\"Confissões de uma viúva moça\", de Machado de Assis, e alguns conceitos filosóficos de Hume, Mandeville e Montaigne

June 7, 2017 | Autor: J. Fleck | Categoria: David Hume, Montaigne, Machado de Assis, Mandeville
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Universidade Tecnológica Federal do Paraná Curso de Especialização em Literatura Brasileira e História Nacional Disciplina de Machado e a filosofia moderna Professor Zama Nascentes João Cristiano Fleck (aluno) Confissões de uma viúva moça, de Machado de Assis, e alguns conceitos filosóficos de Hume, Mandeville e Montaigne 0 - Introdução Este trabalho tem o objetivo de verificar a presença de conceitos filosóficos das obras Tratado da natureza humana, seções I a VI, de David Hume, alguns dos ensaios de Montaigne e ainda Uma investigação sobre a origem da virtude moral, de Bernard Mandeville, ambos todos em um dos textos que compõe o volume Contos fluminenses, de Machado de Assis. Talvez o ponto mais complexo da análise neste caso seja o contato de conteúdos filosóficos com o discurso fictício. Terreno este com muitas armadilhas, inda mais em se tratando de uma figura da genialidade e da erudição do nosso autor em tese. Assim, para melhor aproveitarmos o conto selecionado, digamos que optamos cair apenas na armadilha de desconsiderar o autor e sua construção de discurso; tomamos a narradora como efetiva redatora das “epístolas” em que consiste o texto. Isso para que possamos partir de um mesmo paradigma de psique humana e, logo, um ponto comum a todos os textos. Fato até coerente se nos lembrarmos que da mesma forma agimos aqui com os textos filosóficos, sem grandes cogitações sobre intenções, ou estratégias, ou retórica, por exemplo. Diria Montaigne, sobre os fatos de que se ocupa: “ocorridos ou não, em Roma ou em Paris, com João ou Pedro, mostram-nos sempre um aspecto que pode assumir a natureza humana e isso basta para que os utilize nestes comentários.” (2001, I, XXI) Assim, a narrativa em tese se apresenta como campo fértil à constatação, por exemplo, dos conceitos de Hume, pois impressões, idéias, memória e imaginação parecem abundar numa reconstituição, na inscrição de reminiscências de uma narradora que viveu a complexa experiência de uma paixão, e descreve as interações entre personagens e de tudo isso com seu espírito. Da mesma forma, Montaigne nos aponta com possibilidades. Versando desde a mais evidente exposição de verdadeiras intenções a que a narradora se propõe, com a sinceridade e o desvelamento de segredos com a qual monta suas cartas (Que a intenção julga nossas ações), até o que parece ser paráfrase do texto montaigniano

