Confissão e Pensamentos Duplos: Tolstói, Rousseau e Dostoievski

May 22, 2017 | Autor: Ana Falcato | Categoria: Rousseau, J.M. Coetzee, Confession, Lev Tolstói, Dostoievski
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No Prelo em Colóquio/Letras, Lisboa: Edições da Fundação Calouste Gulbenkian, 2018
(Primeira versão)







Santo Agostinho, Confissões. Trad. De Arnaldo Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Lisboa: INC (Ed. Bilingue), 2000. II.iv, ix; pp. 67, 77. (Edição doravante citada no texto).
Nas palavras de Francis R. Hart, a confissão é uma 'história pessoal que procura comunicar ou expressar a natureza essencial, a verdade, do eu', a apologia uma 'história pessoal que procura demonstrar ou concretizar a integridade do eu' e a memória uma 'história pessoal que procura articular ou retomar possessão da historicidade do eu'. Portanto, 'a confissão é ontológica; a apologia é ética; a memória é histórica ou cultural'. ('Notes for an Anatomy of Modern Autobiography', in Ralph Cohen, ed., New Directions in Literary History, Baltimore, 1974, p. 227.)
Por exemplo, nos ensaios 'Sobre o Exercício e a Prática' (Livro II, 6) e 'Da Presunção' (Livro II, Cap. Xvii). Montaigne estabelece o seu propósito de 'ver-me e procurar-me até às entranhas' no Livro III, capítulo v dos Ensaios. N.T.: Tradução da minha responsabilidade, a partir de Michel de Montaigne, Essais. Édition Présentée, Établie et Annotée par Pierre Michel ; Préface d'Alain. (Paris: Éditions Gallimard, 1965), p. 71.
Veja-se Peter M. Axthelm, The Modern Confessional Novel (New Haven, 1967).
Ao longo deste ensaio usarei o termo 'confessor' para referir aquele a quem a confissão está dirigida e o termo 'confessante' para aquele que confessa. Vale a pena notar que Oswald Spengler, citando a lamentação de Goethe sobre o fim da confissão auricular na esteira do Protestantismo, sugere que seria inevitável que, depois da Reforma, o impulso confessional encontrasse uma saída nas artes, mas também, que na ausência de um confessor, é inevitável que tal confissão tenda a ser 'irrestrita'. (The Decline of the West, trans. Charles F. Atkinson [Londres, 1932], II, 295).
Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer. Tradução e Notas de Nina Guerra e Filipe Guerra. Relógio D'Água Editores (Biblioteca Editores Independentes), Lisboa, 2010, p. 23. Quando for referido o Russo, cita-se a partir de 'Kreutzerova sonata', em L.N.Tolstoi, Sočineniya, IV (Berlim, 1921), 160-293. Referências ulteriores aparecem no texto.
N.T.: Por questões relacionadas com a censura nos meios de comunicação russos, o texto da Sonata de Kreutzer foi modificado por Tolstói diversas vezes. Por pressão da própria esposa, Sonya Andreevna Tolstaya, que temia que o imenso público do Escritor, dentro e fora da Rússia, a assimilasse à heroína da história, Tolstói foi alterando o texto inicialmente publicado em 1889, tendo como resultado a existência de edições com variações textuais. A edição Portuguesa seguida (vide nota 6) não inclui esta última passagem, que Coetzee cita a partir de Leo Tolstoy, The Kreutzer Sonata and Other Stories, trans. Louise and Aylmer Maude (Oxford: Oxford University Press, 1924).
Lev Tolstói, 'An Afterword to The Kreutzer Sonata. Cf. Essays and Letters, trad. Aylmer Maude (Londres, 1903), pp. 36, 38.
Donald Davie, 'Tolstoy, Lermontov, and Others', in Donald Davie, ed., Russian Literature and Modern English Fiction (Chicago, 1965), p. 164.
T. G. S. Cain, Tolstoy (Londres, 1977), pp. 148-49.
Ao ficar noivo, Pózdnichev (tal como Levin em Anna Karénina) entrega os seus diários íntimos à futura mulher, que os lê com horror. Tolstói baseia-se em ambos os romances no episódio da sua própria vida pessoal em que entregou os diários íntimos à noiva Sonya Behrs. Na biografia de Tolstói, Henri Troyat descreve o papel que os diários desempenharam no próprio casamento. Citando uma entrada de 1863 ('Praticamente cada palavra neste diário revela prevaricação e hipocrisia. A ideia de que [Sonya] ainda está aqui, lendo sobre o meu ombro, sufoca e perverte a minha sinceridade'), Troyat comenta que as 'confissões privadas' que o casal faz nos seus diários 'tornaram-se inconscientemente em argumentos de acusação e defesa' de um contra o outro. À medida que a fama de Tolstói cresceu e se tornou claro que os seus diários eventualmente se tornariam públicos, a questão sobre o que poderia escrever neles tornou-se um ponto de conflito, tendo-o a sua mulher ocasionalmente denunciado nos seus diários por insultá-la nos diários dele. No último ano da sua vida, Tolstói manteve um diário secreto que escondia na própria bota (a mulher retirou-lho enquanto dormia). (Troyat, Tolstoy, trad. Nancy Amphoux [1967; reimpressão Harmondsworth, Inglês, 1970], pp. 371, 397, 366, 718-19, 902, 917.) A Condessa Tolstói via A Sonata de Kreutzer, não como uma ficção livre nem como um sermão, mas como um ataque pessoal, 'dirigido a mim, que me [mutila] e me [humilha] aos olhos do mundo inteiro'. Em resposta, escreveu um romance, denunciando Tolstói, o predicador do celibato, como um bruto sexual, e não se restringiu de o publicar (Troyat, pp. 665-68).
Carta de 21 de Outubro de 1924, em Henry Gifford, ed., Tolstoy: A Critical Anthology (Harmondsworth: Penguin, 1971), p. 187.
The Forms of Autobiography (New Haven, 1980), p. 15.
Lev Tolstói, Confissão. Tradução de Zélia Évora. (Lisboa: Alêtheia Editores, p.86); edição doravante citada no texto. Quando se cita o Russo, faz-se a partir de I spoved' (Letchworth: Prideaux Press, 1963). O título pode apresentar-se como Confissão ou Uma Confissão (não há artigo em Russo).
Lev Tolstói, Anna Karénina. Trad. De António Pescada. (Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2012), p. 742.
O homem 'conhece-se então em consequência de e conformidade com a sua vontade, ao invés de querer em consequência de e em conformidade com o seu conhecimento'; Arthur Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung. Beide Bände in einem Buch. Berliner Ausgabe, 2016, 4 Auflage (Minha tradução).
Matthew Arnold, 'Count Leo Tolstoi', Essays in Criticism. Segunda série (Londres, 1888), p. 283.
Lev Tolstoy, Life. Trad. Isabel F. Hapgood (Londres, 1889), p. 70.
V.V. Zenkovsky, A History of Russian Philosophy. Trad. George L. Kline (Londres: Routledge, 1953), I, 391.
Citado em Cain, Tolstoy, p. 9; Máximo Gorki, Reminiscences of Tolstoy, Chekhov and Andreev. Trad. De Katherine Mansfield, S.S. Koteliansk e Leonard Woolf (Londres: Hogarth Press, 1968), p. 30.
Jean-Jacques Rousseau, Confissões. Trad. Fernando Lopes Graça. Lisboa: Portugália Editora, 1964. (Edição doravante citada no texto). Quando se cita o Francês, faz-se a partir de Les Confessions, ed. Jacques Voisine (Paris: Garnier, 1964).
Paul de Man, Allegories of Reading: Figural Language in Rousseau, Nietzsche, Rilke and Proust (New Haven: Yale University Press, 1979), p. 280.
Esta estratégia é comum em Rousseau. Por exemplo: 'Longe de não ter calado nada, de nada ter dissimulado que estivesse contra mim, . . . sentia-me mais inclinado a mentir no sentido contrário, preferia acusar-me com excessiva severidade a desculpar-me com demasiada indulgência; a minha consciência assegura-me que chegará o dia em que serei julgado menos severamente do que me julguei a mim próprio.' Quarto Passeio. Em Os Devaneios do Caminhante Solitário.Trad. de Henrique de Barros. (Lisboa: Edições Cotovia, 2014), p. 62.
De Man, Allegories of Reading, pp. 285-286.
Veja-se, por exemplo, o segundo ensaio de Wordsworth em 'Essays upon Epitaphs' (1810): 'Onde o charme da sinceridade se esconde na linguagem de uma lápide, impregnando-a secretamente, não há erros de estilo ou de modo para os quais não seja, em certa medida, uma recompensa'; Prose Works, ed. W.J.B. Owen and J.W. Smyser (Oxford: Clarendon Press, 1974), II, 70 (minha tradução).
Veja-se, por exemplo, T.S.Eliot, 'Os Poetas Metafísicos' (1921): 'Uma teoria filosófica que entrou na poesia estabelece-se porque a sua verdade ou falsidade em certo sentido deixa de ter importância, e noutro sentido a sua verdade é demonstrada'. Em Ensaios Escolhidos. Selecção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos (Lisboa: Edições Cotovia, 1992).
Jean Starobinski, Jean-Jacques Rousseau : La Transparence et L'Obstacle, suivi de Sept Essais sur Rousseau (Paris: Gallimard, 1971), pp. 208.
Ibid., pp. 218, 229.
Annales Jean-Jacques Rousseau, Cit. em ibid., p. 233.
Starobinski, Rousseau, p. 238.
Ainda que seja uma eloquência fácil a denunciar Rousseau neste ponto, a linguagem do Outro, da qual tenta libertar-se é a linguagem de La Rouchefoucauld, La Bruyère e Pascal. 'Os grandes escritores de prosa da França do século XVII, escreve Margery Sabin, 'estabeleceram a língua da autoridade da descrição psicológica, cuja força adivinha justamente o seu carácter público'. Rousseau alarga o seu protesto contra esta linguagem do sentimento, diz Sabin, a 'todos os níveis da obra, incluindo as implicações da sintaxe e o significado de palavras individuais'. A autora prossegue, construindo uma análise exemplar do estilo de Rousseau na descrição dos seus sentimentos por Madame de Warrens, cujas expressões 'circundam' esse sentimento esquivo ao invés de o definir. 'Se as suas emoções permanecem vagas, confusas, paradoxais – bem, o estilo argumenta que essa é a verdadeira natureza da sua vida interior'. Veja-se English Romanticism and the French Tradition (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1976), pp. 19, 29.
O episódio é narrado no Livro Sétimo, Primeira Parte, 280, 310-12.
Starobinski comenta que Rousseau começa por usar o 'princípio da imediatez' para clarificar a sua psicologia, mas quase de seguida este princípio 'assume o valor de uma justificação superior ou de um imperativo moral' de mais alto valor do que 'as comuns regras do certo e do errado' (Rousseau, p. 237 ). De facto, este princípio não tem conotações morais na passagem que estou a considerar.
Por exemplo, na discussão da sua 'avareza' durante o tempo que passa com Madame de Warens ou da sua aversão a pagar por sexo (Livros Quinto e Sétimo, Primeira Parte, 208, 310).
Jacques Derrida, De la Grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967, pp. 226, 233-234, 345.
Poderá objectar-se que traço uma linha muito inflexível entre o estar e não estar consciente de uma verdade 'mais profunda', ignorando as gradações e subtilezas do auto-engano que variam entre os extremos da inocência e da hipocrisia. Porém, como Michel Leiris por exemplo reconhece, o autobiógrafo investe sobre si próprio como o torero investe no touro: não há desculpas para a derrota. Manhood, Trad. Richard Howard (Londres: Cape, 1968), p. 20.
Para este tratamento do mecanismo de auto-engano tenho uma dívida especial com Herbert Fingarette, Self-Deception (Londres: Routledge, 1969), pp. 86-87.
David Hume, Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002), p. 301.
Fiódor Dostoiévski, Humilhados e Ofendidos. Editorial Presença: 2006, pp. 112-121
Esta é essencialmente a posição assumida por Alex de Jonge em Dostoevsky and the Age of Intensity (Londres: Secker&Warburg, 1975). A tese de De Jonge é a de que muitos dos confessantes de Dostoievski – entre eles Valkovsky, Marmeladov e Svidrigailov – aderem a um 'culto da intensidade' fundado por Rousseau, que explora os prazeres masoquistas do auto-rebaixamento. De Jonge vê Dostoievski como um psicólogo da confissão que explora os modos em que as pessoas sem sentido de si, sem sentido de culpa, sem interesse na verdade, usam a auto-revelação como um instrumento de poder e de prazer (pp. 175-176, 181, 186-187).
Mikhail Bakhtin defende que o romance de Dostoievski é uma forma de sátira menipeia, um misto de narrativa ficcional e diálogo filosófico, confissão, hagiografia, fantasia e outros elementos normalmente incompatíveis. Para além disso, afirma Bakhtin, Dostoievski explora a antiga tradição do carnaval, em que as costumeiras restrições sociais podem ser abandonadas e uma absoluta franqueza pode reinar nas relações humanas; Problems of Dostoevsky's Poetics, Trad. De Caryl Emerson (Manchester: Manchester University Press, 1984), cap. 4. Portanto, para Bakhtin, a confissão é, primeiramente, um elemento estrutural da ficção de Dostoievski, ainda que prossiga com a exploração de uma atitude 'dialógica' para com o eu nos narradores de primeira pessoa de Dostoievski – o eu torna-se o seu próprio interlocutor (Cap. 5).
Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo. Trad. De de Nina e Filipe Guerra. Lisboa: Assírio&Alvim (Biblioteca Editores Independentes, 2007), 17, 19; edição doravante citada. A metáfora da consciência muito desenvolvida como uma doença é um lugar comum na Europa dos anos 1860. 'A autocontemplação . . . é infalivelmente um sintoma de doença', escreveu Thomas Carlyle em 1831: apenas quando 'a febre do cepticismo' se tiver esgotado haverá 'clareza, saúde'; 'Characteristics', em Critical and Miscellaneous Essays (Londres, 1899), vol. 3, pp. 7, 40. Veja-se ainda Geoffrey H. Hartman, 'Romanticism and Consciousness', ed. Harold Bloom (Nova Iorque: Norton, 1970), pp. 46-56.
Sobre a Primeira Parte dos Cadernos do Subterrâneo como uma crítica ao Niilismo nos anos 1860, veja-se Joseph Frank, 'Nihilism and Notes from Underground', Sewanee Review 69 (1961), 1-33.
'declaro . . .que se escrevo como se estivesse a dirigir-me aos leitores, faço-o exclusivamente . . .porque é mais fácil para mim escrever desta forma. . .nunca terei leitores' (64).
'A preocupação metafísica com o fim do Homem concretiza-se nos atributos mais formais da estrutura dos romances de [Dostoievski], a sua forma narrativa. E isso é assim porque ele foi um dos primeiros a reconhecer que aquilo que um homem pode ser jamais se poderia separar da questão do que constitui uma história autêntica'; Michael Holquist, Dostoevsky and the Novel (Princeton: Princeton University Press, 1977), p. 194.
Fiódor Dostoievski, O Idiota. Trad. De António Pescada. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2014, pp. 283-284. Edição doravante citada.
