Confiança e democracia: aspectos de uma instável relação estável.

June 14, 2017 | Autor: Ana Lúcia Henrique | Categoria: Confidence, Civic Culture, Social Capital, Political Trust
Share Embed


Descrição do Produto

CONFIANÇA E DEMOCRACIA: ASPECTOS DE UMA INSTÁVEL UNIÃO ESTÁVEL

Ana Lúcia Henrique

E-Legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010

E-Legis | Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara do Deputados

http://inseer.ibict.br/e-legis http://bd.camara.gov.br

CONFIANÇA E DEMOCRACIA: ASPECTOS DE UMA INSTÁVEL UNIÃO ESTÁVEL Ana Lúcia Henrique1

Resumo: Na linguagem comum, confiança denota “segurança íntima de procedimento”, “fé” e “esperança”, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio Buarque de Holanda. Na Ciência Política, a confiança aparece como facilitadora dos regimes democráticos, em uma literatura que, apesar das críticas, atravessa diversos momentos históricos, sendo aplicada, “democraticamente”, em diversos países, há quase cinquenta anos. Este artigo revisa essa literatura, por vezes incompreendida, para melhor entender aspectos da instável relação entre confiança e democracia: uma união estável muito próxima das bodas de ouro nessa bibliografia. Releva ainda a importância da mesma em democracias como o Brasil, que este ano comemora bodas de prata — 25 anos de regime democrático sem interrupção —, em um cenário de grandes assimetrias sociais e desafios inerentes ao processo de consolidação.

Palavras-chave: cultura cívica, confiança política; confiança social; participação cidadã

Abstract: In ordinary language, trust relates to a strong belief in the honesty, goodness of someone or something, according to the Longman Dictionary of Contemporary English. In Political Science trust has been considered an important facilitator to democratic regimes in a literature that has had its ups and downs throughout different historical moments, being equally applied in different countries for more than 40 years. This article reviews this literature and its main concepts in order to understand different aspects of the relationship between trust and democracy: a marriage on the eve of 1

Ana Lúcia possui graduação em Comunicação Social, habilitação jornalismo, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985) e em Comunicação Institucional e Relações Públicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (2007), além de MBA em Administração Mercadológica pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (CEAG, 1992). É mestre em Ciência Política pelo Iuperj (2009) e professora de inglês para o ensino fundamental e médio, com diploma de proficiência da Universidade de Cambridge (Proficiency, 1983) e complementação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 1984). Em sua vida profissional, atuou em jornalismo diário, tendo artigos e reportagens publicadas na Folha de S.Paulo e no jornal Daily Post, entre outros. Também trabalhou em assessoria de imprensa, de marketing e de comunicação em São Paulo e no Rio de Janeiro. Hoje, como Analista Legislativo Técnico em Comunicação Social da Câmara dos Deputados, trabalha na área de Relações Institucionais da Coordenação de Relações Públicas, onde já atuou em Atendimento ao Público e Visitação Institucional, Comunicação Institucional, Cerimonial, Eventos e Recepção Oficial. Quando ingressou, por concurso público, em 1998, trabalhou como repórter diário do Jornal da Câmara, cobrindo os trabalhos da Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) ([email protected]).

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

celebrating a golden wedding anniversary. Hence it emphasizes particular aspects of trust relations in democracies like Brazil, on its silver anniversary (celebrating 25 years of uninterrupted democratic regime) this year, but still encountering great inequalities and facing the challenges of a consolidating democratic regime.

Key-words: civic culture, trust, confidence, political support; citizen participation 1 Introdução Há mais de quarenta anos a literatura culturalista aponta uma forte e direta correlação entre a confiança, a estabilidade, a legitimidade e a qualidade da democracia e vê baixos índices de confiança com preocupação, especialmente em democracias modernas em processo de consolidação, que necessitam de um estoque de capital social para organizar o fluxo de informações entre cidadãos e governo, para garantir o atendimento de demandas em um estado mínimo, e para enfrentar possíveis adversidades ao regime. Surveys nacionais e internacionais auferem a cautela dos indivíduos com relação aos seus pares e relacionam baixos índices de confiança social a problemas com a estabilidade dos regimes democráticos. A relação é controversa e a literatura, frequentemente criticada por reduzir a democracia a um conceito minimalista decorrente de uma visão política anacrônica, especialmente após o advento da Terceira Onda. A meu ver, tais críticas, embora muitas vezes pertinentes e enriquecedoras, também padecem de uma visão simplista, porque prescindem da análise mais ampla de uma literatura que, de fato, surgiu em um momento histórico particular, mas que nem por isso, deixou de aportar contribuições importantes ainda hoje. Foi em um cenário internacional bipolarizado, permeado pela incerteza e pelo medo, tendo a Guerra Fria e o Macarthismo como pano de fundo, que a Cultura Cívica de Almond Verba (1963) surgiu como obra seminal de uma literatura que buscava nos traços culturais dos indivíduos a garantia da estabilidade das democracias aliadas. Entre os valores fundamentais desta cultura democrática figurava a confiança. Hoje, no entanto, frente ao cenário mundial multipolar e globalizado, muitos valores e conceitos originários caíram na obsolescência. Alguns chegaram ao desuso. Outros adaptaram-se aos novos tempos. Interessante observar entre eles a confiança, que, durante todo o período, mantém-se constante como valor fundamental, inicialmente para a estabilidade, e, contemporaneamente, para a legitimidade e a qualidade do regime. E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

169

Ana Lúcia Henrique

Este artigo discorre sobre a história da confiança como valor desta abordagem em busca das razões para a perenidade e atualidade desse valor. Razões estas que podem residir na sua própria essência. Enquanto a confiança relaciona-se à segurança, o temor e a incerteza permeiam as relações humanas e, não por acaso, aparecem em diversos momentos da literatura da Ciência Política, tanto clássica quanto contemporânea. A busca da segurança institucional está por trás tanto do temor respeitoso (awe) ao Leviatã (Hobbes, 1625), e da preocupação com a tirania da maioria observada em John Stuart Mill (1861), quanto na Teoria da Firma de Ronald Coase (1937) aplicada ao floor — um mercado incerto, ameaçado pelo logrolling. Em todos estes momentos, a questão central recai sobre mecanismos para garantia da segurança das relações interpessoais e interinstitucionais por meio de “redutores de incertezas”. Segurança, garantia e certeza relacionam-se ao campo semântico da confiança, e, se antes surgiam como soluções para o medo, hoje, ganham destaque, em um mundo pontuado pela incerteza da volatilidade, da diversidade e da complexidade dos sistemas abstratos. Talvez, por isso, mais do que outros valores, a confiança continue relevante na análise das percepções subjetivas individuais dos cidadãos relacionadas à qualidade da democracia e da cidadania, avançando nesta literatura, do campo das relações pessoais para o amplo universo das relações institucionais e consolidando-se, portanto, como um dos valores centrais de uma abordagem culturalista controversa e particular, altamente relacionada aos diferentes momentos históricos. A escolha da perspectiva temporal para o desenvolvimento do presente artigo não é aleatória, portanto.

