Conflitos de um passado

May 27, 2017 | Autor: Marta Paula | Categoria: Literature, Crónica
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Conflitos de um passado Conflicts of a past A importância de se enfrentar o passado na busca de sua própria identidade, abrindo caminhos para a felicidade. The importance of facing the past in the construction of the original identity, opening ways to happiness. Autora: Marta Paula dos Santos

Era tarde quando olhou pela janela as luzes acesas da vizinhança. Poderia jurar ter visto entre os passantes, alguém diferente de todos os outros: seria um extraterrestre? ou seja, a vida anda meio monótona, sem emoção, talvez faltando um quê de certo glamour ou loucura a dominar a mente dos mais ousados. Quem poderia imaginar que aquela alma angustiada escondia segredos sombrios... Ela era normal, (se é que existe alguém assim!) mas todos nós “carregamos” um pouco de loucura,devaneios, não?!Ela vagava pelas cenas imaginárias de sua obscura existência, sem saber o que dizer na mais pura essência, o que sentia. Seus dias eram iguais, fazia o que era certo, ou seja, era como todos os demais seres sem emoção à flor da pele. Poderia jurar que viu algo que a abalou e mudou sua maneira de enxergar o mundo para sempre! Quem era, aquele rosto emoldurado pela sombra da noite inflada pela névoa úmida? Seus passos pareciam de alguém enérgico em procurar o saciamento de seus mais incógnitos desejos. Naquele mesmo dia, tivera um encontro inesperado com seus passado; sim, ela tinha um. Era jovem, porém já havia passado cerca de dez anos de sua adolescência eu fora marcada por perdas irreparáveis. Não conheceu seu pai, sua mãe morreu quando tinha doze anos. Seus avós maternos a criaram, a partir de então, com todo o amor que possuíam. Graças a uma bolsa de estudos, foi aluna de uma excelente instituição de ensino. Só que, certa vez, foi acusada, injustamente, de ter furtado uma caneta com friso de ouro, de uma colega de classe. Começara ali, seu tormento. A tal adolescente era filha de um delegado, amigo pessoal da dona do estabelecimento, portanto, o caso ganhou notoriedade espantosa. Bem, resumindo o episódio, a acusada precisou deixar o colégio, sem sequer ter tido a

oportunidade de provar o grave equívoco, pois sentiu-se totalmente humilhada com a situação (quem não se sentiria?) Quando se está em jogo outros interesse que não a verdade, as coisas caminham dessa forma. Daí a pergunta: E a caneta? Pois bem, a tal aluna “esquecera” em casa naquela dia. A menina usou o caso como forma de chamar a atenção de todos para si, principalmente de seu pai, um homem que mal dava atenção à filha única. Havia, quem sabe, outro motivo? Difícil saber, mas talvez algo além de uma simples caneta com frisos de ouro. Porém, qual seria o tal encontro com o passado referido anteriormente? Bem, Amália, chamemo-la assim, tornara-se reclusa desde aquele lamentável episódio de sua adolescência. Passou os demais anos de sua vida fazendo o que lhe era mandado, falava menos ainda, recusava-se a deixar qualquer um aproximar-se de seu pequeno mundo. Provavelmente, evitaria críticas severas sobre si. Pensava em seus colegas como acusadores que, a qualquer momento, a difamariam por uma “caneta perdida!” Vivia uma relação conflituosa consigo mesma. Por vezes, afastava pessoas até bem intencionadas em razão da desconfiança ou medo de algo dar errado. Certo dia, foi aconselhada a procurar um psicólogo a fim de falar sobre seus medos e aflições cotidianas; obviamente, ignorou tais conselhos. Era uma bonita moça, inteligente, mas sem amigos, sem amores. Via o mundo através da janela do apartamento onde morava sozinha com seus pensamentos. E foi através de sua janela, que seus pensamentos ficaram tumultuados. Quem seria aquela pessoa cujos passos continuavam a ser ouvidos em seu interior? Como poderia ser essa loucura de lembrar de alguém só pelo som de suas passadas? Desde aquele momento, algo desconhecido mexera com suas atitudes. No trabalho, ouvia barulho de sapatos e logo virava-se esperando ver o que nem mesmo sabia. Como não havia com quem conversar, (quem levaria à sério uma situação dessas?) guardava a angústia dentro do seu coração. Passaram-se dois meses daquele episódio. Amália parecia ter superado o ocorrido e seguido sua maçante rotina. No entanto, ao chegar à janela depois do jantar... Algo diferente ocorreu: além de ouvir os passos e ver a silhueta encoberta por névoa fraca, ele parou de repente e, como