O paradoxo da semente tem provavelmente origem no Evangelho de São João, XII, 24: 'Em verdade, em verdade vos digo: se um grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, fica infecundo; mas se morrer, produz muito fruto'. O verso é citado n'Os Irmãos Karamazov. Trad. e notas de António Pescada. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2012.
'Plena liberdade quando indiferente viver ou não viver . . .Quem vencer dor e medo, ele próprio Deus . . .Quem deseje liberdade principal, tem de ousar matar-se. . . Quem ousar matar-se é Deus'. Demónios. Trad. De Nina Guerra e Filipe Guerra, com uma tradução do capítulo 'Com Tíkhon'. (Lisboa: Editorial Presença, 2008), p. 112. Edição doravante citada.
René Girard, Deceit, Desire, and the Novel: Self and Other in Literary Structure. Trad. Yvonne Freccero (Baltimore: John Hopkins University Press, 1965), p. 276.
Ainda assim, o paradoxo inerente à noção de compulsão mantém-se. E no momento de tensão em que Stavróguin confessa 'todo o [s]eu objectivo', ou seja, que quer perdoar-se a si mesmo, e demanda um 'sofrimento desmedido', Dostoievski volta a uma psicologia dualista na qual um eu 'interior' se articula a si mesmo: Stavróguin fala 'e no tom da pergunta sentia-se um pequeno toque de ironia' (658).
Na medida em que a meta-regra do jogo é que as regras não deverão ser articuladas – de facto, não se deverá articular que existem regras, que existe um jogo – a apreciação dos mecanismos de auto-engano proposta por Fingarette descreve nitidamente este jogo (veja-se nota 37).
Fiódor Dostoiévski, The Diary of a Writer. Trad. Boris Brasol (Londres: Cassell, 1949), II, 787-788 (minha tradução).
Confissão e Pensamentos Duplos: Tolstói, Rousseau e Dostoievski
J.M.Coetzee

Tradução de Ana Falcato

No terceiro livro das suas Confissões, Santo Agostinho narra a história de como, quando jovem, e com um grupo de amigos, roubou uma enorme carga de peras do jardim de um vizinho, e o fez não porque quisessem comê-las (de facto, atiraram-nas aos porcos), mas pelo simples prazer de cometer um acto proibido. Estavam a ser 'maus sem motivo, e a causa da maldade não [era] senão a maldade, . . . não desejando alguma coisa por indecência, mas a própria indecência . . . [tendo] pudor de não ser impudente[s].'
No tempo que antecede o tempo de que as Confissões as confissões nos falam, o roubo traz vergonha ao coração do jovem Agostinho. Mas o desejo do coração do jovem rapaz (recorda o homem maduro) era esse mesmo sentimento de vergonha. E o seu coração não é envergonhado (castigado) pelo reconhecimento de que procura conhecer a vergonha: pelo contrário, o conhecimento do seu próprio desejo como vergonhoso simultaneamente satisfaz o desejo da experiência de vergonha e estimula um sentido de vergonha. E este sentido de vergonha é experienciado com satisfação e reconhecido, se for reconhecido, através de uma busca autoconsciente, como uma nova fonte de vergonha; e assim por diante, infinitamente.
Nas 'planícies da minha memória, nos antros e cavernas inumeráveis e inumeravelmente cheias' (X.xvii; p. 475), a vergonha continua a viver no homem maduro. 'Quem desenvencilhará este nó tão retorcido e enredadíssimo? É feio. Não quero fixá-lo, não quero vê-lo.'(II, x; p. 77) A situação de Agostinho é verdadeiramente abismal. Ele quer saber o que reside no início do novelo da vergonha recordada, qual é a origem de que parte, mas o novelo é interminável, os estágios de auscultação de si mesmo requeridos para alcançar esse princípio são infinitos. Porém, até que a fonte de onde brotou o acto vergonhoso seja confrontada, o eu não pode ter descanso.
A confissão é um elemento numa sequência de transgressão, confissão, penitência e absolvição. A absolvição significa o final do episódio, o fecho do capítulo, a libertação da opressão da memória. A absolvição é, neste sentido, a meta indispensável de qualquer confissão, sacramental ou secular. Por contraste, a transgressão não é uma componente fundamental. Na história de Agostinho, o roubo das peras é a transgressão, mas aquilo que requer confissão é algo que subjaz ao próprio furto, uma verdade sobre si mesmo que ainda não conhece. A sua história sobre as peras é, por isso, uma dupla confissão de algo que ele conhece (o acto) e de algo que não conhece: 'Confessarei, pois, o que sei de mim; confessarei também o que de mim ignoro . . . o que de mim ignoro não o sei, enquanto as minhas trevas se não tornarem como o meio-dia na tua presença' (X, v; p. 447). A verdade sobre o eu que colocará um fim à busca pela fonte daquilo que está errado em si, afirma, é inacessível à introspecção.
Neste ensaio sigo as fortunas de um número de confissões seculares, ficcionais e autobiográficas, na medida em que os seus autores confrontam ou evadem o problema de como conhecer a verdade sobre si próprio sem se ser auto-iludido, e de como pôr um fim à confissão num espírito do que quer que seja que tomam como um equivalente secular da absolvição. Um certo relaxamento é inevitável quando se transpõe o termo confissão do contexto religioso para um contexto secular. Ainda assim, podemos demarcar um modo de escrita autobiográfica a que chamemos 'confissão', como distinto da 'memória' e da 'apologia', com base num motivo subjacente de contar uma verdade essencial sobre si próprio. É um modo praticado em certos momentos por Montaigne, mas definido essencialmente pelas Confissões de Rousseau. Quanto à confissão ficcional, este modo é praticado já por Defoe nas confissões fabricadas de pecadores como Moll Flanders e Roxana; no nosso tempo, as confissões ficcionais chegaram a constituir um subgénero do romance onde os problemas da narração da verdade e do auto-reconhecimento, do engano e do auto-engano, vêm para o primeiro plano. Duas das ficções que discuto neste ensaio, as Notas do Subterrâneo de Dostoievski e a Sonata de Kreutzer de Tolstói podem ser estritamente chamadas 'confissões ficcionais', porquanto consistem, na sua maior parte, em representações de confissões de actos abomináveis cometidos pelos respectivos narradores. A 'Explicação' de Ippolit Terentiév em O Idiota é uma apologia no leito de morte, que rapidamente se envolve nos problemas de verdade e autoconhecimento que caracterizam a confissão. Finalmente, a confissão de Stávrogin em Os Possuídos levanta a questão, deixada em suspenso desde o tempo de Montaigne, se a confissão secular, para a qual há uma audiência, ficcional ou real, mas nenhum confessor com poder de absolvição, pode alguma vez chegar ao último capítulo cuja consecução é o objectivo da confissão.

Tolstói
É a segunda noite de uma longa viagem de comboio. A conversa entre os passageiros passou a ser sobre casamento, adultério, divórcio. Um homem grisalho fala cinicamente sobre amor. Revela o seu nome: Pózdnichev, homicida conjugal condenado. Os outros passageiros afastam-se, deixando-o a sós com o narrador anónimo, a quem agora se propõe 'começar do princípio'. A confissão de Pózdnichev, tal como repetida pelo narrador, constitui o corpo da Sonata de Kreutzer de Tolstói.
A história de Pózdnichev é a de um homem que viveu toda a sua vida no 'equívoco abissal' relativamente às relações com as mulheres e que, finalmente, sofre um 'episódio' de ciúme patológico durante o qual mata a sua própria mulher. Só mais tarde, depois de ter sido preso, acontece que 'os meus olhos se abriram e passei a ver tudo a uma luz muito diferente. Tudo virado do avesso, tudo!...' (24) O momento em que tudo se vira do avesso (navyvorot, virado ao contrário) é o momento de iluminação que abre os seus olhos para a verdade e torna a verdadeira confissão possível. A confissão em que embarca durante a viagem de comboio tem, assim, dois momentos: os factos do 'episódio', que já surgiram em julgamento, e a verdade sobre si mesmo para a qual os seus olhos desde então se abriram. Dizer esta última verdade, por sua vez, está directamente ligado com a denúncia do erro, um estado de erro no qual, na sua opinião, toda a classe de que provém ainda vive.
Com o seu ar agitado, o som cómico que emite (meio tosse, meio riso quebrado), as suas estranhas ideias sobre sexo, e a história de violência que tem atrás de si, Pózdnichev é manifestamente um personagem estranho, e não nos surpreenderíamos se a verdade contada contrariasse a verdade tal como foi entendida pelo ouvinte calmo e sóbrio que mais tarde nos reporta essa mesma verdade. Por outras palavras, não nos surpreenderíamos de estar ante um desses livros em que o narrador acredita reportar uma verdade, ao mesmo tempo que para nós emerge lentamente que uma outra verdade está a ser contada – um livro como Pale Fire de Nabokov, em que o narrador pensa estar a falar por si próprio, mas onde conseguimos facilmente lê-lo contra si próprio.
Seja-me permitido começar por sumariar a verdade tal como Pózdnichev a vê, deixando-o usar a sua própria voz.

A Verdade de Pózdnichev
Como qualquer jovem da minha classe, recebi a minha iniciação sexual num bordel. A experiência com prostitutas estragou a minha relação com as mulheres para sempre. Mas mesmo 'com centenas dos mais hediondos crimes contra as mulheres a pesar[-me] na alma', fui recebido nas casas dos meus pares e autorizado a dançar com as suas esposas e filhas (29).
Fiquei noivo de uma jovem. Era um tempo de promessa sensual, elevada por uma alimentação excitante e excessiva, em combinação com uma completa ociosidade física. A nossa lua-de-mel trouxe a desilusão e a vida conjugal transformou-se numa alternância de rompantes de animosidade e rompantes de sensualidade. Aquilo que não entendíamos era que a animosidade que sentíamos um pelo outro era um protesto da 'natureza humana' em nós contra a subjugação à nossa 'natureza animal' (35).
A sociedade, através dos seus padres e médicos, sanciona práticas antinaturais: relações sexuais durante a gravidez e a lactância, a contracepção. A contracepção foi 'a circunstância [...] que acabaria por desembocar no que finalmente aconteceu', já que permitiu à minha mulher movimentar-se entre outros homens 'na força dos seus trinta anos, cheia e excitada, [sem dar] à luz' (77, 78).
Um homem chamado Trukachevski, um violinista, surge em cena. Levado por 'uma força incompreensível, fatal', encorajei a sua amizade com a minha mulher, e um 'jogo de aldrabice mútua' começou. Ele e a minha mulher tocavam duetos, eu fervia com ciúmes mas mantinha um rosto risonho, a minha mulher estava excitada com o meu ciúme, enquanto uma 'corrente eléctrica' fluía entre os dois (87, 88). Retrospectivamente, vejo que o tocar música em conjunto, como o dançar juntos, como a proximidade entre os escultores e as suas modelos ou entre os médicos e as suas pacientes, são vias que a sociedade mantém abertas para encorajar ligações ilícitas.
Saí de casa para uma viagem, mas lembrando continuamente algo que o irmão de Trukachevski dissera certa vez: ele dormia apenas com mulheres casadas, por serem 'seguras': com elas não apanharia uma infecção. Possuído por uma fúria ciumenta, corri para casa. Trukachevski e a minha mulher estavam a tocar duetos. Avancei para eles com um punhal. Trukachevski escapou. A minha mulher clamou, 'Não há nada, nada. . . Juro!' (117). Apunhalei-a.
Na prisão uma 'viragem moral' aconteceu em mim e vi como o meu destino tinha sido determinado. 'Se tivesse sabido o que sei agora, tudo teria sido diferente . . . Jamais me teria casado'.

A Verdade de Tolstói
Em 1890, em resposta a cartas de leitores que perguntavam 'o que quis eu dizer' na Sonata de Kreutzer, Tolstói publicou um 'Posfácio' no qual especificou aquilo que 'quis dizer' como uma série de injunções. É errado para pessoas solteiras cederem a ter relações sexuais. As pessoas deveriam aprender a viver naturalmente e comer com moderação; dessa forma a abstinência sexual parecer-lhes-ia mais simples. Alguém deveria ensinar-lhes que o amor sexual é 'um estado animal degradante para o ser humano'. A contracepção e as relações sexuais durante a lactância deveriam cessar. A castidade é um estado preferível ao casamento.

A Outra Verdade 'de' Pózdnichev
Porém, se relermos a história de Pózdnichev destacando outros elementos que não aqueles que Pózdnichev e o próprio Tolstói do 'Posfácio' escolhem destacar, chegaremos a uma outra verdade. Eu poderia deixar esta verdade alternativa 'de' Pózdnichev falar na sua própria voz, desde o seu próprio 'eu'. Mas então poderia ser lido como pré-julgando o caso ao afirmar para esta segunda voz a mesma autoridade que para a primeira, a voz que Pózdnichev acredita ser a sua. Seja-me então permitido escrever a outra verdade simplesmente como algo postulado 'a' ou 'sobre' Pózdnichev, algo extraído das suas elocuções, mas não a verdade que ele atribui à sua própria pessoa.
Nas salas e salões da classe a que Pózdnichev pertence reina uma convenção: ninguém deve olhar para além das aparências 'cuidadosamente barbeadas, perfumadas' dos homens jovens e ver os seus abjectos deboches nocturnos com prostitutas. Uma outra convenção diz que há dois tipos de mulheres, as mulheres decentes e as prostitutas, ainda que em certas ocasiões as mulheres decentes se vistam como prostitutas, com 'a mesma nudez dos braços, dos ombros e dos peitos, os mesmos vestidos justos no traseiro espetado'. De facto, as mulheres vestem-se para matar. Pózdnichev: 'Estou literalmente aterrorizado ... tenho vontade de chamar a polícia, de ter uma protecção contra o perigo.' (29, 34, 40).
Pózdnichev casa-se e parte em lua-de-mel. A experiência desilude-o: compara-a com pagar para entrar numa barraca de feira, apenas para descobrir que foste enganado, mas estando demasiado envergonhado da tua própria gula para prevenir outros expectadores da fraude. Pensa particularmente num espectáculo de feira que visitara em Paris, anunciando uma mulher com barba (45). Quanto às relações sexuais, conduzem ao ódio e, em última instância, à matança. A matança está em curso o tempo inteiro. 'Estão a matar agora, todos, eles todos...' E mesmo quando a mulher está grávida, quando o 'grande acontecimento' está a dar-se nela, ainda permite a entrada do instrumento masculino (56, 57).
E então chega Trukhatchévski, com o seu 'traseiro desenvolvido como o de uma mulher', 'o seu andar saltitante de pássaro', o 'chapéu encostado à coxa fremente'. Ainda que Pózdnichev não goste de Trukhatchévski, 'uma força incompreensível, fatal, impelia-me a não o rejeitar, a não o afastar, pelo contrário, a aproximá-lo de nós'. Trukhatchévski oferece os 'seus préstimos' à esposa de Pózdnichev, e Pózdnichev aceita, pedindo-lhe para 'trazer o violino para tocar [igrat'] com a minha mulher'. 'Desde o primeiro instante em que os olhos dele e dela se cruzaram, vi que o animal que havia em ambos . . . perguntou: posso?, e respondeu: 'oh, sim, à vontade' (pp. 81, 87, 88, 89).
