Conflito, moralidade e mobilidade no pastoreio sertanejo: sobre os cachorros que pegam criação

September 2, 2017 | Autor: Jorge Luan Teixeira | Categoria: Pastoralism (Social Anthropology), Sertão, Rural Anthropology
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CONFLITO, MORALIDADE E MOBILIDADE NO PASTOREIO SERTANEJO: SOBRE OS CACHORROS QUE PEGAM CRIAÇÃO * Jorge Luan Rodrigues Teixeira (Doutorando - PPGAS/MN/UFRJ) RESUMO Assim como o gado bovino, caprino e ovino, os cachorros são personagens importantes no cotidiano sertanejo: guardam as casas, auxiliam os homens no pastoreio dos rebanhos e são indispensáveis na perseguição de alguns animais e na proteção dos seus donos nas atividades de caça. Mas o seu estatuto é mais ambivalente do que pode parecer à primeira vista: alguns deles também atacam a criação (ovinos e caprinos) de vizinhos. Por que ocorrem esses ataques? Se nem sempre se presencia o ataque ao rebanho, como os sertanejos identificam o(s) cachorro(s) e o(s) seu(s) dono(s)? Como os criadores lidam com esse problema? O ataque e os caminhos comumente encontrados para a resolução do problema deixam ver alguns elementos da moralidade sertaneja e das práticas de mobilidade e conhecimento dos agentes implicados, assim como permitem destacar o papel desempenhado pelos animais na constituição de territórios rurais e de uma comunidade moral. O artigo explora dados da pesquisa de campo do mestrado que não estiveram presentes na dissertação e dá prosseguimento a questões que venho discutindo desde então. Palavras-chave: pastoreio; moralidade; mobilidade "Harmlessly passing your time in the grassland away/ Only dimly aware of a certain unease in the air/ You better watch out,/ There may be dogs about/ I've looked over Jordan and I have seen/ Things are not what they seem." -Sheep, Pink Floyd INTRODUÇÃO A casa de Evaldo fica no centro de uma grande propriedade rural localizada no município de Catarina, Sertão dos Inhamuns (CE). Ao redor da casa, voltada para o nascente, estão o curral do gado bovino, um dos açudes da propriedade (os fundos da residência dão para ele), outras residências e o grupo escolar. Uma algaroba sombreia                                                                                                                 *   Trabalho

apresentado no Seminário dos Alunos do PPGAS, realizado entre os dias 9 e 11 de dezembro de 2014. Agradeço aos valiosos comentários feitos por Marcos Carvalho e na ocasião. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada na Oficina "Mexendo com criação: (des)fazendo pessoas, casas, vizinhanças, territórios, fazendas, nomes e negócios", realizada entre os dias 14 e 15 de Agosto no Museu Nacional, sob o título "Notas sobre o estatuto ambíguo dos cachorros no sertão cearense".  

 

 

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uma porção do terreiro, que acaba por se confundir com o grande descampado à frente, que, por sua vez, se confunde com a estrada carroçal que passa ao lado da casa e corta a propriedade. É uma dessas típicas casas de fazenda sertaneja com alpendre, armazém e uma cozinha próxima ao quintal, onde os moradores criam algumas galinhas e, eventualmente, algum porco para o consumo familiar. Evaldo e a mulher moram sós: alguns filhos estão no "meio do mundo" e outros moram em sítios desse ou de outros municípios do estado. Evaldo é um morador 1

, isto é, vive "na terra dos outros", planta em cima do que não é seu, "pastora o alheio",

aquilo que é do patrão, o dono da terra. Quando mais jovem, já foi vaqueiro, cuidava dos animais do patrão, sendo remunerado por isso. Naquela tarde de março de 2013, chegamos, Pedro Sobrinho, também morador, e eu a sua casa. Vários homens estavam sentados no alpendre, uma ou outra moto estacionada no terreiro. "Vamo chegar". E chegamos: sentamos e tomamos parte na conversa que se desenrolava. Como eu já poderia supor, o assunto era a Seca (uma das maiores das últimas décadas), que matava os rebanhos, secava os açudes e minguava os já baixos lucros com a agricultura. Evaldo dizia que "os homens", que "tem estudo", tem uma "ciência medonha" e, segundo eles, seriam quatro anos de estiagem. As previsões deles iam, geralmente, no rumo certo. De todo modo, em matéria de Seca, primeiro Deus, depois as ajudas dos governos. "Se fizer umeno água e uma forraginha pros bruto, inda tá bom demais. Agora eu tô com medo de nem isso acontecer", disse Miguel da Bia, sentado ao meu lado. Magro, alto, chapéu preto de massa na cabeça, barba feita, chave da motocicleta na mão: eu não o conhecia. Ele não era de uma das propriedades mais próximas, como eu descobriria a seguir. Depois de alguns minutos de conversa descompromissada, como é de praxe nessas situações de interação, Miguel nos disse a que vinha:

                                                                                                                1   Ser morador não está no mesmo estatuto que ser "agricultor", "trabalhador rural" ou mesmo profissional (um pedreiro, um mecânico, etc), pois a morada é uma condição, como já havia observado Moacir Palmeira pensando sobre essa relação na Zona da Mata pernambucana: "É só quando estabelece um 'contrato' particular que o liga a um senhor de engenho particular [um patrão, um fazendeiro, no sertão cearense], isto é, é só quando se põe em relação com, que o trabalhador potencial se torna um morador" (PALMEIRA, 1977, p.104). Nos Inhamuns, e nos sertões cearenses como um todo, o morador pode ser também vaqueiro. Nesse caso, ele é remunerado ou na sorte (uma proporção dos animais nascidos, um quarto ou um quinto, é sua), ou em dinheiro (o salário, que nunca é um salário mínimo). Tratei mais demoradamente da relação de morada nos Inhamuns na dissertação de mestrado (TEIXEIRA, 2014).  

