasil, a conversão da pena de multa em pena de prisão era possível até uma reforma em 1996, pela Lei nº 9.268, quando foi alterado o art. 51, de acordo com o qual vigia o sistema dia-multa. Ainda hoje, contudo, conforme o art. 36, § 2º, do Código Penal, admite-se que "o condenado será transferido do regime aberto, [...] se, podendo, não pagar a multa cumulativamente aplicada".
Perceba-se que a "irreparabilidade" do dano, para Becker, a princípio, aplica-se apenas àqueles crimes graves, que sempre causam danos inestimáveis e excedem os recursos de quem quer que seja. Mas a "irreparabilidade" também ocorre quando o "dano", apesar de inicialmente "reparável", torna-se "irreparável" porque excede não os recursos de qualquer um, mas os de alguns em particular.
Daí também que ainda faz sentido que Becker fale em "pena" de multa e que isso não seja um equívoco técnico-jurídico. Apesar de tê-lo dito, sua proposta, portanto, não equivaleria meramente a descriminalizar certas condutas e incluí-las na responsabilidade civil.
Na verdade, Becker deixou entrever que estava propondo algo novo, um meio-termo entre a responsabilidade civil tradicional e a legislação criminal. Contudo, na falta de um nome melhor, sua proposta pode passar como se fosse simplesmente um "transplante", em que condutas deixariam de ser punidas de forma propriamente dita - i.e. prevenidas e vingadas sem base na compensação de danos - para serem punidas unicamente por meio da compensação de danos.
Não é isso o que acontece, porém. A "multa" referida por Becker é realmente uma "pena". Seu caráter de punição fica evidente pelo fato de que naturalmente converte-se em medidas como a prisão, aplicadas, em princípio, somente a danos irreparáveis.
Alguém poderia objetar que Becker está defendendo apenas uma espécie de "medida executiva indireta", extrema, como é a prisão civil por dívida. Mas é certo que não se trata disso. Na proposta de Becker, a pena de prisão irá substituir o pagamento da multa. Naquele caso, entretanto, a prisão não irá substituir o pagamento da "multa", ou melhor, da dívida civil.
Becker supõe que o que torna irreparável o dano causado, nesse caso, é o fato de que seu valor excede os recursos do ofensor. A pena, portanto, seria definida como a medida aplicada não quando o dano é irreparável, mas quando os recursos do ofensor não forem suficientes para reparar o dano.
Esse é basicamente aquele princípio geral formulado por Becker. Ele parece correto para explicar, didaticamente, a sistemática proposta. Contudo, é evidentemente equivocado para explicar o que seja pena.
Becker não propõe, por exemplo, que "penas" sejam aplicadas quando o devedor insolvente não pagar o débito civil, com a pena servindo em lugar desse débito. Ainda que alguma medida "punitiva" lhe seja aplicada para constrangê-lo a pagar, essa punição não substitui o débito civil. É inegável, claro, que a ameaça de prisão, por exemplo, incentiva o pagamento da multa, como incentiva também o pagamento da dívida. Mas a prisão ou outras "penas" só podem substituir a "dívida" no primeiro caso.
Qual seria, então, o critério a distinguir que determinada conduta possa merecer uma pena, ainda que a princípio uma pena de multa? Se pudermos responder a essa pergunta, nos aproximaremos um pouco mais do conceito de pena e de ilícito punível em Becker.
A resposta passa por investigar, no texto, as razões que, segundo ele, explicariam porque algo é originalmente punido.
Becker já disse que algo é punido porque em tese causa um dano irreparável. Se o dano é reparável, não precisaria ser punido. Mas Becker propõe verdadeiras penas (de multa) para danos que, segundo ele, seriam reparáveis. Por que o faz? A resposta deve considerar o seguinte.
Becker postula que certos danos "deveriam ser" "tratados" como "reparáveis", mas sabe que eles, na verdade, foram originalmente punidos porque foram "considerados" como "irreparáveis", e não apenas no sentido de "eventualmente irreparáveis", quando os danos excedessem os recursos dos ofensores. Mas sim porque "seriam" irreparáveis em vista de quem quer que fosse.
A única solução para essa aparente confusão é considerar que a "irreparabilidade" que Becker pressupõe para delimitar o ilícito punível é radicalmente distinta da "irreparabilidade" que sugere como critério de preferência pela pena de multa, especificamente, em relação às demais.
A nosso ver, destrinchar o que Becker diz sobre essa irreparabilidade "originária" atribuída aos danos causados pela conduta é a pista fundamental para chegarmos a um conceito de pena e ilícito punível, no próprio autor.

