Conflitos fundiários urbanos no Brasil: Poder judiciário e segregação socioespacial no Brasil

September 3, 2017 | Autor: Giovanna Milano | Categoria: Direito a Moradia, Conflitos Urbanos, Poder Judiciário
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VII CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO GT CONFLITOS FUNDIÁRIOS URBANOS

Conflitos fundiários urbanos: Poder Judiciário e segregação socioespacial no Brasil

Giovanna Bonilha Milano1 SUMÁRIO: 1. Segregação socioespacial e a desigualdade na produção do espaço urbano no Brasil 2. Conflitos Urbanos: produção do dissenso e manifestação de sujeitos coletivos 3. Conflitos Fundiários Urbanos 4. Poder Judiciário e Conflitos Fundiários 5. Atuação do Poder Judiciario: seletividade e reprodução da segregação socioespacial

RESUMO: O presente trabalho tem por objeto a análise do tratamento jurisdicional contemporaneamente dispensado às situações de conflito fundiário urbano no Brasil. Diante deste escopo geral, pretende-se averiguar as implicações da atuação do Poder Judiciário como um potencial fator político-jurídico de reprodução da informalidade urbana e da segregação socioespacial nas cidades brasileiras. Para tanto, realizaremos a análise crítica acerca dos mecanismos de produção e reprodução do espaço urbano no Brasil e do o caráter conflituoso presente na construção das cidades, que se traduz em ampla tipologia de confrontos e litígios urbanos. Em tal repertório, merecerão análise privilegiada os “conflitos fundiários” de dimensão coletiva, caracterizados pela disputa pertinente à posse ou propriedade de imóvel urbano protagonizada por famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção Estatal para garantia do direito humano à moradia e à cidade. É neste contexto que se problematiza o papel desempenhado pelo Poder Judiciário, considerando os institutos jurídicos aplicados no casos concretos; de que forma os sujeitos coletivos e a função social da propriedade têm sido considerados ou omitidos; e principalmente, qual a repercussão das decisões jurisdicionais na configuração das territorialidades urbanas. Palavras-chave: Conflitos Fundiários, Poder Judiciário, Cidades. ABSTRACT The present work aims at the analysis of the court´s treatment in the contemporaneously conflict urban land in Brazil. Given this broad scope, it is intended to assess the implications of judicial power as a potential factor political-legal of urban informality and spatial segregation reproduction in Brazilian cities. To do so, we will have the critical analysis of the production mechanisms of urban space in Brazil and the conflictual character present in the construction of cities, which translates into broad typology of urban confrontations and disputes. In such a repertoire, merit analysis privileged the "land disputes" the collective dimension, characterized by the dispute pertaining to possession or ownership of property carried by urban low-income families and vulnerable groups that require or demand the protection of the State to guarantee the human right to home and city. It is in this context that questions the role played by the judiciary considering the established laws applied in cases, how the collective subjects and the social function of property have been considered or omitted, and especially, what effect of judgments in the configuration of urban territoriality. Key-words: Land Conflicts, Judiciary, Cities.

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Mestre e Doutoranda em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Civil e Direito à Cidade na Graduação e Pós-Graduação. Sócia-cooperada da Ambiens Sociedade Cooperativa. Email: [email protected]

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1. Segregação sociespacial e desigualdade na produção do espaço urbano no Brasil A produção e reprodução do espaço social e, particularmente, do espaço urbano têm sido objeto de análise nas mais diversas áreas do conhecimento. É notável, entretanto, os avanços desempenhados durante o século XX especialmente pelo campo da geografia, em desentranhar o espaço tomado a partir da descrição de resultados provenientes da ação natural para redimensioná-lo ao âmbito da produção social, ou seja, do trabalho humano.2 Conforme ressalta Flávio Villaça, foi somente a partir de tal guinada paradigmática que se tornou possível incluir no estudo das dinâmicas espaciais elementos como a dominação de grupos sociais, desigualdade econômica, poder político e construções ideológicas.3 O espaço torna-se, a partir de então, fonte profícua de investigações que transcendem a observação nua de seus componentes naturais e passam a considerá-lo de forma integrada às relações sociais, históricas, juridicas, econômicas e políticas. Esta perspectiva relacional, na qual o espaço é observado a partir de sua permanente relação com as dinâmicas sociais é explorada pelo geógrafo Milton Santos, que defende a relevância do território como categoria de análise social, desde que considerado a partir da noção de “território usado”. Ou seja, em permanente diálogo com os atores que dele se utilizam, sob um processo dialético no qual se incluem “as coisas naturais e artificiais, a herança social e a sociedade em seu movimento atual.” 4 Diante disso, o espaço passa a ser definido em sua dimensão relacional porque mais do que servir como arena para uma série de relações sociais, ele próprio encontra-se imbricado em dialética relação que envolve os processos sociais e o ordenamento territorial. É essa relação que impede a análise monolítica do espaço – afeita à estabilidade e limitação fixa de fronteiras – e a realoca na perspectiva de movimento e fluidez, própria da dinâmica de conflitos da produção social. 5 Os processos de ordenação do espaço e disputa territoriais, sob tal viés de análise, deixam de se apresentar como o resultado de ações naturalizadas para assumirem o caráter de “resultado de lutas políticas e de decisões políticas tomadas no contexto de condições tecnológicas e político-econômicas determinadas”. 6 2

VILLACA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av., São Paulo, v. 25, n. 71, Apr. 2011.p. 37. 3 Idem. 4 SANTOS, Milton. Território e Sociedade — entrevista com Milton Santos. 2ª ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.p. 26. 5 Ibidem. p. 54. 6 HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 108.