 

 

3   MIGUEL: Rapaz, eu ando é caçano uns cachorro pegador de criação, mas já rodei por todo canto hoje e não achei o desgraçado que pegou minhas ovelha hoje ainda. PEDRO: Pegou hoje, Miguel? MIGUEL: Pegou hoje... PEDRO: De dia? MIGUEL: De dia. PEDRO: Foi mermo, rapaz?! MIGUEL: Esturdia, na Semana Santa, mataram seis de dia... PEDRO: Rapaz... MIGUEL: Aí hoje deram outra botada. Aí eu matei um, atirei noutro, baleei, mas o peste não morreu, eu matei ele hoje. Era do Firmino ali. Aí eu conversando, a mulher [dele] disse: 'Não, ele chegou baleado aqui mesmo, mas num morreu, não. Se você quiser matar, eu mando pegar pra cê matar, porque quando ele melhorar ele vai de novo', E vai mesmo, pois pegue essa peste que eu vou matar agora. Fui e matei. Aí ando caçando o outro, que o que pegou hoje é um vermêi, do fio do lombo arroxeado, quase preto. Cachorro novo, não é cachorro vei, não, cachorro novo: um frangão de cachorro, mas é um bicho graúdo, mais ou menos do tamanho daquele ali. Mas já cacei nessas casas... Vim por o Alto Alegre, fui lá no Edmilson do finado Chicô Vei, voltei, peguei as casas do Fechado aqui, corrigi tudo e não encontrei o desgraçado. Eu não sei se ele é daqui, do lado das Marrecas, de onde é, não: sei que dei o tiro de longe demais e eu vi ele direitinho, porque era num baixio, como daqui naquele poste de lá. Aí quando ele correu, afinou a carreira [ganhou velocidade], eu corri pra porteira onde ele ia passar, mas ele passou de mim com mais de trinta braças, mas correndo, eu atirei, não dava pra pegar mesmo, não... E só chumbo na espingarda. Tivesse uma bala, talvez ainda tivesse [acertado]...

Criação é o nome dado no Sertão cearense aos ovinos e aos caprinos. Um "cachorro pegador de criação" é aquele que ataca esses animais, podendo matá-las quando conseguem "sangrá-las", isto é, quando mordem "no gogó", no pescoço. Os cachorros bebem o sangue e, às vezes, comem alguma parte do animal quando têm tempo para isso. Os cachorros que pegam criação podem pertencer a vizinhos ou a pessoas que morem longe. Eles também podem ser reconhecidos como pertencentes a caçadores que, circulando por muitas propriedades, muitas vezes sem o conhecimento dos proprietários, os utilizam para a sua própria proteção na mata (há onças nessa porção do sertão) ou para perseguir e acuar tatus e pebus, animais cuja carne é muito prezada. Das casas que visitei na pesquisa de campo, diria que a maioria delas tinha algum cachorro, e o tinham por razões variadas: o uso para caçar, a companhia, a proteção da residência, a ajuda no pastoreio e no campo 2 ou todas elas juntas.                                                                                                                 2   Campear é a atividade que os vaqueiros fazem na mata encourados, i.e., a perseguição e a pega de bois fujões para conduzí-los de volta à propriedade. No campo, um "cachorro bom de luta" é de muita utilidade, "trabalha" acuando os bois, o que levaria a um vaqueiro baiano Isídio José da Costa a dizer: "Sei que tenho um cachorro que me adjitora [auxilia] bem, abaxo de Deus” (QUEIROZ, 1987, p.80); ou Sival, morador de Catarina, que "O cachorro é mais vaqueiro que o vaqueiro".

 

 

4   Não é difícil perceber porque tais animais são uma ameça para os sertanejos. A

criação e o gado possuem, desde os primórdios da colonização e da ocupação dessa vasta porção interior do território brasileiro, grande centralidade econômica (CAPISTRANO DE ABREU, 1988; MENEZES, 1995). Os vaqueiros remunerados na sorte veem na criação desses animais e nos ganhos proporcionados por ela um meio de ter "progresso", de melhorar de vida e, quem sabe, comprar uma propriedade para si. A literatura sobre o meio rural brasileiro destaca como esses animais são uma reserva de capital para vaqueiros e demais trabalhadores rurais (JOHNSON, 1971; HEREDIA, 1979; RIBEIRO & GALIZONI, 2007). Um cachorro não é apenas um cachorro, ele é um cachorro de alguém 3. Foi por saber disso que Miguel saiu da sua casa, distante do sítio em que estávamos, procurando sinais do animal que atacara a sua ovelha. Parou nas casas, conversou com as pessoas e chegou a reconhecer o cachorro que em outra ocasião atacara alguns bichos seus, matando-o. Fazendo-o, Miguel atestava o que autores como Ellis (1996), Comerford (2003), Pissolato (2007), Ingold (2011) e outros já haviam mencionado em distintos contextos etnográficos e com diferentes propósitos e ênfases: o próprio movimento é uma forma de conhecimento, mas também a consciência do movimento dos outros, na medida em que ele pode ser recriado narrativamente para os que não seguiram os mesmos caminhos. Naquela conversa no alpendre da casa de Evaldo, diferentes linhas de movimento e conhecimento de cada pessoa presente se entrelaçavam, se implicavam mutuamente e se integravam (INGOLD, 2011). Foi por isso que Miguel descreveu minunciosamente o cachorro que viu atacar sua ovelha: algum dos presentes poderia reconhecê-lo como pertencente a alguém. Os

cachorros,

assim

como

os

humanos,

poderiam

ser

mapeados

(COMERFORD, 2003), aparentados 4 (TEIXEIRA, 2014), reconhecidos como ligados                                                                                                                 3   Felipe Vander Velden já havia observado isso ao pensar sobre o estatuto desses animais entre os Karitiana de Rondônia: "É certo que todos os animais parecem ter seus donos — diz-se que tal cachorro 'é de fulano' ou 'sicrano tem tal cachorro' — ou, pelo menos, estar ligados a alguma casa: de fato, as pessoas parecem poder identificar qualquer animal pelo seu 'proprietário', muitos ainda podendo ser referidos pelo seu nome próprio" (2012, p.117). Mesmo quando longe das suas casas, os cachorros poderiam ser identificados ou pelo seu nome, ou pelo nome do seu dono.   4   O uso da noção de aparentamento aqui difere daquele de Vander Velden (2012, p.169), que emprega o termo no sentido de uma consanguinização ou familiarização - o que está em jogo é o processo de se tornar parente. Conforme explicitado anteriormente (TEIXEIRA, 2014), no Sertão dos Inhamuns, aparentar é lançar mão dos vínculos de parentesco para se fazer conhecer ou para tornar alguém conhecido. É a face pública do parentesco e da pertença familiar (a uma coletividade ou a um parente em específico) que, por meio de um "saber coletivo" (MARQUES, 2005, p.179), são expressas e possibilitam a identificação de um indivíduo (que, ao fim e ao cabo, aparece como mais compósito do que se poderia supor inicialmente).  