A irreparabilidade do dano: dois significados

Como noutros momentos, Becker nos dá apenas indícios do que entende como sendo irreparável, naquele primeiro sentido, útil à delimitação do ilícito punível.
Comecemos, com o seguinte questionamento, feito pelo próprio autor. O que leva a sociedade a criminalizar o furto, se aparentemente os danos são perfeitamente reparáveis? Como diz Becker, "Aparentemente, fraudes, furtos etc., não envolvem verdadeiros custos sociais, senão que são apenas simples transferências, com as perdas das vítimas sendo compensadas por iguais ganhos para os criminosos" (BECKER, p. 41, nota de rodapé nº 41). Evidente que Becker está pressupondo aqui, a reparabilidade patrimonial ou econômica.
Nesse caso, bastaria que a vítima individual promovesse a respectiva ação no juízo cível contra seu ofensor, para ser compensada por seus prejuízos, de acordo com as regras da responsabilidade civil clássica. Mas porque não é apenas assim?
Como aponta Becker, "Usualmente, a crença de que outros membros da sociedade serão prejudicados é a motivação que embasa a decisão de proibir ou restringir determinada atividade" (p. 42). Portanto, é a "crença", frise-se, de que o furto atinge não somente a vítima individual, como a coletividade como um todo, que motiva a sua criminalização.
De acordo com isso, na perspectiva da Economia, "as atividades criminais são um subconjunto das atividades que geram deseconomias", ou "deseconomias externas" (p. 43), ou simplesmente externalidades negativas, no jargão usualmente empregado em português.
Eventualmente, a "crença" de que certa atividade produz externalidades negativas encontra apoio num parâmetro objetivo e presente, como quando a atividade de um agente econômico regularmente agride (ou muito provavelmente possa agredir com gravidade) o patrimônio ou a saúde de terceiros, não envolvidos na atividade. Pense-se, por exemplo, na atividade de quem regularmente pratica queimadas para facilitar a colheita da lavoura de cana-de-açúcar. O agricultor que o faz coloca sob grave risco as lavouras de terceiros, próximas a sua. Ou, imagine-se o caso de fábricas poluidoras do ar e da água, a prejudicar presentemente a saúde de terceiros. Nesse caso, embora o dano não seja patrimonial, também existe um parâmetro objetivo a indicar a existência do dano que, aliás, é mais do que provável. Nalguns casos, porém, só existe um parâmetro subjetivo ou baseado num risco futuro. Por exemplo, no caso do uso de drogas, como é que o prejuízo da vítima em particular, o usuário, atinge interesses ou bens de terceiros? Supõe-se, nesse caso, e para drogas muito diversas, que o usuário possa cometer crimes sob o efeito do entorpecente ou que o faça para sustentar o vício, ou ainda que venha a onerar o serviço público de saúde.
A demonstração da existência de uma externalidade negativa, portanto, não é sempre uma tarefa fácil. E como se não bastasse, esse debate é eminentemente um tema político. Como diz Becker, as pessoas não necessariamente concordam quanto ao que causa externalidades negativas, como ainda opõem a elas externalidades positivas de uma mesma atividade, ou então minimizam a probabilidade ou a seriedade das primeiras, com o objetivo de sustentar a permissibilidade da atividade.