sobre A força da imaginação nos seus pensamentos dela, e ainda cogitações sobre o nosso discernimento para a emissão de julgamentos. A respeito de Mandeville, o que observamos parece ser mais sutil, pois que envolve talvez o moto mais significativo da nossa “autora”. Coisa que, a despeito da sinceridade que mencionamos, é mais difícil de se captar e descrever, já que apenas pode ser inferida do contexto maior das atitudes e posturas, parecendo, escusando uma falsa pretensão (já fizemos o encômio do autor de fato), escapar à própria narradora-protagonista. 1. Sobre David Hume Na seção I, Da origem de nossas idéias, ao descrever inicialmente os conceitos que desenvolverá, David Hume faz a diferenciação primazial entre impressões e idéias pela “força e vividez” (2001, p. 25) com que adentram o nosso pensamento. No conto, em se tratando do personagem Emílio, o surgimento e fixação de sua imagem nos pensamentos da narradora, o que notamos quase sem exceções, é uma intensificação progressiva dos qualificadores que citamos no texto do filósofo. Tão pouca vividez havia na primeira impressão que a narradora teve do sujeito à porta do seu camarote, que a idéia que dela resultou sequer foi suficiente forte para que ela confiasse tentar identificá-lo na multidão abaixo (ASSIS, 2006, p. 116). Um grande contraste com “no fim de quinze dias eu só vivia do pensamento dele” (idem, p. 131), mais próximo do fim. No passo inicial, então, trabalhamos com o que poderíamos dizer em Hume de impressão e idéia correspondente simples. Começou-se-se com a simples percepção do sujeito, vejamos como tal evolui em sua complexidade em ambos os textos. As impressões podem ser divididas em duas espécies: de SENSAÇÃO e de REFLEXÃO. As da primeira espécie nascem originalmente na alma, de causas desconhecidas. As da segunda derivam em grande medida de nossas idéias, conforme a ordem seguinte. [1]Primeiro, uma impressão atinge os sentidos, fazendo-nos perceber o calor ou o frio, a sede ou a fome, o prazer ou a dor, de um tipo ou de outro. [2]Em seguida, a mente faz uma cópia dessa impressão que permanece mesmo depois que a impressão desaparece, e à qual denominamos idéia. [3]Essa idéia de prazer ou dor, ao retornar à alma, produz novas impressões, de desejo ou aversão, esperança ou medo, que podemos chamar propriamente de impressões de reflexão, porque derivadas dela. [4]Essas impressões de reflexão são novamente copiadas pela memória e pela imaginação, [5]convertendo-se em idéias – as quais, por sua vez, [6]podem gerar outras impressões e idéias. Desse modo, as impressões de reflexão antecedem apenas suas idéias correspondentes, mas são posteriores às impressões de sensação, e delas derivadas. (HUME, 2001, p. 32: acrescentamos a numeração em colchetes)

Pensamos ver a aplicação deste desenvolvimento logo na seqüência do trecho inicial que citamos. Em termos de gradação, temos inicialmente o “sujeito encostado” (ASSIS, 2001, p. 116), que passa a “meu observador” (idem), cuja atitude vai dos factuais “olhos

fitos” (idem) aos adjetivados “olhos impertinentes” (idem), mas que vai evoluindo em “misterioso” (idem, p. 117) até chegar a “admirador platônico” (idem). Ora, a impressão simples (que descrevemos no começo desta seção) cede a uma nova impressão de sensação. A observada passa da simples constatação de objeto de reparo à dubiedade de sentimentos oriunda da satisfação da vaidade: “somos todas vaidosas da nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. [...] Há, porém, uma maneira de fazê-la que nos irrita e nos assusta; irrita-nos por impertinente, assusta-nos por perigosa (idem, p. 116).” Assim, quando “o misterioso” repete sua postura, a narradora confessa que “enraiveci” (idem, p. 117) (a impressão de sensação), nosso grifo “1” do texto de Hume. “2” (“idéia que permanece mesmo quando a impressão desaparece”) nos parece evidente quando ela diz que “durante a viagem, a idéia daquele incidente não me saiu da cabeça” (idem – grifo nosso). Ao retornar à idéia, aparentemente por ter cedido ao prazer da vaidade, mesmo que não confesse, a narradora diz que “fiquei envergonhada de mim mesma e decidi não pensar mais no que se havia passado” (idem - grifos nossos), fazendo as vezes do nosso grifo “3” (“novas impressões, de desejo ou aversão, esperança ou medo”); sendo a vergonha, coisa quase sempre bem vívida, uma impressão de reflexão que se irá reiterar muito ao longo do texto, e que está eventualmente ligada à moral social e religiosa que norteiam a personagem - metonimicamente, poderíamos chamar do que a personagem entende por “idéia do dever [de mulher casada]” (idem, p. 120). Fato é, tão forte foram as impressões, que passados “oito dias” (idem, p. 117) em que as rememorações (de certa forma, os grifos “4” e “5”) vão diminuindo em intensidade e a “cena do corredor” (idem, p. 118) vai fugindo à memória, que a narradora retoma a “vergonha” e vê na idéia da providência divina um auxílio ao esquecimento e à manutenção de sua virtude, coisa em que poderíamos enxergar o grifo “6”. É certo que há muitos outros momentos em que aquele desenvolvimento também se dará. Fazendo a teoria do filósofo inglês bastante apropriada e enriquecedora do entendimento do conto, mas são esses (que citamos) os passos iniciais: origem da história do desconhecido (Emílio), “origem das nossas idéias”, de Hume. Este, porém, ainda relatará outros conceitos interessantes e que cabem no texto ficcional. Quando estabelece que as idéias resultantes de impressões são retomadas mediante memória ou imaginação, e afirma que esta se compõe das idéias que, perdendo inteiramente a vividez, se tornam perfeitas, e que aquela se trata de idéias que recompõem consideravelmente o grau de vividez da sua impressão originária (HUME, 2001, pp. 32-3), David Hume nos prove de instrumentos para compreensão do conto. Na verdade, o filósofo

