Conflitos e tensões na Zona Portuária do Rio de Janeiro

July 24, 2017 | Autor: Nilton Santos | Categoria: Antropología Social
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Conflitos e tensões sobre os usos do espaço público na cidade do Rio de Janeiro: transformações e movimentos contestatórios na Zona Portuária (work in process)

Nilton Silva dos Santos
Professor Adjunto no Departamento de Antropologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF)
e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA)
[email protected]


Na cidade do Rio de Janeiro a sua Zona Portuária (composta pelos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo) se transformou em marco referencial de uma luta entre o ímpeto reformador de uma administração municipal, com apoio da administração estadual, e as práticas usuais e tradicionais de seus moradores. A deliberação de "retomar" aquela área como pólo de desenvolvimento econômico e cultural tem gerado transformações importantes no seu perfil.
Ao longo da história da cidade do Rio de Janeiro os ímpetos reformadores, oriundos das pranchetas de diferentes técnicos e políticos, são marcos cruciais na sua configuração sócio-espacial. De tal maneira que as representações sobre este espaço são disputadas freqüentemente entre aqueles que lá vivem, seus moradores de múltiplas origens, e os diferentes atores da municipalidade responsáveis pelas políticas urbanas, que se identificam com um ideário de "renovação", "reintegração" e "revalorização" daquela área à cidade vista, usualmente por estes, como "vazia", "abandonada", "degradada".
Distintas práticas regulatórias, higienistas e de controle social não surgiram da noite para o dia, mas têm sido experimentadas ao longo dos anos da história republicana brasileira na cidade do Rio de Janeiro. Estas políticas urbanísticas não se iniciaram agora, mas tem uma história que remonta ao início da República brasileira. Um dos marcos da utilização de práticas urbanísticas para o controle das classes populares, em amplo sentido, pode ser apontado com o processo conhecido como "Bota-Abaixo" que, reformulou o perfil do centro da cidade do Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o XX.
Como descreve o historiador José Murilo de Carvalho, em seu clássico livro Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, a demolição de cortiços, como o famoso "Cabeça de Porco" – que abrigava, aproximadamente, quatro mil pessoas, no ano de 1892 – pelo então prefeito Barata Ribeiro, é uma das marcas desse processo de "limpeza urbana" que redundará no nascimento da primeira favela do país, situada no Morro da Favella (atualmente Favela da Providência). Somada à destruição de outros 600 cortiços, nos quais habitavam 25% da população da cidade do Rio de Janeiro, a construção de avenidas largas, como a Avenida Central – hoje chamada Avenida Rio Branco, inaugurada com festa em 15 de novembro de 1905 – e a Avenida Beira-Mar vinha fortemente inspirada pelas idéias da Europa da época, tendo sido tais obras conduzidas, pessoalmente, pelo então prefeito Pereira Passos (1902-1906).
Tais operações na configuração espacial da cidade tornaram-na símbolo marcante de modernidade. José Murilo de Carvalho chama a atenção para a "prevenção republicana contra pobres e pretos" (1998:30) que se manifestou na perseguição movida pelo chefe de polícia do Distrito Federal no governo de Deodoro da Fonseca, Sampaio Ferraz, por exemplo, na luta contra os capoeiristas, os bicheiros e na destruição das formas de moradia popular, além das campanhas higienistas de vacinação.
Aliás, no Brasil, somos, usualmente, influenciados por idéias exógenas, como a do liberalismo político, embora muitos de nossos liberais defendessem a escravidão como forma de produção para o país, na transição do Império para a República.
Muito do investimento feito hoje na Zona Central da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, na Zona Portuária, foi dirigido ao projeto Porto Maravilha – Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro, que mudou a face daquela região, a qual já foi conhecida como a Pequena África do Rio de Janeiro, pela presença de negros e negras que ali eram comercializados, na área da Pedra do Sal, durante a escravidão e que, posteriormente, se fixaram na localidade e nos bairros vizinhos. Essa é a área também identificada como berço do samba na cidade, nos primórdios do século XX.
A Praça Mauá, tradicional área freqüentada pelos moradores da região, especialmente os do Morro da Conceição e do Morro da Providência, vem mudando seu perfil radicalmente. Tanto pela abertura de ruas e espaços do lugar, o que facilitaria a vigilância e o controle de seus usuários, quanto pela mudança do gabarito de edificação e a reurbanização de ruas e praças do local, bem como pelo fechamento de boates de alterne ou de espaços de sociabilidades dos setores populares. Ao mesmo tempo a implementação do projeto de mobilidade no Morro da Providência, qual seja, a instalação de um teleférico na favela para ao final das contas atrair turistas para aquela localidade.
Sobre o Teleférico da Providência, que consumiu metade do investimento naquela área (75 milhoes de reais), a prefeitura afirma que ele "faz parte do Morar Carioca, programa que está promovendo a urbanização da comunidade. A inauguração deste meio de transporte trará qualidade de vida aos moradores do morro que, atualmente, têm dificuldades para subir as ladeiras de acesso às casas, muitas vezes, carregando compras. Além do teleférico, construiremos um plano inclinado na parte mais íngreme da Providência, ligando a Praça Américo Brum à área histórica, que também terá um compartimento para transporte de cargas. O benefício para os moradores será enorme. Além disso, o teleférico ligando a Central do Brasil à Cidade do Samba certamente atrairá muitos visitantes que incentivarão a economia local", comenta o secretário Pierre Batista, ao falar sobre a iniciativa.
Ora as políticas urbanísticas implementadas a partir do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão de planejamento urbano vinculado à Prefeitura, para essa área do Centro da cidade do Rio de Janeiro têm um viés não apenas desenvolvimentista, mas "civilizador". Como observa o antropólogo José Reginaldo Gonçalves, especializado na temática do patrimônio, a "cultura" vem sendo esgrimida como argumento para normatizar práticas e condutas na localidade. Esses argumentos saem da cabeça dos técnicos do planejamento urbano do município, em sua grande maioria arquitetos com uma concepção muito própria dos usos adequados daquele espaço da cidade.
Falando do trabalho de sua orientada de doutorado, Roberta Guimarães (2011), sobre o mito da Pequena África e do Morro da Conceição, Gonçalves adverte:

"ela trabalhou com vários urbanistas, entrevistando-os, e eles têm uma determinada concepção daquele espaço. Uma concepção que vai orientar os trabalhos de intervenção. O que penso, enquanto etnógrafo, é que os urbanistas deveriam ser vistos também como uma espécie de tribo. Eles também deveriam ser vistos como uma comunidade, partilhando mitos, partilhando ritos, e isso não significa desqualificar o conhecimento deles. Pelo contrário, significa qualificá-lo: como é que esse pessoal conhece, que tipo de pergunta eles fazem, quais são os pressupostos deles. Assim como faz sentido perguntar pela comunidade dos advogados ou dos médicos. Como incluir essa dimensão? Não existe resposta pronta. Acho que é um processo político. Uma coisa bem interessante, que é demonstrar como os urbanistas operam com um determinado discurso onde há uma marcação do tempo, por exemplo, a Reforma Pereira Passos, como um marco fundamental na história da cidade. De fato é. Mas não podemos esquecer que se trata aí de um determinado enquadramento de uma memória, de uma determinada concepção de passado. Dentro desse jogo de linguagem, é perfeito, é isso mesmo. Mas do ponto de vista da população, da memória coletiva, não é isso que conta. São outras demarcações, em termos de história do Morro, e isso tem que ser considerado! Eu penso, depois de anos lidando com isso, é que as coisas se decidem mesmo no plano da discussão pública, da luta política em seus vários níveis. Se você tiver uma boa reflexão, um bom trabalho de pesquisa, isso ajuda muito, mas garantir bons resultados, não garante".