impossível fosse, olhou em direção à sua janela. Estático, por alguns segundos apenas, tempo suficiente para Amália sentir seu coração bater tão forte e rápido, quase saindo-lhe pela boca. Ao voltar a si daqueles instantes, não mais viu aquele ser responsável por sua emoção única, jamais sentida antes; assustadora, mas deliciosa. Ele a conhecia, de onde? Como pararia a olhar para sua janela? Amália seguiu dias pensando naquele momento. Já não possuía o mesmo semblante tenso, aflito de outrora. Já havia esperança, mesmo pouca, de alguém no mundo, importar-se com ela. Por outro lado, sua eterna desconfiança a fazia pensar contrariamente:um desconhecido poderia carregar intenções ruins, dizia consigo mesma. No trabalho, porém, já se notava diferença em suas atitudes. Não mantinha mais a sisuda expressão triste de todos os dias. Chegou a usar um pouco de maquiagem, o que a fez ser notada pelos rapazes com quem trabalhava, admirados como se a vissem pela primeira vez. No entanto, algumas moças não gostaram da “nova” concorrente. Percebendo o incômodo das colegas, desistiu de tentar “ser notada”. Nota: por muitas vezes deixamos que as demais pessoas influenciem nossa maneira de vestir, falar e se comportar, isso acarreta em problemas de personalidade e autoestima. Ninguém tem o direito de interferir na vida do outro. Respeito é fundamental.

Amália se via com outros olhos agora. Tudo por conta de uma passagem rápida de olhares mal encontrados numa noite nebulosa, a noite mais linda na vida de quem parece ter descoberto o ardor da paixão. Saiu de seu mundo, descobriu algo além de sofrimento e rejeição. Respirava como se enchesse os pulmões do ar puro da montanha. Sentia-se livre, enfim. Sua avó disse-lhe certa vez: “-Minha filha, um dia você será plenamente feliz!”. Teria sido uma profecia, mas temia não ser digna de crê-la. Como os dias foram passando, aquela ansiedade começou a crescer em seu interior. Não mais ouvira aqueles passos enérgicos, muito menos viu a silhueta estática a olhar para sua janela. Começou a imaginar que tivera devaneios tardios de adolescente; recomeçava a temporada angustiosa da referida moça.

Como se não bastasse esse sofrimento, um acontecimento a deixou mais assustada: o reencontro com aquela colega de escola que a acusara de furtar sua caneta. Mal podia acreditar. Estava mal vestida, atordoada, mas não o suficiente para não tê-la reconhecido. Amália não sabia qual palavra pronunciar, nem como se comportar diante de uma cena tão triste. No entanto, a outra jovem falou em tom de ameaça: “-Você nunca terá o que é meu”. Sobre o quê ela falava? Ao dizer isso, virou-se e foi embora sem olhar para trás. Amália, atônita, não conseguiu dormir à noite, tentando decifrar o enigma. Mais dias se passaram, a aflição só aumentava e nenhuma resposta. O medo tomou conta do seu coração, ficou doente, afastou-se por licença médica, alguns dias do trabalho. Uma tia distante, foi localizada por alguém para ir visitá-la. Uma surpresa adicional, mas com um efeito benéfico. Assim, não ficaria sozinha. Em nenhum momento questionou sua tia, a quem não via há mais de dez anos, sobre quem a teria avisado sobre seu paradeiro ou estado de saúde. Pouco importava naquele momento. Depois de muito tempo, sentiu-se cuidada por alguém. Sua tia,(que era também sozinha) falou de sua vida, suas tristezas, fazendo com que sua sobrinha não se visse só em seus sofrimentos. Porém, algo dito por sua amada tia despertou-lhe estranheza. Ela teria dito, durante uma conversa sobre seu passado, uma frase terrivelmente familiar: “-Nunca terão o que é meu”. Amália empalideceu. Teria sido coincidência? Sentiu vontade de questionar, mas temeu fazê-lo, não se sabe por medo de conhecer o motivo ou de causar maior tristeza às lembranças da tia. Passaram-se os dias, Amália foi se recuperando do mal – estar das últimas semanas, contudo, não apagara aquela expressão usada por sua parenta. A mesma despediu-se pouco tempo depois, deixando um telefone para posterior contato. As duas frases ecoavam em sua mente como sinos de igreja. Passava noites à janela, pensando não só em seu misterioso amor, como também, nas frases ouvidas por duas personagens tão distintas. Numa manhã, Amália arrumava suas gavetas, quando encontrou um envelope nunca visto anteriormente. Continha uma carta escrita por sua tia, contando um segredo guardado por toda sua vida até então. A mesma escreveu uma carta na qual a resposta àquela afirmação, achava base. Sua tia era solteira, mas em sua