chega mesmo a mencionar o mister do historiador, que é, de certa forma, ao que se propõe a narradora machadiana. A força dos fatos rememorados transparece pelo fluxo da narrativa. De pronto vemos que dois anos de história traduzem-se em apenas alguns parágrafos no início do conto, diríamos, nos reinos da imaginação, atemporais e resumidos a breves expressões, enquanto que a tudo que se segue (a narrativa de fato) estão fortes impressões organizadas seqüencialmente no plano da memória, ricas em detalhes e descrições, principalmente das impressões causadas por Emílio. Por ser, no entanto, um pouco diferente a imaginação nos domínios de Hume, e dispormos de Montaigne para compor também nossa análise, passamos a utilizar-nos de seus Ensaios. 2. Sobre Montaigne “Quanto mais vazia e sem contra-peso está a alma, mais facilmente ela cede sob a carga da primeira persuasão. Eis por que as crianças, o vulgo, as mulheres e os doentes estão mais sujeitos a ser conduzidos pelas orelhas” (MONTAIGNE, 2001, I, XXVII – grifos nossos) é como Montaigne, em seu ensaio É loucura condicionar ao nosso discernimento o verdadeiro e o falso, descreve o extremo da credulidade, ou da ingenuidade, em se tratando da apreensão de fatos e seus julgamentos. E é por meio desta brecha que Emílio acaba por adentrar a vida de Eugênia e seu marido. “Parece ser dotado de boa alma” e “discreto como o bom senso” (ASSIS, 2001, p. 122) são constatações de um homem (o “marido”) que, tão crente em seu próprio discernimento, pede a presença de Emílio até os últimos instantes de sua existência. Sabemos pouco sobre a psiquê do “marido” (para efetuar uma comparação confiável), mas mesmo assim ousaríamos afirmar que mais vulnerável ainda estava a “mulher”. Logo de início ela aponta uma lacuna, a ausência das “alegrias íntimas”, a “falta da felicidade” (idem, p. 115), para mais adiante revelar: [...] Era a curiosidade do coração, esse primeiro sinal das tempestades em que sucumbe a nossa vida e o nosso futuro. Parece que aquele homem lia na minha alma e sabia apresentar-se no momento mais próprio a ocupar-me a imaginação como uma figura poética e imponente. Tu, que o conheceste depois, dize-me se, dadas as circunstâncias anteriores, não era para produzir esta impressão no espírito de uma mulher como eu! Como eu, repito. Minhas circunstâncias eram especiais; se não o soubeste nunca, suspeitaste-o ao menos. Se meu marido tivesse em mim uma mulher, e se eu tivesse nele um marido, minha salvação era certa. Mas não era assim. (idem , p. 123 – grifos nossos)

Ora, na verdade, o que enxergamos é um “vazio” (não preenchido pelo casamento de conveniência) que até predispõe (segundo) a narradora a enxergar o complemento e dar profundos créditos a Emílio. Ocorrendo uma evolução na entrega e na crença neste Emílio fabuloso, até que há o corte ao final do texto fictício, que o torna de certa forma até exemplo perfeitamente ilustrativo e justificador à mesma postura cética pirrônica (suspensão do julgamento) para que os Ensaios de Montaigne tendem a convergir. Lembremos em quantas contradições tem caído o nosso julgamento! Quantas coisas que ontem considerávamos artigos de fé, hoje julgamos fábulas! A glória e a curiosidade são dois flagelos de nossa alma; esta nos impele a meter o nariz em tudo; aquela nos proíbe deixar seja o que for sem decisão ou solução. (MONTAIGNE, idem ibidem – grifos nossos)

