Configurações do espaço na obra de Euclides da Cunha

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Encontro de diálogos literários (2014: Campo Mourão). Anais do 3º Encontro de diálogos literários: um olhar para a intertextualidade/ Mônica Luiza Socio Fernandes; [et al...]_ Campo Mourão: Fecilcam, 2014._ 117 p. ISBN: 978-85-88753-26-6

CONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA OBRA DE EUCLIDES DA CUNHA Débora Soares de Araújo (UFPR) RESUMO: Euclides da Cunha é um autor apaixonado pelas terras do Brasil. Seja como engenheiro, jornalista, pesquisador atento às questões nacionais e escritor, Euclides tem sempre como objetivo as reflexões sobre as terras brasileiras. Desde sua primeira obra, Os sertões (1902), até seu último e inacabado livro, Um paraíso perdido (1909; Eds. 1986 e 2000), encontramos a preocupação constante de entender o país em seus múltiplos aspectos. Para tanto, o autor lança mão de um arsenal científico e literário capaz de estruturar a sua representação da nação. Este trabalho tem, pois, o objetivo de levantar questões sobre a configuração do espaço na obra de Euclides da Cunha, buscando entender a sua dinâmica, especialmente no que concerne à noção de paisagem e fronteira. Palavras-chave: Literatura brasileira; Euclides da Cunha; espaço.

Considerações iniciais Nas obras de Euclides da Cunha a paixão pelas terras brasileiras fica evidente. Não é de se estranhar que o próprio autor declare: “Não desejo Europa, o boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada malgradada, e a vida afanosa e triste de pioneiro. Nestes tempos de fragilidade já não é pouco (GALVÃO e GALOTTI 1997, p. 183)”. Porém, além da paixão telúrica, o interesse de Euclides em regiões ignotas do território nacional estava pautado numa profunda aposta interpretativa. O autor acreditava que era hora de buscar outra perspectiva crítica, capaz de analisar e interpretar o momento histórico que o Brasil atravessava, pois como ele mesmo observa: “cada vez mais me convenço que esta deplorável rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra.” (GALVÃO e GALOTTI 1997, p. 251). Nesse sentido, Euclides acredita que o sertão e a região amazônica, lugares que para a maioria dos brasileiros eram mais desconhecidos que as terras estrangeiras, podem questionar a profundidade da adesão ao modelo civilizador propagado pela Europa. Ou seja: sertão e região amazônica seriam os lugares de observação do choque entre o modelo europeu de modernização e as condições físicas, sociais, econômicas e políticas que aqui se desenharam. Além disso, essa mudança de perspectiva deveria ser tarefa de um brasileiro, pois: “se as nações estrangeiras mandam cientistas ao Brasil, que

absurdo haverá de encarregar-se de idêntico objetivo um brasileiro?” (GALVÃO e GALOTTI 1997, p. 178). A busca por realizar outra interpretação da nação, capaz de dar conta da atual configuração histórica e política brasileira (e aqui a principal referência é a delicada situação da recém República) e a tarefa de ser o observador e estruturador dessa nova mirada faz com que Euclides da Cunha proponha O exercício prático-imaginativo de um itinerário que busque interrogar os modos de produção das ilusões identitárias a partir de pontos extremos do território, portanto, dos limites de possibilidade da história e da cultura, constitui ensaio, ao mesmo tempo, do mapeamento de imagens e vozes de hipotéticas contracorrentes muitas vezes dispersas, quando não inteiramente inacessíveis, mas o bastante reais para converter em instáveis e rapidamente ocas a maior parte das representações edificantes do “Brasil moderno”. Por isso mesmo, ao invés de buscar de início um centro (histórico, político, econômico, cultural, artístico, ideológico, etc), a perspectiva a se adotar é a do inventário de signos desviantes, à margem – deslocados, enfim, das cristalizações monumentais, ruiniformes ou deletérias do corpo da pátria”. (HARDMAN 2009, p. 310).