2 Onde tudo começou: a “cultura cívica” de Almond e Verba A busca de uma cultura propícia à democracia — seja ela caracterizada como “a natureza”, “o princípio”, ou “as leis” — é antiga, e pode ser estendida até Aristóteles, passando por Maquiavel, Montesquieu, John Stuart Mill e Tocqueville, entre outros. Só em meados do século passado, no entanto, a composição de uma cultura política passou a ser objeto de estudos sistemáticos, sendo Cultura Cívica, o primeiro a fazê-lo em nível de análise comparada em cinco países: Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Alemanha (Ocidental) e México. O objetivo de Almond e Verba era buscar valores, sentimentos, atitudes e crenças que sustentassem um sistema político adequado — ou para usar a palavra dos autores, “congruente” — a uma estrutura política, unindo o âmbito micro

170

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

dos comportamentos individuais ao âmbito macro do funcionamento dos sistemas políticos (Rennó, 1998, p. 75). A ligação se faria pela cultura política, ou seja, “uma distribuição específica de padrões de orientação para objetos políticos entre os membros de uma nação” (Almond; Verba, 1963, p. 13). Mapeadas, estas orientações comporiam variáveis de uma cultura particular, sendo a cultura cívica definida pelos autores como uma “cultura política participante”, congruente com a estrutura política democrática (Ibid., p. 30). Em respostas a questionários, estes padrões de orientação apareceriam como internalizados na cognição, nos sentimentos e nas avaliações, compondo uma distribuição particular de percepções individuais que formariam uma cultura política preponderante em cada país2, representada pelas atitudes do indivíduo com relação ao sistema e ao seu papel dentro deste mesmo sistema, e, como afirma Street (1994, p. 97), “colhidas” a partir do conhecimento, do sentimento e do juízo de valor dos cidadãos. A pesquisa da relação entre um conjunto específico de valores relativos ao comportamento eleitoral e a democracia já existia desde o início do século passado. A cultura cívica de Almond e Verba, no entanto, só pôde ser investigada com o advento de ferramentas capazes de mapeá-la. O próprio Almond, em uma palestra no Centro de Estudos para a Democracia, (Almond, 1996), apontou The Making of Citizens, da série de estudos de Educação Cívica, de Charles Merriam, realizados entre 1928 e 1930, como o “avô” da Cultura Cívica. Tais estudos buscavam no comportamento e na moral das tropas da Primeira Guerra as razões para o fracasso da República de Weimar, na Alemanha, e da Terceira República, na França, em contraposição ao sucesso da política britânica e estadunidense. Desde o nascedouro, portanto, já se observa a perspectiva evolucionista e maniqueísta, presente, com maior ou menor intensidade, nesta literatura. Só com a descoberta de novos métodos estatísticos, em meados do século passado, os índices, padrões e preferências individuais puderam, a partir de então, ser identificados em amostras significativas e inferidos para toda a população. Assim os surveys de opinião ocuparam o espaço dos estudos sobre a identidade nacional, baseados na análise de cultura e de personalidade, que enfocavam os processos de socialização nos diferentes países. “Os estudos sobre cultura política representaram uma reação ao reducionismo psicológico e antropológico dominante na primeira metade do 2 País aqui como estado, ou seja, estruturas e instituições, mais os povos e as culturas, como definido por Henrique Castro (CEPPAC – UnB) , em mesa intitulada “Políticas Públicas para Integração: limites e possibilidades”, realizada na Semana Política, “América Latina: desafios e perspectivas”; em maio 2008, UnB, Brasília.

E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

171

Ana Lúcia Henrique

século XX” (Rennó, 1998, p. 71). Ou como Inglehart diria 20 anos mais tarde, a pesquisa de Almond e Verba promoveu a cultura política do “reino das impressões literárias” para o mundo da verificação científica (Inglehart, 1988). Também não foi por acaso que estes estudos surgiram nos Estados Unidos do pós-guerra, em um cenário internacional bipolarizado, tendo a Guerra Fria como pano de fundo, e uma importante preocupação com a “estabilidade” das novas democracias, ou seja, com a fragilidade e possível cooptação por uma zona de influência comunista, o que representava, à época, a “não democracia”. Este “vício de origem”, que sustenta a ideia de uma “cultura modelar” ou de democracias ocidentais consolidadas como “tiposideais”, durante todo o estudo, acabou por fundamentar boa parte das críticas à obra.

3 Pressupostos e conceitos da abordagem A abordagem lança mão de termos de uso comum, subjetivos e polissêmicos, o que muitas vezes dificulta a compreensão de todo o argumento. A democracia modelar de Almond e Verba, por exemplo, materializa o conceito de democracia liberal, e mais especificamente, o de um governo representativo republicano: “um sistema político em que cidadãos comuns exercitam controle sobre as elites, e este controle é legítimo, ou seja, apoiado por normas aceitas por todos” (Almond; Verba, 1963, p. 156). Como bem lembra Norris, “democracia significa coisas diferentes, para pessoas diferentes, em momentos diferentes” (Norris, 1999, p. 11), ou seja, é um conceito polissêmico e a unicidade talvez seja um debate insolúvel, como salienta Sartori (1965 apud Baquero; Castro, 1996). Além disso, para efeito deste estudo, considera-se democracia como um fenômeno variável, ou seja, que se transforma como os próprios valores culturais observados (Newton; Deth, 2005). O conceito de democracia original da cultura cívica também se adequou aos novos tempos e hoje muito se aproxima da definição minimalista da Freedom House: “um sistema político cujos líderes são eleitos em processos competitivos multipartidários e entre diferentes candidatos” (Idem, p. 22), mensurada pelo grau de liberdade civil e de direitos políticos, ou seja, por índices relacionados aos valores pós-materialistas de Inglehart (1988). O conceito de confiança também é polissêmico e suscita ainda mais ambiguidade frente às diferentes versões da literatura originária em inglês para o português. A confiança interpessoal (trust) aparece embrionariamente associada à fé (faith in people) nas primeiras pesquisas de Rosenberg (1956). Ao longo da literatura

172

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

em língua inglesa, este conceito evoluiu, ou melhor, caminhou, sob uma perspectiva descontinuísta, para se desdobrar em dois outros: confidence e reliability. Em português, o termo confiança é aleatoriamente utilizado na tradução de trust e confidence, em surveys internacionais aplicados nacionalmente. Reliability e, principalmente, seu adjetivo reliable, aparece nas análises dos resultados: o primeiro traduzido por confiabilidade ou credibilidade; o segundo, como a qualidade daqueles indivíduos e/ou instituições depositárias da confiança, por isso chamados de “confiáveis”. A meu ver, esta diaphonia, ou profusão de significados, acaba gerando muita diafonia (linha cruzada) e, consequente má compreensão da pergunta por parte do entrevistado, como também dificuldade para a análise daquele que aplica os surveys, já que não consegue ter segurança quanto ao sentido inferido pela resposta. Na literatura sociológica de língua inglesa vertida ao português, confidence é comumente traduzido como crença3. A tradução, no entanto, pode representar ambiguidade para aqueles que não têm acesso ao texto original em inglês, já que belief é a palavra mais associada à crença. A confiança contida em confidence encerra a segurança, mas isto também não fica claro em português. Sabe-se que a tradução e a interpretação de textos não são tarefas fáceis. Mais difíceis ainda elas se tornam quando têm por objetivo investigar percepções subjetivas suscitadas por aqueles termos em indivíduos distribuídos por inúmeras comunidades linguísticas. [...] sabemos que a maioria dos seres humanos vive em comunidades linguísticas razoavelmente estáveis, e que os significados atribuídos aos termos de uma língua são produtos de experiências sociais compartilhadas dentro de cada uma dessas comunidades. Como consequência do fato de a língua adquirir significado através da experiência vivida de coletividades humanas, os campos semânticos de muitos termos complexificam-se e diferenciam-se (Feres Júnior e Eisenberg, 2006, p. 464).

Produzir uma pergunta que signifique exatamente a mesma coisa em tantos contextos linguísticos diferentes, portanto, é praticamente impossível, mas a precisão dos conceitos é importante e, por isso, ao longo do artigo, quando necessário o termo original em inglês será colocado entre parênteses. Outro ponto importante para a compreensão da literatura é que a abordagem culturalista se desenvolve de forma dedutiva, a partir de fundações individuais. O mapeamento de uma cultura propícia à democracia se constrói a partir da percepção de atitudes individuais, em nível micro, não diretamente relacionadas à política, mas que 3

Cf. tradução de Raul Fiker em GIDDENS, 1991, p. 38. E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

173

Ana Lúcia Henrique

fomentam um comportamento cidadão que, em nível macro, mais facilmente sustenta o regime. Logo, as percepções subjetivas não são necessariamente contrapostas aos “fatos”, à “realidade” ou a índices quantitativos de avaliação do regime, como ocorre na perspectiva institucionalista. É, portanto, a partir da avaliação subjetiva que o conceito de confiança se constrói e dialoga com a democracia, também percebida subjetivamente, no presente trabalho.