 

 

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a uma determinada pessoa, a uma determinada casa, a uma determinada propriedade 5. De modo similar ao "Edmilson" que era (parente) do "Chicô Vei" e foi assim reconhecido, aparentado, na narrativa de Miguel - ele próprio aparentado a sua mãe, Bia -, alguém poderia dizer: o cachorro de Fulano ou de Sicrano. E o que se faz ao descobrir que o cachorro pegador de criação pertence a Fulano ou a Sicrano? Ele pode ser morto, como ocorreu com o cachorro de Firmino. Mas por quê? O que há por trás dessa decisão extremada? Para oferecer uma solução é preciso pensar sobre o estatuto dos animais no sertão e destacar o significado moral de um velho adágio, um "dizer", dessa região do país. O INCONFORMISMO DOS CONFORMADOS Ao falarem sobre os animais, por vezes os sertanejos se referem a eles por meio de uma categoria: bicho bruto ou, simplesmente, bruto. Durante a Seca, muitas pessoas costumavam pedir aos céus um mínimo de chuva que pudesse "fazer água" nos açudes e "criar pasto" para os brutos, para "os bichim". Pensar sobre o significado dessa categoria é fundamental para o que é aqui discutido, na medida em que ela expressa as razões que levam as pessoas a agirem como agem em relação àqueles cachorros; e mais do que isso: a visão do ser animal que está em jogo aí contribui para que se entenda o sentido de uma série de atividades, expectativas e concepções que dizem respeito a todos os animais, domésticos ou não - e mesmo aos humanos. Mas no esforço de nos fazermos compreender (ou, antes, de descrevermos como os interlocutores compreendem), a discussão de uma categoria nativa pode cair no risco do esquematismo e de uma visão marcada que não correspondem aos nuances próprios do ordenamento do mundo feito pelos interlocures. Há aqui uma sutileza de ordem metodológica envolvida: perguntar diretamente sobre o significado de "bicho bruto" pode acabar levando a formulações "preto no branco" que à experiência e ao engajamento cotidiano, tingidos de diferentes tons de cinza, soariam estranhas ou pelo menos rápidas demais, superficiais.                                                                                                                 5   Diferentes pesquisadores notaram como o parentesco (assim como o território, a reputação e a política) é um idioma para a localização e o mapeamento das pessoas (MARQUES, 2002, 2013; COMERFORD, 2003; CERQUEIRA, 2010). Embora no contexto etnográfico por mim estudado não esteja em jogo a produção de mapas genealógicos, poderíamos dizer que também aqui "The genealogical framework provides paths for both connecting and disconnecting people in many virtual directions", ou seja, "Kinship knowledge functions here as a guide, allowing the person to move around safely in territories where social relations are more or less recognized" (MARQUES, 2014, p.729).  

 

 

6   Quando perguntei, diretamente, a dois moradores qual era o significado de tal

expressão, percebi que a estranheza não teria sido tão menor se houvesse perguntado o que significava "nuvem" ou o motivo de uma vaca se chamar "vaca": A: Eu acho que o bicho bruto que chama, no modo de falar, eu acho que é porque... O batizado é que é humano e o bruto [não]... Eu acho que é mais ou menos assim, né? O bicho bruto é porque ele não é [batizado]... B: Nós, às vezes, até chega a pensar que raciocina mais, mas não é, não. O bruto tem uma noção medonha das coisas, pro que ele entende, sabia? O bruto tem uma noção medonha das coisas... Nós é que não entende direito [risos] A: Exatamente. Em tudo Deus deixou a defesa, [para] tudo no mundo [Deus] deixou a defesa, né? A defesa de... de um bruto, certos brutos, o que é? É o faro, ele não sabe falar, mas ele sente. B: Sente, sente. A: Tem um... um cachorro! Pra que um bicho mais...? É um bicho preseguidor demais, né? Por causa do faro dele. Mas já tem o outro bruto que ele vai perseguir que se sentir ele também, [se] estiver do jeito do vento, ó: [faz um gesto de fuga] casca fora! Já a defesa dele é aquilo ali. É assim.

Dois pontos se destacavam na formulação de ambos: o batismo e a noção de entendimento. Nos dois casos, os brutos eram definidos em relação ao humano. Se os homens têm batismo, os brutos não o têm, é o que faz deles brutos 6. Para além disso, ainda que a esperteza e a destreza dos animais motivem comentários e discussões, o seu entendimento é mais restrito do que aquele do homem. "O homem é o que ele pensar em fazer", como me diria Sival (um morador de Catarina), mas não o bruto, que tem uma "noção medonha das coisas", mas para aquilo que ele entende, para o que foi designado por Deus. Assim, se um tatu tem modos de fugir de predadores ao entrar em um buraco que ele mesmo cavou, ou se um joão-de-barro constrói a sua própria casa, é porque, de partida, "as coisas de Deus são muito bem feitas". Se o tatu se esconde, se o cachorro fareja, se a vaca foge de quem sabe que vai lhe fazer mal, é porque essa é a sua defesa (a sua "noção medonha"), como também observaria Fabião das Queimadas, um                                                                                                                 6   A etnografia de Clarissa Lima entre os Xukuru da Vila de Cimbres (PE) traz indicações importantes para discutir a noção de entendimento e a categoria bicho bruto. Uma de suas interlocutores marca o bastimo como a transformação que dá estatuto humano às crianças, que transforma "pessoas" em "humanos": "A criança quando nasce ela é bichinho, mas ela tem alma. Por que ela é um bichinho? Porque ela não recebeu os santos olhos. Ela é uma pessoa, mas não é um ser humano, só é ser humano quando recebe o sinal da cruz. E isso não faz com bicho bruto. Ele tem uma alma que é diferente da nossa [o "zumbi"], que não é de ser humano" (LIMA, 2013, p.172). Uma diferença significava entre os dois contextos etnográficos é o fato de não ter ouvido os sertanejos se referirem às crianças não batizadas como bicho bruto, o que os Xukuru fazem (ibid, p.169). De todo modo, houvi relatos de que os recémnascidos que, antigamente, morriam sem batismo eram enterrados em um cemitério à parte (eles são "anjinhos"), como que marcando sua situação intermediária, sua não-completude enquanto seres humanos, enquanto seres católicos. Não tenho informações, contudo, se os brutos têm alma - seja ela a mesma dos humanos, ou uma específica, como entre os Xukuru.  