Destarte, o “romance”, ou “estudo” (ASSIS, 2001, p. 114) que a narradora se propõe a contar nas epístolas é justo uma “fábula” sobre um conquistador barato que soube preencher-lhe a “imaginação” e encher-lhe de crenças, a ilustrar que nenhum dos personagens, ao confiar em seu discernimento para julgar Emílio, alcançou de fato a verdade sobre ele. Estando a confirmar perfeitamente os perigos dos julgamentos que se faz ingenuamente. Embora mais adiante tratemos de uma leitura mais aprofundada, vemo-nos obrigados a tentar entender a “imaginação” no conto, e tentar compreendê-la da forma como a narradora a aborda. Pois que são bastantes as vezes em que ela a cita. Montaigne mesmo inaugura o seu ensaio, a “reforçar” o título, sobre o tema atribuindo-lhe excelência e influência: “sou desses sobre os quais a imaginação tem grande domínio. Todos são atingidos por ela, mas alguns há que ela derruba. Ela me persegue e eu me esforço por fugir na impossibilidade de lhe resistir.” (2001, I, XXI). E prossegue dizendo que “suamos e trememos, empalidecemos e coramos sob sua influência” (idem), até retomar a credulidade, que já abordamos sob outro aspecto: “é verossímil que seja por efeito da imaginação, agindo de preferência sobre as almas da gente do povo, inclinada à credulidade, que as visões, [...]. Tanto e tão bem os doutrinaram que chegam a pensar verem as coisas que em verdade não vêem.” (idem). E nos parece que é sob essa “verossimilhança” que a narradora institui a sua submissão ao desenrolar dos fatos. Verificamos o atrapalho no discernimento há pouco (em enxergar a verdade), e a espécie de vulnerabilidade que Eugênia tenta expor e a qual Montaigne parece dar suporte neste novo excerto (a credulidade). Sob o domínio da imaginação, quase arrastada, “derrubada” por ela, e fraca para lhe resistir: Aquelas palavras atordoavam-me, faziam-me arder a cabeça. Por quê? Ah! Carlota! é que eu achava nelas um encanto indefinível, encanto doloroso, porque era acompanhado de um remorso, mas encanto de que eu me não podia libertar. Não era o coração que se empenhava, era a imaginação. A imaginação perdia-me; a luta do dever e da imaginação é cruel e perigosa para os espíritos fracos. Eu era fraca. (ASSIS, 2001, p. 120 – grifos nossos)

Assim enumerada por três vezes em espaço tão curto, não podíamos deixar de dar atenção e tentar vislumbrar o conceito. E, conhecendo o desfecho, bem poderíamos compreender a tendência da personagem a “ver algo que não vê” em Emílio, prejudicada em discernir a verdade da natureza de “sedução” (na conotação mais negativa que a palavra tinha à época do texto), essa ilusão, já ora chamamos de “fábula”, viria a ocupar aquele “vazio” de mulher casada naquelas “circunstâncias anteriores” (casamento de conveniência). É bem amarrada a tese da narradora-personagem. “Mas acreditarás, tu, Carlota?” já indagava Eugênia ainda no início do conto, e prossegue: “Dormi meia hora mais tarde do que supunha, tanto a minha imaginação teimava em reproduzir o corredor, o portal, e o meu admirador platônico.” (idem, p. 117 – grifos nossos). E se verificarmos todos os grifos em que aparecem os efeitos da “imaginação”, concluiremos que em todos há contigüidade de apelo ao interlocutor. Não se trata de invalidar toda a base que fizemos em Montaigne, mas será que não caímos em alguma espécie de engodo? 3. Sobre Mandeville Fomos nos embrulhando nos meios, nos recursos que a narradora utiliza. Não nos parece à toa, pois, como dissemos ainda na Introdução, trata o texto literário de reminiscências. E tanto a utilização de Hume para entender e legitimizar os processos, dirse-ia, cognitivos, quanto a última seção sobre Montaigne, para entender e justificar os conceitos aos quais se apela no texto, parecem-nos justos ao “como”, ao mister da arte narrativa (e portanto relevantes), mas não nos dão subsídios para entender os “porquês” , e eventualmente o “quem”, da narradora-personagem. É Mandeville que, com seu realismo impiedoso, pode nos trazer alguma luz. Afinal, ele mesmo inicia seu texto criticando o “escritor”, pois, com outras prioridades, “dificilmente se preocupa em dizer-lhes [aos homens] o que realmente são” (MANDEVILLE, 1996, p. 77). E continua, mais adiante, a revelar-nos mais sobre eles (os homens), onde já podemos ver algo que interessa à nossa leitura até aqui: “um animal tão egoísta e obstinado quanto astucioso” (idem, p. 78 – grifo nosso). Estivemos até há pouco circunspectos quase que exclusivamente no mundo de Eugênia, suas idéias, impressões, memória e imaginação, todavia não só a isso se resume o conto. Tampouco a astúcia é exclusiva sua. Mandeville, trazendo o aspecto do “todo”, nos permite uma observação mais ampla. Em sua análise do homem vivendo no mundo com outros homens, ele apresenta uma divisão em duas classes, efetuada no processo de