4 A Confiança e a Cultura Cívica A percepção de um alto grau de confiança aparece entre as orientações centrais de uma cultura democrática, no estudo de Almond e Verba (1963), para quem existem três tipos de orientações preponderantes em três tipos de cultura política: uma cultura política paroquial, uma cultura política submissa4, ou súdita — conforme tradução de Moisés (1995, p. 93) —, ou ainda subordinada, como traduzido por Rennó (1998, p. 86), e uma cultura política participante; aqui dispostas na direção evolutiva sugerida pelos autores. Cada cultura seria “congruente”, ou seja, mais adequada a uma determinada “estrutura” política. Sendo a cultura participante, e mais ainda a cultura cívica,

uma

cultura

participativa

“equilibrada”,

ou

seja,

sem

“arroubos

revolucionários”— mais “adequada”, portanto, ao regime democrático, particularmente no contexto histórico da obra. Em sua relação com a democracia, a confiança aparece, consequentemente, nesta literatura associada a diversos outros conceitos relacionados à participação cidadã, que, desta forma, fazem a ponte entre a orientação, a atitude e a ação junto às instituições democráticas. A opção se mostra importante para o mapeamento desta cultura basicamente por dois motivos: o primeiro pela subjetividade do próprio conceito; o segundo, pelo seu caráter multidimensional. Essas “pontes” são igualmente mensuradas nas pesquisas, para análise em separado e agregadamente, como parte de uma “síndrome”, outro conceito também bastante presente. A conexão se dá pela cidadania ativa, fundamental para essa abordagem. Estudos anteriores, como Misanthropy and Political Ideology, de Rosenberg, publicado em 1956, já buscavam a relação entre a percepção do relacionamento interpessoal, atitudes e práticas políticas. Neste estudo, como dito, a confiança aparece

4

“subject”, no original de Almond e Verba.

174

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

como “a fé (faith) nas pessoas”, que, segundo Rosenberg (1956, p. 690), poderia estar relacionada aos princípios, às práticas e às políticas de um sistema. Além da fé nas outras pessoas, a fé em si mesmo, ou seja, a autoconfiança ocupa papel de destaque na formação da cultura cívica. “Um fundamento importante da vitalidade democrática é a confiança que os cidadãos têm na sua capacidade de influenciar a elite política” (Lagos, 2000, p. 8). Para essa literatura, o equilíbrio do regime reside na participação potencial, ou seja, na crença na “competência subjetiva” (Almond; Verba, 1963), ou na “eficácia política” (Lagos, 2001) do cidadão para responder e exigir respostas do governo. De acordo com esse argumento, uma sociedade composta por cidadãos que se sentem capazes de negociar com o governo em pé de igualdade — cidadãos autoconfiantes — torna-o mais sensível às demandas, até pelo temor a algum tipo de retaliação ou punição (nas urnas, por exemplo). Daí a importância do aspecto cognitivo (entender como o sistema funciona) e avaliativo (ter capacidade de fazer juízos de valor sobre o sistema), e, portanto, da escolaridade para o cidadão cívico. A falta de confiança na própria capacidade política (“efetividade interna”) faz com que a pessoa se sinta pouco influente (e responsável) pelas decisões políticas (Lagos, 2000). Para Almond e Verba (Ibid. p. 191), a autoconfiança se mede pela percepção da competência política. “Seja mito, realidade ou a combinação de ambos, o grau de influência que os indivíduos acreditam ter sobre o governo e as formas como eles acreditam que podem fazê-lo são elementos importantes da cultura cívica” (Ibid., p. 139). Assim sendo, o cidadão subjetivamente competente tem mais chances de ser ativo social e politicamente. Em decorrência, o governo, composto por membros de uma sociedade subjetivamente competente, tem mais chances de ser sensível às demandas da coletividade. Em outras palavras, o segredo do bom funcionamento da democracia está na percepção individual da potencialidade de participação cidadã, mesmo que não efetivamente realizada. Sendo assim, toda a construção da cultura cívica e sua congruência com uma estrutura democrática fundamentam-se na expectativa, na fé, e na crença, que, por sua vez, geram a confiança. Enquanto fé5 e crença6, não necessitam de comprovação, nem de interação social, já que subjetiva e pessoal. É a expectativa da transferência de valores individuais para a ação política que transforma aquela cultura em mais ou menos propícia à democracia. Sendo assim, pouco importa se as pessoas 5 6

Crença religiosa; confiança. Fé. (FERREIRA, 1982, p. 616). Convicção íntima; opinião adotada com fé e convicção. Crença. (Idem, p.399) E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

175

Ana Lúcia Henrique

confiam umas nas outras efetivamente. É a sua atitude com relação às demais que fará com que a pessoa tenha mais potencialidade de atuar em grupos informais, de ser sensível às necessidades coletivas e de, assim, participar social e politicamente, tornando a democracia mais ou menos estável e legítima. Desta forma, a cultura pode ser auferida não pelos efetivos resultados, conforme advogam os institucionalistas, mas pela percepção subjetiva do cidadão. A confiança, portanto, não aparece apenas no nono capítulo da obra seminal de Almond e Verba, como acreditam aqueles que fazem uma leitura apressada da obra. Ela permeia o argumento desde o início, embora nos primeiros oito capítulos os autores concentrem-se não na confiança (trust), mas na fé (faith) do indivíduo no sistema político, que lhe garante a participação potencial e, dessa forma, lhe dá autoconfiança. O “cidadão competente” é, portanto, autoconfiante. De acordo com o mesmo argumento, o arcabouço institucional tem função subsidiária, o que configura uma abordagem culturalista forte, conforme classificação de (Przeworski; Cheibub; Limongi, 2003). Em outras palavras, o desenho institucional pode até reforçar essa “fé” do indivíduo, mas, por si só, não a provoca, já que inerente a uma característica cultural daquela sociedade.

5 Confiança e Virtude Cívica Outra face da confiança em sua relação com a qualidade da democracia é aquela que a associa às virtudes ditas cívicas, ou seja, uma cesta de valores sociais como a generosidade e a sensibilidade para com as outras pessoas (a solidariedade). Estes valores, por sua vez, estão na raiz de um comportamento mais cooperativo, que facilita o uso de grupos informais e de associações para interlocução junto ao governo. “Belief in the benignity of one’s fellow citizen is directed related to one´s propensity to join with other in political activity”7 (Almond; Verba 1963, p. 228). A valorização do cooperativismo interpessoal está diretamente relacionada à chamada “competência cidadã” e à propensão para criar estruturas políticas (Ibid., p. 227). “Esta é a ponte que faz com que a confiança social se traduzisse em relevante confiança política” (Ibid., p 228). As pesquisas de Almond e Verba confirmaram a existência dessa correlação nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Nos outros três países, no entanto, o mesmo não ocorreu. Para os autores, as atitudes favoráveis às relações interpessoais não haviam

176

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

ultrapassado a barreira entre o mundo social e o mundo político e, portanto, não haviam fomentado ainda o associativismo ou a participação política naqueles países (Ibid., p. 239). Na verdade, até hoje o estabelecimento da variável dependente no que tange à relação entre o associativismo, a confiança e a democracia continua controverso e sensível às amostras. “O papel do cidadão representa a mais alta forma de participação democrática” (Ibid. p. 168), mas não é o fato de ser cidadão que o torna participativo, assim como não é a constituição democrática que torna o país uma democracia. E isto os brasileiros compreendem muito bem. Em sua pesquisa, Almond e Verba constataram que a participação cívico-política voluntária era baixa em todos os países pesquisados. Vinte anos mais tarde, Putnam constatou declínio ainda maior (Putnam, 1995). Houve, no entanto, uma característica predominante nas “democracias estáveis” e “modelares”, segundo o argumento dos autores: o ativismo cívico social consideravelmente mais alto nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, independentemente das segmentações internas — escolaridade, sexo e renda. Sendo assim, a pesquisa indicou que uma cultura mais propícia à democracia pressupunha um sentimento de “confiança e de segurança (trust and confidence)” no ambiente social (Almond; Verba, 1963, p. 211). Aqui, outro aspecto da confiança aparece: a segurança, expressa pela palavra inglesa confidence. A fé, a crença e a autoconfiança, sentimentos de foro íntimo, não pressupõem a interação, mas são componentes de uma cultura cívica, a mesma cultura que fomenta o ativismo social. Segundo os autores, para agir socialmente os indivíduos precisam-se sentir em um ambiente seguro e sensível aos seus problemas. Mapear essa cultura, por sua vez, significa chegar ao coração das percepções e expectativas de um povo sobre sentimentos de segurança e de sensibilidade, que sustentam a cooperação cívica. Assim, para desenvolver sua pesquisa, os autores lançaram mão de um questionário modelo, aplicado anteriormente por Morris Rosenberg (1956, p. 690) para mensurar a “crença nas pessoas” em cinco perguntas. Até hoje este questionário é bastante utilizado nos surveys que buscam a percepção subjetiva da confiança interpessoal: 1. Algumas pessoas dizem que podemos confiar na maioria das pessoas. Outros dizem que todo o cuidado é pouco quando se lida com elas. Como você se sente em relação a essas duas afirmações? 7