Correndo a casa para flagrar os dois juntos, exagera a sua paixão ciumenta imaginando como Trukhatchévski vê a sua mulher: 'ela já não é muito jovem, falta-lhe um dente de lado e é um pouco flácida', mas pelo menos não terá uma doença venérea. A grande angústia de Pózdnichev é 'reconhecer os meus plenos e incontestáveis poderes sobre o corpo dela . . . e ao mesmo tempo sentir que não podia ser proprietário daquele corpo, que não era meu e que ela podia dispor do seu corpo como entendesse; ora, ela entendia dispor dele de uma forma diferente da que eu desejava' (pp. 107, 109).
Correndo ao quarto de onde a música provém, Pózdnichev teme apenas que 'consigam despedir-se' antes que ele chegue lá e o privem da 'evidência da prova' do seu crime. Quando está prestes a esfaquear a sua mulher, ela grita 'não há nada, nada...Juro!' 'Eu ainda poderia hesitar, mas as suas últimas palavras convenceram-me do contrário, convenceram-me de que houvera tudo, e suscitaram a minha resposta', e mata-a (pp. 113, 117).
A colagem de extractos que retirei do texto de Pózdnichev conta literalmente uma história diferente daquela contada por si. A história é a de um homem que vê o falo em toda a parte, espreitando zombeteiramente ou saindo de forma ameaçadora dos corpos dos homens e mulheres em seu redor. Casa-se na esperança secreta de aprender o segredo sexual (a barba feminina), mas desilude-se. Imagina o contacto sexual como uma exploração pelo falo vingativo da vida da criança por nascer, com quem se identifica, dentro da mãe. Face à ideia de que o corpo da sua mulher/mãe não lhe pertence integralmente, sente a angústia da criança no período edipiano. Tenta resolver o problema entregando-a ao rival ameaçador (a quem vê como um falo ambulante), retendo assim um controlo mágico sobre o par: quando não actuam na cena que lhes prescreveu e que lhes permite, perde o controlo e cai numa raiva assassina.
Ouvimos contar essa outra 'verdade' sobre si mesmo se sublinhamos uma certa cadeia de elementos no seu texto e ignoramos aqueles a que quer que atendamos – as suas visitas a prostitutas, a sua dieta vegetariana, etc. Sem dúvida poderemos extrair terceiras e quartas verdades do texto a partir do mesmo método. Mas o meu não é um argumento radical envolvendo uma infinidade de interpretações. O meu argumento sugere apenas que Pózdnichev e o interlocutor de Pózdnichev, bem como Tolstói e o público de Tolstói operam no interior de uma economia dentro da qual uma segunda leitura é possível, uma leitura que procura nos recantos do discurso de Pózdnichev por instâncias em que a verdade, a verdade 'inconsciente', é libertada em estranhas associações, falsas racionalizações, omissões, contradições. Se a verdade 'inconsciente' de Pózdnichev é algo assim como aquela que eu esbocei, então a sua confissão torna-se uma dessas confissões 'irónicas' em que o falante crê estar a dizer uma coisa, mas está 'na verdade' a dizer algo totalmente diferente. Em particular, Pózdnichev acredita que desde o 'episódio' os seus olhos se 'abriram' e alcançou um certo conhecimento de si quer enquanto indivíduo quer enquanto representante de uma classe social que o habilita a dizer o que está 'errado' consigo e errado com a sua própria classe (cujos representantes, exceptuando um, recusam ouvir o diagnóstico e mudam para uma outra carruagem). Mas a verdadeira verdade 'de' Pózdnichev é que ele sabe muito pouco sobre si mesmo. Em particular, ainda que saiba que 'Se tivesse sabido o que sei agora, tudo teria sido diferente . . . Jamais me teria casado', não sabe por que razão não deveria ter-se casado ou porque matou a sua mulher. E ainda assim, o peculiar é que é a este diagnosticador incompetente que Tolstói, como autor, dá explícito apoio no 'Posfácio' à obra: o que Pózdnichev acredita estar errado com a sociedade, diz-nos Tolstói, é, de facto, aquilo que está errado.
Pouco do que eu disse sobre A Sonata de Kreutzer é novo. 'As convenções que a governam são confusas', escreve Donald Davie. 'O leitor não sabe 'como tomá-la'. Tampouco, pelo que podemos ver, foi esta ambiguidade intencionada pelo autor. É, portanto, uma obra grosseiramente imperfeita'. 'Decrépita', segundo o veredicto de T.G.S. Cain: uma 'narrativa magnificamente manejada sobre o declínio moral de um casamento. . . introduzida por, e parcialmente entrelaçada com uma série de generalizações obsessivamente limitadas e simplistas . . . enunciada por Pózdnichev mas . . . sem dúvida subscrita por Tolstói.' Tanto os comentários de Davie e Cain como os meus próprios comentários apontam para um problema de mediação. Uma confissão que incorpora uma patentemente inadequada auto-análise é mediada por um narrador que não produz um único indício de questionar a análise, e esta análise é então reafirmada (como 'aquilo que eu queria dizer') pelo autor que escreve desde fora da ficção. Estas mediações de Pózdnichev são demasiado rapidamente satisfeitas, pensamos: é demasiado fácil ler uma outra verdade, 'mais profunda', na confissão de Pózdnichev. Porém, quando olhamos para o próprio Pózdnichev, tentando encontrar evidência de que este esteja perturbado pelo esforço de tentar articular uma verdade com uma voz ('conscientemente'), enquanto uma outra verdade emerge 'inconscientemente', não encontramos nada mais do que o sintoma críptico pré-verbal de uma tosse quebrada, riso quebrado, que tanto podem significar esforço como desprezo; quando procuramos no narrador sinais de uma atitude questionante, encontramos apenas silêncio; e quando nos concentramos em Tolstói vemos o apoio beligerantemente simplista dado à verdade de Pózdnichev. Em todos os níveis da apresentação, portanto, há uma falta de reflexividade. A Sonata de Kreutzer apresenta uma narrativa, afirma a sua interpretação (a sua verdade), e assevera ainda que não há problemas de interpretação.
Um desejo de acreditar que as coisas são de uma maneira quando são de outra é uma forma de auto-engano. O texto não responde à questão se Pózdnichev está enganado ou se o narrador está enganado. Porque a questão 'está Pózdnichev iludido?' só pode significar 'é Pózdnichev o exemplo de um homem auto-iludido?', e o texto não reflecte sobre este ponto. Se o narrador é ou não enganado por Pózdnichev não podemos saber, porque o narrador não fala. Mas pelo menos tem sentido colocar a questão se o próprio Tolstói, como escritor e crítico consciente, está, na melhor das hipóteses, auto-iludido quando, afirmando que Pózdnichev é um crítico confiável da sociedade, implica que Pózdnichev compreende a sua própria história, e que a sua confissão pode ser acreditada como significando aquilo que ele diz que significa. Em primeiro lugar, há uma abundante evidência biográfica de que o hábito de manter um diário nas circunstâncias peculiares da família Tolstói o colocou literalmente todos os dias face a face com as tentações do engano e com os problemas da insinceridade e do auto-engano inerentes à forma diarística e confessional em geral. E em segundo lugar, o foco psicológico nos romances do período intermédio de Tolstói não incide menos nos mecanismos de auto-engano do que em outros tópicos.
O que nos deve surpreender, tendo em conta este pano-de-fundo histórico, é que Tolstói tenha escrito uma peça tão branda como A Sonata de Kreutzer sobre as ambivalências do impulso confessional e as deformações da verdade produzidas pela situação confessional, uma situação em que há sempre alguém a quem algo é confessado, mesmo se, como nos diários privados, a natureza deste Outro pode ser deixada indefinida, em suspenso.
Nem em torno da confissão dentro da confissão (a apresentação que Pózdnichev faz à sua noiva dos seus diários), nem na confissão de Pózdnichev ao narrador há qualquer tipo de questionamento. Tal como um dos efeitos, para Pózdnichev, de 'ver a luz', foi descartar o seu eu anterior, olhando-se sem simpatia, também pareceria que o efeito deste 'conhecimento da verdade' tornou fácil para o Tolstói de 1889 virar as costas ao seu eu anterior, que tinha pensado a obtenção da verdade como perigosamente acossada pelo auto-engano e a complacência, e ver os problemas na reportação da verdade como triviais quando comparados com a verdade ela mesma. Podemos dizer que A Sonata de Kreutzer está, não apenas aberta a segundas e terceiras leituras, mas aberta a essas releituras de uma forma incauta, como se Tolstói fosse indiferente a jogos de reinterpretação que possam ser jogados por gente com tempo a perder. A Sonata de Kreutzer parece assim assinalar, da parte de Tolstói, um voltar as costas a um talento cuja característica definitória era a capacidade 'de se conhecer', como diz Rilke, 'até ao seu próprio sangue'.
A vida de Pózdnichev divide-se entre um antes e um depois, sendo o antes 'um abismo de erro', e o depois um tempo em que 'tudo se vira do avesso'. O seu posicionamento temporal no depois dá-lhe, a seus olhos, esse completo autoconhecimento que William C. Spengemann crê tão característico do 'narrador convertido', cujo eu sabedor que fala de si se posiciona invisivelmente, lado a lado com esse eu que experimenta e age, e sobre o qual nos reporta algo. Sobre a experiência da conversão de Pózdnichev o texto guarda silêncio, excepto quando refere que veio depois de 'tormentos' (p. 25). Ainda assim, e na medida em que continuemos a ler A Sonata de Kreutzer como o pronunciamento de um eu convertido, e não como um quadro para o agendamento de sentenças ('abstém-te de prostitutas, abstém-te de carne, . . .'), podemos continuar a procurar no texto por traços desse sentido de se ser portador da verdade que advém ao narrador convertido da realização daquilo que acredita ser a compreensão íntegra do passado.
Para confirmar que este sentido de uma subjectividade que encarna a verdade – e o próprio processo da experiência de conversão – constitui um agudo interesse para Tolstói, podemos voltar-nos, não apenas para Anna Karénina, mas também para um documento escrito dez anos antes d' A Sonata de Kreutzer. Confissão é, no seu aspecto principal, a análise de uma crise por que Tolstói passou em 1874, quando a razão lhe ditou que a vida não tem sentido, deixando-o à beira do suicídio, até que uma força em si a que chama 'consciência de vida' rejeitou esta conclusão e o salvou.
A linguagem em que Tolstói estabelece este jogo de forças merece ser examinada em detalhe. Ainda que associada com o raciocínio, a condição mental que o leva a 'retirar uma corda . . . para que não me enforcasse . . . e desisti[r] de levar comigo uma espingarda' é descrita como um estado passivo, 'um experienciar [de] momentos de aturdimento; a minha vida chegava a uma paragem' (41, 35). Conversamente, o impulso para se salvar não é uma mera força física associada ao corpo, mas participa do intelecto: é uma 'vaga consciência que as minhas ideias estavam erradas', um sentido de que 'cometi um erro algures'; são 'dúvidas' (80, 84, 85).
E ainda que o impulso seja finalmente referido como uma 'consciência de vida', é acompanhado por 'um sentimento tortuoso'. 'Só consigo descrever este sentimento como sendo uma busca por Deus' (116). A oposição não é, pois, entre uma consciência clara e irresistível de que a vida é absurda, e uma pulsão de vida animal baseada no instinto; o erro, a pulsão de morte, é um acumular de lentidão, como a exaustão da vida ela mesma, enquanto a verdade que salva brota de um poder intelectual instintivo que obscuramente desconfia da razão. A segunda força não colide com a primeira, derrotando-a. A rigor, não há conflito. Temos, ao invés, dois estados de espírito simultaneamente presentes, uma paralisação mortal da vida que simplesmente acontece (na menya stali naxodit' minuty snačala nedoumeniya, ostanovki žizni: 'algo muito estranho começou a acontecer-me. . . Comecei a experimentar momentos de aturdimento; a minha vida chegava a uma paragem'), e uma desconfiança, uma precaução; e, por razões que a razão não pode penetrar, a maré reverte, o segundo sobrevém lentamente, o primeiro começa a dissipar-se.
Não seria errado detectar um certo escrúpulo filosófico nesta leitura. Tolstói poderia ter resvalado para uma outra linguagem, de tipo convencional, quando descreve a sua experiência de conversão; uma linguagem em que o eu escolhe, de forma egoísta, seguir a voz da razão, mas é então resgatado do erro por uma outra voz, que fala desde o coração. Esta seria a linguagem do falso eu e do eu verdadeiro, sendo o falso eu racional e socialmente condicionado, e o eu verdadeiro instintivo e individual. Em Tolstói não há este simples dualismo de um eu verdadeiro e um eu falso. Ao invés, o eu é o local onde a vontade atravessa os seus processos de forma apenas obscuramente acessível à introspecção. Não é o eu, ou um eu, que se aproxima de Deus. Mais propriamente, o eu experimenta uma aproximação (iskaniem Boga, 'uma busca por Deus'). Não é que o eu mude ('mudar' no sentido da voz média que indica a mudança em si mesma); pelo contrário, uma mudança acontece no lugar em que o eu reside: 'Quando e como essa mudança ocorreu [soveršilsya vo mne etot perevorot], não consigo afirmar' (121).
Na medida em que oferece uma resposta à questão sobre como se prefigura a condição da verdade, Confissão afirma que surge de uma atenção e receptividade a um impulso interior a que Tolstói chama um impulso para Deus. A condição da verdade não é, pois, conhecimento perfeito de si mesmo mas veracidade, o que o camponês em Anna Karénina apelida um 'viver para a sua própria alma', palavras que provocarão em Levin uma iluminação cegante. No seu cepticismo sobre o autoconhecimento racional, na sua convicção de que os homens agem de acordo com forças interiores das quais não são conscientes, Tolstói permanece em simpatia com Schopenhauer; onde se separa de Schopenhauer é na identificação do impulso para Deus como uma dessas forças.
Toda a escrita de Tolstói, ficcional e não-ficcional, se preocupa com a verdade; nos seus últimos escritos essa preocupação supera todas as outras. A impaciência agitada com as verdades recebidas, as lutas para descobrir os fundamentos de um estado de veracidade no eu, comuns tanto nas secções de Levin em Anna Karénina, como nos escritos autobiográficos tardios, deixaram num leitor após outro a impressão de 'perfeita sinceridade' que Matthew Arnold descreve. A crise (confrontação com a própria morte) que ocasiona tal iluminação na vida do personagem central que faz com que se torne absurdo prosseguir no modo de existência característico do auto-engano, é comum quer a Confissão, no seu modo autobiográfico, quer a histórias tardias como A Morte de Ivan Ilitch. Depois disso, poder-se-á ou não viver como testemunha (limitada) da verdade. O sentido de urgência que a crise suscita, a implacabilidade do processo em que o eu é despojado das suas ficções reconfortantes, a obstinação da procura pela verdade: todas estas qualidades compõem o termo sinceridade.