Pessoas racionais frequentemente irão divergir quanto à quantidade de danos ou benefícios causados por diferentes atividades. Para alguns, qualquer nível de salário estabelecido em mercados de trabalho competitivos é permissível, enquanto que para outros níveis abaixo de um certo mínimo constituem violações a direitos básicos. Para alguns, o jogo, a prostituição ou mesmo o aborto deveriam ser livres para quem quisesse adquiri-los no mercado. Para outros, o jogo é algo pecaminoso e o aborto é assassinato. Essas divergências são fundamentais para formular e aplicar políticas públicas, mas estiveram excluídas da minha análise. Eu assumo um consenso a respeito de danos e benefícios e simplesmente tento elaborar regras sobre como implementar de forma ótima esse consenso (BECKER, p. 79, tradução nossa).

No âmbito do Direito positivo, esse problema é resolvido com a imposição política e legal de um certo "consenso" - na verdade, quase sempre uma decisão da maioria parlamentar - a respeito de danos e benefícios de determinada atividade, ao proibi-la ou permiti-la. Esse consenso, entretanto, não vale porque é fundamentado, mas simplesmente porque é "arbitrado" e imposto na forma de lei. Para nós, então, que temos em vista tão somente o conceito de ilícito punível oficial ou estatal, o problema está a princípio resolvido.
Assim como o fato de que certa conduta punível atingiria a coletividade como um todo é essencialmente uma crença, eventualmente positivada em lei por força de uma decisão política e arbitrária, somos levados a concluir, a partir de Becker, que também o fato de que algo é irreparável acaba sendo muitas vezes uma crença, imposta por uma decisão política.
É claro que ninguém objetaria que o dano causado em um acidente de trânsito é perfeitamente reparável e o dano causado por um homicídio seja quase todo ele irreparável. Ocorre, entretanto, que o dano causado por um furto também é, a princípio, perfeitamente reparável, mas ainda assim ele é criminalizado, como se houvesse nele algo de irreparável.
Nesses termos, temos de concluir que o fato de algo ser reparável ou não, do ponto de vista jurídico, não depende exclusivamente da natureza do bem atingido, mas também de uma decisão tão política quanto àquela que repele a atividade por suas externalidades negativas.
Becker diz que - adotada aquela sua proposta - "a natureza criminal de certa conduta não seria assim definida pela natureza da ação, mas pela impossibilidade de o ofensor compensar o dano que ele causou", de modo que "a conduta seria criminal precisamente porque dela resultam danos 'irreparáveis' para terceiros" (p. 68). E nós, a partir de Becker, somos levados a concluir que a "impossibilidade de o ofensor compensar o dano que ele causou" não é dada "sempre" pela "natureza" do dano, senão que também por uma decisão política e arbitrária que acrescenta ao dano patrimonial um plus, que é o dano imaterial ou moral.
Assim, os danos reparáveis a que Becker se refere, num primeiro momento, são exclusivamente os danos patrimoniais. Já num segundo momento, contudo, Becker deixa claro que esses danos reparáveis incluem danos estritamente morais (não patrimoniais).
No início do texto, ele apresentou uma tabela, elaborada pela "President's Commission on Law Enforcement and Administration of Justice", que procurou estimar os custos do crime e os gastos públicos e privados do país com "law enforcement", em 1965 (Becker, p. 41).
Becker insurge-se contra a sugestão, posta naquela Tabela, de que o custo do crime possa ser calculado unicamente a partir dos seus custos patrimoniais, acessíveis diretamente segundo uma medida monetária, que é basicamente o que faz a Tabela. Diz o autor, com referência a ela, que nos custos do crime devem ser incluídos custos exclusivamente morais, como "o valor atribuído pela sociedade à vida em si mesma", "a utilidade extraída por aqueles que praticam o jogo", "a desutilidade" do jogo para terceiros ou "as atitudes sociais a respeito de redistribuições forçadas de riqueza".
Uma dificuldade associada a essa é a de estimar os "ganhos psicológicos" que o ofensor obtém ao cometer uma ofensa, o que é típico de crimes contra a pessoa, por exemplo.
Em que pese todas as dificuldades, que ele reconhece, Becker insiste que seja possível atribuir um valor monetário também a esses "custos morais".

