Conceitos inventados de direito administrativo

June 3, 2017 | Autor: J. Mendonça | Categoria: Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Público, Filosofia do Direito
Share Embed


Descrição do Produto

Conceitos inventados de direito administrativo. José Vicente Santos de Mendonça.1 SUMÁRIO: Este texto afirma que a maior nova tecnologia do direito administrativo pode ser a própria compreensão, e assunção às claras, de seu caráter instrumental. A partir daí, o texto propõe três categorias de invenções jusadministrativas: a invenção de conceitos; as diferenciações conceituais; as recuperações históricas. O artigo delineia, ao final, duas estratégias com que as invenções costumam operar. I - Introdução. A maior inovação do direito administrativo pode ser o próprio direito administrativo. Entendê-lo não como harmonia de categorias sopradas pela música de anjos; não como defesa retórica do cidadão diante do estado; mas como caixa de ferramentas, aptas, cada uma, a produzir determinado estado de coisas, de acordo com seu uso adequado, pode libertá-lo de folclores e de fundamentos.2 Eis o que cumpre fazer: desencantar o direito administrativo. 3 Neste brevíssimo texto, pretendo sugerir um instrumentalismo endógeno, isto é, operando a partir dos próprios conceitos do direito administrativo brasileiro. A ideia é a de que existam três espécies de invenções doutrinárias jusadministrativas: (i) a invenção propriamente

1

Professor adjunto de direito administrativo da UERJ. Professor da Veiga de Almeida. Doutor e mestre em direito público (UERJ). LLM em Harvard. Procurador do estado e advogado ([email protected]). Gostaria de agradecer o convite ao Rafael Véras e ao Leonardo Coelho. O Rafael foi meu único aluno a tirar dez numa universidade privada (o IBMEC, onde eu o torturei na disciplina direito econômico, que à época ministrava na graduação). Vejo que minha mão pesada na correção de provas está sendo confirmada pela vida. 2

Sobre os folclores incidentes sobre um dos temas clássicos do direito administrativo - o ato administrativo -, v. SCHIRATO, Victor Rhein. Repensando a pertinência dos atributos dos atos administrativos. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Victor Rhein. Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2011. Sobre a noção de direito administrativo como caixa de ferramentas, ver, na literatura nacional, a dissertação de Leonardo Coelho Ribeiro: RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito administrativo como caixa de ferramentas: a formulação e a avaliação da ação pública entre instrumentalismo, instituições e incentivos. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de mestre em direito público. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. 3

Estou usando a expressão “desencantamento” no sentido técnico que ela passou a ter a partir de sua utilização, como conceito-chave para o entendimento da sociedade moderna, por Max Weber. O “desencantamento do mundo”, adaptação de Entzauberung der Welt – literalmente: a “desmagificação do mundo” –, é o processo, ocorrido na sociedade moderna, por intermédio do qual a racionalidade técnica expulsou representações mágicas tradicionais. Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003. O desencantamento do direito administrativo poderia ser, assim, o processo por meio do qual visões instrumentais se tornam o leitmotiv da teoria do direito administrativo (a prática sempre foi delas).

dita, em que um autor ou um operador institucional do direito cria uma categoria doutrinária de direito administrativo; (ii) a diferenciação, em que o empreendedor conceitual busca diferenciarpara-aplicar entre categorias de direito administrativo; e (iii) a recuperação histórica, em que o empreendedor conceitual recupera as origens de determinada categoria, em geral para indicar que o uso que dela se faz, no momento atual, não é adequado. Logo após identificar as três espécies de invenções jusadministrativas (item II), redijo, no mesmo espírito instrumental, o que poderiam ser algumas descrições de seu uso. Como fazer coisas com conceitos de direito administrativo?, é a pergunta, que Austin jamais se fez, mas cujo princípio de resposta perpassa este texto.4 II - Conceitos inventados de direito administrativo. Um empreendedor conceitual é todo aquele que cria, manipula, diferencia ou recupera conceitos, de modo a utilizá-los como meio para determinado fim.5 Há empreendedores conceituais em todos os lugares, da escola até a fábrica até a universidade. A chamada doutrina jurídica - que não é científica e nem teria como o ser - é o espaço, por excelência, dos empreendedores conceituais no direito.6 Mas também os tribunais, ao operar conceitos e aplicálos aos casos, podem, em alguns casos, atuar como empreendedores conceituais. O empreendedor conceitual, ao atuar junto aos conceitos de direito administrativo, opera fazendo três coisas: (i) ele inventa conceitos de direito administrativo; ele (ii) diferencia conceitos de direito administrativo, com foco em sua aplicação; (iii) ele recupera noções antigas, em geral, - mas não apenas -, para sugerir que seu uso atual não é adequado (significando que