“Acreditar na bondade dos cidadãos está diretamente relacionado à propensão para se associar a outras atividades políticas”. Tradução livre da autora. E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

177

Ana Lúcia Henrique

2. Você acredita que a maioria das pessoas está mais propensa a ajudar os outros ou mais propensa a cuidar delas mesmas? 3. Se você não se cuidar, as pessoas vão se aproveitar de você. 4. Ninguém está nem aí para você no final das contas.8 5. A natureza humana é fundamentalmente cooperativa. O maior índice de confiança nas pessoas foi atribuído àqueles que escolheram a afirmação “pode-se confiar na maioria das pessoas” e “as pessoas estão mais propensas a ajudar”; àqueles que concordaram com a afirmação cinco e àqueles que discordaram das afirmações três e quatro. Em sua pesquisa, Almond e Verba classificaram as mesmas afirmações em duas colunas: Afirmações de desconfiança (distrust): a) Ninguém está nem aí para você no final das contas. b) Se você não se cuidar, as pessoas vão se aproveitar de você. Afirmações de confiança (trust): a) Podemos confiar na maioria das pessoas. b) A maioria das pessoas está mais propensa a ajudar os outros. c) A natureza humana é fundamentalmente cooperativa. As orientações nos seguintes países distribuíram-se em três padrões: EUA e GrãBretanha, baixos índices de desconfiança e altos índices de confiança; Alemanha e Itália com alta desconfiança e baixa confiança e México, com padrões mistos. Dessa forma, os autores concluíram que altos índices de confiança e baixos índices de desconfiança estariam presentes em um ambiente onde a percepção sobre a sensibilidade e a segurança era mais positiva, logo, com uma cultura mais propensa à democracia. Apontaram ainda que a confiança e a segurança (confidence) tende a ser maior entre os com maior poder aquisitivo e maior escolaridade. Desde o começo, portanto, a literatura aponta uma forte associação entre a confiança, a escolarização e a renda.

6 A Cultura Cívica “Revisitada” A proposta de análise behaviouralista da cultura política presente no livro de Almond e Verba recebeu uma série de críticas, boa parte delas expostas em uma coletânea de artigos organizados e publicados por eles mesmos (Almond; Verba, 1989). Os principais questionamentos concentraram-se sobre o conceito minimalista de 8

No original em inglês: “No one is going to care much what happen to you, when you get right down to it”.

178

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

democracia contido na obra, a visão do modelo liberal anglo-saxão de cidadania como tipo ideal de “democracia estável” (Pateman, 1980, p. 67) e a pressuposição de cultura política homogênea em cada país analisado (Fuks; Perissinotto; Ribeiro, 2003). O estabelecimento da cultura cívica como variável independente é sempre fonte de controvérsia neste debate (Pateman, op. cit.). Lijphart (1980, p. 49) manteve uma posição conciliatória ao concluir que “o desempenho das estruturas políticas são tanto causa quanto efeito da cultura política”. O argumento de Lijphart pode nos dar pistas sobre a razão do difícil estabelecimento da relação causal entre as variáveis associadas a essa cultura em particular. Para ele, os autores superestimam o conceito de cultura política ao incluir “o cooperativismo e a confiança social”, componentes da “cultura não política” quando os colocam como variáveis da cultura cívica (Ibid., p. 38). Acabam, dessa forma, por fundir as variáveis independentes e intermediárias em um único conjunto de variáveis independentes, além de introduzir uma “imprecisão desnecessária” que poderia ser evitada se restringissem a noção de cultura política ao “politicamente explícito” (Street, 1994, p. 100). Pateman (1980) também desaprova a imprecisão do conceito de cultura cívica, que acaba por torná-lo um “modelo abstrato”. Acrescenta, no entanto que o problema decorre da visão da teoria democrática liberal, que separa a participação política de outras esferas da vida social, transformando a cidadania ativa em “mito”. Dessa forma, critica indiretamente a noção de confiança como variável de uma cultura política favorável à democracia, já que, no argumento de Almond e Verba, a “competência subjetiva” sustenta a potencialidade da ação cidadã, o que traz a estabilidade do regime.

7 Inglehart e o Renascimento da Cultura Cívica As críticas abalaram a popularidade da cultura cívica, só recuperada com o trabalho de Ronald Inglehart, 20 anos mais tarde, em 1988. Em Cultura Cívica, Almond e Verba apontaram a fragilidade de conclusões universais a partir de uma análise comparada composta por apenas cinco países. Inglehart aumentou a amostra da pesquisa, aplicando os World Values Surveys, e testando as variáveis de uma cultura política que sustentasse a “evolução e a persistência de uma democracia de massa” em um número crescente de países — trabalho que desenvolve até os dias de hoje.

E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

179

Ana Lúcia Henrique

Respondendo aos institucionalistas, Inglehart (1988) buscou as origens da conexão entre o desenvolvimento econômico e a “estabilidade” democrática — na época este ainda era o termo em voga — no argumento de Weber (1947). Segundo ele, os valores materialistas do protestantismo fomentaram a acumulação, que por sua vez, facilitou o surgimento do capitalismo e o desenvolvimento econômico a ele associado, favorecendo a emergência de uma cultura favorável à democracia. Para ele, os resultados dos WVS aplicados entre 1973 e 1987 comprovam a mesma relação entre cultura política e estrutura política defendida por Almond e Verba. Rebatendo as críticas quanto à imprecisão do conceito de “cultura cívica” (Pateman, 1980), Inglehart (1988) a definiu como “uma síndrome coerente de satisfação com a vida pessoal, satisfação política, confiança interpessoal e o apoio a ordem social existente” – mais evidente em “democracias estáveis”. O ponto chave do argumento que Inglehart defende até hoje e que sustenta o renascimento dos estudos culturalistas que ele anunciou em 88 é a mudança social observada nas mesmas democracias estáveis, onde os altos níveis de prosperidade econômica dos últimos cem anos acabaram por transformar valores voltados para a subsistência em preocupações com as liberdades civis, o meio ambiente, a satisfação com o trabalho e a qualidade de vida, em um movimento semelhante ao apontado pela pirâmide das necessidades de Maslow (1943). Essas preocupações, segundo Inglehart, fariam parte dos valores de uma sociedade pós-materialista, voltada para a autoexpressão, argumento que atualizou, acompanhando a evolução dos valores sociais. Dessa forma, além da religião, Inglehart (2003) adicionou outra variável interveniente: o desenvolvimento econômico como facilitador da emergência dos valores pósmaterialistas, mas não como preditor da estabilidade do regime, que depende de uma cultura de tolerância, participação e de bem-estar fomentadora de uma nova participação política e social.