Poderíamos então esperar que a ficção em modo confessional desse a Tolstói um veículo adequado e congenial para a literatura da verdade que quer escrever – ou seja, a ficção centrada numa crise de iluminação, retrospectivamente narrada por um falante (agora um portador da verdade) sobre o seu eu anterior e (auto-) iludido. Mas aquilo que encontramos n' A Sonata de Kreutzer é, ao invés, uma falta de interesse no potencial da forma confessional e o favorecimento de uma outra noção – dogmática – do que significa dizer a verdade. Como consequência, temos dois silêncios paralisantes no texto. O primeiro é o silêncio sobre a conversão, uma experiência durante a qual, como o exemplo da própria Confissão de Tolstói nos mostra, a experiência íntima de se ser um portador da verdade é sentida mais intensamente por contraste com o anterior modo de existência auto-iludido. O silêncio sobre essa experiência implica, pois, uma falha de dramatização. O segundo e mais sério silêncio é o do narrador. Uma vez que a confissão de Pózdnichev é um monólogo narrativo caracterizado por essa recentemente encontrada certeza sobre si mesmo, a função da dobra retrospectiva e escrutinadora da verdade enunciada por Pózdnichev tem, faute de mieux, de recair sobre o seu ouvinte. O ouvinte, porém, não desempenha tal função, dando implicitamente o seu suporte a essa noção de verdade que Tolstói apresenta no seu 'Posfácio': que a verdade é o que é, que há coisas mais importantes a fazer do que escrutinar as maquinações da vontade em jogo para o anunciador da verdade. Esta posição autoritária nega, em nome de uma verdade mais alta, a relevância de interrogar o interesse que o confessor tem em contar a verdade à sua maneira: qualquer que seja a vontade por detrás da confissão (em última instância, pensava a Condessa Tolstói, a vontade que Tolstói tem de a criticar), a verdade transcende a vontade que lhe subjaz. A verdade também transcende a suspeita de que 'a verdade que transcende a vontade que lhe subjaz' possa ser desejada em benefício próprio. Por outras palavras, a posição assumida pela Sonata de Kreutzer, quer no quadro interpretativo com que Tolstói a rodeia, quer na sua própria falta de munição contra outras leituras não autorizadas, outras verdades – uma falta que deveremos, por fim, ler como uma forma de desdém e desconsideração – é uma posição que curto-circuita a dúvida pessoal e o auto-escrutíneo em nome de uma verdade autónoma.
Porque o movimento básico da reflexividade é um movimento de dúvida e autoquestionamento, faz parte da natureza da verdade contada a si mesmo pelo eu que reflecte não ser final. Esta ausência de finalidade é naturalmente vivida com particular angústia num escritor tão dominado pela experiência da verdade como Tolstói. O nó infindável da autoconsciência transforma-se num nó górdio. Mas se este não pode ser afrouxado, há mais do que uma forma de o cortar. 'O homem corta o nó górdio da sua vida, e mata-se com o simples fito de escapar das tortuosas contradições internas produzidas por uma forma de consciência inteligente, levada a um extremo de tensão na nossa época', escreve Tolstói em 1887. Alternativamente, o homem pode cortar o nó górdio pelo anúncio do fim da dúvida em nome da verdade revelada. Mas esta manobra, seguida por Tolstói n' A Sonata de Kreutzer, levanta o seu próprio problema. Pois qualquer que seja a autoridade adscrita à confissão num contexto secular, ela deriva do estatuto do confessante como um herói do labirinto disposto a enfrentar o pior sobre si próprio (Rousseau afirma-se tal herói). Um confessante que não duvida de si mesmo quando há óbvias razões para o fazer (como é o caso de Pózdnichev) não está em melhor situação do que um que recuse duvidar por a dúvida não ser proveitosa. Nenhum deles é um herói, nenhum confessa com autoridade.

Rousseau
O impacto em Tolstói da primeira leitura de Rousseau é bem conhecido. Por um tempo, quando jovem, usou à volta do pescoço uma medalha com a fotografia de Rousseau. 'Haveria uma certa justiça', escreve V.V. Zenkovsky, 'em expor todas as ideias de Tolstói como variações do seu Rousseauismo – tão profundamente este Rousseauismo o influenciou até ao final da vida'. As Confissões de Rousseau começaram por impressionar Tolstói pelo seu 'desprezo pelas mentiras humanas, e o amor pela verdade' que revelavam, ainda que, posteriormente tivesse dado a Máximo Gorki o veredicto de que 'Rousseau mentia e acreditava nas suas mentiras'. O terreno da verdade, do autoconhecimento e da sinceridade, a que Tolstói dedica tanta da sua vida de escrita, foi mapeado por Rousseau, e só pontualmente Tolstói vai mais longe do que Rousseau na sua exploração.
As Confissões começam: 'Vou empreender uma coisa sem exemplo . . . Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu'. Rousseau imagina-se surgindo ante Deus, com o seu livro nas mãos e anunciando: 'Mostrei-me tal qual fui: desprezível e vil, quando o hei sido; bom, generoso, sublime, quando o hei sido: revelei o meu íntimo'. A tarefa que Rousseau se dá a si mesmo é uma de total auto-revelação. Contudo, poderíamos ao mesmo tempo questionar-nos como é que qualquer outro leitor do livro de Rousseau, salvo Deus omnisciente, pode saber que ele contou verdadeiramente a verdade.
A primeira defesa de Rousseau é passar o teste que Montaigne falha: enquanto Montaigne 'finge confessar os seus defeitos' mas confessa apenas aqueles que são amáveis (Livro Décimo; 499), ele, Rousseau, está preparado para confessar esses defeitos que lhe trazem vergonha, como o prazer sensual extraído da humilhação ante uma mulher (Livro Primeiro; Primeira Parte, 27). Esta defesa, claro está, não responde à acusação de que pode acreditar dizer a verdade e no entanto estar iludido. Neste ponto a sua resposta é que o método das Confissões é o de detalhar 'tudo o que me aconteceu, tudo o que fiz, tudo o que pensei, tudo o que senti', sem nenhuma estrutura de interpretação: 'pertence [ao leitor] reunir estes elementos e determinar o ser formado por eles: o resultado deve ser a sua obra' (Livro Quarto, Primeira Parte 175). E se esta resposta parece evasiva (se não responde à acusação de lembrança selectiva, por exemplo), a posição de Rousseau é a seguinte:
'Posso cometer omissões nos factos, transposições, erros de datas; não posso, porém, enganar-me a respeito do que senti, nem a respeito daquilo que os meus sentimentos me levaram a fazer . . . O objectivo próprio das minhas confissões é fazer conhecer exactamente o meu íntimo em todas as situações da minha vida. Foi a história da minha alma que eu prometi, e para escrever fielmente não necessito doutras memórias; basta-me entrar dentro de mim, como fiz até aqui (Livro Sétimo, Primeira Parte 272)'.
A posição de Rousseau é, pois, a de que o auto-engano com respeito a uma recordação actual é impossível, uma vez que o eu é transparente para si próprio. O autoconhecimento actual é um dado [donnée].
Como funciona esta posição em termos práticos? Voltemos ao muito discutido episódio do roubo da fita, contado não apenas no segundo Livro das Confissões, mas também no quarto dos Devaneios. No tempo em que trabalha como criado, Rousseau rouba uma faixa de fita. A fita é encontrada em sua posse. Rousseau alega que a criada Marion lhe deu a fita, e repete a acusação na sua frente. Tanto Rousseau como Marion são despedidos. Rousseau comenta: 'não é provável que depois disso lhe tenha sido fácil arranjar um bom emprego'; obscuramente, pergunta-se se ela não se terá suicidado (Livro Segundo, Primeira Parte, 90).
Ainda que o remorso tenha pesado sobre si durante quarenta anos, escreve Rousseau em 1766, nunca até agora conseguira confessar a sua culpa. O acto fora 'atroz', e o espectáculo da pobre Marion, falsamente acusada, teria mudado todos menos o 'mais bárbaro' coração. Ainda assim, o propósito das Confissões não seria atingido se não tentasse agora apresentar a verdade interior da sua história. E a verdade interior é que '[a] acusei de ter feito o que eu queria fazer', ou seja, acusou Marion de lhe ter dado a fita, porque a sua 'intenção' era dar a fita a Marion. Quanto à incapacidade de retractar a sua mentira quando confrontado com Marion, esta foi o resultado de uma 'vergonha invencível'. 'Eu mal havia saído da infância': a situação fora mais do que poderia manejar (Livro Segundo, Primeira Parte, 92).
Paul de Man distingue dois veios nesta história: um elemento de confissão cujo propósito é revelar uma verdade que se pode verificar, e um elemento de justificação cujo propósito é convencer o leitor de que as coisas são e foram como Rousseau as vê. Ainda que de Man erre ao afirmar que a verdade que confessamos deve ser, por princípio, verificável (podemos confessar pensamentos impuros, por exemplo), a sua distinção entre confissão e justificação permite-nos ver por que razão confissões do tipo das que encontramos em Rousseau levantam problemas de certeza não levantados pelas confissões de facto. O acto do roubo foi mau, diz-nos Rousseau, mas houve uma intenção por detrás deste que foi boa, e portanto o acto não é inteiramente culpável. Similarmente, o acto de culpabilização de Marion foi mau, mas provocado pelo medo, sendo assim em certa medida desculpável. O auto-exame de Rousseau termina neste ponto. Mas o processo de qualificação que iniciou pode ser continuado. Como pode estar certo que a parte de si que recorda a boa intenção por detrás do acto mau não está a construir esta intenção pós-facto para o desculpar? Mas, por outro lado (podemos imaginar que o autobiógrafo continua), devemos ter o cuidado de dar ao bom em nós tanto crédito como ao mau: o que existe em mim que poderá desejar minimizar as boas intenções rotulando-as de racionalizações pós-facto? Mas não é uma questão como esta justamente o tipo de questão que me colocaria se estivesse a tentar proteger-me do conhecimento do pior em mim? E ainda assim...
A fim de chegar à 'verdadeira' verdade sobre a história da fita, De Man passa de um balanço das reivindicações das boas intenções contra as dos maus actos para um escrutínio da linguagem da confissão. 'A óbvia satisfação no tom e na eloquência desta passagem . . . a corrente fácil de hipérboles . . . a manifesta satisfação com que o desejo de se esconder vai sendo revelado' – todos estes aspectos de tom indicam que 'aquilo que Rousseau realmente quer não é nem o laço nem Marion, mas a exposição pública que, de facto, obtém'. Tanto o roubo como a culpabilização tardia mascaram o 'verdadeiro' desejo que Rousseau tem de se exibir. E se a auto-exibição é o seu verdadeiro motivo, então, quando mais crime houver, mais encobrimento, mais demora na revelação, melhor. O desejo 'verdadeiramente vergonhoso' que Rousseau tem demasiada vergonha de confessar é o desejo de se expor, um desejo a que sacrifica Marion. E, sublinha De Man, este processo de vergonha e exposição, como o processo de confissão e qualificação, implica um regresso infinito: 'cada novo estágio de desvelamento sugere uma vergonha mais profunda, uma nova impossibilidade a revelar e uma maior satisfação em contornar esta impossibilidade'.
Talvez seja naïve da parte de De Man escrever sobre 'aquilo que Rousseau realmente quer', como se fosse algo historicamente conhecível. Também pode parecer incauto basear uma interpretação na análise de características de estilo. A respeito deste último ponto, porém, De Man conta com a autoridade não apenas de Rousseau como dos próprios poetas românticos. De uma mera posição anticlassicista inicial, entendida como uma relação de honestidade do escritor para consigo mesmo, um substituto de uma aprendizagem dos clássicos, o Romantismo passa rapidamente para a fórmula de Keats: não só a verdade implica beleza, a beleza também implica verdade. A partir deste momento não estamos longe da posição de que a poesia cria as suas próprias normas de verdade.
A noção de que o artista cria a sua própria verdade ganha uma forma particularmente radical nas Confissões, uma vez que Rousseau está a trabalhar num meio – a autobiografia – com vínculos mais fortes à história e aos critérios referenciais de verdade, do que à poesia. Podemos convenientemente traçar os estágios através dos quais Rousseau se aproxima desta posição se seguirmos o tema do exibicionismo nas Confissões.
No Terceiro Livro Rousseau descreve uma série de actos de exibicionismo sexual que levou a cabo enquanto jovem. A descrição destes actos é, claro, ela mesma, uma forma de exibicionismo. Que motivo têm em comum estas duas formas de auto-revelação? Jean Starobinski sugere uma resposta: ambas representam um recurso ao 'poder mágico' da 'sedução imediata': o sujeito aproxima-se dos outros sem sair de si mesmo; mostra aquilo que é mantendo-se ele mesmo e no interior de si mesmo.
De facto, as auto-revelações de Rousseau têm sempre o propósito de lhe assegurar amor e aceitação. A auto-revelação propicia a verdade sobre o eu, uma verdade que os outros podem ser persuadidos a ver. Assim, e nas palavras de Starobinski, cuja análise do exibicionismo de Rousseau aqui sigo: 'as Confissões são, no essencial, uma tentativa de rectificar o erro dos outros e não a investigação de um temps perdu. O interesse de Rousseau . . . começa com a questão: Por que razão este sentimento interior . . . não encontra o seu eco numa atribuição de reconhecimento imediato?' Para que esta intenção persuasiva possa ser levada a cabo, uma linguagem (écriture) que apresente o sabor único da experiência terá de ser inventada, uma linguagem 'suficientemente suave e variada para expressar a diversidade, as contradições, os mínimos detalhes, as minúsculas nuances, o choque de pequenas percepções cuja tessitura constitui a existência única de Jean-Jacques'. O comentário do próprio Rousseau a este projecto estilístico é o seguinte:
Escreverei sempre o que me ocorrer, mudarei [o meu estilo] seguindo o meu humor, sem escrúpulos, expressarei cada coisa tal como a sinto, como a vejo, sem elaboração, sem desconforto, sem me embaraçar com a confusão resultante. Entregando-me simultaneamente à memória da impressão recebida [no passado] e ao sentimento presente, pintarei duplamente [je pendrai doublement] o estado da minha alma.
A imediatez que a linguagem de Rousseau projecta é concebida como a garantia da verdade do passado que reconstrói. Já não se trata da linguagem que domina o seu assunto como ocorre com a linguagem do historiador. Trata-se, ao invés, de uma linguagem naïve que revela o confessor no mesmo instante em que revela o passado que confessa – um passado que necessariamente se tornou incerto. Nos termos de Starobinski, passamos do domínio da veracidade, em que a confissão é ainda um objecto de verificação histórica, para o domínio da autenticidade. A autenticidade não exige que a linguagem reproduza a realidade; exige sim que a linguagem manifeste a sua 'própria' verdade. A distância entre o eu que escreve e a origem dos seus sentimentos é abolida – sendo esta abolição que separa autenticidade de sinceridade –, já que essa origem é sempre o aqui e o agora. 'De facto, tudo acontece num presente tão puro que o passado ele mesmo é revivido como sentimento presente'. O primeiro pré-requisito é ser-se fiel a si mesmo. O eu arrisca não ser fiel a si mesmo se vive numa distância reflexiva a si (uma inversão significativa dos valores da autobiografia).
Desta forma, a linguagem torna-se para Rousseau o ser do autêntico eu e o apelo a uma verdade exterior é encerrado. Além disso, o único tipo de leitor que pode ajuizar sobre a verdade e a falsidade em Rousseau, enquanto aceita – ainda que provisoriamente – as premissas do projecto confessional, é um leitor como De Man, que procura detectar momentos inautênticos em Rousseau através de momentos inautênticos na sua linguagem. A análise de De Man ao episódio da fita depende da premissa de que a confissão trai inautenticidade sempre que o confessor deriva para uma linguagem do Outro. Assim sendo, e ainda que De Man acuse Rousseau de (auto-)engano com base na 'satisfação' que detecta no seu tom, um 'deleite' nas suas próprias revelações, a satisfação e o deleite são elas mesmas identificadas na 'eloquência' e na 'corrente fácil da hipérbole', ou seja, em características de uma linguagem que não pertence a Rousseau. Rousseau não está a falar [por] ele mesmo; alguém fala através de si.