4

AUSTIN, John. How to do things with words. 2ª ed. Cambridge: Harvard University Press, 1975.

5

Construí o conceito de empreendedor conceitual a partir da noção de empreendedor de normas, constante de Cass Sunstein, Social Norms and Social Roles, Columbia Law Review, 96: 903. 6

Em especial, a doutrina jurídica em sentido bem clássico, isto é, os advogados-professores de direito, os “juristas”. O jurista se depara com um problema concreto e tenta moldar a teoria à resolução do caso. Ao operar por meio de paráfrases e recortes de conceitos, o jurista se vê obrigado a forçar/adaptar a teoria à conclusão a que pretende chegar. Ao fazê-lo, o jurista inova; empreende conceitualmente. Os pesquisadores de direito em sentido puro – os professores em regime de dedicação exclusiva, por exemplo – talvez não se sintam obrigados a tal ginástica. Assim, institucionalmente, eles não contam com os incentivos que os levem ao empreendedorismo conceitual. De todas as vantagens que a profissionalização do ensino jurídico haja trazido, há, pelo menos, essa desvantagem: o empreendedorismo parece ser, afinal, mister próprio de advogados.

não é conforme a seu uso antigo). Em sentido amplo, todas essas três operações são invenções jusadministrativas, pois constroem propositivamente algo a partir de outra coisa.7 (i) A invenção propriamente dita é a atividade mais arriscada do empreendedor conceitual de direito administrativo, e, ao mesmo tempo, a que lhe pode ser mais gratificante. Se bem sucedida, ela pode, literalmente, mudar o mundo. Pode-se cogitar de que o próprio direito administrativo tenha surgido a partir de uma invenção, realizada pelos revolucionários franceses, de uma jurisdição dedicada aos assuntos do estado, que se apartaria da jurisdição comum. A partir daí, o órgão central desta jurisdição - o Conselho de Estado - passou a inventar categorias próprias, tais como as de serviço público (caso Gás de Bordeaux) ou a da responsabilidade civil do estado diferenciada, de algum modo, daquela dos particulares (caso Blanco; caso Pelletier).8 Exemplo mais singelo: a distinção entre atos administrativos complexos e compostos, inventada por Hely Lopes Meirelles, passou quase a ter força de lei no direito administrativo brasileiro.9 Ela é tão consolidada que chega a ser cobrada em provas objetivas de direito administrativo. 10 Não há apenas invenção de conceitos. Há, também, a meta-invenção, que é a invenção que se realiza sobre conceitos inventados de direito administrativo. Exemplo notório: o professor francês Gaston Jèze, a partir da terceira edição de seu livro Princípios Gerais de Direito Administrativo, analisou a jurisprudência do Conselho de Estado e sintetizou, em onze

7

No sentido proposto neste texto, a invenção conceitual não se confunde com a mutação conceitual. A invenção conta com certo grau de deliberação do intérprete; já a mutação decorre de fenômenos que lhe são externos (como, por exemplo, a inovação tecnológica, que faz com que o vetusto “furto de energia elétrica” do Código Penal possa ser, por mutação, aplicado também ao furto de sinal de wi-fi). Numa distinção bem simples, a invenção foca-se no intérprete, ao passo que a mutação volta-se ao elemento interpretado. 8

Em rigor, todos os conceitos jurídicos, como conceitos expressos em linguagem, são conceitos inventados (no sentido de que eles não são encontrados prontos no mundo); alguns dão a sorte, ou o azar, de serem incorporados na legislação. Quando falo de conceitos inventados de direito administrativo, quero chamar atenção para a atividade, não de todo deliberada, consistente na propositura de novos conteúdos jurídicos a partir do lugar preferencial da doutrina e/ou da jurisprudência. 9

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 172-173.