8 Putnam: confiança e capital social Enquanto Inglehart ampliou a pesquisa de Almond e Verba em nível mundial, Robert Putnam (1993) testou a mesma hipótese longitudinalmente, não mais restrita à percepção subjetiva dos cidadãos, mas pelo cruzamento das informações com o desempenho das mesmas instituições, recém-criadas em regiões culturalmente diferentes ao longo de 20 anos. Para tanto, empreendeu uma pesquisa em seis regiões

180

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

italianas, aproveitando a oportunidade da criação de novos governos locais, testando seu desempenho de acordo com variáveis ligadas à cultura cívica. Para Putnam, “instituições são dispositivos para alcançar objetivos e não somente para obter o acordo”. Conforme a pesquisa, que, mais uma vez, teve como objetivo rebater a preponderância das análises institucionalistas com base nos pressupostos da escolha racional, os governos do norte da Itália tiveram melhor desempenho institucional do que os do sul, atestando a influência cultural na qualidade do regime. Na sua perspectiva, o segredo do sucesso deveu-se às virtudes cívicas observadas nos cidadãos das regiões mais bem avaliadas, sendo “a honestidade a obediência às leis e a confiança”, os valores mais importantes, porque fundamentais para a existência da comunidade cívica. O círculo virtuoso tocquevilliano, presente ainda que subsidiariamente nas conclusões de Verba, ganhou papel de destaque na obra de Putnam, para quem a ligação entre civismo e um melhor desempenho das instituições democráticas se deve a ação de redes horizontais de relações sociais, que fomentam “robustas normas de reciprocidade”, facilitando o fluxo de informações, ajudando na solução de dilemas da ação coletiva, aumentado os custos de deserção e desestimulando as ações individuais de soma zero. Essas redes sociais de solidariedade e de reciprocidade, comuns nas comunidades cívicas, “azeitam” o desempenho das instituições democráticas, e geram capital social (Putnam, 1993) — termo usado pela primeira vez por Lyda Judson Hanifan, em 1916, para descrever centros escolares comunitários (Fukuyama, 2002). No meio científico, no entanto, foi James Coleman (1990) quem cunhou a expressão, central no argumento de Putnam. Para Coleman, no entanto, o capital social descrevia uma variedade de entidades que facilitavam certas ações dos atores dentro da própria estrutura social. De acordo com Putnam, toda sociedade, seja ela autoritária ou democrática, é formada por redes de comunicação e de troca interpessoal, sendo as horizontais, realizadas entre agentes de status e poder social equivalentes, preponderantes em comunidades cívicas. A confiança (trust), a confiabilidade e a credibilidade (reliability), além da segurança íntima (confidence) são fundamentais para as redes, enquanto componentes importantes do capital social, este sim, diretamente relacionado ao melhor desempenho da democracia. Já as redes verticais uniriam agentes desiguais em relações assimétricas de hierarquia e dependência, e seriam mais frequentes em comunidades com relações autoritárias, ou “subordinadas”, conforme classificação de Almond e E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

181

Ana Lúcia Henrique

Verba, onde a confiança se daria de forma particular, ou seja, entre familiares e amigos. As relações dos laços de sangue, mais comuns no sul da Itália, de acordo com sua pesquisa, são comparáveis aos laços do engajamento cívico, porque sustentados por redes horizontais, mas ao contrário daqueles, não sustentam a democracia. Densas e segregadoras, tais redes fomentam a cooperação exclusiva entre os membros de um determinado grupo. As redes de engajamento cívico, por seu turno, ultrapassam as clivagens sociais e o foro particular para nutrir uma cooperação ampla, fundamental para o bom funcionamento do regime. São, por isso, de acordo com este argumento, muito mais importantes para a democracia do que o desenvolvimento econômico, que também viria graças ao acúmulo de capital social. Na mesma direção, Fukuyama (1995) elava a confiança social ao posto de fator propulsor de ciclos virtuosos de desenvolvimento social e econômico. Assim como Putnam e Inglehart, Fukuyama defende que a confiança, enquanto traço cultural, tem primazia como variável independente para o acúmulo de capital econômico. “O bemestar de uma nação, bem como sua capacidade de competir, é condicionado a uma única e abrangente característica da cultura: o nível de confiança inerente à sociedade.” A virtude cívica é igualmente importante para Fukuyama, já que uma sociedade civil próspera depende dos hábitos, costumes e princípios éticos de sua gente. Ao Estado, caberia empreender políticas públicas que apoiem estes atributos, por meio de uma conscientização e respeito crescentes pela cultura. (Ibid., p. 21 e. seq.). Outra vez, a educação ganha destaque no desenvolvimento de uma cultura propícia à democracia, como já argumentava John Stuart Mill (1861). Embora também admitindo a primazia de fatores culturais como determinantes do desenvolvimento econômico, Putnam sabiamente evitou a polêmica sobre a direção da relação causal entre cultura e estrutura — uma discussão tipo “ovo-galinha”, porque trata de conceitos de reaplicação mútua (mutually reinforcing) (Putnam, 1993, p. 181). Ressaltou ainda outro ponto importante. Ao contrário do capital econômico, o capital social é composto por “recursos morais” (Albert Hirschman apud Putnam 1993, p. 169), ou seja, que não se esgotam pelo uso. A confiança aumenta no longo prazo, com a relação entre os atores, ou seja, conforme se torna “transitiva” e espalhada pelas redes sociais que a “emprestam”, de acordo com o termo cunhado por (Veléz-Ibanez apud Putnam, Ibid.).

182

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

9 Características do argumento na Terceira Onda A chamada Terceira Onda de Democratização redesenhou o cenário internacional bipolarizado e os estudos sobre a cultura política migraram da associação entre cultura e estabilidade democrática para a legitimidade, qualidade e consolidação do regime. A mudança era esperada. De acordo com Huntington (1994), ondas de democratização são movimentos simultâneos que ocorrem em um curto espaço de tempo, levando países não democráticos para regimes democráticos. Como ocorre na natureza, são seguidas de refluxos, ou seja, movimentos contrários, no caso, tendentes ao autoritarismo. A Terceira Onda teve início com a Revolução dos Cravos, em 1974, chegando à América Latina no final dos anos 70 e início dos anos 80, e se propagou para o leste Europeu no final dos anos 90. São marcos do período a queda do Muro de Berlim (1989), a desintegração da União Soviética, em 1991, e a reunificação da Alemanha, em 1990. O marco inicial da onda de democratização e o início do refluxo ainda é objeto de controvérsia na literatura e por isso decidi não tratar a abordagem cronologicamente, mas sim, pelos valores preponderantes no argumento, que embora “repaginados” não mudaram significativamente, o que garantiu a continuidade das mesmas pesquisas. A “escola da democracia” de Tocqueville (1899) e as virtudes cívicas continuaram presentes na literatura, mesmo que agora inseridas no contexto das embedded democracies, das defective democracies e das democracias em consolidação. Puhle (2005), Linz e Stephan (1996) e Merkel (2004) também apontam a importância das associações civis e do capital social como elementos externos favoráveis à consolidação democrática. Para os autores, tais redes promovem as virtudes civis como a tolerância, a aceitação mútua, a honestidade e a confiança, além da “coragem civil”, ou seja, os mesmos elementos presentes na literatura original da cultura cívica e de seus mais importantes expoentes. Também para Merkel (Ibid.), estas redes virtuosas “imunizariam” a sociedade contra as “tentações autoritárias” e as “ambições tirânicas” dos grupos majoritários. Mais adiante, Merkel aponta ainda a desconfiança como facilitadora

das

defective

democracies,

pela

sua

influência

prejudicial

ao

desenvolvimento de um sistema institucionalizado de partidos políticos, grupos de interesses e de associações civis. (Ibid., p.53) A queda dos índices de confiança social e política deu o tom do debate no novo período. Como ocorreu na ocasião do livro de Almond e Verba (1963), mais uma vez,

E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

183

Ana Lúcia Henrique

os estudos vieram em resposta a uma demanda suscitada pelo aprimoramento da metodologia das pesquisas e da maior disponibilidade de séries históricas consistentes, que mostraram um declínio do engajamento cívico e do associativismo desde os anos 70 (Putnam, 1995). Novos dados mostraram a insatisfação não só com o desempenho dos atores políticos (Power; Jaminson, 2005), mas também com a incapacidade das instituições democráticas em acompanhar as demandas da sociedade (Warren, 1999), composta agora por cidadãos cada vez mais exigentes, críticos e insatisfeitos com o regime (Norris, 1999). Em outras palavras, contentes com as “facilidades” de um estado democrático, mesmo que paradoxalmente críticos às suas instituições (Dahl, 2000).