Sem contestar esta identificação da autenticidade com a verdade, podemos ter tão pouca esperança em chegar a uma segunda leitura das Confissões como pudemos ter numa segunda leitura da Sonata de Kreutzer que não contestasse a verdade autoritária de Tolstói. De Man pode apenas oferecer uma segunda leitura do episódio da fita na medida em que detectou e explorou uma fissura no texto, um lapso de autenticidade. Enquanto a sua linguagem lhe pertencesse, Rousseau pareceria continuar a ser o único autor da sua verdade.
A fim de mostrar que há uma via alternativa para uma segunda leitura do texto de Rousseau, que passa por explorar momentos de inconsistência ao invés de momentos de um falso estilo, gostaria de mencionar uma passagem onde Rousseau discute a sua atitude para com o dinheiro (Livro Primeiro, 43-45). Rousseau apresenta-se como um homem de 'paixões muito ardentes' que, dominado pela emoção pode ser 'descarado, violento, intrépido'. Mas esses surtos são normalmente breves. Rapidamente cai em 'indolência, timidez', dominado pelo 'receio e a vergonha', a tal ponto embaraçado pelos olhares dos outros que gostaria de se esconder. E não apenas os seus desejos são dominados pela sua indolência e a sua timidez: o âmbito dos seus gostos também é limitado. 'Nenhum dos meus gostos dominantes consiste em coisas que se comprem', escreve. 'O dinheiro envenena-os a todos'. 'Mulheres conseguidas a preço de dinheiro perderiam para mim todos os seus encantos; duvido mesmo que as pudesse aproveitar'. 'É a mesma coisa com todos os prazeres ao meu alcance; se não são gratuitos acho-os insípidos'.
Por que razão o dinheiro envenena tudo? A explicação oferecida por Rousseau é a de que, para si, a troca é sempre injusta. 'Queria obter uma coisa de boa qualidade: com o meu dinheiro estou certo de que é má [je suis sûr de l'avoir mauvaise]. Compro caro um ovo fresco – está podre; um lindo fruto – é verde; uma rapariga – está iscada'.
Esta primeira explicação, que culpa o ovo ou a fruta ou a rapariga, não é sustentada pelos factos (a única rapariga que Rousseau alguma vez compra, não está 'iscada'; pelo contrário, é Rousseau que é impotente). A expressão 'estou certo de que é má' é mais reveladora: em comparação com aquilo que quer, aquilo que compra (e não aquilo que obtém) será certamente podre/verde/iscado. 'Se [os prazeres] não são gratuitos, acho-os insípidos'. A profecia de que aquilo que compra será certamente mau termina por se cumprir.
Rousseau dá agora exemplos de como experiencia a transacção da compra. Aproxima-se de uma pastelaria e avista umas mulheres rindo e fazendo entre si troça do 'pequeno guloso'. Vai a uma loja de frutas e a sua vista curta torna todos os que passam em 'gente conhecida'. 'Em qualquer parte me sinto intimidado, detido por qualquer obstáculo; o desejo aumenta com a timidez, e volto por fim para casa como um idiota, devorado de desejos, tendo na algibeira com que satisfazê-los, e não tendo ousado comprar coisa alguma'.
O que é que os olhos à sua volta ameaçam reconhecer e gozar sempre que entra numa loja? Daquilo que quer (comprar)? Do acto de pedir? Da oferta de dinheiro? Ao invés de buscar uma resposta, Rousseau faz um típico movimento de viragem e retirada. À medida que o leitor segue a história da sua vida, diz-nos, e toma conhecimento do seu 'feitio, perceberá tudo isso sem que haja insistido em dizer-lho'. Ao síndrome na sua totalidade, chama Rousseau uma 'pretensa contradição [contradiction]', nomeadamente 'a de aliar uma avareza quase sórdida com o maior desprezo pelo dinheiro'. Para essa avareza, a desculpa é que 'guardo [o dinheiro] bastante tempo sem o gastar, por não saber empregá-lo segundo a minha fantasia [faute de savoir l'employer à ma fantaisie]'; e distingue imediatamente a posse do dinheiro (em que este é 'o instrumento da liberdade') da busca do dinheiro (quando é 'o instrumento da servidão'), uma distinção que apenas anula o vício da avareza que acaba de admitir.
Por que razão não deseja o dinheiro? A sua resposta é que o dinheiro não pode ser disfrutado em si mesmo, enquanto 'não existe [intermédio] entre a própria coisa e a sua fruição. Vejo a coisa, tenta-me; se só vejo o meio de a adquirir, não me tenta. Por isso [donc], fui e sou ainda algumas vezes gatuno de bagatelas que me tentam e que gosto mais de roubar do que pedir'.
A lógica desta passagem merece ser escrutinada. Tal como Starobinski a lê, Rousseau está a dar-nos um exemplo de como 'o dinheiro envenena tudo'. Mas se parafraseamos correctamente a lógica de Rousseau, o que ela diz é o seguinte: 'Eu desejo a coisa mas não o meio de a obter; por isso, roubo a coisa mas não o meio' – e não: 'Eu desejo a coisa mas não o meio, portanto tomo (roubo) a coisa para não ter de usar o meio'. À questão: 'Porquê roubar?', esta passagem não oferece outra resposta que não seja: 'gosto mais de roubar do que pedir'. Nem Rousseau leva a exploração das suas atitudes face ao dinheiro mais longe, ainda que retome o tópico várias vezes ao longo das Confissões.
Uma vez que Rousseau não avança na explicação desta 'aparente contradição', e a iluminação que promete ao leitor termina por nunca chegar, pelo menos a alguns leitores, seja-me permitido tentar construir a minha própria explicação para o complexo comportamental que descreve. Atentando menos nas suas reflexões do que nos episódios nas lojas por si descritos, podemos notar que aquilo que ofende Rousseau é a abertura e a legitimidade das transacções monetárias. Ao entrar numa loja, dizendo 'Eu quero um bolo' e oferecendo dinheiro, está a anuir a um modo de tratar o seu próprio 'eu quero' que, de facto, o 'envenena'. É trazido a público e igualado ao 'eu quero' de toda e qualquer pessoa que entra na loja; perde a sua singularidade: torna-se conhecido (por todos aqueles que podem reconhecê-lo) no preciso momento em que Rousseau perde o controlo sobre os termos nos quais gostaria que fosse conhecido; torna-se em desejo gasto no interior de uma norma pública. Para Rousseau, os seus próprios desejos são recursos conquanto permaneçam únicos, escondidos – por outras palavras, enquanto forem potencialmente confessáveis. Trazidos a público, revelam-se os desejos de qualquer um. O sistema de trocas que inquieta Rousseau, o sistema em que não aceita participar, é um em que o seu desejo por uma maçã é trocado por uma maçã, através do meio público do dinheiro; cada vez que uma tal troca ocorre o desejo perde valor. Vergonha e valor são, pois, termos intercambiáveis, visto que, na economia da confissão, os únicos apetites que são únicos, os únicos que têm crédito confessional, são os apetites vergonhosos. A confissão consiste num duplo movimento que se propõe gastar 'inconsistências', omitindo o suficiente para manter a 'liberdade' que lhe advém de ter capital. Este processo, que parcialmente revela e em seguida se retira no mistério, um processo concebido para fascinar, está claramente exemplificado nesta passagem como um todo.
Se comprar é inaceitável porque coloca o desejo numa escala pública (sendo essa a natureza do dinheiro), roubar, ainda que também revele o equivalente do desejo no objecto roubado, tem a compensação de substituir o desejo revelado – já não vergonhoso – por um crime, ele mesmo crédito confessional, criando o mistério de porquê roubar quando Rousseau pode comprar, mistério que introduz e então renuncia a resolver.
Não desejo sugerir a leitura aqui oferecida como a verdade sobre dinheiro que Rousseau deveria ter contado, mas não contou ou não poderia ter contado, tal como não desejo propor a leitura que ofereci do Pózdnichev de Tolstói como a verdade sobre si mesmo que Pózdnichev não conseguiu ver. De facto, uma das funções menores destas releituras é colocar em questão a noção de verdade.
Por outro lado, parece-me existir uma direcção mais estrita mas mais precisa a seguir neste ponto do que a linha de argumento derrideana de que a verdade pertence a uma certa época, a 'época da suplementaridade', ou seja, a ideia que legitima a própria prática de escrita, por funcionar como um 'ponto cego' em direcção ao qual toda a escrita caminha, através de uma série de 'suplementos' que continuamente adiam a verdade. As leituras de Rousseau e de Pózdnichev e as releituras que ofereci dessas leituras, na medida em que estas se justificaram em nome da verdade, são certamente suplementos derrideanos; e a desconstrução das práticas que segui relendo Rousseau e Pózdnichev poderiam certamente conduzir a 'melhores' e 'mais densas' novas leituras; e assim por diante, até ao infinito. Mas o argumento de Derrida é relevante para toda a escrita com uma orientação para a verdade, enquanto o ponto que eu quero defender é que a possibilidade de ler a verdade 'por detrás' de uma confissão genuína tem implicações peculiares para o género confessional.
Voltando à Sonata de Kreutzer e às Confissões de Rousseau podemos notar que, em cada caso, passámos por uma progressão similar. Um crime é confessado (assassínio, roubo); uma causa, razão ou origem psicológica é proposta para explicar o crime; finalmente, uma releitura da confissão produz uma explicação 'mais verdadeira'. A questão que nos devemos agora colocar é a seguinte: Qual deverá ser a resposta do confessante ante estas ou quaisquer outras correcções 'mais verdadeiras' da sua confissão? A resposta, quer-me parecer, é que na medida em que uma nova e 'mais profunda' verdade é reconhecida como verdadeira, a resposta do confessor vai conter um elemento de vergonha. Pois, ou o confessante estava consciente dessa verdade mais profunda mas estava a escondê-la; ou não estava consciente da verdade mais profunda (mesmo que agora a reconheça), em cujo caso é a sua competência como confessante que está em questão: aquilo que estava a ser oferecido como segredo, o capital da sua confissão, não era o verdadeiro segredo, era um capital falso, e um engano de facto ocorreu, que constitui um novo motivo de confissão.
Até este ponto considerei o caso hipotético de um Pózdnichev ou de um Rousseau que, confrontados com uma leitura das suas confissões que produz uma verdade 'mais profunda' do que aquela que já admitiram, reconhecem a nova verdade e mudam a sua posição. E, nesse caso, podemos perguntar-nos, onde vai o confessante assentar a sua posição? Pois, em princípio, se pudemos oferecer uma releitura da sua história, poderemos oferecer uma segunda. Se o confessante está em princípio preparado para mudar a sua posição com cada nova leitura, conquanto possa ser persuadido de que é 'mais verdadeira' do que a anterior, então não é mais do que um biógrafo do eu, um construtor de hipóteses sobre si próprio que podem ser melhoradas por outros biógrafos. E nesse caso a sua confissão não tem mais autoridade do que um relato construído por qualquer outro biógrafo: pode proceder de conhecimento, mas não procede de autoconhecimento.
Que o confessante ceda à nova verdade sobre si mesmo depende da natureza do seu compromisso com a confissão original. Quanto mais profundamente se tiver comprometido com a verdade desta confissão, mais profundamente esta terá passado a fazer parte da sua identidade pessoal. Ceder subsequentemente à nova verdade implica danificar essa identidade. No caso de um Pózdnichev ou de um Rousseau o dano é particularmente agudo, já que parte do ser de ambos é ter-se tornado um confessante, um narrador da verdade.
Alternativamente, o confessante pode recusar ceder à nova verdade, adoptando assim a posição do sujeito auto-iludido que prefere não assumir a 'verdadeira' verdade sobre si mesmo, e prefere não assumir esta preferência e assim por diante até ao infinito. Neste caso, como poderá identificar a diferença entre ele próprio e o confessante auto-iludido, o confessante cuja verdade é uma mentira, já que ambos 'acreditam' conhecer a verdade?
Uma terceira alternativa é confessar com 'um espírito de abertura', declarando desde o início que aquilo que se admite como a verdade pode não ser a verdade. Mas há algo literalmente desavergonhado nesta postura. Se avançamos com a consciência de que as transgressões de que somos 'verdadeiramente' culpados podem ser mais pesadas do que aquelas de que nos acusamos, avançamos igualmente conscientes de que as transgressões de que somos 'verdadeiramente' culpados podem ser mais suaves do que aquelas de que nos acusamos (Rousseau é explícito sobre este último tipo de consciência no seu próprio caso: veja-se nota 23). Estar consciente de si próprio nesta postura – algo que se segue inevitavelmente de se ter um espírito aberto na questão da veracidade sobre si – já constitui matéria de confissão; estar-se consciente de que esta não é uma postura culpada (uma vez que é inevitável) constitui matéria para mais vergonha e confissão; e assim por diante até ao infinito.
Aquilo que escrevi até este momento indica que o projecto de confissão, quando o sujeito está num estado máximo de autoconsciência e dúvida sobre si mesmo levanta problemas intrincados e aparentemente intratáveis sobre veracidade, problemas cujo factor comum parece ser uma regressão ao infinito da autoconsciência e da dúvida de si. Não é de todo claro que estes problemas fossem visíveis para o Rousseau das Confissões ou para o Tolstói da Sonata de Kreutzer. Mas confiar que a evidência dessa consciência tem de emergir no texto, quando justamente não é do interesse de nenhum dos autores tomar plena consciência da mesma, seria incauto. Tudo aquilo que podemos dizer neste estágio é que os problemas não são articulados. Por enquanto estamos na situação de Hume, que, confrontado com um interlocutor que clama conhecimento imediato de si próprio (e, bem assim – embora isto não esteja em Hume – conhecimento da sua própria verdade), não tem outra possibilidade que não seja romper a discussão por falta de um substrato comum.



Dostoievski

As confissões percorrem a obra de Dostoievski. Nos casos mais simples Dostoievski usa a confissão como um modo de deixar um personagem expor-se, contar a sua própria verdade. A confissão do Princípe Valkovski em Humilhados e Ofendidos (1861), por exemplo, é pouco mais do que um mecanismo expositivo deste tipo. Porém, mesmo neste romance precoce, um elemento de gratuitidade penetra na confissão: a liberdade da revelação não é estritamente requerida pelas exigências do enredo ou da motivação; a sua franqueza não é completamente harmoniosa. Nos romances tardios o nível de gratuitidade eleva-se a um tal ponto que não podemos mais conceber a confissão como um mero mecanismo expositivo; a própria confissão, com os respectivos problemas psicológicos, morais, epistemológicos e, finalmente, metafísicos, vem para o primeiro plano. Ainda que em outros contextos críticos possa ser produtivo tratar a confissão nos romances maiores como, por um lado, uma forma de masoquismo ou um vício que Dostoievski pensa ser típico da época e, por outro, como uma das formas genéricas congregadas para formar o próprio romance dostoeivskiano, aqui proponho isolar três dos maiores episódios confessionais – nos Cadernos do Subterrâneo, O Idiota e Os Possuídos – e interrogar como o problema da finalização é resolvido quando a tendência da autoconsciência é promover a confissão interminavelmente.