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Nas cidades brasileiras, este conjunto de idéias assume especial centralidade na medida em que fornece as ferramentas teóricas necessárias à investigação da mais importante das manifestações espacial-urbanas em nossa sociedade, qual seja a desigual distribuição socioespacial.7 Segundo afirma Villaça, “nenhum aspecto do espaço urbano brasileiro poderá ser jamais explicado/compreendido se não forem consideradas as especificidades da segregação social e econômica que caracteriza nossas metrópoles, cidades grandes e médias. 8 O desafio de compreender a segregação urbana no Brasil está, portanto, em situar a dimensão físico-espacial como resultado da desigual distribuição da riqueza socialmente produzida, considerando-se os seus reflexos na produção de precária situação habitacional descrita sob as tipologias de assentamentos irregulares ou ocupações informais. 9 A ausência de universalidade no acesso a terra urbanizada e ao mercado formal habitacional no Brasil, apresentam-se como características de um processo de urbanização que não realizou a socialização dos meios de consumo coletivo para reprodução mínima da vida concreta dos cidadãos - como educação, saúde, cultura, transporte e, principalmente, moradia.10 O resultado desse percurso, como indica Maricato, está na generalizada constituição de cidades ditas “irregulares”, porque incompatíveis com os crivos estabelecidos pela legalidade urbanística e civilística, e na frequente utilização do recurso da ocupação de terras como estratégia para moradia. 11

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VILLACA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av., São Paulo, v. 25, n. 71, Apr. 2011. p. 37. 8 A utilização dos termos é controversa mesmo na doutrina especializada sobre o assunto. Neste trabalho utilizamos os termos assentamentos irregulares ou ocupações informais com o objetivo de abarcar o maior número de situações de precariedade habitacional que compreendam situações de informalidade jurídica, urbanística, dentre outras. O termo assentamentos irregulares é empregado neste sentido pelo jurista Nelson Saule Junior, que com ele faz alusão à formações socioespaciais identificadas com assentamentos informais, favelas e cortiços. 9 . O autor define a segregação urbana “como a forma de exclusão social e de dominação que tem uma dimensão espacial”. VILLACA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estud. av., São Paulo, v. 25, n. 71, Apr. 2011. p. 37-41. Já para Peter Marcuse, segregação corresponde ao “processo pelo qual um grupo populacional é forçado, involutariamente, a se aglomerar em uma área espacial deinida, em um gueto. É o processo de formação e manutenção de um gueto”. Cf. MARCUSE, Peter. Enclaves, sim; guetos, não: A segregação e o Estado. In Espaços & Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos. v.24, n.45. São Paulo: Núcleo de Estudos Estudos Regionais e Urbanos, 2004. p.24 10 SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, o direito e a questão urbana. In FALCÃO, Joaquim de Arruda. (org.) Invasões urbanas: conflito de direito de propriedade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p.37 11 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias- Planejamento urbnao no Brasil. In: A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Otília Arantes;Carlos Vainer; Ermínia Maricato – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 154-155

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Para além destas fronteiras entre legalidade e ilegalidade, reforçadas pelo discurso da “cidade oficial”, escondem-se, entretanto, vivências urbanas plurais e complexas que articulam indivíduos, coletividades e a cidade: 12 “(...) el análisis de la tensión legalidade-ilegalidad se deve dirigir a totalidade de las relaciones sociales, incluyendo las resistências a la segregación social y la valorización de las luchas por el derecho a estar (y permanecer) em la ciudad. (...) No basta defender las políticas públicas o la flebixilización de las normas urbanísticas. Es indispensable uma nueva imaginación professional, que realice la propuesta de uma ciudad fundamentalmente democrática (diversa y plural). “13

São os conflitos urbanos - e mais pujantemente os conflitos fundiários urbanos – que representam a contraface deste processo de silenciamento das desigualdades na produção socioespacial. 2. Conflitos urbanos: Produção do dissenso e manifestação de sujeitos coletivos Os conflitos urbanos caracterizam-se como “todo e qualquer confronto e litígio relativo à infraestrutura, serviços ou condições de vida urbanas, que envolva pelo menos dois atores coletivos e/ou institucionais (inclusive o Estado) e se manifeste no espaço público (vias públicas, meios de comunicação de massa, justiça, representações frente a órgãos públicos, etc).”14 Ou seja, corresponde a toda forma de conflituosidade protagonizada por sujeitos coletivos no espaço social em cujo pleito central situe-se o direito à cidade, em suas múltiplas dimensões. Conforme sistematiza Carlos Vainer existem ao menos duas concepções acerca do lugar do conflito da vida social, que influenciam decisivamente na forma como serão analisadas e problematizadas tais manifestações. A primeira delas, denominada “visão normativa” compreende o conflito como uma disfunção social, ou seja, enquanto desequilibrio sistêmico na organização da sociedade. Nesta perspectiva, em um sistema social adequadamente regulado os

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RIBEIRO, Ana Clara Torres. Dimensiones culturales de la ilegalidad. In Espacios urbanos no con-sentidos: legalidade e ilegalidade em la producción de ciudad. Colombia y Brasil. Medellín, Colombia: Universidad Nacional de Colombia, 2005.p. 30 13 RIBEIRO, Ana Clara Torres. Dimensiones culturales de la ilegalidad. In Espacios urbanos no con-sentidos: legalidade e ilegalidade em la producción de ciudad. Colombia y Brasil. Medellín, Colombia: Universidad Nacional de Colombia, 2005.p. 30 14 Esta definição foi elaborada pelo Observatório Permanente de Conflitos Urbanos, vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Acesso disponível em http://www.observaconflitos.ippur.ufrj.br.