Evidentemente, como sabem bem os que já sofreram ações por danos punitivos, o dano não é facilmente medido e graves enganos inevitavelmente serão cometidos. Entretanto, é também extremamente difícil medir o dano em muitas ações civis [referência suprimida], nada obstante essas continuem a funcionar, em geral de um modo provavelmente muito razoável. Além disso, com a experiência acumulada, a margem de erro irá declinar e regras de ouro serão desenvolvidas (BECKER, 69, tradução nossa).

Vale citar, ainda, a referência que acima suprimimos.

Algumas vezes (a compensação) pode ser aferida com um alto grau de acuidade. Mas, obviamente, para a maioria das consequências das ofensas aos direitos da personalidade, ela não pode ser feita a não ser de um modo figurativo e essencialmente especulativo. Ainda assim, é o objetivo do Direito buscar ao menos uma grossa correspondência entre a indenização e a extensão do dano causado. (HAPER & JAMES, apud BECKER, p. 69, nota de rodapé nº 57, tradução nossa).

A dificuldade de estimar os custos morais do crime, portanto, seria semelhante àquela de estimar os danos aos direitos da personalidade, já enfrentadas nos juízos cíveis. No caso, tudo indica, Becker se refere justamente ao dano direto que resulta da ofensa à personalidade. Por exemplo, ao valor da vida em si mesma. E não a danos indiretos, como os patrimoniais: as despesas com velório e enterro, por exemplo, que são danos emergentes; ou o lucro cessante, como o seria, por exemplo, a "perda nos ganhos das vítimas", que impacta sobretudo aos dependentes da pessoa assassinada. Esses danos patrimoniais, embora nem sempre aferíveis com precisão exata, mal se comparam com o dano direto à personalidade na dificuldade de estimar o valor devido a título de compensação.
Becker acredita que a experiência acumulada irá contribuir com a formulação de regras que permitam medir esses custos morais. Uma dessas regras, por exemplo, que ele mesmo antecipa, é intuitiva: certas ofensas importem num custo moral muito maior do que outras. Essa regra de proporção, então, exemplifica um dos parâmetros que poderiam ser adotados.
De qualquer forma, fica claro que esses critérios que serão desenvolvidos com a experiência serão bem distintos daquele inerente à reparação patrimonial. Se alguma correspondência monetária houver entre a pena aplicada e custo moral do crime, não será pelo mesmo tipo de equivalência monetária que há na compensação do dano patrimonial. Será algo semelhante ao que já ocorre no juízo cível quando se trata indenizar danos à personalidade, segundo uma estimativa que "não pode ser feita a não ser de um modo figurativo e essencialmente especulativo", para "citar a citação" de Becker (p. 69, nota de rodapé nº 57).
A reparabilidade que Becker pretende para os custos morais do crime, portanto, é essencialmente distinta daquela que ocorre para os custos patrimoniais. A pena de multa, segundo a proposta que ele deriva de seu modelo, ganha relevo justamente porque pretende fazer essa difícil operação de monetizar os custos morais das ofensas.
Portanto, essa reparação da vítima será essencialmente distinta daquela que se dá no caso de danos patrimoniais. Nesse sentido, é equivocado que Becker tenha concluído que as penas de multa, como por ele imaginadas, "compensam inteiramente as vítimas e restauram o status quo ante" (p. 64), "a não ser que um modo figurativo e essencialmente especulativo".