 

 

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conhecido poeta e rabequeiro potiguar, no Romance do Boi Mão de Pau, em que o próprio bruto narra a sua história de perseguição e justifica a sua recalcitrância, o seu inconformismo: "Sei que não tenho razão,/ Mas sempre quero falá,/ Porque além d'eu estar preso/ Querem me assassinar.../ Vossamercês não ignorem;/ A defesa é naturá" [grifo meu] (CÂMARA CASCUDO, 2005, p.122) . E "naturá" no sentido de que assim é desde sempre, que isso é constitutivo do bruto. Os brutos, contudo, estão mais próximos dos humanos do que se poderia supor. De um lado, porque ambos têm entendimento, embora o dos primeiros seja mais restrito, como já observado, e, de outro, porque essa falta de entendimento, ou esse entendimento reduzido, os aproxima das crianças. Diferentes situações em campo me fizeram perceber isso. Quando Antônia, uma senhora muito religiosa e engajada nos grupos de oração da localidade em que vive, se queixava e pedia a intercessão divina para mitigar os efeitos da estiagem ela acabou aproximando brutos e crianças: Deus deveria mandar chuva e "Senão por nós, que não tem merecimento 7, pelo menos pras crianças e pros brutos". O "nós" de Antonia era direcionado aos adultos, homens e mulheres, que teriam conhecido o pecado e dado demonstrações de que não merecem tanto a piedade divina. As crianças não têm entendimento porque são inocentes, mas, conforme cresçam, elas sairão desse estado de inocência para um de conhecimento das coisas do mundo. Mayblin (2010, p.6) observou nessa percepção o paradoxo moral constituinte do cristianismo, que se fundaria na perfeição do divino e na imperfeição do humano: como é possível preservar a inocência e guardar a distância dos valores mundanos ao mesmo tempo em que se vive uma "vida produtiva", casando, tendo filhos, pecando, etc? Se, na criação dos filhos, os vínculos são construídos, o parentesco passa por um processo de vir a ser (CARSTEN, 1996, p.12) - em que o trabalho, a educação, o cuidado e a comensalidade são fundamentais -, esse processo "temporalmente estendido" (SAHLINS, 2013) coincide com o desenvolvimento do entendimento das crianças - visa torná-las "entendidas". Uma situação demonstra como alguma ações dos filhos pequenos são vistas pelos pais como uma evidência da sua "falta de entendimento". Quando, tarde da noite, um dos filhos mais novos de Cícero chorou                                                                                                                 7  A noção de "merecimento" também foi usada por outra interlocutora de Lima (2013, p.173) para marcar essa distância entre o divino e o humano, a perfeição e a imperfeição morais: "Nós não têm merecimento de ver a Deus, mas ele vê que estamos chamando com eles."  

 

 

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pedindo para dormir na casa do tio na companhia dos primos, o pai tentou de todas as formas convencê-lo de que isso não seria possível. Como a criança continuava chorando e pedindo, Cícero olhou para mim e, rindo, comentou: "É engraçado, né? Criança não tem entendimento". A inocência do filho impedia que ele tivesse entendimento, que ele percebesse que diversos fatores conspiravam contra seu desejo. Se, portanto, a chuva deveria vir pelas crianças e pelos brutos, era porque eles não fizeram nada para merecer aquele sofrimento, porque são inocentes 8. Há, contudo, outro aspecto da categoria bicho bruto que não foi mencionado até aqui, mas que é fundamental para entender as ações que tangem aos cachorros pegadores de criação: a dimensão moral dessa categoria e do entendimento. Se o uso de entendimento expressa diversas vezes a (in)existência de uma lógica racional, também expressa a (in)existência de uma lógica, uma razão, de ordem moral. Quando João Cabral de Melo Neto se pergunta "Quem já encontrou cabra que fosse animal de sociedade?" em um dos seus poemas (2008, p. 232) é justamente a tal dimensão que ele está se referindo. A cabra, que guarda o "arisco do animal selvagem" é viva demais para não ser, mesmo quando solícita aos desígnios e à vontade do homem, "o reduzido irredutível, o inconformado conformista" (ibid, ibidem). Aos olhos dos sertanejos, o que o poeta pernambucano disse sobre as cabras poderia ser estendido, em maior ou menor grau, para todos os animais domésticos: há uma escala de brutalidade em jogo, há brutos que são potencialmente mais dóceis (como os cavalos e os gatos) do que outros (os porcos ou mesmo as cabras). Ter entendimento é, em certo nível, respeitar códigos sociais e morais e uma certa etiqueta no trato com os outros. E, nesse sentido, os bichos são realmente brutos: não se submetem facilmente, sem um "inconformismo conformado", à vontade humana. Os brutos têm a sua própria agência, a sua "capacidade de movimento" 9 que, não raro, vai contra às intenções humanas. Um dia, Pedro Sobrinho e eu fomos a uma capoeira para trazer as ovelhas de volta ao curral em que dormem (o motivo de ser                                                                                                                 8   Cabe ressaltar, contudo, que a interação com os brutos, a explicação e a interpretação das suas ações não passa, necessariamente, pela referência ao divino. É em contextos específicos (como aquele da pergunta do etnógrafo ou de uma grande Seca, por exemplo) que essas referências e dimensões são chamadas à cena. Agradeço a Graziele Dainese por essa observação.   9   Ao me referir a uma agência animal, aos bichos como sujeitos não necessariamente sujeitos à vontade humana, estou pensando com Tim Ingold sobre a "consciência" dos animais como uma capacidade de movimento: "Like us, it [o animal] is responsible for its actions, habing caused them to happen, even though it lacks our human ability to render an account of its performance, whether beforehand as a plan or retrospectively as a report. [...] Consciousness is no longer to be seen as a capacity to generate thoughts, but as a process or movement, of which thoughts are an inessential by-product" (INGOLD, 1994, p.9).