Os Cadernos do Subterrâneo (1864) dividem-se em duas partes, a primeira uma dissertação sobre a autoconsciência, a segunda uma história do passado do narrador. Ainda que ambas partes possam pensar-se como confissões, são confissões de tipo distinto, sendo a primeira uma revelação de personalidade e a segunda a revelação de um episódio vergonhoso. Porém, na primeira parte – que é também a mais teórica – a auto-revelação é subsumida numa discussão mais vasta sobre se será possível contar a verdade sobre si próprio na era da hiperconsciência ou da 'consciência muito desenvolvida', a doença desse a que o narrador chama 'o nosso desgraçado século XIX' e de São Petersburgo, 'a cidade mais abstracta e mais premeditada do planeta'. As 'regras naturais da consciência muito desenvolvida', que ditam uma infindável consciência da consciência, fazem do homem hiperconsciente a antítese do homem normal. Sem nenhuma certeza de base, não pode tomar decisões e agir. Nem sequer pode estancar a sua hiperconsciência num ou noutro momento, já que esta obedece a leis próprias. Tampouco pode tomar-se como um agente responsável, já que aceitar responsabilidade por si próprio é uma posição final. (Isto não significa, claro, que não se culpe de nada: pelo contrário, culpa-se de tudo. Mas fá-lo num movimento reflexo que segue as leis da hiperconsciência).
É quanto baste de teoria. Mas antes de embarcar nas suas próprias rememorações vergonhosas, o herói-narrador invoca o precedente de Rousseau.
É possível, ou não, ser-se absolutamente sincero pelo menos consigo mesmo e não ter medo de toda a verdade? . . . Heine afirma que as autobiografias sinceras são quase impossíveis e que, de certeza, qualquer homem mentirá ao falar de si mesmo. Na opinião dele, o Rousseau, por exemplo, caluniou-se a si mesmo nas suas confissões, e caluniou-se até intencionalmente, por vaidade. Estou convencido de que Heine tem razão (63-64).
Por outro lado, no seu caso, não terá leitores e portanto, afirma, não terá a tentação de mentir.
O projecto de não mentir é mais severamente testado na história das suas relações com a jovem prostituta, Lisa. Após uma noite de 'depravação . . . sem amor', conta-nos, acorda na sua cama e vê que ela o olha intensamente. Sentindo-se incomodado, começa a falar sem reflectir, incentivando-a a uma reforma moral e oferecendo-se a ajudá-la. Por que faz isto?, questiona-se mais tarde. E explica-o como 'um jogo', o jogo de 'ter-lhe revirado a alma, ter-lhe literalmente quebrado o coração'. Contudo, tem um pressentimento de que aquilo que o arrasta 'não é [só] jogo, no entanto'. (132, 152).
No dia seguinte apodera-se de si a 'verdade ignóbil' de que fora sentimental. A sua reacção é começar a odiar Lisa; ainda assim, não consegue esquecer o 'sorriso tão lastimoso, tão forçado, tão torcido de trejeitos' que expressa ao olhá-lo. 'Qualquer coisa subia, subia sem parar do fundo do coração, doía-me, recusava amainar' (156, 161, 160).
Pouco depois disso Lisa visita-o e não deixa de lhe mencionar a sua promessa. Num espírito de 'humilhação' o narrador inicia a sua cruel confissão. Durante todo o tempo em que esteve a declamar belos sentimentos, afirma, esteve a gozar com ela. Tendo sido humilhado pelos seus amigos, voltou-se para ela como um novo objecto de humilhação. Tudo aquilo que quis foi o jogo. Agora Lisa já pode 'desaparecer'. Ela certamente percebe que nunca lhe perdoará ter vindo ao seu apartamento e visto as condições miseráveis em que vive. Está destinado a fazê-la sofrer, já que é 'o mais reles, ridículo, o mais mesquinho, o mais estúpido, o mais invejoso de todos os vermes do mundo'; e por lhe extrair esta confissão abjecta, por fazê-lo abrir-se como 'só uma vez na vida as pessoas se abrem', ela terá de ser ainda mais fortemente punida; e assim por diante (175-178).
Inicialmente Lisa é apanhada de surpresa pelo seu 'cinismo'; em seguida, e de forma surpreendente, abraça-o, como se se tivesse apercebido de que também ele é infeliz. Está destroçado. 'Não me deixam . . . Não consigo ser . . . bom!', soluça nos seus braços. Quase simultaneamente, porém, começa a sentir vergonha por estar na posição do 'humilhado, esmagado' (176-179). No seu coração irrompe
Uma outra sensação . . . a do poder, a da posse . . .Os meus olhos brilharam de paixão, apertei-lhe as mãos com todas as minhas forças. Como a odiava, como era atraído para ela nesse instante! Uma sensação reforçava a outra. Isso parecia-me quase como a vingança! . . . No rosto dela apareceu primeiro uma espécie de pasmo, depois o medo, mas só por um instante. Apertou-me contra ela, com ardor e paixão (180).
Na 'febre de vacilações' (25) típica da hiperconsciência, os seus próximos movimentos são praticamente previsíveis. (1) Passa dinheiro para as mãos de Lisa, indicando-lhe que, para si, não passa de uma prostituta; então, quando Lisa se vai embora, (2) ele corre atrás dela 'com vergonha e desespero', reflectindo, porém, (3) que a verdadeira causa da sua vergonha é o aspecto 'livresco' do seu gesto. Abandona a perseguição convencendo-se de que (4) um sentimento de ultraje 'elevá-la-á e purificá-la-á'. Fica satisfeito com esta formulação e então (5) despreza-se por se sentir satisfeito (183-185).
Neste ponto a história de Lisa termina: 'Não me apetece mais escrever 'do fundo do subterrâneo'', anuncia o narrador. Porém, o seu texto é seguido por uma nota de 'autor: 'não é aqui que terminam os 'cadernos' deste homem paradoxal. Foi mais forte do que ele, continuou. Mas parece-nos, a nós também, que é aqui que podemos parar' (187).
O sumário que fiz da história de 'Lisa' não é desinteressado. Enfatizei esses momentos em que algo sobrevém das profundezas do narrador que nem ele entende na retrospectiva de passados quinze anos. A Primeira parte já nos preparara para uma confissão em que nenhum motivo escapasse à hiperconsciência e em que Rousseau fosse ultrapassado em franqueza. Esses momentos em que o narrador não se compreende a si mesmo têm, pois, um estatuto peculiar: ou não foram entendidos quinze anos antes quando actuou na sua história, e são registados por si agora que ocupa o papel do confessante; ou recebem agora uma explicação retrospectiva, mas uma explicação que é estranha, não tanto por ser falsa como por ser derradeira, ou seja, por não estar ela mesma submetida à regressão infinita da hiperconsciência (darei um exemplo de seguida).
Especificamente, poderíamos questionar a confissão a 'Lisa' nos seguintes pontos:
Se é um 'jogo' humilhar Lisa, o que motiva o narrador que não seja 'só o jogo'?
'Sentia que algo se recusava a morrer no fundo de mim, no fundo do meu coração . . . Qualquer coisa subia, subia sem parar do fundo do coração, doía-me, recusava amainar'. (159-160). Qual é o nome desse 'algo', e qual a natureza do seu crime?
'Não me deixam... Não consigo ser... bom!', soluça, proferindo palavras que parecem provir de um estranho dentro de si. O que significa essa frase? Uma leitura possível é que continua o seu 'jogo' com Lisa, fingindo-se atormentado e infeliz. Uma outra leitura é que a voz que vem de dentro é a voz reprimida de um eu melhor, um eu que 'eles' não permitem que aflore.
No abraço de Lisa passa por uma rápida série de emoções, notáveis pela sua ambivalência. Ainda que cripticamente expressas, estas incluem: triunfo por ter arrancado a confissão do seu peito sem sofrer uma decepção, um desejo de selar esta vitória possuindo sexualmente a rapariga, e a vontade persistente de a humilhar ainda mais. Não há dúvida de que ambos têm as características próprias do casal sadomasoquista, tão comum em Dostoievski. Mas a leitura que acabo de oferecer repousa apenas sobre o relato que o homem faz do seu próprio estado interior e daquilo que lê no rosto de Lisa; e o que ela lê no rosto dele (ele, por sua vez, lê no rosto dela) desperta nela primeiro espanto e terror, e finalmente uma resposta arrebatada. Estará a compreendê-lo mal, vendo 'verdadeiro' amor onde deveria ver um desejo sádico?
Num certo sentido, sim; o problema com o ridículo que ele faz dela é que ela é uma má intérprete e desde o início o tomou por sincero, quando ele nunca o foi. Porém, devemos lembrar-nos que, enquanto escritor da sua própria história ele está numa posição privilegiada para ditar leituras. As suas 'Notas' pronunciam uma interpretação segundo a qual Lisa se deixa enganar, quer no bordel quer no seu apartamento. E ele não é apenas o escritor da sua própria história; também faz de líder dos dois diálogos com Lisa, colocando questões, dizendo quem ou o que é que ela é. Um único juízo que ela lhe dirige nos é reportado: 'Bem, você . . . como num livro' (145). Quanto ao resto, a visão que ela tem dele é imortalizada em dois olhares: os 'dois olhos abertos, que me fitavam, curiosos, obtusos' para os quais desperta, no seu quarto (132), e o olhar que ela lhe dirige, no seu apartamento, detectando paixão no seu rosto. Não é muito material para inferir a maneira como ela o entende. Ainda assim, podemos construir uma ideia do que os seus 'dois olhos abertos' vêem: um homem que deu o seu dinheiro e passou duas horas a ter sexo com ela, 'sem amor, [de forma] obscena, escandalosa' (132). O comentário de que ele fala como um livro também é acertado. Podemos então persuadir-nos de que ela o interpreta mal quando lhe diz que quer que escape da prostituição e, uma vez mais, quando lhe diz que sente paixão por ela (talvez mesmo que precisa dela)? Parece haver pelo menos a possibilidade de que Lisa conheça ou, pelo menos, tenha uma visão sobre o narrador que ele, como relator da sua própria história, não se pode permitir: e que, desde este ponto de vista (ponto de vantagem) os três momentos de revelação que tem ante Lisa são falhas na textura da sua história.
Seria naïve propor uma leitura da história – preenchida a partir dos três momentos com Lisa e desses momentos em que uma voz fala espontaneamente dentro de si – em que o herói emerge como sendo 'na verdade' um homem infeliz e atormentado que anseia pelo amor de uma mulher, mas que tem medo de expor esses anseios. Há uma ironia no coração de Cadernos do Subterrâneo, mas essa ironia não é que o herói não é tão mau como diz ser. A verdadeira ironia é que, prometendo uma confissão que supere Rousseau em veracidade, uma confissão que se crê em posição de fazer por ter sido acometido por um ataque de hiperconsciência levado ao último extremo, a sua confissão não revela mais do que a impotência da confissão ante o desejo do eu em construir a sua própria verdade.
Vale a pena voltar à Primeira Parte dos Cadernos para ver o que o herói da história tem a dizer sobre desejo. A visão iluminada dos anos 1860, diz-nos o texto, é que o desejo obedece a uma lei, a lei de que o homem deseja de acordo com a sua própria vantagem. Mas a verdade é que, de vez em quando, o homem deseja o que é nocivo para si justamente para 'agir segundo a sua vontade', sem ser coagido por nenhuma lei. E deseja essa libertação da determinação a fim de poder afirmar que 'o que o homem precisa é só de uma vontade independente, custe o que custar e leve onde levar essa independência' (42, 43). O desejo primordial é, assim, o desejo por uma liberdade que o herói identifica com uma individualidade única.
A questão que podemos imediatamente colocar-nos é a seguinte: Como pode o sujeito saber que as escolhas que faz, mesmo as escolhas 'perversas' que não lhe trazem nenhuma vantagem, são verdadeiramente indeterminadas? Como sabe que não é escravo de um padrão de escolhas perversas (um padrão patológico, talvez), cujo desígnio é visível para toda a gente excepto para si próprio? A hiperconsciência não lhe dará uma resposta, já que a hiperconsciência nos Cadernos do Subterrâneo é uma doença. O seu aspecto doentio reside justamente em alimentar-se de si própria, encontrando por detrás de cada motivo um outro motivo, por detrás de cada máscara outra máscara, até se chegar ao último motivo, que deverá permanecer mascarado (de outra forma a regressão infinita cortar-se-ia, a doença seria curada). Podemos chamar a este último o próprio motivo do desmascaramento. Aquilo que o homem subterrâneo não poderá saber desta auto-interrogação é por que razão quer dizer a verdade sobre si mesmo; e existe a possibilidade de que a verdade que conta sobre si mesmo (a verdade perversa, a verdade como uma história de perversas escolhas 'livres' que fez) possa ser ela mesma uma verdade perversa, uma escolha perversa feita de acordo com um desígnio invisível para si mesmo, mas talvez visível para os outros.
Estamos agora muito para além de todas as questões de sinceridade. A possibilidade que enfrentamos é a de uma confissão feita através de um processo implacável de auto-desmascaramento que poderá ainda não ser a verdade, mas uma ficção auto-complacente, já que o princípio operante por detrás desta, não examinado, inexaminável, poderá não ser um desejo de verdade, mas o desejo de se ser de uma determinada maneira. Quanto mais coerente for uma ficção hipotética sobre o eu, menor será a possibilidade de o leitor descobrir se se trata de uma verdadeira confissão. Poderemos testar a sua verdade apenas quando a confissão se contradiz ou entra em conflito com alguma outra verdade 'externa', verificável – ambas eventualidades que um confessante cuidadoso poderá, teoricamente, evitar. Não teríamos razões para duvidar da verdade da confissão do homem do subterrâneo, e especificamente da sua tese sobre aquilo que, em última instância, o define – a hiperconsciência –, não fossem determinadas imperfeições de superfície que a própria confissão apresenta, em momentos como esse em que o corpo sob pressão emite palavras como 'não posso ser bom', sinais de uma luta subliminar não explorada.
Não seria surpreendente se a confissão do narrador fosse uma ficção mentirosa e interesseira e se a verdade reprimida irrompesse na sua superfície, particularmente em momentos de tensão, sob a forma de palpitações, insinuações do inconfessado, formulações do eu mais intimo – ou que a verdade voltasse a ser rapidamente reprimida. O que é decepcionante em Cadernos do Subterrâneo, se pensamos na obra como uma exploração da confissão e da verdade, é que tenha de se apoiar, para a sua própria verdade, não apenas sobre o retorno do recalcado ao nível do sujeito da acção (o herói da história de Lisa), mas também sobre a falta de uma censura subsequente ao nível do sujeito narrativo (o herói que conta a história sobre si próprio quinze anos mais tarde). É como se o único processo não submetido ao escrutínio da hiperconsciência fosse o próprio processo narrativo. Ao apresentar a história das suas relações com Lisa, em fragmentos, como a história de dois eus autónomos (permitindo a Lisa expressar a sua opinião, os seus próprios olhares), reportando a voz que, desde o subterrâneo, falou nele quinze anos antes, o narrador torna mais simples ler uma outra verdade, uma verdade 'melhor' do que a que nos conta. Será a ingenuidade que permite que a voz dessa 'outra' verdade não seja censurada prova de um apelo secreto e desviante ao leitor, um apelo que o narrador não reconhece? Este apresenta certamente a questão de se a sua história corresponde a uma confissão pública ou privada de uma forma ambivalente: a história torna-se num documento 'realmente' privado, mas com uma aparência pseudo-pública. Mas as notas terminam de forma indeterminada. Os paradoxos da hiperconsciência poderiam, de facto, prosseguir indefinidamente, como afirma a desculpa da coda autoral.