juventude conheceu um belo homem de carreira promissora, por quem se apaixonou. Pois bem, foi um romance proibido por questões financeiras, porém ela engravidou e teve uma menina. Como ela não poderia criar a criança sozinha, entregou-a a ele com a promessa de dar o melhor à menina. O rapaz em questão era estudante de Direito na época, mas conseguiu encobrir o caso até se formar e casar com outra mulher, a qual não aceitaria criar uma criança, fruto de um romance efêmero. Então, ele enviou a filha para a casa de uma parenta distante da cidade, que a acolheu, até crescer mais um pouco e, depois, enviá-la ao colégio interno. Dali a algum tempo, por recomendação da parenta, matriculou a menina num colégio tradicional da cidade, onde conheceu Amália. A cada frase lida, Amália chorava e não queria acreditar naquelas linhas. O episódio da caneta fora relatado e lamentado por sua tia, sendo assim, por vergonha, afastou-se da sobrinha. A frase dita por sua tia ainda era pouco compreendida, mas no decorrer da carta, as coisas foram se elucidando. A expressão dizia respeito ao sentimento da mãe por sua filha, a quem precisou renunciar no início e, por tal ato, sentia-se culpada. Lamentou ao ver sua filha tornar-se orgulhosa, arrogante, acostumada a ter tudo que desejasse. Assim sendo, o episódio da caneta havia tido uma parcial explicação. Parcial, por não saber o porquê da colega tê-la acusado da forma como fez. Essa era uma pergunta para a qual a carta não trazia resposta. No entanto, a curiosidade sobre quem avisara sua tia sobre seu endereço e estado de saúde, começaram a ganhar maior importância. Do trabalho, quem poderia fazê-lo? Não se importavam assim! Amigos, não possuía. Quem? Pensou em perguntar ao porteiro do prédio sobre alguém tê-la procurado. Relutou por sentir-se envergonhada, mas resolveu perguntar. Para sua surpresa, ele relatou sobre um jovem rapaz, dizendo-se ser seu ex-colega de escola que, aproximando-se, perguntou sobre seu estado de saúde. Sim, ele confirmou com toda a certeza. Agradeceu, quase sem voz e voltou para seu apartamento. “-Não, teria sido ele?! Como poderia?”, pensou consigo. Era surreal achar isso. E revirou-se toda a noite, tentando encontrar resposta para o implacável enigma. Seu passado e seu presente chocavam-se em sua conturbada mente. Voltou a pensar na humilhação sofrida