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conflitos não existiriam ou ocupariam dimensão secundária e de diminuta relevância em relação às questões fundamentais e estruturantes do sistema.15 A outra concepção diz respeito à noção de que a capacidade de geração e reprodução de conflitos é diretamente proporcional aos traços de pujância e dinamicidade de determinada sociedade. Isso significa que antes de representar qualquer distorção indesejável na estabilidade social “os conflitos constituem dinâmicas, processos e sujeitos sociais que viabilizam e operam o permanente aperfeiçoamento do sistema ou, mesmo, em algumas visões, sua superação – através de reformas ou revoluções”.16 Diante dissso, os conflitos que versam sobre os antagonismos pertinentes à (re) produção das cidades cumprem o papel de confrontar o consenso na formação do pacto entre citadinos, denunciando os diferentes conjuntos de interesses e a desigualdade na fruição dos benefícios no espaço urbano. A rejeição da legitimidade e pertinências destas ações coletivas de enfrentamento nas cidades ampara-se, segundo Vainer, em certas correntes intelectuais e políticas que podem ser agrupadas em três grandes campos: i) “utopia da sociedade/cidade harmônica”; ii) “utopia da sociedade/cidade silenciada” e iii) “utopia da sociedade/cidade negocial”. A “utopia da sociedade/cidade harmônica” traduz-se na projeção utópica caracterizada pelo igualitarismo social e pela ausência de conflituosidade. Em tal argumentação, a obtenção do igualitarismo ou homogeneização dos indivíduos na cidade encerraria qualquer dimensão conflituosa em torno do espaço urbano.17 Na “utopia da sociedade/cidade silenciada” por sua vez, os conflitos são extintos por meio da violência do poder. Trata-se da busca pela aniquilação do dissenso como elemento central de articulação do poder, vigindo tanto em ordenamentos

sociais

abertamente

ditatoriais

quanto

em

sistemas

classificáveis,

apriorísticamente, como democráticos.18 Por fim, a “utopia da sociedade/cidade consensual” fundamenta-se na leitura negocial da cidade para a qual os indivíduos seriam pretensamente iguais e aptos a transigir livremente sobre seus interesses. Sob esta concepção, alinhada à noção de contratualização dos

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VAINER, Carlos “Visão do Movimento Social, da Universidade e do Governo Federal sobre a Prevenção e Mediação dos Conflitos Urbanos.” In. Palestra proferida no Seminário Nacional Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiarios Urbanos. Ministério das Cidades: 2007. p.1. 16 Ibidem. p. 2 17 Ibidem. p. 4 18 Idem.

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antagonismos na cidade, os conflitos seriam evitados pela negociação prévia e a conciliação entre os direitos e interesses dos sujeitos em confronto. 19 Ocorre que, em uma sociedade marcada pela desigualdade e pela segregação sociespacial, a satisfação de necessidades e direitos fundamentais de determinados sujeitos coletivos – a exemplo da moradia digna – demanda, muitas vezes, a restrição de interesses individuais ou de grupos particulares, como a especulação imobiliária. E é nesta contradição, fundada em inexorável dissenso, que os conflitos urbanos apresentam-se como a resposta possível. Cumprem, por um lado, a função de anunciar e desestabilizar situações de injusta desigualdade no espaço urbano, evidenciando as situações de ausência de direitos encobertas pelas projeções utópicas que descrevemos acima. De outro lado, é apenas por meio dos conflitos que os grupos que vivenciam condições comuns de adversidade se constituem enquanto sujeitos coletivos e passam a atuar politicamente no espaço público, mobilizando-se para demanda de direitos e alteração do status quo. Conforme afirma Ilse Scherer-Warren, os sem-teto assim com os sem-terra caracterizam-se por permanente “diáspora dentro do Estado-nação”:20 “Será com suas participações nas lutas pela terra e pela moradia, que essas populações se transformam em sujeitos que lutam por direitos e em atores politicamente ativos nas redes em movimento. É nessa condição que realizam a passagem atópica dos aglomerados de exclusão para o sonho utópico dos novos territórios-zona (assentamentos e lugares fixos de moradia) e com o sentimento de pertencimento e reconhecimento como cidadão e sujeito coletivo nos territórios-rede (…).”21

A tipologia dos conflitos urbanos é vasta e abrange diferentes objetos, formas de manifestação e agentes sociais envolvidos. A heterogeneidade também está presente nas formas de manifestação que abrangem denúncias em meios de comunicação; atos políticos em espaços públicos; ocupação de prédios ou terrenos, confrontos com as forças de segurança; abaixoassinados; representações elaboradas coletivamente e destinadas ao Poder Público ou, ainda, demandas articuladas sob a forma de ações judiciais. 22

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VAINER, Carlos “Visão do Movimento Social, da Universidade e do Governo Federal sobre a Prevenção e Mediação dos Conflitos Urbanos.” In. Palestra proferida no Seminário Nacional Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiarios Urbanos. Ministério das Cidades: 2007. p.5. 20 SCHERER-WARREN, Ilse. Estado e Lutas sociais: participação e conflito na produção do espaço.In Ambiens Sociedade Cooperativa (org.) Estado e lutas sociais: intervenções e disputas no território. Curitiba, Kairós, 2010.p. 260. 21 Idem. 22 VAINER, Carlos “Visão do Movimento Social, da Universidade e do Governo Federal sobre a Prevenção e Mediação dos Conflitos Urbanos.” In. Palestra proferida no Seminário Nacional Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiarios Urbanos. Ministério das Cidades: 2007. p.5.