10

TCE-Acre/2006(CESPE): “O ato de aposentadoria de um servidor público é ato composto, conforme entendimento da melhor doutrina, visto que opera efeitos imediatos quando de sua concessão pelo respectivo órgão, devendo apenas o Tribunal de Contas ratificá-lo ou não. Esse entendimento, entretanto, não é seguido pelo STF, o qual entende que a hipótese revela um ato complexo, aperfeiçoando-se com o referido registro do Tribunal de Contas.” O gabarito original da questão era “certo”, mas a questão foi anulada por causa da menção à “melhor doutrina” (que ninguém sabe qual é, mas, para o examinador, aparentemente era a de Hely Lopes Meirelles).

afirmações (que chamou, casualmente, de regras), o entendimento daquela corte sobre o controle do motivo do ato administrativo.11 A terceira regra era a seguinte: "Quando um agente público expressa, no próprio ato, os motivos que o fizeram agir, estes motivos, na forma como estão expressos no ato, consideram-se, em princípio, determinantes."12 A recepção desta afirmação, pela doutrina brasileira de direito administrativo, gerou o que passou a ser conhecido, entre nós, como teoria dos motivos determinantes. Por ela, o ato fica vinculado à existência dos motivos declarados. A teoria é de ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial (há vários julgados do STJ acolhendo-a como razão para a decisão), embora, atualmente, haja se tornado redundante. Pois bem: a doutrina brasileira de direito administrativo, ao inventar a teoria dos motivos determinantes, operou uma meta-invenção, pois inventou em cima da invenção de Gaston Jèze, ou, antes, da invenção do Conselho de Estado francês. 13 Há riscos na invenção de conceitos. O primeiro, e mais óbvio, é que a invenção não seja adotada na prática, quer dizer, que não sirva como razão para a decisão de juízes e/ou de autoridades administrativas; não inspire o legislador; não seja replicada por outros doutrinadores. Mas há riscos menos evidentes. Quando a invenção é inteiramente percebida (ou, quiçá, autopercebida) como deliberada, ela perde parte de sua força persuasiva; é como se o direito precisasse cultivar a crença em conceitos naturalísticos. Se o empreendedor conceitual de direito administrativo é flagrado no ato da invenção, dá-se algo como nos antigos desenhos animados, em que o personagem anda dois passos pelo abismo, toma consciência de que o faz, e, então, cai. Inventar conceitos de direito administrativo é atividade que se faz de modo despercebido e/ou dissimulado.14-15

11

É justo observar, com Caio Tácito, que muitas não tratam do que hoje entendemos por motivo do ato. V. TÁCITO, Caio. Controle dos motivos do ato administrativo. In: Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. 12

Esta obra de Jèze pode ser consultada, na íntegra, em tradução para a língua espanhola, no site da biblioteca da Universidade Autônoma do México. O link é o seguinte: >. Acesso em: 30 de maio de 2016. 13

Isto é: a teoria dos motivos determinantes ou é uma meta-invenção (uma invenção sobre a invenção de Jèze) ou é uma meta-meta-invenção (uma invenção brasileira sobre a invenção de Jèze sobre a invenção do Conselho de Estado da França). 14

É interessante sugerir, aqui, um paralelo com as línguas humanas. A despeito de diversas tentativas, nenhuma língua humana inventada, destinada à comunicação geral, deu certo (talvez o mais próximo de um “dar certo” seja o

