Conflitos religiosos e a construção do respeito à diversidade: breve histórico e iniciativas recentes.

July 13, 2017 | Autor: C. Vital da Cunha | Categoria: Emerson, Marcos, Carmen
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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012. Pp. 95-122.

Conflitos religiosos e a construção do respeito à diversidade: breve histórico e iniciativas recentes1 Christina Vital da Cunha2

“Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. (Art. 18 – Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Neste capítulo tenho como objetivo analisar o cenário de conflitos no campo religioso carioca a partir de uma perspectiva histórico-antropológica. Sendo assim, traçaremos relações entre situações de intolerância religiosa no passado e no presente e as iniciativas em prol do respeito à diversidade religiosa promovidas seja por entidades públicas, privadas ou oriundas do movimento social. O material que sustenta estas análises tem uma base empírica (com a realização de seis entrevistas semi-estruturadas com atores centrais no debate sobre a intolerância religiosa no Rio de Janeiro3 e acompanhamento, via web e presencialmente, de discussões de religiosos engajados no movimento de combate à intolerância religiosa) e outra fundada em análise de informações documentais e da revisão da bibliografia a respeito do tema proposto.

A presença histórica da intolerância no campo religioso brasileiro “(...) a noção genérica de ‘religião’ a partir da qual se garantiram legalmente a liberdade religiosa e a expressão dos cultos teve como matriz o intenso debate jurídico sobre a melhor maneira de regular os bens, as obras e as formas de associação da Igreja Católica. Na formulação de Giumbelli, as disputas em torno da liberdade religiosa que constituíram o espaço civil republicano nunca versaram sobre ‘qual religião teria liberdade, mas quase sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religião [católica], uma vez que não havia então qualquer outro culto estabelecido, nem se concebiam outras práticas populares como religiosas’”. (Monteiro, 2006, p.5) 1

Neste artigo utilizo parte do material coletado durante a pesquisa realizada para a elaboração de um Diagnóstico sobre o quadro da Intolerância Religiosa no Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa foi solicitada pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro e foi realizada entre os meses de novembro de 2010 e junho de 2011. Para a coleta de dados contei com a preciosa colaboração de Janayna Lui, doutora em Antropologia pelo PPGSA/UFRJ. 2 Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Integrante do CEVIS e da Rede de pesquisadores luso brasileiros de arte urbana. Colaboradora do ISER. 3 Foram entrevistados: autoridades do sistema judiciário (promotor e delegado integrantes da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro); lideranças religiosas que militam pelo respeito à liberdade religiosa em âmbito local e nacional; estudiosos do tema. Foi convidado a nos conceder entrevista o presidente da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, mas o convite foi negado.

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O que se convencionou mais recentemente chamar de intolerância religiosa foi constitutiva do processo de colonização do Brasil, deixando suas marcas no âmbito cultural e político-estatal até os dias atuais. Assim, observamos a presença constante da intolerância religiosa em nossa história, com mudanças que dizem respeito aos atores que a perpetraram/perpetram (ora colonizadores, ora agentes do estado, ora líderes religiosos) e aos argumentos que baseavam/baseiam suas ações. Deste modo, do ponto de vista estratégico/argumentativo, os colonizadores empreendiam ações violentas contra crenças e tradições religiosas diferentes do catolicismo baseados no caráter civilizador que desempenharia a doutrina e as práticas católicas em oposição às cosmologias aqui encontradas entre os indígenas (e, posteriormente, entre os escravos vindos da África). Em meados do século XX os agentes do Estado perseguiram membros ligados aos cultos afro-brasileiros informados pelos ideais da ordem pública (os quais seriam violados, na perspectivas destes agentes/Estado, pelo modo de vida e pelas práticas religiosas dos “marginais” que estariam ligados a estas tradições). Mais contemporaneamente os discursos em torno da extirpação do Mal fundamentam as ações violentas na direção das religiões de matriz africana, de seus fieis e de seus espaços sagrados. A intensa relação do catolicismo com o Brasil é observada desde o período colonial. Assim, vimos que o processo de colonização, século XVI, foi realizado numa parceria entre o governo português e as missões de padres jesuítas (1549), de carmelitas descalços (1580), de beneditinos (1581), de franciscanos (1584), de capuchinhos (1642), entre outros. Os missionários foram elementos centrais na tentativa de implantação de um modelo produtivo e civilizatório que tinha como referência a metrópole portuguesa. Até meados do século XVIII o Estado controlou a atividade eclesiástica na colônia por meio do padroado. Arcava com o sustento da Igreja e impedia a entrada no Brasil de outros cultos, em troca de reconhecimento e obediência. O Estado, por exemplo, nomeava e remunerava párocos e bispos e concedia licença para a construção de igrejas. Ainda no período colonial exigia-se que todos os colonos fossem católicos, a religião oficial no Brasil de então. Ao longo dos séculos que se seguiram à chegada dos colonizadores, os leigos portugueses desempenharam importante papel na expansão do catolicismo no Brasil, sobretudo nas regiões interioranas nas quais a presença de padres e clérigos era rara. Muito embora os leigos tenham desempenhado este papel fundamental, o catolicismo popular que difundiam foi alvo de estigmatização por parte do catolicismo oficial como sendo “feitiçaria, superstição, arte mágica e pacto com o diabo” (Botas, 2009:38)4. Do ponto de vista legal, era expressamente proibido professar outra religião que não a Católica Apostólica Romana. Conforme nos lembra Marlise Vinagre Silva (2009:136-37): “Primeiramente, o país esteve sob a égide das Ordenações do Reino – Afonsinas (1446-1521), Manoelinas (1521-1603) e Filipinas (1603-1830), com nítida influência do direito positivo romano, associado ao direito canônico. Sob esta influência legal, o país criminalizava e punia a heresia, a negação e a blasfêmia de Deus (leia-se do único deus reconhecido, o Deus cristão), assim como as reuniões e festas organizadas por escravos e a prática denominada de feitiçaria. Neste último caso, vale dizer que a feitiçaria era atribuída às diferentes práticas religiosas desenvolvidas pelos africanos de diferentes etnias trazidos para o Brasil na condição de escravos e seus descendentes. A punição, nesses casos, era a pena capital (Pierangelli, 1996, p. 134-57 apud Silva Jr., 2008). Como mostram vários estudos, a reunião de negros escravos, ex-escravos, libertos e livres e de afodescendentes, sob o pretexto de culto aos inquices (tradição banto), 4