 

 

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preferencialmente assim se verá adiante), mas um borrego parecia não estar disposto a retornar: ele encontrou um buraco na cerca e escapuliu para dentro da mata. Sobrinho retirou algumas estacas para aumentar a fresta e entrou na mata para tangê-lo de volta à capoeira, mas o bicho acabou passando direto pelo buraco, ignorando-o, ao invés de nele entrar. Com a tentativa frustrada, o vaqueiro olhou pra mim e disse: "A gente chama bruto é por isso: não tem entendimento, ficava muito mais fácil ele passar aqui, eu abri a cerca pra ele passar, mas ele foi direto". Não por acaso, quando uma pessoa é indócil, grosseira e ignorante, costuma-se dizer (talvez no Nordeste brasileiro como um todo) que se trata de um "bicho", ou uma "pessoa", "bruto". Não respeitar certos códigos, não ser sociável, aproxima esses "bichos brutos" dos bichos brutos, revelando mais uma vez a face moral da categoria. O "inconformismo" animal se deixa ver na luta dos vaqueiros com os gados bovino, caprino e ovino 10. A luta com o primeiro talvez seja mais emblemática porque pode assumir a aparência de um combate (de uma luta contra o gado) quando os vaqueiros, com sua armadura de couro, perseguem montados bois fujões na mata, desviando de galhos e tratando de derrubar, aprisionar e conduzir os brutos de volta ao seu lugar. Quando o boi "se vira" - i.e, quando volta a cabeça para o vaqueiro, ameaçando-o com as "pontas", os chifres -, os vaqueiros não hesitarão em usar um ferrão (uma espécie de lança), paus ou peixeiras para sangrá-lo. O jeito é "entrar na vida do boi" (QUEIROZ, 1987). Essa proximidade entre humanos e brutos se deixa ver em um ditado popular que eu, natural do centro-sul cearense, já havia ouvido algumas vezes. Ele toca, precisamente, na matéria deste artigo. Esse "dizer" é citado aqui nas palavras de Oswaldo Lamartine de Faria (1980, p.218), folclorista potiguar: "Homem que bebe e joga/ Mulher que errou ["deu"] uma vez/ Cachorro que pega bode/ Coitadinho desses três". Esses são fatos conhecidos da moralidade sertaneja e o que eles destacam é uma característica, uma qualidade de ordem moral, que pode estar presente tanto em humanos quanto em brutos: o vício. Assim, se o homem que bebe e joga com frequência (baralho, sinuca, etc) dificilmente largará tais hábitos, também o cachorro que pega bode, mas com um agravante para o segundo: o entendimento da humanidade                                                                                                                 10   E também se deixa ver em certos qualificativos dados a alguns animais que apresentam condutas reprováveis: a vaca "velhaca" - que foge do vaqueiro e "esconde o leite" para não deixar ser ordenhada - o bode "ladrão" - em quem é preciso colocar uma canga para que não passe por buracos na cerca - o burro "ladrão" - que os donos devem "piar" (prender duas da patas por uma corda, uma espécie de algema) para reduzir a sua capacidade de movimento.  

 

 

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é mais largo do que aquele da animalidade, i.e., o cachorro dificilmente deixará de atacar criação, faz parte da sua natureza. É por isso que fazia todo sentido para Evaldo, ao escutar a narrativa de Miguel da Bia, mencionar que o "Cachorro vei tá viciado, rapaz..." A impressão que tive ouvindo diferentes relatos sobre tais cachorros era que não se sabia bem de onde vinha o seu vício, pois (1) ele não é estimulado por seus donos (pelos menos se espera que não), não é o resultado de uma espécie de treinamento encabeçado por eles, e (2) não são todos os cachorros que atacam criação, sejam eles de caçadores (de quem é requisitado maior agressividade) ou não. Nem tudo tem (ou deve ter) explicação, aparentemente. Mas uma coisa é quase certa, como observaria outro presente no alpendre: "Cachorro que pega criação, [o jeito] é matar. Cachorro que pega criação, ele não deixa nunca". Com o que, logo em seguida, o dono da casa concordaria: "Eu pissuindo um cachorro [e] ele pegando criação, eu fico com raiva é se o dono da criação não matar logo. Não tem conversa, não." SOBRE O DESTINO DOS CACHORROS (E DOS HOMENS) Em que reside a ambivalência dos cachorros? Tal ambiguidade não é, definitivamente, propriedade exclusiva deles

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. No seu caso, tal estatuto ambivalente

vem do fato de que a sua agressividade (que é prezada na guarda das casas, na caça e na luta no campo) pode se voltar contra agentes (humanos ou brutos) contra os quais não se deveria dirigir. O fato dos Karitiana se referirem ao cachorro como obaky by'edna ("onça de criação"), como jaguares, aponta essa dimensão potencialmente perigosa do animal: entre a casa, a aldeia, o doméstico, e o mato, o não-domesticado. Isso explicaria as atitudes ambíguas direcionadas a eles: valorizados, mas também fonte de desconfiança e, por vezes, alvos de agressão, na medida em que eles projetam na aldeia aquilo que é marca da floresta, uma potência predatória e não perfeitamente controlável.                                                                                                                 11   Essa ambivalência do animal foi percebida por diferentes autores que pensaram sobre os povos indígenas das Terras Baixas sul-americanas. Philippe Erickson observa o "estatuto altamente ambíguo" (2012, p.18) dos wiwa (xerimbabos) entre os Matis, na medida em que eles foram "implantados" em um espaço, doméstico, controlado pelos humanos. A familiarização muda o estatuto do animal, de sorte que o xerimbabo é um contrapeso semântico à caça: eles devem desanimalizados, o que passa por não serem mais conhecidos pelo nome de seu ancestral de origem, mas também pela comensalidade, i.e., pela oferta de uma "alimentação cultural" a eles. Carlos Fausto veria no "tratamento oscilante" conferido aos animais familiarizados a persistência da perspectiva do outro, de sorte que a adoção dos xerimbabos, e de cativos de guerra, não leva a uma filiação completa: "À dupla-face do mestre corresponde a face-dupla do xerimbabo: ele é um outro e jamais deixará de sê-lo completamente" (FAUSTO, 2008, p.352).  