Esse itinerário que articula em especial dois pontos extremos (sertão e floresta) é, assim, a configuração do maior objetivo de Euclides: conhecer e interpretar o Brasil a partir da constituição de uma geopoética, responsável por um desenho dialético da nação – sua imagem do Brasil. As viagens, as paisagens, as obras Já com o pensamento voltado para conhecer e entender o país, especialmente as regiões ignotas ou marginais, Euclides da Cunha escreveu Os sertões (1902) e Um paraíso perdido (1909), sendo esta última obra inconclusa, formada por textos que têm a região amazônica como ponto central de análise e discussão. Das duas obras emergem, respectivamente, o sertão e a floresta amazônica, regiões que o autor conheceu por conta de suas atividades de jornalista e chefe de comissão diplomática. No sertão baiano Euclides esteve como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, para cobrir a última expedição a Canudos. Já para a floresta, Euclides foi enviado como chefe de missão diplomática internacional, que tinha o objetivo de resolver os problemas territoriais na fronteira entre Brasil e Peru. Assim, de forma sintética, é possível dizer que duas viagens,

duas paisagens e duas obras são responsáveis pela conformação do que aqui chamamos de geopoética euclidiana. O interesse pelas configurações do espaço na obra de Euclides da Cunha não é aspecto novo, especialmente porque Os sertões, desde seu surgimento, despertou a atenção de estudiosos desta questão. Mais recente, o interesse por Um paraíso perdido tem se mostrado crescente, principalmente porque a Amazônia é foco de uma intrincada discussão política nacional e internacional. Porém, trabalhos que partam da pesquisa articulada das duas obras, ou que pelo menos vislumbre tal questão, são recentes e, dessa maneira, o resultado de algumas pesquisas têm surgido um tanto recentemente. Exemplo disto vemos no ensaio O mediterrâneo na América Latina: a Amazônia na visão de Euclides da Cunha, de Willi Bolle (2005), o livro A vingança da Hileia, de Francisco Foot Hardman (2009) e A geopoética de Euclides da Cunha, de Ronaldes de Melo e Souza (2009). Em seu ensaio, apesar do objetivo principal ser a construção de um conciso roteiro de leitura dos escritos amazônicos de Euclides, Willi Bolle propõe um esboço de comparação de Um paraíso perdido com Os sertões. No esboço, o interesse recai especialmente sobre as características de composição e estilo, especialmente sobre os moldes de composição 1 de Os sertões que, não obrigatoriamente pelas mesmas vias, ressurgem em Um paraíso perdido. Francisco Foot Hardman, em seu livro, articula as representações literárias de Euclides sobre a Amazônia com outros autores, nos fala da poética das ruínas surgida da trágica experiência de Canudos em Os sertões e discute as projeções literárias do romantismo, do naturalismo e especialmente do modernismo na obra euclidiana. Contudo, é em A geopoética de Euclides da Cunha, de Ronaldes de Melo e Souza (2009), que surge de forma direta o tema da constituição de uma poética da terra. Vejamos: Geopoética significa poética da terra. A expressão inédita [grifo meu] corresponde à originalidade da ficção narrativa de Euclides da Cunha no contexto nacional e internacional. A tese que se pretende demonstrar é que o autor de Os sertões e de Um paraíso perdido se notabiliza como um dos maiores poetas da prosa de ficção no vasto domínio da literatura ocidental. O estatuto calculado do vigor da inspiração artística e do rigor científico da reflexão, que decorre do projeto euclidiano do consórcio da ciência e da arte, se patentiza na elaboração de duas poéticas da terra (SOUZA, 2009, p.7).

1

Termo utilizado por Willi Bolle (2005, p.145).

Além do atual estado da questão de constituição da geopoética em si, é preciso seguir as pistas de referências, citações e autores presentes nas próprias obras do autor e articulá-los a um panorama de questões essenciais que permeiam Euclides, seu tempo, seus escritos, para se chegar a uma arqueologia capaz de suportar a densidade do texto e possibilitar sua análise. Com este intuito, e de antemão, relembro o interesse de explorar a relação entre literatura e geografia, por entender que, para ambas, o espaço e em especial as paisagens são importantes (e constantes) objetos de estudo, lembrando ainda que, para literatura e geografia, o aspecto econômico, o político e o social não são categorias imutáveis e independentes do local onde se encontram. Outro ponto a ressaltar é a questão da recepção de Os sertões e Um paraíso perdido. Sabemos que Os sertões é fonte de vasta fortuna crítica, todavia os escritos amazônicos constituem o aspecto menos conhecido da obra de Euclides da Cunha. Tal relativo desconhecimento, como esclarece Willi Bolle (2005, p.1), se dá basicamente por três razões: pelo ofuscamento de Os sertões, considerado a obra prima do autor e integrante da literatura universal, pelo caráter fragmentário, que os deixa em desvantagem diante de uma obra conclusa e ainda pela própria temática amazônica, que continua ocupando um lugar apenas marginal na consciência geral de grande parte da população brasileira, inclusive dos intelectuais (BOLLE, 2005, p.1). Embora menos conhecida, é necessário apontar que já existem estudos sobre Um paraíso perdido, porém o estudo comparativo dessas obras é um viés pouquíssimo explorado e creio que pôr em relação estes textos possa acrescentar elementos importantes na discussão sobre a obra de Euclides e sua projeção e, evidentemente, sobre a literatura brasileira ou, de forma mais ampla, sobre o pensamento social brasileiro e ainda ultrapassar a fronteira nacional, já que Euclides pensa o Brasil para além de suas fronteiras.