O procedimento da invenção de conceitos jurídicos de direito administrativo não segue estrutura clara. Mas, em geral, pode-se tentar cogitar de noção procedimental, aplicável às três espécies, e que seria a seguinte. O empreendedor conceitual, em especial os que gozam de algum privilégio simbólico - v.g., professores de direito de universidades de ponta; ministros de cortes superiores - inventam o conceito. A partir daí, surge a etapa de disseminação da novidade: certos alunos (ex.: alunos que assessorem ministros) e juízes de instâncias inferiores tenderão a replicar a invenção, até o ponto em que, mercê da replicação, ela se naturalize. No ponto em que uma nova doutrina já não é mais referida, nas petições, decisões e pareceres, como "nova doutrina", então ela deixa de ser adorno retórico e se transforma em doutrina de verdade. Não existe nova doutrina: toda doutrina é velha ou ainda está tentando. Quando uma doutrina sofre críticas, aí, então, pode-se dizer que ela se consagrou: pois só se bate no que existe. Daí então que se pode antever estratégia arriscada de empreendedorismo conceitual, que é propor, de cara, ideias extravagantes, convidando à crítica; se o convite for aceito, a proposta doutrinária encurtou caminhos e passou a existir, se bem que sua efetividade pode não ser das maiores (v. próximo item). A (ii) diferenciação de conceitos de direito administrativo, com foco em sua aplicação, também é usual. Aqui, o empreendedor extrai, pela via do estabelecimento de distinções semânticas, um conceito novo de um conceito antigo. Ambos os conceitos deverão guardar, entre si, certa semelhança de família. Toda diferenciação é, antes, uma invenção; mas a diferenciação parte, necessariamente, de conceito-mãe (ao contrário da invenção, cujas origens não são reconduzíveis a um único ponto focal). esperanto; ainda assim, o êxito é relativo). Por outro lado, linguagens inventadas destinadas a funções específicas – a matemática e as linguagens de programação em computador, por exemplo – são um sucesso. O que justifica o êxito de umas e o fracasso de outras? A linguagem jurídica é uma linguagem natural, e, por isso, irrita-se com as tentativas deliberadas de invenção? É tema para uma reflexão autônoma. Sobre as linguagens inventadas em geral, v. OKRENT, Arika. In the land of invented languages: adventures in linguistic creativity, madness, and genius. Spiegel & Grau, 2010. 15

Há outros riscos. Por exemplo: quando a invenção conceitual é por demais bem sucedida, ela pode se naturalizar de tal modo que pode passar a ser vista como um óbice jurídico autônomo à atividade legiferante. Exemplo caricatural desse fenômeno (o qual decorre, note-se bem, do extremo êxito de uma invenção conceitual) são as discussões sobre se uma lei pode criar uma autorização vinculada e/ou uma licença discricionária. É claro que pode, mas o ponto não é esse; o ponto é a própria pergunta. Um grupo de autores e de práticos de direito administrativo francês inventou os conceitos de autorização (necessariamente discricionária) e de licença (necessariamente vinculada); o êxito foi tamanho que, até hoje – ainda que cada dia menos -, num distante país tropical, concedeu-se a essa invenção o status de poder constituinte originário.