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Diante da pluralidade destas expressões, para as reflexões propostas neste trabalho optamos pelo recorte temático pertinente aos conflitos urbanos cujo objeto identifica-se com as disputas pelo acesso a terra para moradia, protagonizadas por sujeitos coletivos e desenvolvidas na forma de ações ajuizadas no Poder Judiciário. 3. Conflitos Fundiários Urbanos Os conflitos fundiários urbanos caracterizam-se por situações de disputa pela posse ou propriedade de imóveis urbanos, envolvendo famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis que necessitem ou demandem a proteção do Estado na garantia do direito humano à moradia e à cidade. Compreendem, ainda, os confrontos ocasionados pelo impacto de empreendimentos públicos e privados que ameacem a garantia destes direitos fundamentais.23 Esta definição, elaborada por Resolução do Conselho Nacional das Cidades24, fundamenta-se em amplo leque de diplomas legais - formulados no âmbito internacional e nacional - que versam sobre a proteção jurídica do direito à moradia adequada, bem como disciplinam os limites impostos à prática de “despejos forçados”, realizados em circunstâncias de conflitos fundiários urbanos. 25 Todavia, nas situações de conflitos fundiários que envolvem disputas de bens jurídicos, não raro antagônicos, notadamente vinculados à posse ou a propriedade da terra urbana, esse robusto arcabouço legal ainda parece carecer de efetividade. O aumento crescente dos

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A elaboração do conceito de conflitos fundiários urbanos é apresentada pela Resolução Recomendada n.º87, de 8 de dezembro de 2009. Trata-se de documento em vigência, aprovado pelo Conselho Nacional das Cidades e recomendado ao Ministério das Cidades. 24 O Conselho Nacional das Cidades foi criado em 2004 e possui natureza deliberativa e consultiva, integrando a estrutura do Ministério das Cidades. Possui como maior finalidade o monitoramento e a propositura de diretrizes para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano – PNDU .Atualmente o ConCidades é composto por 86 titulares, dentre os quais 49 membros pertencentes à sociedade civil e 37 representantes do poder público (federal, estadual e municipal). 25 Segundo esclarece Nelson Saule Junior o “direito à moradia no direito interncional dos direitos humanos tem como fonte originária a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, apesar de não ter valor jurídico, contém um núcleo de direitos da pessoa humana, que foram incorporados nos tratados internacionais de direitos humanos. A moradia é reconhecida como uma necessidade básica da pessoa humana, com base na concepção da Declaração Universal dos Direitos Humanos sobre o direito a um padrão de vida adequado.”Cf.SAULE JUNIOR, Nelson.A proteção juridica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,2004. p.89. Desde a Declaração Universal, muitos instrumentos de proteção internacional de direitos humanos dedicaram-se ao tema, dos quais se pode mencionar: Pacto Iternacional dos Direitos Econônomicos, Sociais e Culturais (1966); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos (1966); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação Racial (1965); Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989); Convenção Internacional de Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família (1977); Convenção Internacional Sobre o Estatuto dos Refugiados (1951). Em âmbito nacional, é preciso mencionar a Constituição Federal, que pioneiramente dedicou capítulo específico à Política Urbana; o Estatuto da Cidade (Lei n.º10.257/2001); a Lei n.º 11.977/2009, que versa sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, além de outras legislações esparsas que complementam o quadro legal urbanístico brasileiro.

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registros de conflitos urbanos relacionados ao acesso a terra para moradia coloca-se como o cerne de uma conjuntura paradoxal de desenvolvimento e produção do espaço nas cidades. 26 De um lado, tem-se o ascendente investimento em produção habitacional – com a realização de programas dedicados a esta finalidade 27– apoiado por um ordenamento jurídico que incorporou o direito à moradia como direito fundamental e pela existência de inúmeros espaços participativos que, em sua proposição origina, cumprem a função de democratizar a elaboração da política urbana. Não obstante, assiste-se a “um enorme impulso aos processos de espoliação e concentração da riqueza que, historicamente, sempre estiveram ligados à questão do acesso à terra.”28 Conforme esclarece Raquel Rolnik, no meio urbano paralelamente aos processos de ampliação do crédito e de investimentos públicos no setor da construção civil, persiste o adensamento da especulação imobiliária com a elevação dos preços da terra e dos imóveis. Esta dinâmica tem cumprido o papel de ampliar consideravelmente os conflitos fundiários em duas perspectivas: a primeira delas corresponde à expansão das fronteiras de atuação do mercado imobiliário, com a inclusão de novas terras em seu espectro de interesse, o que tem resultado na remoção de famílias que moram em ocupações historicamente consolidadas. Em segundo lugar, tem-se a intensificação de novas ocupações de terra por parte dos setores da população que não conseguem acessar estas possibilidades de crédito para moradia. Correspondem essencialmente aos indivíduos situados na maior concentração de taxa do déficit habitacional e menor capacidade econômica – cuja faixa de renda oscila entre 0 e 3 salários mínimos, e que moram em grandes metrópoles nas quais o crescente valor da terra tem inviabilizado o sucesso de programas habitacionais.29 Acrescente-se, ainda, um fator de reforço às dinâmicas acima descritas que corresponde à realização dos megaeventos esportivos no Brasil, especificadamente a Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. Sob a justificativa das competições as cidades-sede têm realizado