Conclusão

Até onde pudemos verificar, podemos encerrar o estudo observando que, apesar de algumas confusões no texto analisado, tudo indica que Becker define a conduta punível a partir da irreparabilidade dos danos causados pela conduta. Dessa forma, considerando que sua definição se dá através do conceito de pena e pressupõe a violação à lei, podemos concluir que pena é a resposta do Estado, àquela conduta ilícita que causa danos irreparáveis. Ou, noutras palavras, pena é a resposta do Estado, diante de certa conduta ilícita, que visa outra coisa que não a reparação dos danos.
Essa irreparabilidade deve ser entendida em sentido patrimonial, mas não exclusivamente a partir da natureza do bem lesado. Eis que, como visto, há lesões que afetam bens que, aparentemente, seriam tão somente patrimoniais, mas que ainda assim são punidas. Isso porque atribui-se à conduta uma lesão não só ao bem patrimonial, mas também a um bem não patrimonial, e nesse sentido irreparável, que pode pertencer à vítima e/ou a terceiros, na forma de uma externalidade negativa. Por exemplo, é o que se dá nos crimes meramente patrimoniais, sem violência à pessoa. Ou na proibição dos jogos, que afetariam sobretudo terceiros.
Num segundo momento, porém, Becker adota um conceito de irreparabilidade essencialmente distinto desse primeiro, sendo que faz isso em vista de uma finalidade diversa da anterior. No primeiro caso, o conceito serve para definir a conduta punível. No segundo, porém, serve ao propósito específico de estimular o emprego da pena de multa.
Assim, Becker distingue danos "eventualmente" irreparáveis daqueles que seriam "sempre" irreparáveis. O que tem em vista, aqui, é o patrimônio dos ofensores em vista da pena de multa que lhes for aplicada, isto é, se são capazes de arcar ou não com o valor fixado. Para alguns crimes, a pena de multa, por definição, seria tão alta que ninguém poderia arcar com ela, porque os danos - materiais e morais - causados pelo crime são "impagáveis".
Nessa sistemática, a multa, por uma ficção, torna reparável certos custos morais que, segundo aquela primeira definição, são irreparáveis.
Becker em momento algum dá a menor pista de um critério claro que permita distinguir danos reparáveis e irreparáveis, nesse segundo sentido. Ele, pelo contrário, reconhece a dificuldade de estimar os custos ou danos morais do crime. Mas acredita que, com o tempo, serão desenvolvidos parâmetros satisfatórios. O que ele sugere é que, em vista da alocação ótima de recursos na política punitiva, o correto seria sempre atribuir esses valores monetários aos custos morais dos crimes, quaisquer que sejam esses crimes, e independentemente do emprego da pena de multa ou de outras penas.
Na prática, esses custos são atribuídos muito facilmente como inestimáveis para alguns crimes, como para o homicídio e o estupro, exemplos que ele cita. Entretanto, isso não resulta de nenhum cálculo, obviamente, senão que de pura intuição. Entretanto, para outros crimes, e que em pese a irreparabilidade patrimonial do dano moral, a sociedade pode satisfazer-se com um valor monetário para compensá-la, num sentido figurado e essencialmente especulativo. Caso o ofensor pague a multa, não precisa ser submetido a nenhuma outra pena. Se não pagar com dinheiro, porém, pode pagar com outra pena, como a prisão, por exemplo. Note-se que essa é mais uma das diferenças entre pena de multa proposta por Becker e a "multa" - na verdade, dívida - que é cobrada mediante a prisão civil por dívida, por exemplo. A prisão, nesse último caso, não substitui o pagamento da "multa".
Se por um lado é uma ficção o que monetiza custos morais, não é nada fictício o fato de que, em vista do modelo de Becker, a pena de multa seja a mais eficiente de todas, a exemplo das vantagens que procuramos reportar ao longo deste estudo.
Notamos, assim, que a proposta de Becker de "reparar danos irreparáveis" não é menos artificial que boa parte das decisões políticas que atribuem um caráter irreparável a certos danos que, aparentemente, são perfeitamente reparáveis.