O espaço, as paisagens, as fronteiras. Alain Reynaud em seu texto A noção de espaço na geografia (SANTOS e SOUZA, 1986, p.5) nos diz que a geografia está intimamente associada à ideia de espaço e que quando um geógrafo percebe que seu domínio de estudo coincide mais ou menos com o de outra ciência ele procura afirmar o espaço como seu elemento de originalidade inalienável, mas será que a noção de espaço estaria capacitada para fundamentar e definir a geografia como ciência? Mais à frente, Reynaud, baseado nas ideias de Leibniz e Kant, nos esclarece que a noção de espaço (assim como a noção de tempo) é uma noção que funciona a priori, ou seja, é uma

representação que serve de fundamento a todas as percepções exteriores. Assim, o espaço é considerado como condição de ocorrência de fenômenos e neste sentido o espaço é uma noção pertencente a todas as ciências. Portanto, geografia e literatura, mesmo que com corpus diferentes têm em comum uma preocupação com as representações do espaço, mais especificadamente com as representações dinâmicas do espaço e das paisagens. Porém, é importante ressaltar que Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima. A palavra paisagem é frequentemente utilizada em vez da expressão configuração territorial. Esta é o conjunto de elementos naturais e artificiais que fisicamente caracterizam uma área. A rigor, a paisagem é apenas a porção da configuração territorial que é possível abarcar com a visão. Assim, quando se fala em paisagem, há, também, referência à configuração territorial e, em muitos idiomas, o uso das duas expressões é indiferente. A paisagem se dá como um conjunto de objetos reais-concretos. Nesse sentido a paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal. O espaço é sempre um presente, uma construção horizontal, uma situação única. Cada paisagem se caracteriza por uma dada distribuição de formas-objetos, providas de um conteúdo técnico específico. Já o espaço resulta da intrusão da sociedade nessas formasobjetos. Por isso, esses objetos não mudam de lugar, mas mudam de função, isto é, de significação, de valor sistêmico. A paisagem é, pois, um sistema material e, nessa condição, relativamente imutável: o espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente (SANTOS, 2001, p.66-67).

A questão entre espaço e paisagem é espinhosa, ambas as noções possuem inúmeras abordagens (que por sua vez se relacionam de várias formas), quer tratadas no campo da geografia, da filosofia, da literatura etc. Porém, para este momento é importante ressaltar o caráter dialético entre espaço e paisagem, dando assim a amplitude necessária ao olhar que já é resultado de um processo cognitivo repleto de representações do imaginário social, e se mostra, pois, de forma dual: é real e também representação, concreta e também subjetiva e não se pode mais estabelecer limites entre fenômenos naturais e culturais plasmados pelo olhar, pois: O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se

apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta (DIDIHUBERMAN, 1998, p.77).