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Segundo informações fornecidas pelo Ministério das Cidades o registro de conflitos fundiários urbanos cresceu em 200% desde o ano de 2009. Cf. Jornal Estado São Paulo (2012). “Denúncias de conflitos fundiários cresceram 200% em três anos no Brasil”, 14 de março. A ausência de diagnóstico específico sobre o assunto, entretanto, faz com que os números não conduzam a conclusões sobre a totalidade e a territorialidade estas ocorrências, nem tampouco permitam comparações definitivas em relação a outros períodos históricos. 27 A este respeito, é possível citar o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV – instituído pela Lei n.º11.977, de 7 de julho de 2009. 28 ROLNIK, Raquel. (2012). “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil”. Le Monde Diplomatique Brasil, 6 de fevereiro. 29 ROLNIK, Raquel. (2012). “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil”. Le Monde Diplomatique Brasil, 6 de fevereiro.

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uma série de intervenções e grandes projetos urbanos que resultam em violações de direitos humanos e na remoção forçada de milhares de pessoas. 30 Em todas as situações, o mínimo comum reside no desrespeito à segurança legal da posse e na supremacia de interesses privados com a concentração da terra urbanizada, como um obstáculo de difícil tranposição para garantia de direitos fundamentais. Resta evidente a desconformidade entre as respostas oferecidas pelo Poder Público, estas situações conflituosas, e os instrumentos disponíveis para tal finalidade. 4. Poder Judiciário e Conflitos fundiários A falta de afinação entre políticas públicas que deveriam prover o direito à moradia adequada e o ordenamento territorial das cidades é o grande elemento contemporâneo catalisador de conflitos pela terra urbana no Brasil. Dentre as estratégias que buscam fornecer soluções a estas crescentes demandas é possível citar a elaboração da Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, elaborada pelo Conselho Nacional das Cidades e implementada por meio da Resolução Recomendada n.º87, de 8 de dezembro de 2009. Trata-se de um conjunto de dispositivos gerais que busca matizar a resolução das disputas fundiárias nas cidades mediante a aplicação do conteúdo assegurado no ordenamento jurídico vigente, especialmente a Constituição Federal e o Estatuto das Cidades. A Política divide-se em três grandes nichos de atuação, que devem operar articuladamente, e que compreendem a prevenção, a mediação e o monitoramento das disputas por terras urbanas para moradia no Brasil. Em seus objetivos destacam-se o necessário reconhecimento do caráter coletivo dos conflitos fundiários urbanos, nos litígios pela posse e propriedade, que envolvam famílias de baixa renda ou grupos sociais vulneráveis. Além disso, também é mencionada a importância

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Conforme estimativas apresentadas no Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”, cerca de 170 mil pessoas encontravam-se ameaçadas de despejo em função dos megaeventos esportivos. “Via de regra são comunidades localizadas em regiões cujos imóveis passaram, ao longo do tempo, por processos de valorização tornando-se objeto da cobiça dos que fazem da especulação com a valorização imobiliária a fonte de fabulosos lucros. Evidentemente, os motivos alegados para remoção forçada são outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as populações em questões de risco ambientais e,mesmo, a melhoria de suas condições de vida, ainda que a sua revelia e contra sua vontade.” Cf. Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”. p.18.

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da garantia do devido processo legal em casos de conflitos, com vistas a possibilitar o contraditório e a ampla defesa, para todas as pessoas envolvidas. 31 Os dispositivos apresentados pela Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos fundiários urbanos representam a síntese dos diversos diplomas legais mencionados no item anterior, e reforçam a existência de instrumentos que deveriam possibilitar melhores respostas às situações de disputa pela terra urbana no Brasil. A implementação destas ferramentas é prerrogativa de todos os poderes – executivo, legislativo e judiciário – cada qual no âmbito do exercício de suas competências, constitucionalmente estabelecido. Os confrontos pelo espaço urbano traduzidos em conflitos pelo acesso a terra para moradia não apenas transitam, portanto, pelas políticas públicas a serem efetivadas pelo Poder Executivo. Em um cenário de ascendente judicialização de conflitos sociais, cada vez mais o Poder Judiciário também é convocado a analisar tais demandas e emitir posicionamentos por meio de decisões. De acordo com Luís Roberto Barroso, a reinauguração democrática sob o marco da Constituição Federal de 1988 acarretou o despertar de um lugar inédito para prestação jurisdicional, permeado pelo surgimento de “novos” direitos; o aumento de demanda por justiça e a ascensão institucional do Judiciário. Como resultado deste percurso verificou-se a “judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final.” 32 A ressiginficação do Poder Judiciário como um espaço privilegiado para o trânsito das relações sociais em conflito implica, consequentemente, em um redimensionamento do lugar das decisões proferidas na atuação jurisdicional frente à a realização de direitos fundamentais, como o acesso à moradia digna e o direito à cidade. O aumento da importância do Poder Judiciário no que tange à avaliação de conflitos sociais vem subsidiado por elaborações doutrinárias que sugerem uma virada teórica e metodológica afinada ao novo texto constitucional. Esta vertente crítica preconiza a ressignificação dos pilares clássicos do direito vigente, principalmente do direito privado, buscando matizar as raízes privatistas fundadas no individualismo patrimonialista e redimensionar sua aplicação à satisfação das necessidades de sujeitos concretos. Conforme esclarece José Antônio Peres Gediel essa corrente doutrinária corresponde a um viés crítico às relações clássicas do direito privado que conformam o modelo jurídico 31