quando adolescente. Não se lembrava de mais nada, muito menos de um colega de classe. O dia raiou. Com ele um turbilhão de sensações desconexas. Como poderia continuar vivendo daquela forma? Pensou, refletiu, à nenhuma conclusão chegou. No entanto, precisava continuar vivendo, trabalhando... E assim o fez, com enorme dificuldade em encarar-se no espelho sem que tudo viesse à tona. Humilhação, rejeição, dúvidas! Enquanto pensava, seu telefone tocou, quebrando o silêncio e o transe daqueles intermináveis minutos. Ao atender, uma voz tranquila e agradável disse seu nome. Trêmula, respondeu afirmativamente. Era uma voz masculina e envolvente. Revelou-se como sendo seu ex-colega de classe e que perguntara se aceitaria conversar. Amália demorou a responder, deixando o rapaz preocupado. Enfim, respondeu com voz quase sumindo, que sim. Combinaram um local público, lógico, perto de onde ela trabalhava. Uma lanchonete com ambiente agradável e convidativo. Faltavam três dias para o tal encontro desde aquela surpreendente ligação. Preparava as “dezenas” de perguntas que faria ao jovem misterioso. Como soube seu endereço, seu telefone? Por que tantas atitudes estranhas? Enfim, o dia tão aguardado e temido chegou. Amália, apreensiva, julgava internamente, que o moço não apareceria; seria mais fácil crer dessa forma. Afinal de contas, sempre fora tratada dessa maneira. No entanto, o rapaz compareceu na hora marcada e, quando a viu, esboçou um tímido sorriso. Ela não sabia qual atitude tomar, suas pernas tremiam, suava frio, o coração acelerava. E sim, achou-o bonito. Quando aproximou-se, apontou para a mesa onde sentariam. A conversa demorou a iniciar-se, estabelecendo-se um silêncio somente quebrado pelo canto de um passarinho numa árvore próxima. O lugar era aberto, à beira de um pequeno parque muito bem cuidado, com flores de variadas cores, um louvor aos corações apaixonados. Como não sabia por onde começar a conversa, elogiou o canto belo do pássaro. Amália balançara a cabeça em concordância. As perguntas pensadas por ela tornaramse quase impossíveis de serem feitas, quando o rapaz percebeu algo a incomodá-la, perguntou: “Quer saber como a encontrei?” “-Sim, respondeu ela.” “-Estudamos juntos no fundamental”. Esta revelação trouxe recordações desagradáveis à mente da jovem.

Porém, com essa revelação, outras informações poderiam ser colhidas. Como por exemplo, talvez soubesse do motivo de tamanha implicância da colega para com ela. No decorrer da conversa, sim, Amália sorriu, falou sobre seu trabalho, o reencontro com os estudos pelo curso que acabara de iniciar...Ele, por outro lado, era funcionário de um escritório de advocacia. Iniciou a faculdade de Direito, mas trancou por não conseguir conciliar os estudos com os cuidados dispensados a seu pai, naquele momento, enfermo. Amália o fitou com delicadeza, notando o semblante triste do rapaz e disse ser muito nobre seu gesto em cuidar de seu pai, adiando seu sonho, mas ponderou que não deveria abandoná-lo. Estimulou-o a não desistir de seus objetivos, “-Isso o fará mais forte”, disse. Ele sorriu e agradeceu. Contou o sacrifício dos pais em mantê-lo em bons colégios. O bom é que era aplicado e conseguia bolsas de estudos. A razão da enfermidade foi o esforço em dedicar-se a dois empregos durante muitos anos. Tudo para garantir melhores condições de vida à família. Por essa razão, sofreu derrame e ficou por muito tempo em cadeira de rodas. Lágrimas quase rolaram de seu rosto ao relatar sua história. Amália, por sua vez, sentia não ser só dela todo o sofrimento do mundo. Havia quem padecesse mais. Descobriu-se egoísta pela primeira vez na vida. Após tantos relatos tristes, o jovem moço voltou a admirar o canto do pássaro que parecia querer participar da conversa. Ambos riram, descontraíram-se por alguns momentos, ele até mesmo elogiou seu belo sorriso, fazendo Amália corar-se. Não perceberam, porém, que eram observados à distância; alguém encoberto pela vegetação do parque. O rapaz, Pedro era seu nome, acompanhou-a até sua casa. Despediram-se com um aperto suave de mãos. Algo mais poderia ser esperado por ele, mas temeu tentar maior proximidade na despedida. No entanto, não se foi sem indagá-la: “-Vamos repetir o passeio?” Amália corou novamente, dizendo: “Quem sabe?” e entrou. Aquela tarde foi algo especial na vida daquela moça tão tímida, tão cheia de frustrações! Mal conseguiu dormir à noite, pensando naquele encontro. No trabalho, flagrava-se rindo discretamente das lembranças. Ao final do expediente, como sempre fazia, caminhou alguns passos até o ponto de ônibus, quando foi alcançada por sua hostil ex-colega de classe, dizendo: “Já não bastou roubar minha