“civilização” da humanidade: uma de “pessoas abjetas”, que não tinham outro moto que não seu próprio prazer imediato, sem qualquer respeito pelos outros e que utilizavam suas capacidades racionais exclusivamente para aumentar seus prazeres e obter vantagens; e outra, de “criaturas excelsas”, imunes ao egoísmo, e que buscavam o aperfeiçoamento do espírito e a obediência a verdadeiros valores, travavam verdadeiro conflito interior de autoaperfeiçoamento e tinham profunda preocupação com o bem estar público. (MANDEVILLE, 1996, p. 80). Após constatar essa doutrinação por parte dos civilizadores, ou “legisladores”, Mandeville irá denunciar a falsidade desse último modelo de pessoas, apontando os vícios e a coincidência com a motivação egoísta apenas mais evidente naquela primeira classe de “abjetos”. E atribuirá a conduta aparentemente valorosa à busca por gratificações essencial e igualmente egoístas, tão somente uma sofisticação retórica para a mesma motivação, pois: “também no homem, o mais perfeito dos animais, a vaidade é tão inseparável de sua própria essência (com que astúcia alguns podem aprender a ocultá-la ou disfarçá-la!) que, sem ela, o composto de que ele é feito careceria de um dos seus principais ingredientes; [...].” (MANDEVILLE, 1996, p. 81). Nossa narradora-personagem parece, de certa forma encaixar-se nesses conceitos iniciais apresentados por Mandeville. Nessa análise que ele faz do paradigma de inconsciência ou de auto-ilusão, ela estaria integrada à política de civilização engendrada pelos “legisladores”. E boa parte de seu conflito interior advém da crença nisso. Retomando trecho já utilizado, inicialmente ela tem alguma consciência racional, “somos todas vaidosas de nossa beleza e desejamos que o mundo inteiro nos admire. É por isso que muitas vezes temos a indiscrição de admirar a corte mais ou menos arriscada de um homem.” (ASSIS, 2006, p. 116-7). E na disputa entre comportamentos que caracterizam uma ou outra classe dos “legisladores”, já depois do advento da carta de Emílio, ela se indaga e tenta formular uma conciliação: [...] que móvel impeliu aquele homem a dar este passo? Seria amor ou sedução? Voltando a este dilema, meu espírito, apesar dos perigos, comprazia-se em aceitar a primeira hipótese: era a que respeitava a minha consideração de mulher casada e a minha vaidade de mulher formosa. (idem, p. 119 – grifos nossos)

O autor da carta era movido pelo abjeto desejo individual, pela “sedução”, ou o compelia o sentimento elevado, o coletivo, do “amor”. Como outrora já vimos, é uma reprodução do conflito ambíguo e similar ao das “classes”. Sente também ela prazer na satisfação da vaidade, mas é coisa que a envergonha. O que a narradora parece tentar é uma espécie de impossível conciliação de manter-se virtuosa e elevada, enquanto obtém um regozijo de prazer egoísta.