Cf. Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos, estabelecida na Resolução n.º87, de 8 de dezembro de 2009 do Conselho Nacional das Cidades. 32 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva,2011.p. 407

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hegemônico, sob a fundamentação da “valorização radical do ser humano concreto, socialmente inserido com suas diferenças, mas dotado de dignidade essencial que o identifica com o destino de toda a humanidade”.33 Este retorno às raízes antropocêntricas do direito, como afirma Luiz Edson Fachin, deverá servir não para reafirmar os postulados individualistas oitocentistas, mas para romper com as noções de neutralidade e tecnicismo, vocacionando o direito definitivamente a serviço da vida. 34 No caso específico de análise deste trabalho, esta nova perspectiva fundada na “constitucionalização” das relações interprivadas e “repersonalização” das relações jurídicas incide diretamente sobre esfera das titularidades, propugnando a incorporação do conteúdo da função social como substantivo do direito de propriedade.35 Decorre daí, a defesa de que nos casos concretos de conflitos fundiários, em não havendo comprovada função social do imóvel em lítigio, perder-se-ia a justificativa de titularidade por aquele que a detivesse. É o que afirma Gustavo Tepedino: Disso decorre que se uma determinada propriedade não cumpre sua função social, perde o seu título justificativo. De fato, se a função social é noção que surge exatamente na busca de uma legitimidade da propriedade privada, não seria excessivo afirmar que, na sua ausência, seja retirada a tutela jurídica dominical, em situações concretas de conflito, para privilegiar a utilização do bem que, mesmo desprovida do título de propriedade, condiciona-se e atende ao interesse social.36

Sob esta ótica, baseada na eficácia horizontal da principiologia constitucional em relação às titularidades, aponta-se para uma travessia jurídica empreendida pela transposição da propriedade imobiliária clássica e sua ascensão ao plano da coexistencialidade e da solidariedade social.37 Em rumo ainda mais dedicado à construção de “um contraponto humano e social” à uma “propriedade concentrada e despersonalizada” defende Luiz Edson Fachin a autonomia da posse perante a propriedade e a não redução de seu conteúdo a constricções jurídicas que percam de vista sua vocação para satisfação de necessidades.38 33

GEDIEL, José Antônio Peres. Memorial apresentado ao Concurso Público para a Classe de Professor Titular de Direito Civil, do Departamento de Direito Civil e Processual Civil, do Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná — UFPR. Texto inédito. p. 61. Para um maior aprofundamento nas reflexões que vem sendo elaboradas sob a perspectiva do direito civil-constitucional, consultar: PIERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 34 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 18. 35 FACHIN, Luiz Edson. “Homens e mulheres do chão levantados.” In Questões do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar,2008.p. 56. 36 TEPEDINO, Gustavo; SCHEREIBER, Anderson.O Papel do Poder Judiciário na Efetivação da Função Social da Propriedade. In STROZAKE, Juvelino José. (org.). Questões agrárias. Julgados, comentários e pareceres. São Paulo: Editora Método, 2002. p.40. 37 FACHIN, Luiz Edson. “Homens e mulheres do chão levantados.” In Questões do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar,2008.p. 65. 38 FACHIN, Luiz Edson.Função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988.p. 21. Para um maior aprofundamento sobre o tema da

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Ao observarmos o tratamento jurisdicional dispensado às situações de conflito fundiário urbano, entretanto, deparamo-nos com um cenário composto por mais continuidades do que rupturas. Como bem define Jacques Alfonsin, nos múltiplos problemas relacionados ao acesso à terra no Brasil as soluções jurídicas apresentadas permanecem desconsiderando tal questão como prioritária.39 O maior indício desse comportamento reside na sobrevalorização do registro imobiliário, para aferição da propriedade da terra, dispensando qualquer outra forma de análise que pudesse aventar a dimensão coletiva dos sujeitos, a violação de direitos fundamentais ou a má utilização do bem imóvel em litígio pelo proprietário.40 Ao lado da construção de doutrinas jurídicas que almejam uma virada axiológica no conteúdo dos direitos patrimoniais, parece resistir na atuação jurisdicional a reprodução de certa “mentalidade” moderna proprietária, caracterizada pela simplicidade e abstração.41 Conforme descreve Pietro Barcellona, o proprium, que antes pautava as relações de pertencimento, converte-se na modernidade em propriedade anônima e passa a configurar uma “potência objetivada que parece ter vida própria e inclusive passa a governar as relações entre os homens, que se transformam precisamente, por um lado, em relações entre coisas, e por outro, em relações entre sujeitos abstratos de direito.” 42 A la abstracción de la propiedad corresponde la abstracción del sujeto, y solo esto hace posible la transformación del individualismo posesivo originário em uma forma general de organización de la sociedad: la sociedad de los propietarios libres e iguales. También aqui reconocemos uma paradoja de la constittuición de la modernidad, que solo la subjetividad jurídica abstracta consigue mediar: la propiedad identificada como componente constitutivo del individualismo, como el propium de la vocación posesiva, se transforma em pontencia enajenada y coagulada en el objeto que se pone frente al individuo particular como mercancia o como capital.43