A doutrina italiana de direito administrativo, ao tratar da intensidade do controle judicial sobre os atos administrativos, operou estratégia de diferenciação conceitual ao propor a noção de "mérito técnico" e de seu correlato - a "discricionariedade técnica" -, partindo das noções de mérito administrativo e de discricionariedade administrativa. 16 A estratégia foi replicada no Brasil, em especial no início do debate sobre agências reguladoras, e teve algum êxito na doutrina, ainda que não necessariamente haja servido como argumento que vinculasse os tribunais.17 A diferenciação é menos arriscada do que a invenção. Ela parte de algo já sólido, e, assim, em regra, arrisca-se a rejeição menor por parte da comunidade de intérpretes e operadores institucionais do direito. Por outro lado, seus espaços de manobra são menores: se deve guardar semelhança de família com o conceito estabelecido, o empreendedor conceitual não possuirá tanta liberdade quanto na invenção. A (iii) recuperação histórica é o empreendimento conceitual mais complexo. Ele, tanto quanto a diferenciação, parte de algo que já existe, não para propor uma diferença, mas para propor um retorno - ao sentido conceitual original - ou uma rejeição - em razão do sentido original. Ela é, por assim dizer, um originalismo positivo ou negativo. Sua força persuasiva decorre do tradicionalismo associado à academia e à prática do direito, associada àquele autocultivo, pelo direito, da crença em conceitos naturalísticos. Se se desvela, por algum método histórico, o conceito original, este, quase que de modo irresistível, é percebido como o conceito correto e/ou único. Daí, este sentido é usado para louvar, criticar ou salvar o uso contemporâneo do conceito. Quando Paulo Otero, e, entre nós, Gustavo Binenbojm, recuperam as origens do trabalho de geração de conceitos do Conselho de Estado francês, fazem-no para criticar o que entendem ser a origem autoritária da disciplina. É recuperação histórica (aqui, macro-conceitual), em sentido negativo, que pretende sugerir que o direito administrativo se funde, agora, em bases 16

17

V. JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa. São Paulo: Malheiros, 2016.

Cf. ALMEIDA, Fabricio Antonio Cardim de. Revisão judicial das decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Belo Horizonte: Fórum, 2011. A pesquisa empírica apresentada neste livro indicou que, para o período analisado (1994 até abril de 2010), o argumento do mérito técnico não impediu a análise do mérito das decisões do CADE pelo Judiciário.

democráticas.18 Com objeto menor, a crítica, dentre outros, de Santamaría Pastor e Agustín Gordillo à noção de poder de polícia, parte da recuperação de sua origem histórica. Se poder de polícia é conceito originário do estado de polícia, ele, hoje, não poderia ser salvo, pois é só isso o que ele poderia ser.19 São exemplos de recuperação-rejeição. Um exemplo de recuperação-retorno. No direito administrativo brasileiro, ainda são comuns afirmações de que contratos administrativos são contratos personalíssimos.20 O raciocínio que conduz a tal conclusão se expressa da seguinte forma: a administração pública tem o dever de licitar; ao fazê-lo, considera as condições infungíveis do licitante vencedor. Ela não pode, então, alterar o contratante. Ao que parece, tal compreensão parte de ideias cristalizadas por autores franceses. Ocorre que, até 1993, na França, a contratação de particulares para a realização de serviços públicos se dava por meio de escolha discricionária da administração. Diante disso, é claro que a contratação haveria de ser personalíssima, porque o administrador de fato escolhia um prestador baseado nas qualidades particulares do contratado. Só a partir da Loi Sapin, de 29 de janeiro de 1993, é que se passou a realizar procedimento para a seleção de contratados.21 Assim, a recuperação-retorno, como técnica de empreendedorismo conceitual de direito administrativo, permite afirmar que a ideia de personalismo dos contratos públicos fazia sentido na França pré-1993, mas pode ser que não faça sentido no Brasil de 2016.

18

OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007; BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 19

SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Principios de Derecho Administrativo General II. Madri: Iustel, 2004. GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Tomo 2. 8ª ed. Buenos Aires: F.D.A., 2006. ENTERRÍA, Eduardo García; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II. Buenos Aires: La Ley, 2006, p. 104-106. A crítica vem desde a doutrina germânica e tornou-se comum em setores das doutrinas espanhola, italiana e argentina. 20

Nesse sentido, dentre os autores clássicos, Hely Lopes Meirelles (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 214), e, dentre os mais recentes, Edmir Netto de Araújo (ARAÚJO, Edmir Netto de. Contrato Administrativo. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 1987. p. 51). 21

A lei pode ser acessada por meio do seguinte link: . Acesso em: 30 de maio de 2016.