Outras conclusões que vale destacar são as seguintes. Becker aponta que, do ponto de vista da teoria econômica do crime, a função de prevenção da pena é realizada quando ela é fixada em valor que exceda o ganho dos ofensores. A prevenção não necessariamente, portanto, é um privilégio exclusivo da pena, como pode supor alguma doutrina jurídica tradicional. A compensação dos danos do crime também realiza a prevenção sempre que esses danos excedam os ganhos particulares proporcionados pela ofensa.
Becker não oferece uma definição clara para o que denomina função "vingativa" da pena. Contudo, a partir dele, pode-se dizer que essa função seria realizada mediante a aplicação de penas em valores que excedam "em muito" os ganhos dos ofensores, para além do que seria necessário para prevenir a repetição da conduta. De todo modo, essa função vingativa é incompatível com a perspectiva de minimizar custo social do crime, incluído nesses custos o de manter a política punitiva.
É interessante também que, adotada a perspectiva de Becker, a fixação de uma pena de multa ocorrendo tanto em vista da compensação de danos materiais como morais, uma determinada conduta punível pode-se revelar desejável no seguinte sentido. Com a pena estabelecida em função do dano causado - observando-se que o dano imaterial será monetizado por uma ficção -, pode ser que o ganho do ofensor supere a pena que deverá pagar. Nesse caso, isso revela que a conduta está gerando mais bem-estar social do que danos e, que, eventualmente, sob certo nível baixo de crimes, pode ser até desvantajoso punir condutas como essas. Essa é, a nosso ver, a maior vantagem que Becker atribui a uma função "compensatória" da pena.
A partir desse conceito de pena e ilícito punível - dados em função da irreparabilidade naquela primeira acepção - vislumbramos, para um futuro estudo, aprofundar o que agora se agora se mostra perfeitamente razoável: a compatibilidade da teoria econômica do crime não somente para análise do crime propriamente dito, mas igualmente para análise: dos danos morais fixados em juízos cíveis; de quaisquer medidas patrimoniais ou ainda outras (como prisão civil ou administrativa) arbitradas para constranger alguém a fazer alguma coisa, como é característico das "medidas executivas indiretas"; e, enfim, das penas meramente administrativas.
Todos esses casos são atos coativos do Estado, impostos em função de uma conduta ilícita, não para reparar um dano patrimonial, restaurar o status quo ante, ainda que sirvam indiretamente a esse propósito, como no caso da prisão civil por dívida. De qualquer modo, o ato mesmo, nesse caso, não promove qualquer reparação, a exemplo do que ocorre em quaisquer outras penas.
Uma diferença adicional que acrescentaríamos para delimitar pena - indo além, mas a partir de Becker -, é que a medida das penas não é estabelecida a partir de um critério dado pelo próprio bem lesado pela conduta ilícita ou que, ainda que o seja, essa equivalência nem de longe assegura a restauração do status quo ante. Ainda que puna o homicídio com a morte, por exemplo, a lei de talião não garante a restituição da vida subtraída. Essa equivalência que assegura a reparação - quando a restauração da própria situação anterior não é possível e é preciso encontrar um sucedâneo - só é possível no caso de bens "disponíveis", isto é, bens que, porque são negociados no mercado - que não são proibidos de circular -, adquirem um valor em termos de quaisquer outros bens e, nessa linha, uma expressão monetária. Esses bens, portanto, nem precisam ser exatamente patrimoniais, mas meramente econômicos, como se dá com os bens chamados "serviços", por exemplo.
Esse critério que define pena - conforme a irreparabilidade econômica do dano - contudo, não impede que as penas sejam fixadas com um sentido "compensatório" figurativo, para reparar danos irreparáveis. Pelo contrário. A principal proposta de Becker, a nosso ver, é a de que um modelo de "pena compensatória" - por mais paradoxal que isso pareça - é o mais eficiente em vista da minimização dos custos sociais diretos e indiretos do crime e de outras ofensas. E essa monetização dos custos morais, por outro lado, não é menos artificial que boa parte das decisões políticas que atribuem um caráter irreparável a certos danos que, aparentemente, são perfeitamente reparáveis, a exemplo dos crimes meramente patrimoniais ou concorrenciais.


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