Ainda assim, as questões que coloquei ficam, não apenas por responder (não está na sua natureza serem respondidas), mas por explorar. O Dostoievski dos Cadernos do Subterrâneo ainda não encontrou a solução para o problema de como terminar a sua história, problema cuja solução Michael Holquist afirma ser a grande façanha dos seus anos de maturidade.
O Idiota (1868-69) é, a vários níveis, um livro sobre coisas últimas. Faz-nos pensar no Livro do Apocalipse e na pintura do Cristo Morto de Holbein, na confrontação de Ippolit Teréntiev com a sua própria morte iminente e nas muitas histórias sobre os últimos momentos de homens condenados. O sentido generalizado de que há um limite de tempo também afecta a atitude para com a confissão: há muita procura pelo confessor adequado e impaciência com confissões que não são sérias.
Os mais impactantes episódios confessionais n' O Idiota são o jogo de verdade em casa de Nastássia Filíppovna e a 'Explicação' de Ippolit. Há, porém, um episódio que gostaria de retomar em primeiro lugar e que expressa alguns dos problemas filosóficos que envolvem a confissão.
Keller, '[irrompe]. . . com desabafos e confissões' no quarto do príncipe Míchkin, cheio de histórias vergonhosas sobre si próprio, clamando estar profundamente arrependido, mas ainda assim contando as suas histórias como se delas se orgulhasse. O príncipe louva a sua 'extraordinária sinceridade' mas questiona qual será o motivo por detrás da confissão: queria talvez pedir dinheiro emprestado? Sim, confessa Keller, 'preparei a confissão . . . para. . . preparar o caminho e para que o senhor, condoído, me largasse cento e cinquenta rublos. Não acha isto uma infâmia?'
Reconhecemos que estamos no começo de uma regressão potencialmente infinita de auto-reconhecimento e auto-humilhação em que a candura satisfeita em cada nível de confissão de um motivo impuro se torna numa nova fonte de vergonha e cada pontada de vergonha numa nova fonte de auto-satisfação. O modelo é conhecido dos Cadernos do Subterrâneo e é familiar para as figuras d'O idiota, que rapidamente detectam o germe da maldade e do rebaixamento em outros, e mal reagem com indignação quando lhes é apontado. No âmago deste processo está um padrão a que Míchkin chama dvoinaya mysl, literalmente 'pensamentos duplos', muito embora seja mais claramente imaginado como uma dupla volta do pensamento, como o movimento característico da hiperconsciência (284). É um duplo pensamento em Keller querer confessar-se sinceramente a Míchkin em nome de um 'desenvolvimento moral', quando quer simultaneamente pedir dinheiro; e é uma dupla volta do pensamento que mina a integridade da vontade de confessar quando detecta por detrás desta uma vontade de enganar, e por detrás da detecção deste segundo motivo um terceiro (um desejo de se ser admirado por um certa candura) e assim por diante.
Míchkin vê no 'pensamento duplo' um doença que torna a confissão impotente para dizer a verdade e chegar ao fim. De facto, Míchkin faz algo mais do que diagnosticar a doença: 'todas as pessoas são assim', diz: ele também experimentara pensamentos duplos. Mas o reconhecimento de que o pensamento duplo é universal já é um pensamento duplo, como Míchkin prontamente reconhece: 'Até me aconteceu algumas vezes pensar . . . que todas as pessoas são assim, de modo que [tak čto] comecei a desculpar-me' (o itálico é meu). O próprio movimento de reconhecimento já o enreda no síndrome.
Vale a pena insistir neste ponto. Tanto Keller como Lébedev (que faz uma confissão a Míchkin uma página ou duas adiante) confrontam directamente a questão de porque escolheram confessar-se ao príncipe. Questões sobre o espírito em que a confissão é feita e sobre a adequação do confessor não podem mais ignorar-se, após o jogo festivo das confissões (134-146), em que, após uma volta de confissão dos piores actos das suas vidas, os convidados terminam por se sentir envergonhados e insatisfeitos, e o comentário cínico de Totski – sobre a confissão ser apenas 'gabarolice de um género especial' – parece justificar-se (134). Keller e Lébedev oferecem idênticas explicações para a escolha de Míchkin como confessor: julgá-los-á 'com humanidade' (po-čelovečeski, 'com humanismo'). Para além disso, não sendo completamente um homem mas um idiota, 'ingénuo' (como Keller explicitamente lhe chama (285)), um rato (mys), não está comprometido com esse jogo demasiado humano de usar a verdade para os seus próprios fins. Não se trata nem de um ser de uma severidade divina (ainda que Aglaia Epantchina expresse as suas reservas quanto à sua devoção à verdade, que o leva a julgar sem 'ternura' (387)), nem com uma forma de humanidade que subjuga a verdade ao desejo. Ao escolher Míchkin como confessor, Keller e Lébedev procuram, portanto – ainda que obscuramente e por motivos 'duplos', impuros – o perdão ao invés do julgamento, Cristo ao invés de Deus.
Podemos contrastar esta figura do confessor ideal com os convidados da festa, que dão por si actuando como confessores da 'Explicação' de Ippolit Teréntiev. Antes mesmo que Ippolit tenha começado a leitura da sua confissão, alguns dos seus ouvintes já formaram as suas próprias ideias sobre aquilo que o seu acto de confissão, como tal, pode implicar. Míchkin vê-o como um dispositivo que Ippolit criou para se forçar a levar a cabo o suicídio; Rogójin, pelo contrário, vê-o como a forma que Ippolit cria para obrigar os seus ouvintes a fazê-lo evitar o suicídio. Ambos, pois, vêem a sua confissão ao serviço não da verdade mas de um desejo mais profundo (morrer, viver).
Quanto à confissão ela mesma, debate-se com os seus próprios motivos de uma forma a que já estamos habituados em Dostoievski. Em primeiro lugar, clama Ippolit, a sua confissão conterá 'apenas a verdade' já que, estando a morrer de tuberculose, não pode ter nenhum motivo para mentir (por outras palavras, a sua confissão é escrita na sombra de acontecimentos derradeiros). Em segundo lugar, se há algo falso nesta confissão, os seus ouvintes irão entendê-lo, já que escreveu o documento de uma forma deliberadamente apressada e não o corrigiu (este é o argumento da autenticidade do estilo, que é extraído de Rousseau). Em terceiro lugar, estando embora consciente de que a sua confissão pode ser vista como um mero meio para um fim, uma forma de se justificar ou de pedir perdão, nega ambos como motivos. Estando à beira da morte e sendo, portanto, privilegiado, assume o seu direito de se confessar 'apenas porque assim quero'; e afirma esse seu direito a declarar uma tal confissão 'livre', sem motivo, imune ela própria à imputação de um motivo. A sua confissão pertence aos acontecimentos derradeiros, é ela mesma um acontecimento derradeiro e tem, portanto, um estatuto diferente do de qualquer crítica. A sinceridade do motivo por detrás das últimas confissões não pode ser impugnada, diz-nos, precisamente porque essa sinceridade está assegurada pela morte do confessante. A sinceridade de toda e qualquer crítica que lhe façam, por seu turno, pode e deve ser submetida à interminabilidade da crítica. Os seus autores tomam os motivos de Ippolit por um dos seus próprios motivos; não querem saber da verdade sobre a vida e a morte e, para não saber, estão preparados a impor sobre si o silêncio e a duplicidade que deve seguir o silêncio quando este é tomado por aquiescência: 'Saibam que há, na consciência da própria insignificância, um limite de vergonha que a pessoa não consegue ultrapassar, e a partir do qual começa a sentir uma imensa satisfação na sua própria vergonha' (376). A verdade que os seus ouvintes não querem escutar é que não há vida depois da morte e que Deus é apenas 'uma tarântula enorme e repugnante' (372). O seu suicídio é uma afirmação da sua vontade de não viver segundo 'as leis da Providência' impostas ao homem (377).
O argumento apresentado por Ippolit é, pois, o de que quando o eu é confrontado com a morte a divisão promovida pela hiperconsciência pode ser superada e o regresso infinito da dúvida ultrapassado por uma imperiosa vontade de obter a verdade. O momento antes da morte pertence a um tipo diferente de tempo, um tempo em que a verdade tem pelo menos o poder de aparecer como uma revelação. A experiência de um tempo fora do tempo é descrita mais claramente pelos ataques epilépticos de Míchkin quando, num último instante de claridade antes da obscuridade total,
A mente e o coração iluminavam-se por uma luz extraordinária: todas as suas inquietações, todas as dúvidas, todas as preocupações pareciam apaziguar-se de uma vez, resolviam-se numa tranquilidade superior, cheia de uma alegria e de uma esperança claras e harmoniosas, cheia da razão e da causa última. . . esses instantes eram precisamente e apenas uma extraordinária intensificação da autoconsciência . . .e ao mesmo tempo da exaltação do sentimento de si, extremamente imediata. (208-209)
Reflectindo sobre esses momentos, Míchkin pensa nas palavras: 'o tempo deixará de existir' (209). E é com estas palavras que Ippolit mais tarde prefacia a sua confissão.
Esse momento em que o tempo terreno cessa, em que a dúvida termina e o eu é integrado recorre nas histórias de Míchkin. Numa dessas histórias (64) fala da extraordinária riqueza com que o homem condenado experimenta os mais mundanos detalhes da vida. Numa outra (65) imagina um homem no cadafalso que, no seu último momento, 'sabe tudo'. Mais tarde Míchkin tem a sua própria experiência de 'clarões de uma sensação e de uma autoconsciência superiores' que inundam a alma do homem sob a navalha do carrasco (208).
Ippolit afirma estar no cadafalso, tanto quanto qualquer dos homens condenados de Míchkin. A partir desta posição de privilégio ele deseja legar à humanidade a sua 'verdade', que imagina como uma semente que pode chegar a ter grandes consequências. Mais especificamente, ele espera que a sua morte possa ter sentido num universo sem sentido se puder semear nas mentes dos homens a ideia de um suicídio filosófico como o seu.
Mas terá Ippolit verdadeiramente o privilégio da verdade? O prognóstico de que vai morrer dentro de um mês foi pronunciado por um mero estudante de medicina; Ippolit não está, de nenhuma maneira, no leito de morte. A maior parte dos convidados na festa respondem à sua 'Explicação' 'ruidosamente e com enfado' (285), tomando-o como o estratagema de um homem jovem envaidecido, que quer chamar a atenção. Recusam tomar o seu voto de suicídio como sincero. E ele, por sua vez, recusa tomar essa indiferença como sincera, lendo-a como uma pressão para que leve a termo o suicídio. Subitamente confrontado com a situação ridícula em que, quer ele quer os seus ouvintes se transformaram em jogadores de poker, cada um tentando passar a perna ao outro, em que, se se matar, poderá estar a fazê-lo por despeito ou por frustração, e em que o mais urgente pedido para salvar a sua vida vem de Lébedev, que não quer que o chão se suje, põe uma pistola à cabeça e aperta o gatilho, apenas para se dar conta de que a pistola não está carregada. Aquilo que começou como o projecto de um suicídio filosófico rapidamente degenera num caos de riso e de choro. A questão sobre se Ippolit tem ou não uma visão 'verdadeira', privilegiada, sobre a vida e a morte é reformulada por Keller de uma forma nova e banal: esqueceu-se de carregar a pistola ou foi tudo uma brincadeira?
O final ridículo do episódio reafirma o problema que Ippolit afirmara ter transcendido, o problema do auto-engano e da regressão interminável da dúvida. O projecto de um suicídio como forma de garantir a verdade da sua história pagando com a própria vida perde vigor com o comentário corrosivo de Rogójin: 'Não é assim que se deve tratar esse tema, rapaz, não é assim...' (351). Deveria ser feito, implica Rogójin, sem uma 'Explicação', sem um como e um porquê, no silêncio e na escuridão. A explicação, a verdade privilegiada que se paga com a vida, é na verdade uma semente, uma forma de sobreviver à morte: por isso põe em dúvida a sinceridade da decisão de morrer. A única verdade é o silêncio.
O sonho que Ippolit narra na sua confissão aprofunda o paradoxo. Ippolit sonha que diz a um homem que funda todo o seu ouro e faça um caixão, e que então desenterre o menino 'enregelado' e o volte a enterrar no caixão de ouro (370). O sonho é baseado num incidente da sua vida real em que Ippolit praticou uma boa acção por um estranho, pensando neste acto como uma semente lançada no mundo. Nas complexas condensações do sonho, um Ippolit com dezoito anos é o menino 'enregelado', a sua 'Explicação' o caixão de ouro; lançado à terra como uma semente, o sonho prediz que o bebé não ressuscitará (imediatamente depois deste sonho, Ippolit pensa numa pintura do Cristo morto de Holbein, um Cristo que não mais ressuscitará). Falando, como nas frases soltas do herói dos Cadernos do Subterrâneo, a partir de um nível mais 'profundo', 'mais verdadeiro' do eu, o sonho revela-nos a dúvida de Ippolit sobre a fertilidade da sua 'semente' e debilita o privilegiado estatuto de verdade da 'Explicação' de que constitui uma parte.
O efeito poético do sonho é poderoso. Porém, ao invés de ler o sonho como uma verdade privilegiada que vem 'de dentro' de Ippolit – um procedimento que, inquestionavelmente, atribuiria ao inconsciente a posição de uma fonte de verdade – gostaria de indagar, como indaguei sobre os Cadernos do Subterrâneo, por que razão estes confessantes não censuram das suas confissões esses traços de uma verdade 'mais profunda' que contradiz a verdade que procuram expressar. Uma resposta poderá ser a de que, transferindo para uma narrativa na primeira pessoa a mesma 'Menipeia' mistura de géneros que caracteriza os seus romances como um todo – uma mistura que inclui exposição filosófica, confissões, e sonhos – Dostoievski trata a denúncia do narrador como um tópico puramente formal que só um realista mundano levaria a sério. Mas a questão permanece preocupante. Continuamos a sentir que quando Dostoievski recua para uma verdade interior 'unívoca', atraiçoa a interrogação de noções de sinceridade que, de outra forma, leva a cabo através de uma rigorosa dialéctica.