caneta, quer também o meu noivo?”, disparou. Amália, atordoada, não sabia como proceder naquele terrível momento. Ambas estavam quase sozinhas naquele trecho de rua. De forma alterada, a acusadora gritou: “-Morram você e ele, que me traiu!” Amália quase “morreu” naquela hora só de ouvir aquela ameaça. Após proferir tamanha barbaridade, saiu apressadamente e sumiu, deixando Amália estática, pálida como se congelada estivesse. Não fez ideia de como conseguiu voltar para casa. Lembrava-se somente da ameaça ouvida e mais aflita por envolver aquele jovem tão gentil. “Noivo? Dela? Como alguém poderia ser tão cordial e tão cruel ao mesmo tempo?”, pensou. Lembrou-se também, de sua primeira aparição e suas palavras sobre ninguém tomar o que era dela! Agora pareceu claro sobre quem falava: Pedro. Mas outra pergunta persistia sobre como não falou sobre ela, agindo tão naturalmente!? Algumas coisas não faziam sentido, e Amália não conseguia organizar seus pensamentos. O dia amanheceu e com ele um coração e mente conturbados pelos últimos acontecimentos. Amália pôs-se de pé depois de ter adormecido sentada no sofá. Seu semblante em nada parecia como do dia anterior pela manhã, extasiada pelas lembranças de seu primeiro encontro. Não conseguiu alimentar-se antes de sair. Temeu andar pela rua até o ponto de ônibus, olhando para todos os lados como que pressentindo aquela abordagem. Chegou ao trabalho em transe. Até quem não gostava dela, estranhou seu comportamento. Não almoçou, preferiu comer um lanche no escritório mesmo. Evitava de sair à rua com medo de ser seguida. Ao final do dia, procurava andar perto de algum grupo, mesmo sendo ignorada pelo mesmo. Durante alguns dias, seguiu agindo assim, fechando-se ainda mais para o mundo, com medo todo o tempo. Pedro havia se afastado, sem ligar há alguns dias, não dando quaisquer notícias. Amália nem mais estranhava, passando a achar que era de fato comprometido e que queria mesmo divertir-se um pouco com uma garota ingênua e tola. Quem no mundo a amaria? Ninguém antes havia se importado com sua solidão, com seus temores! Sua sina era essa. A solidão da qual era companheira e não lhe dava surpresas.

Mais uma arrastada semana findou-se e a pobre moça entregava-se mais e mais à tristeza. Adoeceu. Desta vez, passou solitariamente por seus piores momentos. Sua tia também afastara-se, talvez temendo alguma reação negativa de sua sobrinha ao saber sobre seu passado. Pobre Amália, como poderia julgar? Só sentia não poder ajudar a tia de alguma forma. Afinal, era sua única parenta próxima, não conhecia outros. Quando envolvida em seus pensamentos, assustou-se com o toque do telefone. Relutou em atender. Não queria conversar; no entanto, imaginando ser sua tia, atendeu. Enganou-se, era Pedro após semanas de silêncio. Queria saber notícias suas. Amália, “gelou” internamente, fingiu frieza com suas palavras, respondendo estar se recuperando. Pedro falou da necessidade em explicar algumas coisas, dissolver mal-entendidos, disse. Sabendo tratar-se daquele assunto infeliz, a moça respondeu não ser necessário quaisquer explicações. Já havia entendido tudo da pior forma possível. Nisto, o jovem retrucou: “-Você está enganada, a história contada a você foi invenção de uma mente doentia”. Como a ignorar tais afirmações, Amália disse não estar disposta a conversar e desligou, após dizer um frio boa noite. Durante o restante das horas daquele dia, a mesma mergulhou na imaginação. Mente doentia, poderia ser mesmo uma invenção? Mas fez todo um esforço a fim de “apagar” aquelas palavras de sua mente. Porém, quem manda nos pensamentos? Ouvir a voz dele foi, apesar de tudo, muito bom, contudo, o medo da decepção era maior ainda. Os dias correram rapidamente, e Amália recuperou-se de seu mal-estar geral e voltou ao trabalho. Obviamente, não conseguiu remover de sua memória todo aquele processo angustiante. Queria ter esquecido Pedro, mas tinha certeza da derrota. Entretanto, alguns rumores começaram a surgir sobre ela no escritório. Algumas pessoas comentavam sua conduta profissional, (aliás, mesmo ausentando-se por motivos de enfermidade, jamais descuidou de suas atribuições) sendo responsável, competente, não dava ouvidos a fofocas de colegas de trabalho pelo fato de não ter proximidade com quaisquer deles. Contudo, carregava um peso em seu coração, um peso que, nos últimos meses a colocara em situações difíceis de serem administradas. Mas, por outro

lado, sabia percalços.