 

 

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A "presença anômala" dos cachorros insere um "[...] poder inconstante no seio da sociabilidade humana, exterior interiorizado que se deve admirar, mas, ao mesmo tempo temer, e manter sob estrito controle, exterior que é preciso incorporar, mas processo sempre regulado, tenso e potencialmente destrutivo" (VANDER VELDEN, 2012, p.303). No Sertão, ao mesmo tempo em que "cachorro bom de luta ajuda demais" e esse animal é "muito amigo do homem", há quem diga que "cachorro é bicho amaldiçoado", supreendendo-se com o seu faro apurado e a sua capacidade de movimento - saindo de uma casa para atacar ovelhas de uma propriedade distante alguns quilômetros. Se a mulher de Firmino não colocou empecilhos para que Miguel da Bia matasse o cachorro que atacou sua criação anteriormente, esse nem sempre é o caso. São muitos os que sabem que "coitadinho" é o cachorro que pega bode, permitindo que seja morto, pois, como bruto e como viciado, não deixará de fazê-lo. Mas nem todos os donos são tão solícitos assim. Miguel conta outra história e os seus desenvolvimentos para ilustrar essa conduta vista por alguns como errada: Mas tem gente que não quer matar, não. Num ano desse, os cachorro deram [atacaram] numa criação minha lá. Um do Tonho, um do Zé Evilásio e outro do Françuá. Aí... mataram sete lá numa boca de noite. Aí no outro dia eu fui na casa deles lá. Os menino se deram por pronto para matar logo, mas o vei Tonho Gomes botou logo foi uma briga pra fora. Nem matava o cachorro, nem pagava nem um centavo. Não, seu Tonho Gomes, o senhor pode criar seu cachorro, o senhor tá dizendo que não vai pagar a criação, mas o senhor vai pagar a criação e vai ser bem pago, não vai ser barata, não. Aí voltei pra casa, peguei a moto e fui pra rua. Aí ele foi pra rua também [no mesmo dia]. Aí, por lá, não sei quem foi que disse a ele que me viu conversando com o delegado na delegacia, aí o vei voltou cedo: 12 horas ele já tava em casa pra matar o cachorro. Mas pegou o cachorro e mandou trazer cá pra trás daquela casa vea da finada Paizinha ali, pra matar ali pra ninguém saber que ele tinha matado. Aí tinha um rapazim que morava mais eu, Né Filho. Aí ele tava trabalhando ao Osvaldo da Marluce - trocando um dia [de serviço] mais ele -, aí quando ele vinha foi na hora que os cabra ia levando o cachorro pra trás da casa vea pra matar, aí ele disse: 'Hei, Miguel, o vei disse que não matava o cachorro, não, mas matou foi cedo: de umas doze e meia pra uma hora eu vinha da roça. Mas levaram lá pra trás da casa vea da Paizinha, pra matar lá pra você num saber que eles tinham matado', digo: Foi?, 'Foi', Não, mas se ele não matasse eu achava melhor, que o negócio já tava bem arrumado pra ele: pra ele pagar as sete criação e se responsabilizar por aquelas que sumisse daquele dia pra frente.

Depois de mapear os cachorros que haviam matado sua criação, Miguel se dirigiu até a casa dos seus donos. Se dois deles não colocaram problemas em dar a solução comumente encontrada nessas situações, esse não foi o caso de Tonho Gomes. Quando um cachorro pega uma criação e se reconhece ele como pertencente a alguém, há algumas formas de responder ao problema. A primeira delas é matar o cachorro, mas  

 

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se o dono se recusar a fazê-lo, ele deverá arcar com o prejuízo do criador (a segunda solução). Ora, se "cachorro que pega bode" ou ovelha nunca para de fazer isso - se ele se vicia -, é provável que assim aja novamente, trazendo mais prejuízo ou para o mesmo criador, ou para outros. Como o cachorro é um bruto, como não tem entendimento, o dono não tem culpa do mal feito pelo bicho; mas se o dono não se desfaz do cachorro depois de saber do ocorrido, ele estará assumindo a responsabilidade pelos atos do bicho. Nesse caso, se o prejuízo não se paga com o sangue do cachorro, se paga com o dinheiro do dono, e assim também se pagará nas outras vezes em que a criação for atacada. Pedro Sobrinho me contou uma história ocorrida nas redondezas de onde mora que ilustra o mesmo e demonstra outra solução encontrada pelo dono do pegador de criação: a mudança do animal. Um motivo que faz com que a criação deva, preferencialmente, dormir presa, no curral, e não nas capoeiras e mangas, é a possibilidade dela ser atacada durante a noite por cachorros de caçadores (que circulam muito com os bichos) ou de vizinhos. Ao todo, treze criações, dormindo no pasto, haviam sido atacadas por cachorros em dias diferentes. E um cachorro "profissional": ele mordeu na "sangria", "descobriu a veia", e nem sequer comeu uma parte dos bichos, apenas "sangrou". O filho de Sobrinho ouviu um latido na mata e o reconheceu como sendo do cachorro de Naldo, filho de Evaldo. Um dia, ao ir para a manga ver as ovelhas, o morador se deu conta de que outras duas ovelhas estavam mortas e outras duas muito machucadas - "só vivas". Sobrinho percebeu as pegadas do cachorro ladeando a cerca e também um rastro de botas, indicando, segundo ele, que o dono do bicho ou estava junto no momento do ataque, ou chegou em um momento posterior, impedindo que o cachorro terminasse o serviço com as outras duas ovelhas (alternativa que julgava mais provável) 12. Dias depois, Sobrinho encontrou Naldo, de quem já desconfiava, em uma roça (o terreno do patrão de um "faz extrema" com o terreno do patrão de outro). Naldo sabia demais sobre o ataque: além de citar o ocorrido precisou o número de cabeças mortas. Aos olhos de Sobrinho, essa era uma evidência quase inconteste de que ou Naldo estava presente, ou que sabia que era o seu cachorro aquele que tinha atacado. Dando uma indireta, Sobrinho disse para Naldo que sabia que o cachorro e o seu dono não eram de longe, mas de perto: mencionou o rastro das botas para comprovar sua teoria. Ao ouvir                                                                                                                 12   As observações e as inferências de Sobrinho se assemelham ao que foi percebido por Rebecca Ellis para o caso dos Tsimane da Bolívia: "People know and experience the world around them through their bodily presence in it. Bodies furthermore leave their mark; they imprint their implications upon the world" (1996, p.23). E que são as pegadas senão marcas da presença corporal, do movimento, no mundo?  