O homem do subterrâneo senta-se para escrever as suas confissões, vagamente oprimido pelas memórias do passado, mas sobretudo entediado e indolente. Contará as suas histórias para se acalmar; dirá a verdade porque, ao contrário de Rousseau, está a escrever apenas para si. É o mais longe que chega o seu exame do motivo da confissão e do espírito em que é feita. E são precisamente estas as questões a que O Idiota dá visibilidade. A confissão, n'O Idiota, pode fazer-se apenas ao confessor adequado; e até o príncipe Míchkin, o homem-Cristo, se revela inadequado para absolver o confessante (tal como é incapaz de se salvar) da espiral do pensamento duplo. Quanto ao espírito da confissão, afirma O Idiota, é ridículo acreditar-se que a verdade se conta como um jogo, uma forma de passar o tempo. Nenhum acto da vontade parece poder forçar a verdade a emergir, nem sequer um momento de iluminação que nos chega pelo desejo da própria morte, já que esse desejo pode ser ele mesmo um pensamento duplo. A crítica que Dostoievski faz à confissão está claramente a levar-nos a uma concepção da narração da verdade que se aproxima da graça.
Dostoievski dá os seus próximos – e últimos – passos na exploração dos limites da confissão secular n' Os Demónios (1871-72). Concentrar-nos-emos em dois episódios. Kirílov, como Ippolit, decidiu matar-se e assim semear uma semente de verdade no coração dos homens. A diferença é que Kirílov se mata mesmo – e o foco de interesse não reside na explicação que ele dá para o seu suicídio (a semente) – uma explicação cheia de uma desrazão selvagem, grandiosa e blasfema – mas no próprio suicídio.
No entanto, questões sobre se Kirílov perscruta ou não os seus motivos para apresentar um manifesto suicida (hesitaríamos em chamar-lhe 'confissão) e se está sob a alçada da dúvida e do auto-engano, não têm propriamente sentido, uma vez que o romance não nos dá acesso à sua mente. A cena do suicídio é apresentada através do olhar do jovem Verkhovênski (é uma ironia típica do livro que, enquanto Kirílov julga que está a suicidar-se para afirmar a sua liberdade, está, de facto, o tempo inteiro a ser incitado ao suicídio por Verkhovênski). É através do gesto, da postura e dos detalhes externos que teremos de ler, até onde pudermos, os últimos momentos de Kirílov, 'compreendendo-se a si mesmo', como escreve René Girard, 'num momento de possessão vertiginosa', tentando transcender-se pela morte. Colocando-se numa posição estranha ao lado de um armário num quarto escuro, Kirílov entra numa espécie de transe, 'os olhos negros absolutamente imóveis, fitando um ponto no vazio' (579). Se o lermos correctamente – e com a leitura dos homens condenados de Míchkin em mente –, parece aguardar por esse instante em que o eu está totalmente presente a si mesmo e o tempo pára, para fazer saltar os miolos. Nesta interpretação, Kirílov vai mais longe do que qualquer outra personagem de Dostoievski no cultivo da morte como a única garantia de verdade da história que contamos sobre nós mesmos. Mas devemos ter em mente que, nos seus últimos momentos, Kirílov torna-se cada vez mais um louco e um animal (a sua última acção antes de se suicidar é morder Verkhovênski), e essa leitura exterior a que Dostoievski nos força talvez indique que a consciência de Kirílov é uma ausência de consciência, desumana, ilegível.
O capítulo intitulado 'Com Tíkhon', excluído da versão serializada dos Demónios pelo editor do Mensageiro Russo e mais tarde excluído pelo próprio autor da edição separada do romance, retoma a interrogação céptica sobre o impulso confessional. Stavróguin visita o monge Tíkhon e mostra-lhe um panfleto que pretende distribuir, no qual confessa um crime cometido contra uma criança; mas rapidamente os motivos de Stavróguin para oferecer uma confissão são escrutinados, tornando-se por fim assunto de uma nova confissão.
Stavróguin relata a sua ofensa (um crime sexual não especificado, seguido por uma provocação de suicídio) sem explicar o seu motivo, a menos que 'estar farto' (644) conte como um motivo. Em vez de explorar a sua motivação, algo que tão facilmente – como vimos em Rousseau – resvala em autojustificação, vemos Stavróguin insistir na sua culpa e responsabilidade (643, 644, 648). Mesmo quando, anos mais tarde, a criança começa a aparecer-lhe em visões, insiste que estas visões não são involuntárias: ele é responsável por elas, é ele que as faz surgir, ainda que não possa deixar de o fazer (652). A imagem da criança não é, pois, a emanação de um eu 'profundo' ou 'inconsciente': o mesmo eu que cometeu o acto confronta compulsivamente a sua memória de culpa; não há distinção entre o eu da intenção e o eu da acção.
O acto de Stavróguin é visto com abominação tanto por Stavróguin como por Tíkhon. Aquilo que Tíkhon questiona é o motivo por detrás do desejo que Stavróguin tem de publicar a sua culpa. A interrogação deste motivo, exteriorizada no questionamento a que Tíkhon submete Stavróguin, assume o lugar do autoquestionamento interiorizado a que estamos habituados nas narrativas confessionais em primeira-pessoa. Interrogando-o, Tíkhon reabre a fenda que Stavróguin tentara fechar entre o autoconhecimento e a verdade.
O encontro entre Stavróguin e Tíkhon (631-661) consiste num duplo teste. Durante todo o tempo em que Tíkhon testa os motivos a que Stavróguin alude para fazer uma confissão pública, Stavróguin testa a adequação de Tíkhon como confessor. Quer que Tíkhon prove o seu poder de absolvição vendo a verdade para além das mentiras propostas por Stavróguin. Mas tal como termina por haver limites para o tipo de penitência e o tipo de perdão que Stavróguin está preparado para aceitar, também há limites para o tipo de verdade que é permitido a Tíkhon ver. Especificamente, Stavróguin não está preparado para permitir que Tíkhon perturbe um certo núcleo da identidade que afirma ser a sua. Desta forma, e apesar da sua disponibilidade para renunciar a qualquer direito de explicar o seu crime e desculpar a sua culpa – uma disponibilidade que deixa a impressão que deseja uma verdade absoluta e uma absolvição verdadeira – a confissão de Stavróguin torna-se um jogo cuja essência é certos limites não serem ultrapassados, ainda que os participantes finjam entre si que não há limites. Trata-se portanto de um jogo de engano e auto-engano, um jogo sobre uma verdade limitada. Tíkhon termina este jogo quebrando as suas regras.
A identidade que Stavróguin está determinado a afirmar é a de um grande pecador. Apresenta o seu crime contra a criança como sendo ainda mais desprezível – grande na sua insignificância – pela futilidade do seu motivo, a superficialidade da sua paixão. Tíkhon sugere que um crime tão baixo e tão pretensioso pode bem merecer apenas uma gargalhada e aconselha Stavróguin a levar a cabo uma penitência tranquila e não um 'sofrimento infinito'. Tíkhon coloca assim em questão a escala em que Stavróguin pensa o seu crime e a sua punição. Stavróguin quer que lhe seja prescrito um 'sofrimento infinito', como um sinal de que a sua culpa é imensurável; e a desmesura da sua culpa deverá seguir-se da banalidade do mal que subjaz ao seu crime. Tíkhon põe diante dos olhos de Stavróguin a possibilidade de que este talvez seja apenas um aristocrata dissoluto e desenraizado com aspirações byronianas, que pretende alcançar a fama através do atalho simples de cometer uma abominação e confessá-la em público.
É importante destacar que Tíkhon não expõe esta visão de Stavróguin como a verdade sobre si, já que através desse acto Tíkhon apresentar-se-ia como a fonte de uma verdade inquestionável. Apresenta-a como uma verdade possível, uma possibilidade que Stavróguin teria de confrontar se estivesse seriamente em busca da verdade sobre si mesmo num quadro de auto-interrogação espiritual (tal como Tíkhon teria de examinar os seus próprios motivos para minimizar a dimensão da maldade de Stavróguin no curso do seu auto-escrutíneo). Desta forma, Tíkhon interrompe uma forma de má regressão infinita da hiperconsciência – uma regressão mais claramente tipificada por tais apologistas da punição humilhante como Marmeladov e Lebedev, para quem a vergonha da confissão é um novo motivo de vergonha e assim por diante até ao infinito, do que em Stavróguin, cuja versão da regressão é que a mesquinhez do seu acto é uma forma de grandeza, e a mesquinhez deste truque consciente uma nova forma de grandeza, e assim por diante – substituindo-a por um outro regresso do auto-exame que tem o potencial de extensão ao infinito, mas tem também o verdadeiro potencial para terminar em perdão.
Perdoar-se significa o fecho do capítulo, o fim da espiral descendente da auto-acusação cujas profundezas nunca poderão ser examinadas, já que decidir parar num determinado ponto, através de um acto voluntário, decidir que a culpa termina num dado momento, já é um acto potencialmente falso e merecedor do seu próprio escrutínio. Como indicar a diferença entre um 'verdadeiro' momento de perdão e um momento de complacência em que o eu decide que já foi suficientemente longe na auscultação de si mesmo é um mistério que Tíkhon não resolve, deixando a tarefa, talvez, para esse conselheiro espiritual 'possuidor de tanta sabedoria cristã que nem eu nem o senhor podemos imaginar', a quem recomenda Stavróguin (660) – ainda que, se tivermos lido Dostoievski com atenção poderemos adivinhar que este monge nunca articularia essa diferença, no pressuposto de que, uma vez articulada, a diferença invocaria esforços de incorporação num novo jogo de engano e auto-engano; mais ainda, que articular a decisão de não articular a diferença poderia similarmente tornar-se parte de um jogo; e assim por diante, até ao infinito. A cadeia interminável manifesta-se assim que a hiperconsciência entra em cena; como atingir a verdade sobre si, como chegar ao perdão e transcender a dúvida, parecem, por razões estruturais, questões que têm de permanecer num âmbito de mistério; e a própria demarcação dentro deste campo, como a especificação das suas razões estruturais, teria igualmente de permanecer inarticulada; e as razões para este silêncio também.


O Fim da Confissão

O fim da confissão é contar a verdade a e sobre si mesmo. A análise do destino da confissão que aqui tracei, seguindo três romances de Dostoievski, indica o quão céptico Dostoievski era, e porque o era, quanto ao tipo de confissão secular que Rousseau e, antes dele, Montaigne, haviam tentado. Dada a natureza da consciência, indica Dostoievski, o eu não pode dizer a si mesmo a verdade sobre si e chegar a um ponto de repouso, sem que haja possibilidade de auto-engano. A verdadeira confissão não provém de um monólogo estéril do eu ou de um diálogo do eu com a dúvida de si, mas (e aqui vamos para além de Tikhón) da fé e da graça. É possível ler os Cadernos do Subterrâneo, O Idiota e a confissão de Stavróguin como uma sequência de textos nos quais Dostoievski explora os impasses da confissão secular, apontando finalmente para o sacramento da confissão como o único caminho para a verdade sobre si.
Numa longa recensão de Anna Karénina que apareceu no seu Diário de um Escritor, Dostoievski louva Tolstói pela 'imensa análise psicológica da alma humana' levada a cabo no romance. Essa profundidade de visão vê-se exemplificada no episódio da quase fatal doença de Anna, durante a qual Anna, Vronski e Karénin 'se subtraem ao engano, à culpa e ao crime' num espírito de 'perdão mútuo', apenas para se verem, após a recuperação de Anna, no caminho descendente 'dessa condição fatal em que o mal, tendo tomado posse do homem, domina cada movimento seu, paralisa cada desejo de resistência'.
No caso de Karénin, a pena, o remorso e a alegria libertadora que sente em perdoar Anna não são prova contra a vergonha que experimenta ao voltar para a sociedade no papel que lhe foi prescrito: o de marido humilhado, 'ridicularizado' (Anna Karénina, p. 475). Primeiro sente pena, depois uma suspeita vergonhosa de que, perdoando Anna, poderá ter expressado, não a generosidade do eu a que aspira, mas a fraqueza e talvez a impotência do eu que não quer ser. Assim, a introspecção permite-lhe negar o que tinha experimentado antes como uma emanação do seu melhor e mais verdadeiro eu, em nome de uma nova verdade, 'mais profunda' porquanto enfraquece a anterior. Esta verdade 'mais profunda' é na verdade, um auto-engano interesseiro que (segundo o comentário de Tolstói) permite a Karenin 'esquecer aquilo de que não se queria lembrar' (489): numa criatura tão secular ('Era um homem crente, que se interessava pela religião principalmente no sentido político' [479]), a auscultação de si próprio é um instrumento, não da verdade, mas de um mero desejo de se sentir bem, de ser tido em boa consideração, e assim por diante.
A questão normalmente colocada sobre a Sonata de Kreutzer é: Como pôde Tolstói, depois da 'imensa análise psicológica' tipificada em Anna Karénina (1874-1876), em particular da análise dos movimentos de engano e auto-engano que aí encontramos, publicar um livro tão naïve e simplista, em que a verdade que o protagonista nos conta emerge como uma simples série de ditames sobre o controlo dos apetites? Antes de aceitarmos a questão nesta forma simples deveremos, porém, relembrar três coisas. A primeira é que em Anna Karénina já tínhamos o espectáculo de um indagador da verdade que, mesmo se pejado de dúvidas, não encontra a verdade através do processo labiríntico do auto-exame mas de uma iluminação exterior (no caso de Levin, da súbita iluminação das palavras de um camponês). A segunda é que não há argumento que possa superar a afirmação do homem subterrâneo sobre a hiperconsciência funcionar segundo leis próprias – uma das quais é que, por detrás de cada posição verdadeira, final, se esconde uma outra posição mais verdadeira e ainda mais radical. De um certo ponto de vista esta é uma lei fértil, já que autoriza uma geração infinita do texto do eu, como exemplificado nos Cadernos do Subterrâneo. De um outro ponto de vista, o do homem ávido de verdade, é estéril adiar a verdade infinitamente, sem chegar a um fim. A terceira coisa a ter em mente é que o tipo de transcendência da autoconsciência para que Dostoievski aponta como uma forma de chegar a um fim, pode não estar disponível para um racionalista cristão como Tolstói, que consegue encontrar a verdade em pessoas simples mas é céptico sobre o caminho para a verdade para além da autoconsciência, através da autoconsciência.
Tendo estas considerações presentes, talvez possamos reformular a nossa questão de uma forma mais empática para com Tolstói, da seguinte forma: Qual é o potencial para a realização da verdade pelo autoquestionamento de uma consciência confessante, num escritor para quem a psicologia do auto-engano não é um campo ilimitado que, para todos os efeitos práticos, já foi conquistado, e para quem a dúvida em e por si própria se tornou num mero corredor interminável? Não restam dúvidas de que Tolstói teria sido capaz de tornar a confissão de Pózdnichev psicologicamente 'mais rica' ou 'mais profunda', fazendo-a ambígua – de facto, existe no texto material disponível para criar essa ambiguidade – mas (podemos imaginar que Tolstói se pergunta) com que fim? Então, depois de a maquinaria ter sido montada (o narrador, pronto a fazer o papel do Outro interrogante e interrogado, o trilho de pistas que apontam para uma verdade que questiona e complica a verdade que o confessante admite), vemos (e aqui especulo) a desilusão, o cansaço com este moinho particular para extrair verdades de mentiras, impaciência com os movimentos romanescos que têm de ser atravessados até que a verdade emerja (uma verdade que, em qualquer caso, sempre emerge como provisória, manchada pela dúvida dos processos que teve de atravessar) e uma (apressada?) decisão de firmar finalmente a verdade, como se depois de uma vida inteira de exploração se tivessem adquirido as credenciais, acumulado a autoridade, para o fazer.



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