que

havia

amadurecido

bastante

ante

a

tantos

Finalmente, via-se como alguém capaz de sentir paixão, de sofrer por amar, de descobrir não ser só no mundo. Já olhava com maior altivez os problemas, e sentia menos medo ao enfrentá-los. A cada dia valorizava a si mesma pela capacidade que possuía. Até mesmo seus superiores passaram desempenho. Como faz diferença o amor próprio!

a

elogiar

seu

Tudo era parte de um “desabrochar” para o mundo, para a vida. Passou a agir tomando as “rédeas” de seu destino, não permitindo a alguém, provar-lhe o contrário. Poder-se-ia dizer: uma nova Amália surgia de dentro para fora, sem esconder-se por trás de sentimentos de rejeição e complexos. Por conta de sua nova e surpreendente fase, foi chamada a ocupar um novo posto no escritório. Como já conhecia as funções, passou a supervisionar os novos contratados. Com tantas mudanças, já pensava menos em suas decepções, ou seja, sentia-se valorizada o suficiente a fim de não depender de alguém para ser feliz. Certo dia, quando preparava-se para mais uma jornada laboral, pensou no passado de uma maneira forte como a pressentir algo por acontecer. Preferiu distrair-se com os planos do dia e saiu a cumpri-los. Chegando ao escritório, foi abordada por um senhor bem vestido e educado, porém, com um semblante cansado e não muito saudável. Perguntou se seu nome era Amália. Apreensiva, respondeu afirmativamente, no que logo prosseguiu em saber qual o motivo da procura. O senhor, então, identificou-se como sendo pai de Pedro. Ao ouvir aquele nome, Amália “gelou” por dentro, mas manteve a postura sóbria, sem deixar transparecer seu nervosismo. Não entendendo a razão pela qual foi procurada, disse ao homem que não poderia ajudá-lo. Parecia não querer saber notícias de Pedro para evitar maiores sofrimentos. Havia decidido superar o passado e, finalmente, “colhia os frutos” de tal atitude. Como poderia aquilo voltar a atormentá-la?

No entanto, muitas vezes se tenta fugir de situações mal resolvidas com a ilusão de que o passado ficará para trás eternamente. O problema é quando alguém resolve remexer e trazer à tona antigas dores. Amália mostrou não ter superado o ocorrido, tanto que nem permitiu ao homem falar mais sobre aquele por quem um dia, sentiu seu coração bater mais forte. Despediu-se e, apressadamente, seguiu para o elevador. Inutilmente tentou esquecer o episódio com a mesma velocidade. Novamente o passado a importuná-la com velhos e negativos pensamentos. Finalmente, quando começava a desfrutar de um novo começo, alguma situação vinha de encontro às suas expectativas. Pensou até em mudar-se, mas como havia feito amizade com alguns vizinhos do prédio, no qual morava há alguns anos, desistiu. Recomeçar ainda era um obstáculo em certos pontos. Estranharam a mudança em seus trajes, (passou a arrumar-se mais) sorria quando dava bom dia, algo impensado um ano antes. Sim, Amália procurou ajuda de um psicólogo. Estimulada por uma simpática e cordial senhora, moradora de um dos apartamentos, cuja sobrinha era terapeuta. Houve relutância em aceitar, porém, após algumas sessões, sentiu-se melhor e mais disposta a superar os problemas. Isso foi essencial na sua mudança com os vizinhos e consigo mesma. Depois daquela abordagem do pai de Pedro, Amália sentiu-se um pouco insegura e, daí, voltou a ter problemas, mas ajudada a encarar com serenidade as situações conflitantes, seguiu mais autoconfiante. Certa vez, ao sair do trabalho, avistou alguém familiar aguardando-a na portaria. Era novamente o pai de Pedro com um semblante de causar profundo pesar. Desta vez, não conseguiu desvencilhar-se; algo, não sabendo o quê, a impediu de fazê-lo. O senhor então, implorou por sua atenção. Já apreensiva, consentiu. Pedro sofrera um acidente alguns meses atrás e, após cirurgia, passou por complicações, crises de alucinação e, por vezes, chamando por seu nome. Falava perdão incontáveis vezes, dizendo nunca tê-la enganado. Pediu ao pai, em prantos, que a encontrasse e a levasse até ele. Amália, ao ouvir aquele relato, arregalava os olhos e sacudia a cabeça, como não querendo acreditar naquelas palavras. Era um pai a buscar paz para o tormento dele e de seu filho.