Para saber mais ver também Miranda, 1999.

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A relação simbiótica entre Estado e Igreja Católica vigorou também durante o Império. Sendo assim, no código criminal vigente em 1830, em seu artigo 276, observase a punição à celebração, à propaganda ou ao culto de confissão religiosa diferente da oficial (religião católica). Somente com a República, ao final do século XIX, vamos observar uma guinada em direção à separação oficial do Estado da Igreja Católica. A primeira Constituição da República, que data de 1891, é laica, logo, prevê a separação entre o poder político e as instituições religiosas, não permitindo a interferência direta de um determinado poder religioso nas questões do Estado.

“Em decorrência do princípio da Liberdade Religiosa, previsto na Constituição, o Estado deve garantir ao cidadão a liberdade de escolha de sua religião, com base em sua consciência individual, com íntima relação com o seu Deus, nada podendo interferir nesta relação metafísica. O Estado também tem como dever proporcionar a liberdade de culto para todos, independente de filiação religiosa, sob pena de estar incorrendo em favorecimento de uma instituição religiosa em detrimento de outra” (Zveiter, 2009:20).

O resultado do estabelecimento do Estado laico no Brasil foi a formulação de legislações objetivando regular e garantir a liberdade religiosa. Na Constituição de 1934 a liberdade religiosa é francamente apregoada. No Código Penal brasileiro de 1940 observa-se, entre outros, o impedimento ao constrangimento público de alguém em razão de sua crença religiosa. Vejamos. Artigo 208, Titulo V, Capítulo I – Dos crimes contra o sentimento religioso. Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo “Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”.

Apesar destas legislações serem importantes iniciativas no sentido da promoção do direito à diversidade de credo e culto, observou-se episódios de violência contra religiões (sobretudo as de matriz africana como candomblé e umbanda) no período republicano e perpetradas pelo estado, conforme citado em momento anterior no texto. Nas palavras de Montero: “...as particularidades da formação do Estado e da sociedade civil no Brasil construíram o pluralismo religioso a partir da repressão médico-legal a práticas percebidas como mágicas,

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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012. Pp. 95-122. ameaçadoras da moralidade pública. Dessa forma, o modo como hoje se apresentam as "alternativas" religiosas resulta em grande parte de um processo de codificação de práticas no qual médiuns e pais e mães-de-santo levaram em conta os constrangimentos de um quadro jurídico-legal em transformação, os consensos historicamente construídos sobre o que oferece perigo e o que pode ser aceito como prática religiosa, os repertórios de práticas pessoais construídos ao longo de suas trajetórias de vida e as expectativas do público e dos concorrentes. Configuraram-se assim "estilos" de culto derivados de determinadas combinações dos códigos culturais disponíveis” (2006, p. 9).