autonomia da posse e sua função social, consultar: GIL, Antonio Hernández. La función social de la posesión (Ensayo de teorización sociológico-jurídica). Madrid: Alianza Editorial, 1969. 39 ALFONSIN. Jacques Távora. O acesso à terra como conteudo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.p 115 40 Ibidem.p. 116 41 STAUT JUNIOR, Sérgio. Cuidados Metodológicos no Estudo da História do Direito de Propriedade. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, América do Sul, 42 2006. p. 162. 42 BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Madrid: Editorial Trotta, 1996. p. 48. Livre tradução da autora. 43 Tradução livre. Afirma o autor: “À abstração da propriedade corresponde a abstração do sujeito, e só isto torna possível a transformação do individualismo possessivo originário em uma forma geral de organização da sociedade: a sociedade dos proprietários livres e iguais, Também aqui reconhecemos um paradoxo da constituição da modernidade, que só a subjetividade jurídica abstrata consegue mediar:a propriedade identificada como um componente do individualismo, como o proprium da vocação possessiva, se transforma em potencia alienada e coagulada que se põe a frente do indivíduo particular como mercadoria ou como capital.” BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Madrid: Editorial Trotta, 1996. p. 48.

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As continuidades que marcam o vigor desta “mentalidade proprietária”, inaugurada na modernidade jurídica, são em si incompatíveis com a análise integral dos conflitos fundiários urbanos. Isto porque, estes se constituem por relações complexas, calcadas em necessidades de sujeitos concretos, indisponíveis a leituras apriorísticas baseadas unicamente em registros imobiliários e na adequação formal de títulos de propriedade. 5. Atuação do Poder Judiciario: seletividade e reprodução da segregação socioespacial O espaço urbano representa na atualidade palco privilegiado de disputas e conflitos que orbitam em torno de sua apropriação e das finalidades possíveis para o seu uso social. Os confrontos coletivos relacionados ao acesso à terra urbana para habitação, emergem nesta arena como o resultado dos processos históricos de segregação socioespacial nas cidades brasileiras, representando situações-limite diante da ausência de realização material do direito fundamental à moradia adequada. Em que pese a existência de arcabouço positivo substancial no que tange à proteção do direito à moradia - incorporado por meio dos pactos internacionais de direitos humanos, do texto constitucional ou de leis específicas infraconstitucionais – os conflitos fundiários urbanos apresentam-se como uma realidade crescente e insuficientemente investigada tanto na doutrina jurídica, quanto nos casos concretos submetidos à análise jurisdicional. A carência de análises empíricas sobre a temática reforça o pioneirismo do Projeto “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imóveis”, desenvolvido pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Muito embora a

coletas de informações seja parcial em relação ao cenário nacional, os dados apresentados permitem apontar para determinada tendência contemporânea no comportamento do Poder Judiciário em relação às ações de disputa pela terra urbana. Nesse espectro, características constitutivas destes fenômenos sociais - como a dimensão coletiva e evidente repercussão social - aparentemente deixam de ser analisadas em suas peculiariedades. Em verdade, dão lugar à constrictas elaborações processuais que operam a partir de categorias do direito 44

A pesquisa citada foi realizada no âmbito do “Projeto Pensando o Direito” (Convocação 02/2009), desenvolvido pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Entitulada “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imóveis”, a investigação foi conduzida pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob a coordenação acadêmica dos professores da Faculdade de Direito - Nelson Saule Júnior, Daniela Libório e Arlete Inês Aurelli. Para conclusão dos trabalhos, houve a colaboração de outras entidades da sociedade civil que participaram da coleta e análise dos dados, quais sejam: Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos – COHRE; Pólis Instituto de Estudos Formação e Assessoria em Políticas Sociais e Organização Terra de Direitos.