Então, pediu um favor que, para a jovem, seria uma difícil provação: que fosse vê-lo o mais rápido possível. Atônita, concordou em vê-lo. Só iria em consideração ao estado de saúde do rapaz e, também, por sensibilizar-se com o apelo daquele pai. Não queria deixar quaisquer chances de reaproximação. Tal atitude demonstrava medo de envolver-se e sofrer tudo novamente. O senhor concordou com os pontos colocados pela moça e se foi, prometendo retornar para acompanhá-la a casa deles dias depois, à tarde. Uma senhora, enfermeira aposentada, cuidava do triste moço e dava-lhe conselhos sobre como superar a dor por ele sentida. Ele recusava-se a desistir de quem um dia, conquistou seu coração. Preferiria morrer, dizia. Num sábado, no local combinado, Amália compareceu a fim de visitar Pedro. Seu pai já estava à espera. Com um semblante mais tranquilo, agradeceu durante todo o trajeto, a atenção dispensada a ele. Ela, por sua vez, só ouvia e, poucas vezes respondia. Pensava consigo mesma como seria revê-lo. Ouvia aquele senhor, de jeito humilde, falar do esforço feito pelo filho ao interromper seu sonho de cursar uma faculdade de Direito por causa da enfermidade de seu pai. “-Meu filho é muito amoroso, moça, disse com os olhos marejados. Um filho de ouro, completou.” Sim, havia um carinho naquelas palavras que, pouco a pouco, comoviam o coração daquela jovem. A poucos metros da casa, já não denotava a mesma frieza de antes. Começou a sentir um certo carinho por aquele senhor. Pensou em como seria bom se o dela tivesse sido assim! Contudo, não poderia demonstrar essa emoção e, sem demora, recompôs-se. A residência era simples, pequena. Logo a senhora que cuidava de Pedro, surgiu de um cômodo. Foi muito educada, pela forma como recebeu e perguntando se aceitaria um café acompanhado de seu elogiado bolo de milho. Amália aceitou timidamente o oferecimento, não antes do reencontro tão aguardado. Ao entrar no quarto, comoveu-se muito com a cena. Aquele belo rapaz por quem outrora se apaixonou, jazia no leito com um semblante sofrido, angustiado, marcado pelas dores do corpo e, mais ainda, da alma. Um acidente inexplicável o acometera.

Custou a acreditar que Amália estava diante de seus olhos. Quando finalmente percebeu ser verdade, deu aquele já conhecido sorriso que a cativou no passado. Pediu ao pai para ficarem a sós por alguns minutos, claro, após consentimento da jovem. Bem, disse ele, agradeceu sua ida, mesmo entendendo ser difícil para ela aceitar ir vê-lo. Pediu que a mesma se sentasse perto dele, enquanto relatava os tristes episódios de tempos antes: “-Deve ter pensado o pior sobre mim, Amália, e com razão. Sumi de repente de sua vida sem esclarecer as circunstâncias”, continuou. Ela permanecia estática, ouvindo-o com atenção. “-Nem sei como consegui chegar aqui, respondeu. Seu pai comoveu-me e, por isso, aceitei seu pedido”, concluiu. “-Entendo”, respondeu. “-Sei que os fatos parecem confusos, porém, houve um forte motivo para meu afastamento. Ela, (referindo-se a ex-colega de classe de ambos) procurou-me e fez ameaças a nós dois. Se continuássemos nos encontrando, ela te mataria”, disse quase chorando. Amália arregalou os olhos e tremeu como nunca. “Mas por que razão ela me mataria?, questionou. Qual o motivo de tamanho ódio por mim desde a escola, nunca entendi”, disse, reagindo com veemência. Então, Pedro esclareceu a razão do conflito. A referida menina acreditava que ele a amava e, ao vê-lo aproximar-se de Amália, o ciúme a fez criar aquela história da caneta furtada por Amália. Viu-a como uma ameaça. Sempre foi uma pessoa possessiva e arrogante. “-Quando soube da sua saída da escola, também pedi transferência. Não aguentei ficar sem você lá”, disse, concluindo de maneira apaixonada. “-Sempre gostei de você, desde quando a vi pela primeira vez entrando por aquela porta. Sempre quieta, tímida, mas muito inteligente e aplicada nos estudos. Você me inspirou até a estudar mais e sonhar mais alto. Sonhava que, um dia, seria alguém que a faria feliz”, disse. Amália mal conseguia conter as lágrimas. Jamais imaginou que alguém a observava e admirava assim desde a adolescência.