Maggie (1992) sublinha que as tradições de matriz africana eram perseguidas publicamente, mas eram francamente acionadas, às escondidas, não somente pelos negros brasileiros ou pelos menos favorecidos economicamente, mas, também, pelas camadas médias e altas de nossa sociedade. Estas tradições chamadas de magia (em oposição às religiões que seriam reconhecidas socialmente e identificadas com o Bem) “se esconde do coletivo e do público, reservando-se a espaços mais individuais e privados. Crentes da magia e da religião podem compartilhar os mesmos deuses, mas os cultuam em domínios diferentes” (Op. Cit.: 21). No entanto, continua a autora, a magia “transborda os limites espaciais da casa onde se realizam os rituais e insiste em aparecer em locais públicos de forma misteriosa, às escondidas – nos despachos, oferendas, ebós, feitiço” (ibdem: 21). Para Maggie (1992; 1975), a magia das religiões afro-brasileiras estava associada à produção de malefícios. Este entendimento sobre o que faziam as tradições afro teria sido responsável, segundo a autora, pela maior parte da procura pelos centros, terreiros, curandeiros e benzedeiras. Mas, o que significava a sua força, isto é, seu poder mágico de fazer o Mal, teria sido, ainda segundo a autora, responsável pela oposição que juízes, promotores, advogados e policiais tinham em relação a estas tradições. De 1890 (quando foram criados mecanismos legais de combate aos feiticeiros no Código Penal) a 1945, um sem número de processos foram instaurados e buscas policiais foram realizadas. Estas resultaram, por exemplo, na formação de um acervo chamado Coleção de Magia Negra do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro5. No entanto, vale ressaltar, a perseguição policial aos representantes das religiões afrobrasileiras não era indiscriminada. Maggie sustenta, assim como Dantas (1983 apud Maggie, 1992), que a repressão aos centros era uma perseguição à religiosidade negra e pobre e aos criminosos de outros tipos legais, pois “enquanto alguns terreiros eram violentamente reprimidos, outros eram protegidos por intelectuais da elite local. Esses últimos – geralmente os nagôs puros – foram isentos da acusação de impuros e mágicos e alçados ao status de religião, fora do alcance da polícia” (Op. Cit. : 24). Em relatório encaminhado à Organização das Nações Unidas em 2009 pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa6 lê-se: “Mesmo com o fim da escravidão no Brasil, no final do século XIX, os negros e afrodescentes se mantinham em condições sub-humanas. O fim da escravidão não representou melhoria na qualidade de vida desta população. Sem trabalho, sem estudo e sem moradia, iniciaram construções de barracos (de madeira) nas encostas dos morros e na periferia das cidades.

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Para saber mais acessar www.policiacivil.rj.gov.br/museu/historico.html

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“Relatório de casos assistidos e monitorados pela comissão de combate à intolerância religiosa no Estado do Rio de Janeiro e no Brasil” entregue a Martin Uhomoibai, presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2009.

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Comunicação e Transformação Social 2. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2012. Pp. 95-122. Também não deixaram de ser perseguidos pelo novo governo, quando o assunto era o culto às suas tradições religiosas. O Estado brasileiro utilizava-se de suas polícias para prender, invadir casas e quebrar objetos litúrgicos daqueles que “entoavam seus atabaques para agradar os deuses e rememorar seus ancestrais africanos”. O candomblé e a umbanda, como se denominam as religiões de origem africana, eram oficialmente proibidos no Brasil, na forma da Lei. Esta proibição, por parte do Estado brasileiro, durou quase um século no período republicano. No final da década de 1950, por iniciativa da yalorixá Eugênia Ana dos Santos (filha de africanos Gruncis e sacerdotisa da tradição yorubá), foi que o governo decretou o fim da proibição das manifestações religiosas de origem africana no país”.