 

 

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isso, Naldo teria ficado mais desconfiado do que cachorro em dia de mudança - para mencionar outro "dizer" nordestino no que tange a esses bichos. Curiosamente (ou não), nos dias que se seguiram, o cachorro de Naldo ficou preso em casa: "[A gente] Só ouvia era o latido do bicho amarrado". Quando foi solto, ele comprovou a veracidade do adágio sertanejo: saiu do terreno em que o dono vive e atacou a criação de Zezé, pequeno proprietário residente em um sítio distante uns poucos quilômetros. A mulher de Zezé o acordou no meio da noite - o cachorro da casa e as próprias ovelhas "alarmaram", alertando os donos sobre o que ocorria -, mas quando o esposo saiu, desarmado, o cachorro já havia matado algumas cabeças. Dias depois desse ataque, o cachorro se dirigiu a outra propriedade durante a noite, atacando as ovelhas de outro criador. Quando se deu conta, o proprietário abriu a porta da casa já com a espingarda em punhos. Eram dois cachorros: um deles foi baleado enquanto pulava a cerca e, ferido, ficou por lá mesmo, o segundo, o de Naldo, fugiu. E se era de Naldo, e não de outro, era justamente porque o criador o viu e o reconheceu como sendo do morador do terreno vizinho. Pela manhã, como é de praxe, ele foi até a casa de Naldo e contou o ocorrido apresentando as duas alternativas citadas acima: ou a criação era paga, ou o cachorro era morto. Nem um, nem outro: Naldo acabou dando o bicho para outra pessoa, residente num sítio distante. Não houve jeito: o cachorro atacou novamente na localidade para a qual havia sido enviado, encontrando, só então, o fim que tem os cachorros que pegam criação. A última solução aqui apresentada é a mais controversa de todas (e se o é, é devido aos efeitos não previstos que pode produzir): a bola. A bola é feita com sebo (ou carne) e veneno (comumente, para ratos). Na surdina, na calada da noite, vai-se até o local desejado (por vezes, o terreiro ou as imediações da casa em que está um cachorro pegador de criação) e as bolas são jogadas. Se a ação cumpriu o desejado, saber-se-á, possivelmente, já no próximo dia quando as notícias, que andam ligeiras, chegarem aos ouvidos de quem jogou as bolas: a morte do(s) cachorro(s) que pega(m) criação, vitimado(s) pelo veneno. Com o faro apurado que tem (afinal, "cachorro é bicho amaldiçoado"), o bicho fareja a bola de longe, caso ela tenha sido colocada contra o vento, e vem para comê-la. O problema é que jogar bolas é quase como descarregar uma arma no escuro: nunca se sabe ao certo quem acabará matando. Um grande criador, entre envergonhado e rindo, me contou sobre um cachorro que engoliu a bola que jogou para depois vomitá-la. Resultado: uma porca do dono da casa, que era seu morador, acabou comendo a armadilha e morreu.  

 

14   Cerca de um ano depois da visita de Miguel da Bia à casa de Evaldo, eu fiquei

sabendo por Pedro Sobrinho que, no dia seguinte àquele, as bolas foram a solução encontrada por ele; mas, no julgamento de Sobrinho, o criador teria feito algo muito errado, pois muitos cachorros "inocentes" também teriam sido envenenados (dentre eles, o de um genro de Sobrinho, um cachorro que era usado pelo dono para caçar). Assim como há certa "ambiguidade residual" no que tange à identidade do ladrão de ovelhas cretense (HERZFELD, 1988, p.192), também há dúvida, imprecisão, sobre qual cachorro-dono fez o mal feito, caso o bicho não tenha sido flagrado no ato veja-se, por exemplo, a suspeita que Sobrinho nutria em relação a Naldo. Se, como observado acima, caminhar

é uma forma de (re)conhecimento, a mobilidade, o

movimento, fornece meios para tentar dissipar a dúvida e essa "ambiguidade". E assim como a retaliação por parte do criador roubado o denuncia (ibid, ibidem), as pessoas da vizinhança e o(s) dono(s) do(s) cachorro(s) morto(s) não terão dificuldades para identificar o contra-ataque (as bolas) como uma resposta daquele que fora atacado antes, ainda que, geralmente, não tenham meios de comprovar, "provar", tal ação realiatória. CONCLUSÃO Os cachorros me interessam porque interessam aos sertanejos, mas também me chamam atenção porque ao investir na sua agência e nas atitudes direcionadas a eles as relações entre os homens, e dos homens com o território, passam a ser vistas por outro ponto de vista, são deslocadas, deixando ver elementos da moralidade e da socialidade sertanejas. É, também, a noção de "comunidade", cara a diversos estudos rurais na sociologia e na antropologia, que é complexificada. Fiz menção acima à circulação de informações e ao movimento como uma forma

de

conhecimento.