10 Confiança política e Cultura Cívica A confiança política surge na literatura também em resposta ao contexto histórico internacional. Em 1963, Almond e Verba não definem o próprio conceito de confiança política que, na verdade, aparece quase que fortuitamente no livro, como sinônimo de confiança em instituições. De acordo com Pipa Norris (1999), a confiança política tem por objeto a comunidade política, o desempenho de instituições do regime, os princípios e o desempenho do regime e os atores políticos, ou ainda, de acordo com Dalton (1999 apud Power; Jamison, 2005, p.68), as “orientações gerais no sentido de ações de desempenho do governo e das elites políticas”. Se tomarmos estas definições e incluirmos a confiança no governo e nos atores políticos, a omissão de Almond e Verba pode ser vista como um retrocesso visto que estudos anteriores, como o de Rosenberg (1956), já incluíam perguntas sobre a imagem do legislador, como forma de mensurar a confiança no princípio da representatividade (Rosenberg, p. 691). Almond e Verba, no entanto, atribuíram às instituições um papel suplementar na composição da cultura cívica, em que a confiança social tem papel preponderante. “Os constituintes desenharam estruturas formais do regime que tentam fazer com que as pessoas tenham um comportamento confiável, mas sem estas atitudes estas instituições significam pouco.” (Almond; Verba, 1963, p. 357). Da mesma forma ocorreu com relação aos atores políticos, que, pela perspectiva dos autores, agem em resposta à capacidade de demanda dos cidadãos autoconfiantes. Com relação às elites políticas, Almond e Verba apontam apenas que a crença de que estas elites fazem parte da mesma comunidade é importante na estabilidade do regime.

184

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

O debate contemporâneo sobre a confiança política só teve início de fato no começo da década de 70, ou seja, sete anos após a publicação do Cultura Cívica, com o declínio da confiança no governo norte-americano na esteira da insatisfação com a Guerra do Vietnã e do caso Watergate (Power; Jaminson, 2005, p. 67). De acordo com estes autores, foi a publicação do estudo The Crisis of Democracy, de Crozier, Huntington e Watanuki, que estabeleceu o tom da década, que se encerrou com a publicação do The Civic Culture Revisited, em 1980. Foi por intermédio da análise dos índices de confiança pessoal, no entanto, que a confiança política ganhou visibilidade neste debate, quando, o mesmo Putnam, que havia associado o sucesso das instituições democráticas à “virtuosidade” das redes de engajamento cívico e social, concluiu que o círculo virtuoso tocquevilliano já não operava da mesma forma nos Estados Unidos. Após analisar os dados do General Social Survey (GSS), Putnam (1995, 2000) constatou o declínio do associativismo, da confiança interpessoal e da confiança política, desde a pesquisa de Almond e Verba. Para boa parte desta literatura, a correlação entre associativismo e confiança social é direta e comprovada por diversos surveys internacionais de Inglehart. A pesquisa de Putnam (1995) mostrou que a porcentagem de entrevistados que disseram confiar na maioria das pessoas caíra de 58%, em 1960, para 37 %, em 1993. Neste estudo, Putnam elencou uma série de razões para a queda do capital social, e consequentemente, da confiança interpessoal e política nos EUA: o maior ingresso das mulheres no mercado de trabalho, diminuindo o tempo livre para o trabalho voluntário; migrações internas, enfraquecendo os laços comunitários e a confiança — uma questão de tempo, como o próprio Putnam afirmou em 1993; mudanças na estrutura familiar; transformações tecnológicas do tempo livre, agora destinado à televisão e a outras atividades individuais.

11 Dilemas da Confiança nos Estados Modernos Como Putnam, Offe (1999) também vê com preocupação o “déficit” de confiança em instituições associado à queda do capital social, mas além de expor novas causas aponta também soluções. Para ele, é difícil, se não impossível solucionar os inúmeros problemas de ação coletiva interposto pelas sociedades contemporâneas sem modelos informais de coordenação social. Por outro lado, a complexidade dos estados atuais fez com que chamem para si a responsabilidade por inúmeros problemas antes resolvidos pela comunidade. Muitos deles, no entanto, não são fortes o suficiente para E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

185

Ana Lúcia Henrique

implementar e aplicar as políticas públicas e acabam “confiando” na ajuda da sociedade civil. Configura-se, então, um círculo vicioso. O argumento de Offe é normativo e propõe uma solução cercando o problema por ambos os lados: o social e o político. O primeiro seria o aumento do capital social, para aumento da confiança interpessoal e do liame social, no mesmo caminho de Putnam. Esta é a solução de baixo para cima. O segundo depende do cumprimento da norma aplicada e gerada pela própria instituição, ou seja, o exemplo vindo de cima para baixo, já que para Offe o conceito de confiança em instituições está mais ligado à segurança do que à reciprocidade. Confiar em instituições implica saber que suas regras, valores e normas são compartilhados e obedecidos pelos seus participantes. Retoma, portanto, a associação entre o conceito de confiança como causa e efeito das virtudes cívicas, da honestidade e da obediência às normas. Os dois conceitos encontram-se diferenciados nos surveys de Inglehart. A confiança interpessoal é auferida pela palavra trust: “How much you trust in people” ou “Do you think most people can be trusted”. A confiança em instituições, no entanto, é avaliada pela palavra confidence. “How much confidence you have in them?” Infelizmente, a mesma diferenciação, no entanto, não fica clara na versão das pesquisas para o português.

12 Paradoxos da relação entre confiança e democracia A questão levantada por Offe é central para a discussão do conceito de confiança em instituições representativas, como o Congresso Nacional brasileiro. A queda dos índices de confiança em instituições políticas é fenômeno democrático, porque atinge as poliarquias ricas e as democracias nascentes, complexo, porque multidimensional, e varia bastante de país a país (Warren, 1999; Norris, 1999). E, ao contrário do que disseram os culturalistas originais, mas que uma ameaça ao regime, pode ser um fenômeno pontual: a reprovação ao desempenho das instituições e do governo especificamente (Putnam; Pharr; Dalton, 2000; Dahl, 2000; Morlino, 1998). O argumento retoma uma antiga ideia de David Easton (1953), anterior à cultura cívica, que aponta diferentes dimensões e efeitos do apoio político específico e do apoio político difuso. A discussão é pertinente para o entendimento da confiança política. Na verdade, as palavras “apoio” e “confiança” são usadas indistintamente como tradução para support na literatura brasileira. O apoio político específico estaria vinculado à avaliação de desempenho, sendo a confiança nos políticos o mais específico. Já o apoio político difuso diz respeito à percepção do sistema político como um todo. Não é 186

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

pontual, sendo, portanto, o apoio aos princípios democráticos, também mensurados pelas mesmas pesquisas, seu maior representante e o mais importante para a manutenção da democracia. O mesmo argumento serve para relevar a discrepância entre os baixos índices de satisfação com o desempenho das democracias europeias paralelo a altos níveis de apoio ao regime democrático apontado por Leonardo Morlino (1998) e a queda da participação política e social apontada por ampla literatura, a começar pelo próprio Putnam (1995; Putnam; Pharr, Dalton, 2000). O homem moderno aprecia os ideais democráticos, mas não quer exercer a democracia diretamente como os Antigos (Constant). Desta forma, mesmo que desaprove a atuação dos profissionais aos quais delegou o exercício da política (Weber, 1967), ainda assim apoia os princípios democráticos (Dahl, 2000), o que não representa uma inconsistência, mas um paradoxo inerente à própria origem do regime. Para parte da literatura culturalista, no entanto, o principal paradoxo moderno da democracia reside no advento de uma cidadania crítica, oriunda de segmentos mais escolarizados e com maior renda, que demandam maior “qualidade” das instituições democráticas. Desta forma, o declínio da confiança “em todos os tipos de autoridade tradicional” estaria relacionado a mudanças culturais ligadas aos processos de modernização e de pós-modernização, observadas em sociedades que passaram por crescimento econômico significativo (Inglehart, 1988, 1999). Cidadãos mais escolarizados, mais bem informados e com maior renda são mais exigentes com seus líderes. Logo, o declínio da confiança política reflete uma mudança positiva do comportamento pós-materialista, que pode trazer em seu bojo uma saudável renovação da participação cidadã individual e comunitária, não mais associada às instituições de massa das primeiras fases da modernização, revelando “cidadãos críticos” (Norris, 1999) ou “democratas insatisfeitos” (Dahl, 2000), que, se por um lado aderem fortemente aos valores democráticos, conforme mostram as pesquisas, por outro acreditam que o modelo democrático inventado nos séculos XVIII e XIX deixa a desejar no contexto atual. Assim, o declínio do respeito pela autoridade tradicional faria com que, paradoxalmente, a democracia se tornasse mais forte, pelo retorno às origens. O argumento retoma a importância das orientações cognitivas e avaliativas para a cidadania ativa, autoconfiante e para a qualidade do regime, como Almond e Verba já haviam feito desde o início.