III - Como fazer coisas com conceitos de direito administrativo. Inventar, diferenciar, recuperar conceitos. Há um modo certo de fazê-los? Se se entende que, por “certo”, quer-se significar “mais persuasivo” – e a aderência é a medida do sucesso do empreendedor conceitual –, parece que há duas estratégias mais típicas: uma estratégia ortodoxa e uma estratégia heterodoxa. A estratégia tradicional recomenda antes a diferenciação do que a invenção. Deve-se partir de ideias antigas e, de modo gradual, introduzir inovações. Como se está tratando, aqui, do que é, em essência, uma estratégia pragmática, nada melhor do que fazer referência a um dos pais do pragmatismo filosófico, William James. Pois James, com o lançamento de seu livro, em 1907, esperava inaugurar algo “próximo à reforma protestante”. Apesar disso, et pour cause, ele se preocupou com a estratégia de apresentação: para não soar muito revolucionário, e daí, possivelmente, perder adesões, James, a partir do subtítulo, tratou de desarmar ânimos. Chamou seu livro de Pragmatism – A new name for some old ways of thinking. Ainda no mesmo ânimo, enfileirou antecedentes para o pragmatismo: Sócrates, Aristóteles, Kant, Stuart Mill, Francis Bacon, Spinoza, Locke, Hume. Não considerou sua proposta um conteúdo filosófico autônomo, mas apenas um método.22 Empreender conceitos de forma ortodoxa é isso: sugerir reformas pontuais; diferenciar conceitos; encontrar antecessores. Não vamos nos esquecer de que, quando tratamos do direito, estamos falando de prática social para a qual são oferecidas sugestões como a seguinte, de Carlos Maximiliano: “Fica bem ao magistrado aludir às teorias recentes, mostrar conhecê-las, porém só impor em aresto a sua observância quando deixarem de ser consideradas ultra-adiantadas, semi-revolucionárias; obtiverem o aplauso dos moderados, não misoneístas, porém prudentes, doutos e sensatos.”23 O empreendedorismo ortodoxo não é, entretanto, imobilista de fato; ele é malandro; ele inova por entre a institucionalidade.24

22

Desenvolver em MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico: a intervenção do estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. Belo Horizonte: Fórum, 2014. 23

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 160. Os itálicos constam do original. 24

Sobre estratégias malandras, v. SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo jurídico, racionalidade decisória e malandragem. Mimeo. Ainda, sugerindo que o princípio da eficiência possa ser o veículo da malandragem

Exemplos de estratégias ortodoxas de empreendedorismo conceitual são todas as que, ao invés de, por exemplo, abandonar a noção de poder de polícia administrativa, operam-lhe uma constitucionalização-releitura.25 Não se trataria de abandonar a noção, mas de a reler à luz dos direitos fundamentais. A estratégia heterodoxa prefere invenções ou recuperações conceituais com possível impacto. Ela parte de uma ideia que, isoladamente considerada, poderia ser tida como extravagante; ela convida à crítica, e, em verdade, afirma-se na crítica. Ignora, no todo ou em parte, tradições; propõe denominações; ousa abandonos. O risco da estratégia heterodoxa é causar impacto, mas, diante da resiliência do real, não conformar práticas. Carlos Ari Sundfeld, ao recomendar o abandono da noção de poder de polícia em prol da de direito administrativo ordenador, age, quem sabe, segundo a uma estratégia heterodoxa.26 Em seu tempo, a crítica ao dito princípio da supremacia do interesse público sobre o privado também seguiu, em boa parte, uma estratégia mais próxima da heterodoxia. Não há estratégia melhor ou pior; tanto a ortodoxia quanto a heterodoxia têm seu momento. Além disso, é de se ver que não há obrigatoriedade de usos consistentes de estratégias heterodoxas ou ortodoxas; pode-se ser, aqui, no todo ou em parte, ortodoxo, e, ali, heterodoxo. Sem falar que se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo: pode-se propor revoluções sob capas tradicionais; e se adotar estratégias reformistas por meio de apresentações formais de impacto. Última observação: ortodoxia e heterodoxia só o são em relação a certos observadores e em certo período. As estratégias são sempre contextuais. Quem, em 2002, sugeria que a supremacia do interesse público sobre o privado devesse ser repensada, adotava, então, como dito, estratégia mais próxima à heterodoxia; em 2016, a estratégia heterodoxa talvez seja defender a supremacia.