Acredito que as observações de Gonçalves apontam para o dilema vivido pela área portuária da cidade: qual a perspectiva dominante de "porto" que se deixará como resultado destas políticas urbanísticas. Os dados coletados em campo apontam para a implementação de mais um museu (Amanhã) na área do porto, além da perspectiva de "renovação" do antigo Moinho Fluminense em shopping center, ligado por passarelas aos novos museus (MAR), na área da Praça da Harmonia.
Roberta Guimarães (2013) afirma, corroborando a observação de Gonçalves, em seu artigo "O encontro mítico de Pereira Passos com a Pequena África: narrativas de passado e formas de habitar na Zona Portuária carioca" que "as memórias e formas de habitar concebidas pelos planejadores se distinguiam de outras tantas, e cada pedra ou sobrado por eles modificado era capaz de mobilizar diferentes subjetividades, contranarrativas e conflitos. Como efeito de seus imaginários e intervenções, emergiam então no morro outros imaginários a ele associados e contrapostos" (pp.49-50).
A desconsideração dos valores e significados atribuídos pelos populares ao seu espaço de moradia, por exemplo, por parte dos planejadores urbanos, já foi tratada no clássico livro de Herbert J. Gans, The urban villagers: group and class in the life of italian-americans (1962), a propósito da remodelação de um bairro no West End, em Boston.
A Zona Portuária da cidade do Rio de Janeiro vive remoções de populações de áreas de "interesse olímpico", gentrificação e reorganização do espaço urbano, sob a orientação dos interesses da especulação imobiliária e da turistificação. A forma de abordagem da Prefeitura municipal nos Morros da Conceição e Providência são distintos, mas os efeitos são os mesmos.
No Morro da Conceição as políticas de patrimonialização e de valorização de um suposto passado português daquela área tem feito com que diferentes iniciativas da municipalidade, como o Primeiro Prêmio Cultural Porto Maravilha, orientado para grupos culturais organizados na localidade (embora tenha contemplado grupos e indivíduos de fora da área) e a construção de museus concorram para a "renovação" daquela localidade. [Ver os trabalhos que estão sendo desenvolvidos por Reginaldo Ribeiro e Adriana Batalha]
No Morro da Providência a violência simbólica começa na forma como as casas, virtualmente desalojadas, são indicadas: elas são marcadas com spray de tinta com as letras SMH, em referência à Secretaria Municipal de Habitação, além de um número, sem que os moradores sejam sequer informados sobre o assunto. O Comitê Popular da Copa e da Olímpíadas, por exemplo, vem tentando mobilizar moradores e denunciar as práticas adotadas pela municipalidade nesta área. No entanto o eco alcançado por estas iniciativas ainda é pequeno.
As massivas mobilizações ocorridas Brasil a fora, no ano de 2013, por ocasião da Copa das Confederações não possibilitaram a consolidação de organizações da sociedade civil de caráter mais permanente e orgânico. Ainda assim, várias iniciativas vem acontecendo no sentido de resistir aos golpes da gentrificação na cidade do Rio de Janeiro dos megaeventos.
Tim Sieber (2008) conclui um artigo sobre Lisboa afirmando que os etnógrafos urbanos "talvez precisemos, até, de reconhecer a nossa própria necessidade das ruas e, também, do espaço público. Ao defender os direitos dos cidadãos das cidades em qualquer parte do mundo, estamos afinal a defender-nos a nós próprios, e não apenas os urbanitas que alguns de nós são. Na luta contra a actual privatização do domínio público em geral, temos também muitas das nossas próprias ruas a defender, e só algumas delas se situam na rua" (p.62).


A Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro tem um instituto de urbanismo cujo nome homenageia Pereira Passos. No sítio do Instituto Pereira Passos, somos informados que o IPP coordenou grandes projetos urbanos como o Rio Cidade, o Favela Bairro, o Rio Orla e o Porto Maravilha.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos; GUIMARÃES, Roberta Sampaio & BITAR, Nina Pinheiro. A alma das coisas: patrimônios, materialidades e ressonância. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ. 2013.
GAFFNEY, Christopher. Megaeventos e dinâmicas sócio-espaciais no Rio de Janeiro, 1919-2016. Journal of Latin America Geography 9 -1, 2010.
SIEBER, Tim. "Ruas da cidade e sociabilidade pública: um olhar a partir de Lisboa"; In: CORDEIRO, Graça Índias & VIDAL, Frédéric. A rua: espaço, tempo, sociabilidade. Lisboa: Livros Horizonte. 2008.




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