Também

mencionei

as

práticas

de

mapeamento,

aparentamento e recriação narrativa que acompanham tais movimentações. O que fundamenta, justifica, essas formas de interação é a dispersão geográfica, uma dispersão que não é impeditiva: as pessoas, parentes ou não, vizinhos ou não, se relacionam apesar da (ou, mais propriamente, na) distância. Mas essas formas de interação e conhecimento também evidenciam algo mais. Assim como ocorre entre os pastores semi-nômades estudados por Campbell (1964), poderíamos pensar que a circulação dessas informações, istórias (fofocas) e julgamentos evidencia a existência de uma  

 

15  

comunidade

13

, um coletivo que não partilha apenas as mesmas estradas e cercas, mas

também uma série de práticas e valores em comum - um coletivo que, dentre outras coisas, é moral, que compartilha uma gramática moral, mas que não é, contudo, estanque 14. Um coletivo cujas fronteiras (porosas) não são fixas e muito menos contínuas, mas móveis e negociadas cotidianamente: tanto a circulação das pessoas quanto a circulação dos brutos constituem territórios descontínuos. Um coletivo humano (uma comunidade), mas um coletivo em que atuam decisivamente ovinos, caprinos, bovinos, veados, tatus, pebas, onças... E cachorros. "Territórios descontínuos" pela ação do vaqueiro que mora em um terreno, mas vai com periodicidade ver o gado do patrão que está comendo no pasto de outro terreno distante alguns quilômetros. Mas, também, "territórios descontínuos" que são inventados e afirmados a partir da agência desses cachorros (sejam eles de caçadores ou não) que andam muito e "pegam criação" dos proprietários das vizinhanças. Assim, se "Places [...] are delineated by movement, not by the outer limits of movement" (INGOLD, 2011, p.149), se as pessoas estão, efetivamente, em contínuo movimento e atentas aos movimentos umas das outras (COMERFORD, 2003; TEIXEIRA, 2014) e se esses movimentos são indissociáveis do conhecimento - se eles, integrados de diversas maneiras, formam "redes de conhecimento" (ELLIS, 1996, p.27), se o conhecimento é imanente à mobilidade (INGOLD, 2011, p.160) -, um investimento teórico que tenha o intuito de pensar em termos de uma "comunidade" não pode desenhar os limites dentro dos quais ela, e as pessoas que a compõem, estariam inclusas. Se os territórios são descontínuos, também é descontínua a comunidade, no sentido de que ela é continuamente (des)ativada e (re)inventada pelo tráfego de pessoas, artefatos, informações, julgamentos morais... E brutos. Se reconhecemos que os animais têm agência e se pensamos tal agência em termos de sua capacidade de movimento, temos que admitir que aquele coletivo a que fiz referência acima não é delineado e ativado                                                                                                                 13   Entre os pastores Sarakatsani, a dispersão dos parentes entre diferentes aldeias contribui para uma rápida circulação das fofocas, das informações. E se ocorre essa circulação é também pela consciência de ser uma "comunidade", por uma espécie de identificação entre as famílias, não obstante toda a hostilidade e competitividade entre elas: "The consciousness of being a community stimulates the circulation of news which is all the more urgent because people do not live in a closely settled community. In its turn the very process of evaluating the conduct of other Sarakatsani is a reaffirmation of the solidarity and indeed of the existence of the community as such" (CAMPBELL, 1964, p.314).   14  Uma gramática cuja dimensão "repressiva", ligada a ação da "opinião pública", é ressaltada por alguns autores, como Gilmore (1987) - para quem "las malas lenguas", que fofocam, são uma "polícia secreta da moralidade" (ibid, p.68) - e o próprio Campbell (1964).    

 

 

16  

apenas por meio das ações humanas, mas também da intencionalidade desses animais. Se os homens fazem relações e território, também o fazem os brutos. Monografias como as de Campbell (1964) e de Herzfeld (1988) contribuem para pensar sobre o que é aqui discutido. As ovelhas que cruzam fronteiras e comem no pasto de outros criadores, motivando brigas entre os Sarakatsani; o "roubo da grama" realizado pelos pastores; o roubo das ovelhas, que é comparado ao roubo das noivas. No caso de Glendiot, a comunidade rural estudada por Herzfeld em Creta, as ovelhas são comumente roubadas de pastores de outras localidades com a justificativa de que essa modalidade de roubo tem o poder de fazer amigos e mesmo compadres 15. No estudo das chamadas sociedades camponesas e pastoris, é preciso, contudo, dar um passo além desses autores, por mais etnograficamente valiosas que tenham sido as suas observações e contribuições. Esse movimento - que também é uma forma de conhecer, ou, antes, de conhecer como se conhece - fará com que reflitamos sobre como tais sociedades pensam os animais com quem convivem, mas também nos permitirá ver o quanto a intencionalidade, a agência, desses seres não-humanos revela aspectos insuspeitos sobre aquilo que sempre nos perguntamos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPBELL, John. Honour, family and patronage: a study of institutions and moral values in a greek mountain community. Oxford: Oxford University Press, 1964. CAPISTRANO DE ABREU, J. Capítulos de história colonial (1500-1800). 7.ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora de São Paulo, 1988. CARSTEN, Janet. The heat of the hearth: the process of kinship in a malay fishing community. New York: Oxford University Press, 1997. CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2005.                                                                                                                 15   "As a solution to the dispute [entre ladrões de ovelhas], the mediators usually propose that one of the principals baptize the child from among the close agnates of the other. This, in fact, was the aggressor's original goal - 'friends' is often a synonym for sindekni - and it may also suit the older man [roubado por um jovem pastor iniciante na "arte"], if he is anxious to store up some useful sources of protection against the all too rapid advance of old age. From the moment of agreement, the principals address each other as sindekne, and are morally bound never to raid each other again. More than that, they are supposed to help each other when yet others raid their flocks, and especially to serve as arotikhtadhes. These men who visit their own sindekni and kin in other villages and 'ask' about the missing animals on behalf of the victims" (HERZFELD, 1988, p.174-5). Ou seja, a ação dos arotikhtadhes também demonstra, como no caso de Miguel da Bia, que caminhar é uma forma de (re)conhecer, tomar conhecimento de potenciais ladrões e identificar as ovelhas, no caso dos glendiotas, e os cachorros, no caso do sertão cearense.

   

 

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