consequencialista, cf. MENDONÇA, José Vicente Santos de; ALMEIDA FILHO, Jorge Celso Flemming de. O argumento consequencialista e sua relação com o princípio da eficiência. In: CARRILHO, Leonardo; FRÓES OLIVEIRA, Fernando; MENDONÇA, José Vicente Santos de. (Org.) Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Volume XXIII - Filosofia Constitucional e Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Editora APERJ, 2015, pp. 505-534. 25

Por ex., cf. Estêvão Gomes Corrêa dos Santos, Em defesa do poder de polícia: uma proposta de superação das críticas e dos modelos alternativos ao poder de polícia no direito administrativo contemporâneo. 2016. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 26 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003.

Os conceitos inventados de direito administrativo têm vida própria. Nascem, reproduzem-se, morrem. Até que sejam reinventados, isto é: até que ressuscitem. IV - Encerramento. Todo conceito jurídico é um conceito inventado. Mas nem sempre se inventa da mesma forma. Neste texto, escrito para uma coletânea sobre regulação e inovação, quis destacar que, antes de se discutir por que e como o direito administrativo pode ser amigo ou inimigo da inovação, ele pode inovar dentro de si mesmo. Direito saído da estatalidade; com forte carga política; condenado a eternas crises (do serviço público, do estado etc.) e, consequentemente, a eternas reformas, talvez ele se encontre, desde sempre, no limite entre o que é e o que pode ser. Um direito de transição. Um direito de invenção. V - Referências bibliográficas. ALMEIDA, Fabricio Antonio Cardim de. Revisão judicial das decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Belo Horizonte: Fórum, 2011. ARAÚJO, Edmir Netto de. Contrato Administrativo. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 1987. AUSTIN, John. How to do things with words. 2ª ed. Cambridge: Harvard University Press, 1975. BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ENTERRÍA, Eduardo García; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo II. Buenos Aires: La Ley, 2006. Estêvão Gomes Corrêa dos Santos, Em defesa do poder de polícia: uma proposta de superação das críticas e dos modelos alternativos ao poder de polícia no direito administrativo contemporâneo. 2016. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo. Tomo 2. 8ª ed. Buenos Aires: F.D.A., 2006. JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa. São Paulo: Malheiros, 2016. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ª e 34ª eds. São Paulo: Malheiros, 2007 e 2008.

MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito constitucional econômico: a intervenção do estado na economia à luz da razão pública e do pragmatismo. Belo Horizonte: Fórum, 2014. __________________________________; ALMEIDA FILHO, Jorge Celso Flemming de. O argumento consequencialista e sua relação com o princípio da eficiência. In: CARRILHO, Leonardo; FRÓES OLIVEIRA, Fernando; MENDONÇA, José Vicente Santos de. (Org.) Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Volume XXIII Filosofia Constitucional e Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Editora APERJ, 2015, pp. 505-534. OKRENT, Arika. In the land of invented languages: adventures in linguistic creativity, madness, and genius. Spiegel & Grau, 2010. OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007. PIERUCCI, Antônio Flávio. O Desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Editora 34, 2003. RIBEIRO, Leonardo Coelho. O direito administrativo como caixa de ferramentas: a formulação e a avaliação da ação pública entre instrumentalismo, instituições e incentivos. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de mestre em direito público. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. SANTAMARÍA PASTOR, Juan Alfonso. Principios de Derecho Administrativo General II. Madri: Iustel, 2004. SCHIRATO, Victor Rhein. Repensando a pertinência dos atributos dos atos administrativos. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Victor Rhein. Os caminhos do ato administrativo. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2011. SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo jurídico, racionalidade decisória malandragem. Mimeo.

e

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo Ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003. SUNSTEIN, Cass. Social Norms and Social Roles. Columbia Law Review, 96: 903. TÁCITO, Caio. Controle dos motivos do ato administrativo. In: Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. ***

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.