Espaço e paisagem formam uma dupla dialética capaz de suportar as representações desde sua mirada física e concreta até suas complexas interações sociais e subjetivas. Antes de seguir é importante tecer ainda algumas observações sobre a importância da geografia na obra euclidiana. Primeiramente, há em comum o interesse na conformação dos espaços, desde seu aspecto morfológico até o político. A relação entre as duas instâncias das ciências humanas se justifica sobremaneira pela presença de certo pensamento geográfico na obra euclidiana, que é exatamente resultante da representação das interações dinâmicas entre o homem e seu meio. Para Euclides a paisagem é onde se conjuga “aquilo que se vê como evidência de um volume e, por outro lado, aquilo que nos olha – o que não tem mais nada de evidente e vem das experiências do sujeito, que tenta repor e (res)significar suas perdas, ruínas e esvaziamento” (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 37). É também o lugar onde as experiências se inscrevem e são transmitidas de um individuo a outro, de uma geração a outra, e assim, se torna testemunha das relações entre os homens e o meio. A paisagem presente ou evocada, concreta e subjetiva ajuda a questionar e conduzir as obras, colocando-se como princípio de descoberta, de mediação. Aliás, Os sertões e Um paraíso perdido são dessas obras em que as paisagens assumem o papel de motor dialético – a construir imagens do Brasil através do vertiginoso jogo de figuração e transfiguração dos espaços. A título de rápida exemplificação vejamos dois trechos, respectivamente de Os sertões e de Um paraíso perdido: O planalto central do Brasil desce, nos litorais do sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares, e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao desviar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetindo socalcos, que o despem da primeira grandeza afastando-o consideravelmente para o interior. (CUNHA, 1995, p.101). É sem dúvida, o maior quadro da terra; porém chatamente rebatido num plano horizontal que mal alevantam de uma banda, à feição de restos de uma enorme moldura que se quebrou, as serranias de arenito de Monte Alegre e as serras graníticas das Guianas. E como lhe falta a linha vertical, preexcelente na movimentação da paisagem, em poucas

horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente que seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como os dos mares(CUNHA, 1995, p.249).

O pensamento geográfico presente nas obras de Euclides foi o que inicialmente nos levou a explorar a relação entre literatura e geografia, especialmente porque com o advento da geografia cultural 2 as percepções e experiências dos sujeitos no mundo passam a receber maior atenção de abordagens que procuram dar conta das complexas relações e transformações dos espaços. Sintetizando, a preocupação constante com a tarefa do espaço na constituição da identidade nacional está na base de toda a obra de Euclides. Também se entende que a articulação entre ciência e arte, aqui mais pontualmente entre a geografia e a literatura, seja uma de suas maiores vias estruturantes. Neste quadro, uma das mais fortes articulações se dá no tocante à noção de fronteira. O Brasil é resultante de uma bipartição geográfica e cultural vinda desde o movimento das Bandeiras. Têm-se dois cenários principais: sertão e litoral. A separação é histórica e geográfica e diz muito sobre o processo de colonização brasileira (que ficou durante muito tempo concentrada no litoral e só depois seguiu em direção ao desbravamento no interior do país). Entre as duas porções, com seus desdobramentos sociais, econômicos e políticos, há um forte desequilíbrio. A questão da fronteira (em seu amplo sentido e alcance) tem no texto euclidiano uma visão fundante, especialmente no que se refere à urgência da busca por equilibrar as duas porções do país. É possível dizer que ao se lançar para os pontos extremos do território nacional (sertão e floresta) Euclides da Cunha propõe uma nova forma de Bandeiras, especialmente se pensarmos na importância da análise crítica dos espaços no processo de construção da identidade nacional. Além da ampla e densa questão do espaço acima abordada, gostaria de pontuar outro aspecto que, embora mais literalmente, também lhe é pertinente: a noção de fronteira. Euclides se debruça sobre a questão fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Aqui a referência é à sua função como chefe de comissão de exploração e reconhecimento no Alto Purus, no então território do Acre. Para a região, o autor foi enviado, juntamente com 2

No artigo A evolução recente da geografia cultural de língua francesa, Paul Claval comenta que com a renovação da geografia cultural, após 1980, a paisagem passa a ser considerada em sua dimensão cultural, ou seja, como um dos contextos através dos quais a cultura se transmite de um individuo a outro, de uma geração a outra e se torna testemunha das relações entre os homens e o meio. Ver: CLAVAL, 2003.