E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

187

Ana Lúcia Henrique

Warren (1999), no entanto, lembra que a relação entre confiança e democracia moderna enseja outros paradoxos, além da necessidade versus “aversão” à participação política ou a crítica pontual ao desempenho dos atores políticos. A democracia liberal emergiu da desconfiança da política tradicional e das autoridades clericais. Se por um lado a confiança entre as pessoas é importante para o associativismo, em nível institucional, mais democracia representa maior disponibilidade de informação, maior poder de fiscalização. Portanto, certa desconfiança nas autoridades e nas instituições pode ser saudável. O mecanismo de freios e contrapesos também encerra uma desconfiança positiva. Além disso, se por um lado, a confiança se desenvolve onde os interesses convergem, a política é o reino dos interesses conflitantes. Ainda assim, com todas estas contradições, as instituições democráticas dependem da confiança dos cidadãos na representação e nas regras do jogo. Conclui que a confiança e a democracia são distintas, mas trabalham complementarmente na tomada de decisões e na organização das ações coletivas.

13 Desconfiança em Democracias em Consolidação É possível, no entanto, que os efeitos da desconfiança política sejam diversos entre democracias consolidadas e democracias recentes. Dahl (2000) adverte que a constante violação das normas institucionais, a falta de respostas dos ocupantes dos cargos do governo às demandas sociais e o abuso dos recursos públicos podem cultivar uma desconfiança inercial perniciosa ao regime, principalmente naquelas democracias ainda não “encaixadas” — para usar a tradução do texto de Giddens (1991) para embedded — ou em processo de consolidação (Puhle, 2005), como as da América Latina, onde o reconhecimento da autoridade do estado e a confiança pública no novo regime podem depender de avaliações específicas (Power; Jamison, 2005). Nelas o fenômeno assume aspectos mais preocupantes, pelas possíveis implicações para uma sociedade ainda carente de um “reservatório” de legitimidade, revelada por baixos índices de satisfação com o regime e “bolsões” de autoritarismo, como observado no relatório do Latinobarómetro 2007. É o caso da América Latina, onde a literatura associa a desconfiança política a uma “síndrome de desconfiança generalizada, a um cinismo e ceticismo inercial negativo à estabilidade democrática” (Lagos, 2000, 2001). Ao contrário de Lagos, Power e Jamison (2005) não compartilham uma visão “alarmista” e associam a desconfiança à reprovação ao desempenho dos políticos, logo resultante de apoio 188

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

específico, em meio a atitudes autoritárias fragmentadas, e, portanto, não significantes. Para eles, os cidadãos estão cada vez mais dispostos a separar a avaliação dos governantes da avaliação da democracia como tipo de regime. Além disso, advogam que a confiança na América Latina não pode ser analisada como fenômeno isolado, mas inter-relacionado a valores culturais e sociais mais amplos, em que a desconfiança social apresenta índices compatíveis aos observados com relação às instituições políticas. Inglehart também não é pessimista com relação à queda dos índices, pelo menos no que se refere à confiança em instituições específicas ou nos atores políticos (elites) e suas consequências para a estabilidade dos regimes democráticos existentes. Desde os primeiros trabalhos, ele mantém a confiança subjetiva como um dos valores básicos para a democracia e não atribui muita importância à confiança política. Até hoje, as mesmas perguntas sobre a percepção da confiança interpessoal e social, relacionadas na obra seminal de Almond e Verba, aparecem universalmente em suas pesquisas. Pondera que, sozinha e pontualmente, no entanto, a confiança não é suficiente para sustentar uma democracia de massa estável (Inglehart, 1988). Seu argumento, portanto, fundamenta-se na cultura e na confiança como “síndrome”, ou seja, um conjunto de “sintomas”, comprovados por uma série histórica de pesquisas, em que as instituições democráticas parecem depender de traços culturais duradouros, como a satisfação pessoal e a confiança interpessoal, muito mais do que da satisfação política, que pode estar ligada à avaliação de desempenho dos governos. (Inglehart, 2003, p. 1209).

14 Conclusão Em resumo, a análise deixa entrever um efeito perverso da desconfiança generalizada para as democracias em consolidação: aquele que liga a confiança pessoal à percepção da segurança econômica presente em países industrializados, de onde a literatura se origina. Ceteris paribus, “os mais ricos e os mais escolarizados tendem a ter níveis de confiança interpessoal mais altos, enquanto os mais pobres e menos escolarizados tendem à desconfiança” (Warren, 1999). A correlação positiva entre confiança, renda e escolaridade é recorrente em toda a bibliografia, embora haja controvérsia quanto à causalidade. Trabalhos de Offe, Inglehart e Uslaner (1999) concluíram que aqueles com mais dificuldades na vida têm menos condições de pagar o “preço” da confiança, até porque já sentem que a confiança traída será a consequência. “A insegurança econômica e a desvantagem educacional pode, então, ser não somente E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

189

Ana Lúcia Henrique

uma das causas diretas do que se pode chamar de ‘descapitalização social’ dos pobres, mas também uma das causas indiretas por meio da confiança.” (Warren, 1999, p. 12) O próprio Inglehart (1999) admite que a estabilidade da democracia depende do bem-estar subjetivo e da confiança interpessoal, componentes de “uma cultura generalizada de confiança política (political trust)9” suficiente para assegurar a oposição política e as transições para o poder e um apoio popular difuso para com as instituições políticas existentes. A palavra “síndrome” de confiança e de desconfiança também é bastante presente nesta literatura. A ela estão associadas a satisfação social e a satisfação ou o apoio ao regime, seja ele específico ou difuso. Tais componentes são dificilmente encontrados em populações com dificuldades econômicas, que, desta forma, sequer ultrapassaram a fase dos valores materialistas, ou de sobrevivência, a não ser sob uma “máscara sorridente” (Lagos, 2000). Até porque as populações de baixa renda em países como o Brasil ainda não se deram ao luxo de superar definitivamente os dois primeiros degraus da pirâmide das necessidades de Maslow: as necessidades fisiológicas (básicas), tais como a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção, o abrigo; e as necessidades de segurança, que vão da simples necessidade de segurança dentro de uma casa a formas mais elaboradas, como um emprego estável, um plano de saúde ou um seguro de vida. Se a confiança encerra uma segurança íntima, como estas populações poderiam se sentir de alguma forma confiantes? Simples perceber porque a confiança, em países com as assimetrias encontradas no Brasil, ganha traços particulares. Aqui, as consequências da desconfiança para a baixa participação social e política criam um efeito mais potencialmente danoso ao regime. Pelo enfraquecimento dos liames sociais e consequente desorganização da sociedade civil promovem um círculo vicioso de desconfiança, reforçando, assim, a desigualdade dela decorrente.