“-Entende agora o motivo de tê-la deixado? Foi por sua segurança”, prosseguiu. “-Sim, mas como você foi parar neste estado?”, indagou a moça, temendo a resposta. Seu medo encontrava sentido. Pedro foi alvo de, como poderia se dizer, um atentado. Andava perto da residência de Amália sem a mesma perceber, quando foi flagrado por Patrícia, (esse era seu nome) que, furiosa, correu em sua direção com uma faca. Sim, ela pretendia atacar Amália, mas ele não sabia. Ao vê-la correndo em sua direção, ela não pensou duas vezes, atravessou a rua sem olhar e foi seriamente atropelado. A confusão foi tão grande, (Amália já havia saído para o trabalho) que Patrícia, achando que ele havia morrido, jogou-se na frente de um ônibus, não dando chance ao motorista de frear ou desviar, foi atropelada, morrendo na hora. Um fim trágico para uma pessoa tão infeliz. Um fim terrível para alguém que teve uma vida conturbada, via o amor como algo a ser possuído à força, visto nunca tido o afeto de seu pai, que a rejeitara quando a mesma completou a maioridade. Tal revelação deixou Amália profundamente entristecida. Sentiu-se culpada, ainda que sem motivos, pois nada poderia ter feito a fim de reverter aquele processo amargo. Pedro, percebendo sua tristeza, disse: “Não foi sua, nem minha culpa. Ela escolheu viver daquela maneira”. “-Não”, discordou a moça. “Como pode dizer isso sabendo o que ela passou? Sabia da sua vida desesperada em busca de afeto, o qual não encontrou em seu próprio pai. Ela era filha de minha tia que, até hoje, se culpa por não haver lutado por sua filha. Você tem um bom pai, presente, que o ama. Eu entendo o sofrimento dela, pois não tive um”. Pedro abaixou a cabeça envergonhado perante aquelas duras palavras. Ela tinha razão e ele não podia discordar. Amália ainda concluiu: “-Tenha compaixão, Pedro!” Seguiu-se um longo silêncio após aquele momento. Quando Amália fez menção de levantar-se e despedir-se, o rapaz suspirou, dizendo: “-Não me deixe, amo você”.

A mesma reagiu com certa frieza ao dizer: “- Como pode falar em amor se não foi capaz de entender, ou, ao menos tentar, não ser tão cruel como foi?” Pedro, com os olhos cheios de lágrimas, disse: “-Eu sei, mas quando penso que poderia ter perdido você, quase enlouqueço. Nessas horas, não me cobres compaixão. Imploro a ti que me permita fazer parte da sua vida, do seu mundo, assim como quero que faças parte do meu”, concluiu. Ao dizer essas palavras, a jovem sentiu um enorme aperto no peito. De fato, era sozinha, não tinha alguém ao seu lado para compartilhar seus segredos, seus sucessos e suas tristezas. Com voz embargada, disse algo que nunca ousou antes dizer a alguém: “Também amo você”. Ditas as declarações, abraçaram-se demoradamente. Após isso, o beijo tão adiado aconteceu. Foi o melhor encontro que eles tiveram na vida. Um reencontro com o passado e o renascimento do presente, preparados para o futuro. Um futuro não sozinhos, mas um ao outro auxiliando, rompendo as barreiras que, a partir daquele dia, iriam surgir, porém, na certeza de enfrentarem unidos, ligados por um amor verdadeiro e indestrutível.

Reflexão: Por mais que se tente fugir do passado, ele sempre se fará presente na vida de cada ser humano. Ele faz parte de nossa construção, muitas vezes ditam nossas reações ante determinadas situações. Ter medo do passado, porém, transforma a vida de alguém em prisão, por isso, o passado deve ter o seu lugar. Enfrentá-lo, por vezes, pode libertar a alma daquele que deseja encontrar o caminho da felicidade.

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