Voltando-se então para os outros homens do mundo, para o todo, o social (o casamento de conveniência é uma instituição), ela projeta no marido o referencial: “entristeceu-me ver aquele homem, que podia e devia salvar-me, não compreender, por instinto ao menos, que se eu o abraçava tão estreitamente era como se me agarrasse à idéia do dever.” (idem, p. 120 – grifo nosso). E vê-se nisso não só o apego, expectativa no sistema de elogio e reprimenda para alinhar o seu comportamento ao adequado (“elevado”), quanto também a alguma surpresa em constatar que o seu “vício” privado, não se lhe transparece em público. Com o reaparecimento de Emílio, agora em pessoa, sem poder contar com o marido, que deveria ser seu sócio na manutenção da virtude dos “legisladores” (e do casamento como instituição), ela ainda se apega às determinações de comportamento elevado: “o dever! esta era a minha tábua de salvação. Eu sabia que as paixões não eram soberanas e que a nossa vontade pode triunfar delas. A este respeito eu tinha em mim forças bastantes para repelir idéias más.” (idem, p. 123 – grifos nossos). Mas ao final do mesmo capítulo, ela conclui, liberando-se para viver a experiência: “por que temer? dizia eu comigo. Sou uma triste medrosa; e fatigo-me em criar montanhas para cair extenuada no meio da planície. Eia! nenhum obstáculo se opõe ao meu caminho de mulher virtuosa e considerada.” (idem, p. 124). Como dissemos, Mandeville inicialmente elenca o que ele entende por obra dos civilizadores, mas ele aprimorará, segundo observação e constatações descritas ao longo de seu texto, os conceitos, chegando à elaboração e ao desvelamento maior: VÍCIO a tudo o que, sem respeito pelo público,o homem cometesse para satisfazer quaisquer apetites; [...] suscetível de causar danos a qualquer membro da sociedade, [...] VIRTUDE a todo desempenho pelo qual o homem, contrariando o impulso da natureza, esforçava-se por propiciar o bem de outros ou dominar suas próprias paixões graças à ambição racional de ser bom. (1996, p. 83)

Tal ocorre porque, a classe “abjeta” começou também a constatar e receber vantagens na conduta “elevada”, “ninguém os importunava mais do que aqueles que eram como eles próprios” (idem, p. 82). Passando também eles a integrar o grande ferramental de elogio e reprimenda, baseados naquela concepção de vício e virtude, e que parecia servir, segundo Mandeville, então, a todos e ao todo. O vício, no entanto, não era condenado mais, efetivamente, em sua essência. A natureza da obtenção de prazeres egoístas, inidividuais, passou apenas a ser “punida” quando desmesurada, evidente, e causadora efetiva de prejuízos ao todo. Mais adiante em seu texto, o filósofo ainda verificará que, de fato, mesmo a conduta “elevada”, agora “virtuosa”, terá também, na sua quase absoluta manifestação, raiz no mesmo princípio de prazer egoísta, na satisfação

obtida do ferramental do todo (elogio, orgulho). Desta forma, o vício original teria sido adestrado a incitar o comportamento virtuoso. Se Eugênia encontra-se mais vinculada àquele paradigma de classes, dedicada ao auto-aperfeiçoamento, Emílio é movido indubitavelmente por suas paixões – “eu preferia o ódio, o ódio, sim; mas a indiferença, acredite, é o pior castigo” (ASSIS, 2006, p. 127) – e interesses absolutamente egoístas, parece apontar mais para um maior domínio desse todo aparato Mandevilliano. Não se reprime de praticar atos “indignos”, desde que oculto o vício, como se tornar amigo do “marido” para se aproximar de Eugênia: “meu amor [seu interesse] é daqueles que não recuam ante a indignidade” (idem ibidem), nem de se utilizar de expediente constante do texto de Mandeville: a piedade, virtude verdadeira e até passível de existência sem raíz no egoísmo. Diz o filósofo sobre ela, retomando um tanto do que já disse Montaigne, quanto aos mais suscetíveis: Os espíritos mais débeis têm, geralmente, o maior quinhão dela [a piedade], razão pela qual ninguém é mais compassivo do que as mulheres e as crianças. [...] se trata de um impulso da natureza que não leva em conta o interesse público nem a nossa própria razão, tanto pode gerar o mal quanto o bem. Ajudou a destruir a honra de virgens e corrompeu a integridade de juízes; (1996, p. 85)