representantes do governo peruano, para realizar o reconhecimento da área e ajudar a traçar a fronteira entre os países. Buscando dirimir a questão de forma pacífica o governo brasileiro, através da figura do Barão do Rio Branco e de Euclides da Cunha, procurou mapear a região para de forma pacífica resolver os principais conflitos. Também gostaria de destacar que a experiência da viagem nas fronteiras do país ajudou Euclides a constituir certa visão sobre a América do Sul. Os problemas dos limites entre Brasil e Peru serviram para revelar a pouca eficiência da política dos vários países limítrofes e a necessidade de um projeto integrador unindo o Brasil e os países vizinhos. Nessa direção, Euclides estudou com afinco questões de fronteiras entre Peru e Bolívia, e por esta última, a mais indígena das nações da América do Sul, nutriu imensa simpatia, pois reconheceu sua extrema originalidade dentro do mundo hispânico 3 e tratou de assuntos entre Argentina e Brasil ao tratar da construção da via férrea entre os dois países em “Viação sul-americana” 4. Ainda cabe ao autor de Um paraíso perdido, o pioneirismo da pesquisa documental em documentos oficiais peruanos (procedimento nada usual para época), onde localizou episódios sobre caboclos sertanejos em terras peruanas, àquela época desconhecidos da historiografia brasileira 5. A importância dos escritos amazônicos de Euclides é imensa e, embora ainda existam poucos trabalhos de pesquisa que os vislumbrem, é impossível negar sua instigante importância. Sobre a obra amazônica de Euclides, Francisco Foot Hardman nos esclarece: Creio que a literatura amazônica do autor de À Margem da História, como desafio dos pontos extremos, confrontada com fragmentos do infinito, que se mostra escondendo-se, nessas paisagens de grande extensão ainda precariamente denominadas pelo homem, irmana-o a prosadores da família de Melville ou Poe (...). E aproxima-o, na América Latina, talvez como a matriz inspiradora que teve em Alberto Rangel um de seus vetores, da vertente que, remontando longinquamente a Sarmiento, chegou até a obra prima do colombiano José Eustasio Rivera, La vorágine, outro grande romance da vingança da selva, canônico em todo o espaço cultural hispano-americano do século XX. Ecos mais tardios e contemporâneos conduzem, por fim, nesse itinerário de afinidades e angústias de influência, até Vargas Llosa, que, depois de tratar da Amazônia peruana em várias novelas, viajou pessoalmente aos sertões de Canudos para escrever a sua A guerra do fim do mundo (HARDMAN, 2009, p.49).

3

Para aprofundar a questão ver Peru versus Bolívia, (CUNHA 1995, V.I). Para aprofundar a questão ver À margem da história (CUNHA, 1995, V.I). 5 Ver o texto “Os brasileiros”, In: À margem da história (CUNHA 1995 V.I). 4

Com o projeto de construção de uma geopoética do Brasil, Euclides da Cunha corporifica seu maior e mais ambicioso projeto: interpretar o Brasil. Nesse caminho, a questão do espaço lhe é fundamental e mesmo estruturante. O autor parece ter entendido que havia um novo caminho para interpretar. É possível fazer a história de tudo, porém não era usual se fazer a história da nação através de aspectos geográficos. Euclides, ainda no século XIX, pressente o que Michel Foucault, muitos anos depois e já no século XX, nos diz A história é a obsessão do século XIX(...) A nossa época talvez seja, acima de tudo a época do espaço. Nós vivemos na época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longíquo, do lado-a-lado e do disperso. Julgo que ocupamos um tempo no qual a nossa experiência do mundo se assemelha mais a uma rede que vai ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada do que propriamente a uma vivência que se vai enriquecendo com o tempo (FOUCAULT, 2006, p.78).

Nesse sentido, Euclides da Cunha, com sua literatura visionária, entendeu que era preciso ir além da história, ou seja, ir além dos fatos que se sucedem um após o outro no tempo, buscando compreender os fenômenos lado a lado no espaço. Antes mesmo de um maior aprofundamento na sua preciosa contribuição literária, esta escolha já nos diz muito do autor e da abrangência de sua obra, sem dúvida, essencial para o pensamento social brasileiro. REFERÊNCIAS: BOLLE, Willi. O Mediterrâneo da América Latina: a Amazônia na visão de Euclides da Cunha. Revista da USP. n. 66, p. 140-155, 2005. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13442/15260>. Acesso em: 27 mai 2013. CLAVAL, Paul. A evolução recente da geografia cultural de língua francesa. Tradução de Margareth de Castro. Revista Geosul. v -18, n. 35, p. 7-26, 2003. Disponível em: . Acesso em 16 jul de 2013.

CUNHA, Euclides da. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. CUNHA, Euclides da. A margem da História, São Paulo: Martin Claret, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, coleção Trans, 1998. GALVÃO, Walnice, e GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos – ética, estratégia, poder-saber. Tradução de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. HARDMAN, Francisco F. A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Unesp, 2009). SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo – razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002. SANTOS, Milton e SOUZA, Maria Adélia. O espaço interdisciplinar. São Paulo: Nobel, 1986.

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