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privado clássico, por meio das quais se tem admitido a salvaguarda da propriedade privada e da segurança patrimonial do proprietário como os principais interesses motivadores da fundamentação decisória. Das constatações que puderam ser empiricamente aferidas, a primeira delas diz respeito à ausência de uniformização terminológica na referência aos conflitos fundiários. As decisões pesquisadas demonstraram que a doutrina jurídica utilizada para fundamentação das sentenças não invoca em sua análise parte signficativa dos vocábulos pertinentes às dinâmicas socioespaciais que constituem o objeto das disputas. Esse comportamento indica uma lacuna importante na construção de “arcabouço conceitual de porte na matéria”, cuja ausência é verificável tanto na bibliografia juridica quanto nas fontes primárias consultadas. A relevância da não recepção de conceitos que versam especificadamente sobre conflitos fundiários urbanos está na atomização destes fenômenos sociais e na utilização de institutos inadequados para as demandas, mormente advindos da dogmática civilista clássica. Com isso, tem-se que o conteúdo das dinâmicas socioespaciais deixa de ser conhecido pelo Direito que passa a operar sob viés exclusivamente individual e patrimonial, reforçando o encobrimento do caráter coletivo que lhes é constitutivo. Exemplo disso é demonstrado pela aludida pesquisa, ao apontar que das “21 decisões encontradas para as palavras-chave “favela+posse”, em 17 os réus são pessoas físicas, individualmente consideradas, em alguns casos inclusive em situação de litisconsórcio passivo.”45 Outro resultado significativo consiste na observação dos fundamentos utilizados para sustentação das decisões judiciais em casos de conflitos fundiários urbanos. A investigação do Tribunal de Justiça de São Paulo e no Tribunal Regional Federal da 3ª Região demonstrou que apenas 4% das fontes pesquisadas versavam sobre a comprovação do cumprimento da função social do imóvel em litígio. Ao passo que 47% das decisões fundamentavam-se apenas na comprovação do esbulho possessório ou na regularidade formal do título de propriedade.46 No que diz respeito aos princípios constitucionais atendidos na decisão os dados igualmente informam a prevalência da tutela de direitos patrimoniais em detrimento da salvaguarda do direito à moradia e da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, do universo de processos analisados no Tribunal de Justiça do Paraná e no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, apenas 4,29% invocou a relização do direito social fundamental à 45

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Direito. Sumário executivo – Relatório de pesquisa “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imóveis” . Série Pensando o direito. nº7/2009. – versão publicação. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, 2009. p. 38 46 Ibidem. p. 66-67.

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moradia, em contraponto dos quais 52% fundamentaram-se na defesa da segurança patrimonial da parte proprietária. Ademais, a função social da propriedade não foi sequer citada como componente do fundamento das medidas liminares nas ações urbanas. 47 Ainda que de forma preliminar, este cenário permite indicar a falta de permeabilidade dos conflitos fudiários urbanos, em sua integralidade, diante do Poder Judiciário. A manutenção do instituto clássico da propriedade privada como núcleo decisório nas disputas pela terra, e o silêncio jurisdicional acerca das dimensões coletivas e da repercussão social que envolvem o tema, confirmam a parca aplicabilidade dos instrumentos jurídicos dedicados à tutela do direito à moradia. Os dados apresentados trazem à tona o problema da racionalidade pela qual vem sendo pautada a intervenção jurisdicional em casos de conflitos fundiários urbanos. Permite ainda sugerir que o comportamento típico desempenhado pelo Poder Judiciário nestes casos atua como um fator de reforço à segregação socioespacial urbana, com repercussões decisivas no aprofundamento das desigualdades espaciais no Brasil. O desafio contemporâneo está na melhor elucidação dos mecanismos pelos quais a seletividade das decisões jurisdicionais tem operado, compreendendo a reconstrução da trajetória de mobilização de determinados institutos jurídicos; o contexto de sua aplicação, e os possíveis (des) caminhos no olhar dispensado contemporaneamente aos confrontos coletivos sobre os territórios das cidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALFONSIN. Jacques Távora. O acesso à terra como conteudo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Madrid: Editorial Trotta, 1996. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. Dossiê da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”. p.18. FACHIN, Luiz Edson. “Homens e mulheres do chão levantados.” In Questões do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. ______. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 47

Ibidem. p. 67

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______.Função social da posse e a propriedade contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988. GEDIEL, José Antônio Peres. Memorial apresentado ao Concurso Público para a Classe de Professor Titular de Direito Civil, do Departamento de Direito Civil e Processual Civil, do Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná — UFPR. Texto inédito. GIL, Antonio Hernández. La función social de la posesión (Ensayo de teorización sociológico-jurídica). Madrid: Alianza Editorial, 1969. HARVEY, David. Espaços de Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2009. MARCUSE, Peter. Enclaves, sim; guetos, não: A segregação e o Estado. In Espaços & Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos. v.24, n.45. São Paulo: Núcleo de Estudos Estudos Regionais e Urbanos, 2004. MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias- Planejamento urbano no Brasil. In: A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Otília Arantes;Carlos Vainer; Ermínia Maricato – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. PIERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Direito. Sumário executivo – Relatório de pesquisa “Conflitos coletivos sobre a posse e a propriedade de bens imóveis” . Série Pensando o direito. n.º 7/2009. – versão publicação. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, 2009. RIBEIRO, Ana Clara Torres. Dimensiones culturales de la ilegalidad. In Espacios urbanos no con-sentidos: legalidade e ilegalidade em la producción de ciudad. Colombia y Brasil. Medellín, Colombia: Universidad Nacional de Colombia, 2005. ROLNIK, Raquel. (2012). “Conflitos por moradia estão aumentando no Brasil”. Le Monde Diplomatique Brasil, 6 de fevereiro. SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, o direito e a questão urbana. In FALCÃO, Joaquim de Arruda. (org.) Invasões urbanas: conflito de direito de propriedade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. SANTOS, Milton. Território e Sociedade — entrevista com Milton Santos. 2ª ed. 4ª reimpressão. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. SAULE JUNIOR, Nelson. A proteção juridica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004. SCHERER-WARREN, Ilse. Estado e Lutas sociais: participação e conflito na produção do espaço.In Ambiens Sociedade Cooperativa (org.) Estado e lutas sociais: intervenções e disputas no território. Curitiba, Kairós, 2010.

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