Pois é a piedade o impulso que ele (Emílio) busca em Eugênia para movê-la aos seus interesses: A idéia de que o coração de Emílio sangrava naquele momento, despertou em mim um sentimento vivo de piedade. A piedade foi um primeiro passo. “Quem sabe, dizia eu comigo mesma, o que ele está agora sofrendo? E que culpa é a dele, afinal de contas? Ama-me, disse-mo; o amor foi mais forte do que a razão; não viu que eu era sagrada para ele; revelou-se. Ama, é a sua desculpa” (ASSIS, 2006, p. 128)

E é esse, de fato, passo importante o qual dá Eugênia rumo a satisfazer os interesses de Emílio. O aparato que já vislumbramos de Hume nos ajuda a compreender no excerto a interação entre idéias e o surgimento de impressões de reflexão (não necessariamente baseada na percepção dos fatos, mas nas idéias acumuladas) que norteariam as posturas tomadas pela narradora, e a intensificação que se segue do caso de amor extra-conjugal. O sedutor ainda não revelado, astucioso e hábil nas artes de manipulação, e que é sobretudo livre dos compromissos e refreios da cultura de “autoaperfeiçoamento”, articulador de suas paixões, a ele cabe todo o mérito? foi Eugênia apenas uma vítima? “Fui talvez severa demais. Podia manter a minha dignidade sem abrir-lhe uma chaga no coração. Se eu falasse com mais brandura podia adquirir dele o respeito e a veneração.” (idem ibidem – grifo nosso)

4. Considerações finais Diríamos que, com o ferramental (corpus) disponível, não podemos responder com segurança à pergunta, nem era o propósito deste estudo fazer tal leitura. Pensando metaforicamente naquela indagação que deixamos encerrando a sessão sobre Montaigne, caberia dizer que, na verdade, não faz tanto mal cair na armadilha de Eugênia (de vítima da imaginação). Mal seria não ir mais a fundo na questão. Cremos que os três filósofos elencados trazem enriquecimento ao conhecimento do texto machadiano, tanto quanto este funciona como ilustração dos conceitos que aqueles formulam. E que ambos todos parecem convergir, como mais tarde se apontou A força da imaginação como precursor, para a ciência que conglobaria e aprofundaria a compreensão de todos os conceitos aqui trabalhados: a ciência da psiquê humana. Não mencionamos ainda os aspectos mitológicos que o conto cita, entre eles o Édipo e o Gênesis. Assim, o domínio de conceitos como Id, ego e superego trariam maior amplitude de compreensão à busca do prazer, o aceitável socialmente, e os mecanismos de controle. E toda a questão de culpa e da ausência dela, histeria e obsessão, certamente nos ajudaria a entender respectivamente Eugênia e Emílio. A palavra “psicopata”, tão em voga hoje em dia, é também uma das que nos ocorre. A própria opção da narradora por epístolas (denegando conversa direta com Carlotta) nos ensinaria um tanto sobre a verbalização da psicanálise, e a opção de ter um interlocutor que não pode argüir (como faria um terapeuta), nos faz também cogitar um tanto sobre que talvez a busca não seja de auto-descoberta, mas de auto-justificativa. Enfim, em se tratando de Machado de Assis, cremos que sempre haverá mais o que se possa extrair, mesmo decaídos numa frincha de uma sua armadilha.

BIBLIOGRAFIA ASSIS, Joaquim M. M. Contos fluminenses. São Paulo: Martin Claret, 2006. (Coleção a obra prima de cada autor) HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: Unesp, 2001. MANDEVILLE, Bernard. Uma investigação sobre a origem da virtude moral. In: BUTLER, J. et alii. Filosofia moral britânica. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. MONTAIGNE, Michel E. Ensaios – Livro I. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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