Referências ALMOND, G. The Civic Culture: Prehistory, Retrospect, and Prospect. 1996. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2008. Não paginado. ______ ; VERBA, S. The Civic Culture: Political Attittudes and Democracy in Five Nations. 3. ed. Newbury Park: Sage, 1963. 340p. ______ The Civic Culture Revisited. 2. ed. Newbury Park: Sage, 1989. 422p. BAQUERO, M.; CASTRO, H. C. A erosão das bases democráticas: um estudo de cultura política. In: BAQUERO, M.(org.). Condicionantes da consolidação 9

Interessante perceber que aqui Inglehart usa a palavra political trust e não political support, como a maioria da literatura contemporânea em língua inglesa que trata da confiança política, nem confidence, como utiliza nos WVS. 190

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

democrática: ética, mídia e cultura política. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1996. p. 11-39. COLEMAN, J. The Foudations of Social Theory. Cambridge: Harvard University Press, 1990. COASE, R. The Nature of the Firm. Economica, Londres, v. 16, p. 386–405, nov. 2007. Disponível em: http://web.archive.org/web/20040726122301/http://www.cerna.ensmp.fr/Enseignement/ Cours EcoIndus/SupportsdeCours/COASE.pdf. Acesso em: 19 jul. 2009. CONSTANT, B. De la liberté des anciens comparée a celle des modernes. Panarchy,1819. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2007. DAHL, R.. A. A Democratic Paradox? Political Science Quarterly, New York, v.115, n1p.35-40. nov. 2000. DICIONÁRIO INGLÊS. Longman Dictionary of Contemporary English. Harlow: Longman 2001. EASTON, D. The political system: an inquiry into the state of political science. New York: Alfred A. Knopf, 1953. FERES JUNIOR, J. e EISENBERG, J. Dormindo com o Inimigo: uma crítica ao conceito de confiança. Dados – DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.49, n.3, p. 457- 481, out. 2006. FERREIRA, A. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1982]. FUKS, M.; PERISSINOTTO, R. M.; RIBEIRO, E. A. Cultura Política e Desigualdade: o caso dos conselhos municipais de Curitiba. Revista de Sociologia Política , n.28, p. 125-145, jul. 2003. FUKUYAMA, F. Trust: The Social Virtues and the Creation of Prosperity. New York: Free Press, 1995. 455p. FUKUYAMA, F. Capital Social. In: HARRISON, L; SAMUEL, HUNTINGTON Cultura Importa: Os valores que definem o progresso humano. Rio de Janeiro: Record, 2002. 460p. GIDDENS, A. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. 177p. 136 HOBBES, T. Leviathan. London: Penguin Books, 1985 [1651]. 729p. HUNTINGTON, S. A. A Terceira Onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Atica, 1994. INGLEHART, R. The Renaissance of Political Culture. American Political Science Review, v. 82, n.4, p. 1203-1230, dez. 1988. ______ Trust Well-Being and Democracy. In: WARREN, Mark. (ed.) Democracy and Trust Cambridge: Cambridge University Press, p. 88-120, 1999. ______How solid is mass support for democracy and how can we measure it? Political Science & Politics , v.36, n.1, p. 51-57, 2003 . LAGOS, M. A Mascara Sorridente da América Latina. Opinião Pública , v. VI, n. 1, p. 1-16, 2000. ______ Between Stability and Crisis in Latin America. Journal of Democracy , v.12 , n.1, p.135-145, jan. 2001.

E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

191

Ana Lúcia Henrique

LATINOBARÓMETRO. Informe Latinobarómetro 2007. Banco de Datos em Línea. Corporación Latinobarómetro, Site oficial. Santiago Chile, nov. 2007. Disponível em: . Acesso em: 25 mar 2009. LIJPHART, A. The Structure of Inference. In: ALMOND, Gabriel. A.; VERBA, S., The Civic Culture Revisited, 1980, p. 37-56. LINZ, J.; STEPHAN, A. Toward consolidated democracies. Journal of Democracy, p. 14-33, 1996. MASLOW, A. H. A Theory of Human Motivation. Psychological Review, v. 50, p. 370396, 1943. Disponível em: http://psychclassics.yorku.ca/Maslow/motivation.htm. Acesso em: 19 jul. 2009. MERKEL, W. Embedded and Defective Democracies. Democratization, v. 11, n.5, pp. 33-58., dec. 2004. MOISÉS, J. Á. Os Brasileiros e a Democracia. São Paulo: Ática, 1995. MONTESQUIEU, C. O Espírito das Leis. Col. Os Pensadores. São Paulo:Abril, 1974 MORLINO, L. Democracy between Consolidation and Crisis: Parties Groups, and Citizens in Souther Europe. Oxford: Oxford University Press, 1998. NEWTON, K.; DETH, J. W. Foundations of Comparative Politics - Democracies of the Modern World, 3. ed., New York: Cambridge University Press, 2007. NORRIS, P. Introduction: the growth of critical citizens? In: ______ (ed.), Critical citizens: global support for democratic government. New York: Oxford University Press, 1999. OFFE, C. How can we trust our fellow citizens? In: WARREN, Mark (ed.), Democracy & Trust. Cambridge, Grã-Bretanha: Cambridge University Press, 1999. p. 42-87 PATEMAN, C. The Civic Culture: a philosophic critique. In: ALMOND, Gabriel; VERBA, Sidney (ed.), The Civic Culture Revisited, 1980, p. 57-102. PATTERSON, O. Liberty against democratic state: on the historical and contemporaty sources of American distrus. In: WARREN, Mark (org.), Democracy and Trust, Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 151-207. POWER, T. J.; GONZÁLEZ, J. Cultura Política, Capital Social e percepções sobre a corrupção: uma investigação quantitativa em nível mundial. Revista de Sociologia Política, n.21, p.51-69, 2003. POWER, T. J.; JAMISON, Giselle. Desconfiança política na América Latina. Opinião Pública , v. XI, n1, p.64-93, mar. 2005. PRZEWORSKI, A.; CHEIBUB, J. A.; LIMONGI, F. Democracia e Cultura: uma visão não culturalista. Lua Nova , n.58, 2003. PUHLE, H.-J. Democratic Consolidation and "Defective Democracies". In: CONFERÊNCIA IMPARTIDA UNIVERSIDAD AUTÓNOMA DE MADRID, 2005, Anais .... Madrid, p. 1-20, 2005. PUTNAM, R. Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy. Princeton, New Jersey, USA: Princeton Unversity Press, 1993. ______ Bowling Alone: America's Declining Social Capital. Journal of Democracy , v.6, n.1, p. 65 – 78, jan. 1995. ______ ; PHARR, S; DALTON, R. What´s Troubling the Trilateral Democracies? Princeton: Princeton University Press, 2000.

192

E-legis, Brasília, n.4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

Confiança e Democracia: Aspectos de uma instável relação estável

RENNÓ, L. Teoria da Cultura Política: Vícios e Virtudes. (PESSANHA, C. (ed.) Revista Brasileira de Informação Bibliográfica - BIB, Rio de Janeiro: n. 45, p. 3-109, 1 sem. 1998. ______ Confiança Interpessoal e Comportamento Político. Opinião Pública, Campinas, v. VII, ROSENBERG, M. Misantrophy and Pòlitical Ideology. American Sociological Review v.21, n.4, p. 690-695, 1956. STREET, J. Political Culture - from Civic Culture to Mass Culture. British Journal of Political Science , v. 24, n.1, p.95-113, 1994. STUART MILL, J. Considerations on Representative Government. 1861. Disponível em Project Gutenberg: . Acesso em: 5 mar. 2008 TOCQUEVILLE, Alexis. Democracy in America. 1899. Disponível em: . Acesso em 27 nov. 2007. USLANER, E. M. Democracy and social capital. In: WARREN, Mark. Democracy & Trust. Cabridge: Cambridge University Press, 1999, p. 121-150. WARREN, M. E. Democracy and Trust. Cambrige: Cambridge University Press, 1999. 370p. WEBER, M. Ciência e Política: Duas Vocações. 13 ed., São Paulo: Pensamento Cultrix, 2005 [1967]. 124p. WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. [1947] São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 181-238. (Coleção Os Pensadores) Artigo recebido em: 22/03/2010 Artigo aceito para publicação em: 14/04/2010

E-legis, Brasília, n. 4, p. 168-193, 1º semestre 2010, ISSN 2175.0688

193

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.