Passado o período de perseguição e destruição de templos religiosos do candomblé e umbanda pela polícia, com sustentação legal e visando (ao menos do ponto de vista legal e discursivo) à ordem, não teve fim a estigmatização e a violência contra os fieis destas tradições religiosas conforme apontam inúmeros estudos históricos e etnográficos. Os neo-pentecostais na corrida contra o “Mal”: novos atores na perseguição contra as religiões afrobrasileiras. A centralidade do catolicismo não se desfez com o estabelecimento do Estado Laico. No entanto, o crescimento de outros grupos cristãos, os evangélicos pentecostais e neo-pentecostais, viria a mudar o campo religioso em termos das relações de força internas e externas a ele. Diferentemente das outras tradições religiosas presentes no Brasil, os evangélicos não se conformaram com um papel submisso em relação à Igreja Católica e nem são caracterizados como quietistas: são expansionistas, disputam o espaço público com os símbolos e representantes católicos que ali estavam com lugares “naturalmente” estabelecidos, ocupam cargos políticos em nível municipal, estadual e federal, promovem assistência social nas periferias, favelas e no interior do país, estão na mídia radiofônica, televisiva e virtual. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE -, em 1940 os católicos somavam 95,2% da população nacional, enquanto os evangélicos (chegados ao Brasil em 1910) representavam 2,6% dos brasileiros. Os censos seguintes mostraram o crescimento dos que se declaravam evangélicos em detrimento daqueles que se declaravam católicos. No entanto, é a partir da década de 1980 que o crescimento evangélico se torna mais expressivo, assim como a queda relativa no número dos que se declaravam católicos. Dados do Censo IBGE de 1990 podemos observar que 83,8% se declaravam católicos e 9% dos brasileiros se declaravam evangélicos. Dez anos depois, o Censo do IBGE apontava para a presença de 73,8% de católicos e 15,5% de evangélicos. Ainda no Censo do IBGE de 2000, observamos a ínfima parcela de declarantes kardecistas (1,4%) e do candomblé e umbanda (total de 0,3%). Embora os dados do Censo do IBGE 2010 ainda não tenham sido divulgados para o quesito Religião, pesquisas apontam que a tendência de crescimento evangélico e de decréscimo católico se mantém. Dados do Instituto de Pesquisa DataFolha de 2010 mostram que 25% dos brasileiros se declaram evangélicos (sendo 19% pentecostais e neopentecostais) e 61% católicos. Sobre as mudanças estatísticas sinalizadas pelas pesquisas acima citadas, vale destacar o crescimento relativo do segmento pentecostal/neopentecostal. Este é o segmento que se encontra no centro do debate atual sobre intolerância religiosa. Melhor ainda, são os representantes destas religiões e os fieis de suas igrejas aqueles que são citados em documentos e em manifestações como os principais ofensores e violadores do respeito fundamental à liberdade de expressão, credo e culto religioso no Rio de 5

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Janeiro e no Brasil. A organização de maior destaque na articulação para o combate à intolerância religiosa no estado do Rio de Janeiro é a CEAP – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – e a CCIR – Comissão de Combate à Intolerância Religiosa7. Os militantes do movimento negro e lideranças de diferentes religiões que se reúnem nestas organizações produziram documentos8 que apontam os neopentecostais, notadamente a IURD – Igreja Universal do Reino de Deus – como o inimigo número um da liberdade religiosa. A IURD é responsabilizada diretamente pela produção e veiculação de conteúdos (em programas televisivos, em livros, jornais, etc.) que discriminam as religiões de matriz africana e acusam suas lideranças de charlatanismo, entre outros. É esta igreja responsável pelo caso de discriminação religiosa contra uma mãe de santo na Bahia que resultou numa mobilização pelo estabelecimento do dia 21 de janeiro (foi neste dia, em 1999, que a mãe de santo faleceu em decorrência das difamações a ela proferidas na Folha Universal9) como o dia nacional de combate à intolerância religiosa. O dia nacional de combate à intolerância religiosa foi decretado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo então presidente Luiz Ignácio Lula da Silva na forma da lei 11.635 de 27 de dezembro de 2007. Não só pelos conteúdos veiculados a IURD está no centro deste debate, mas por ter inaugurado, com o seu surgimento em 1977, uma “Batalha Espiritual” (Mariz, 1999; Mariano, 1999) contra o “Mal’ que estaria personificado nas entidades da umbanda e nos orixás do candomblé. A produção deste discurso direcionado ao combate destas religiões vem resultando em ofensas e ataques violentos contra lugares e objetos sagrados, assim como às lideranças e fiéis das religiões em questão. Mais grave que os ataques diretos promovidos pelos neo-pentecostais da IURD e de outras centenas de denominações que professam a “Batalha Espiritual”, é a leniência em relação à discriminação pública e difusa – e, em tantos casos, violenta – das religiões de matriz africana que graça em nossa história e que se acentuou com a difusão da idéia de que as religiões afrobrasileiras e seus seguidores são o “Mal” ou o cultuam. Nas favelas, é possível observar a desfiliação de muitos traficantes de drogas dos centros de candomblé e umbanda presentes nestas localidades e a seguinte adesão a igrejas pentecostais e neopentecostais comprometidas com a “Batalha Espiritual”. A conseqüência disto vem sendo o estabelecimento de rearranjos no campo religioso das favelas, com um novo reequilíbrio das forças políticas em jogo que se define pelo fortalecimento dos evangélicos em detrimento das religiões de matriz africana (de suas lideranças e seguidores)10. Em muitos casos, como anunciaram a mídia e os grupos envolvidos no combate à intolerância religiosa, ao enfraquecimento político, social e cultural do candomblé e umbanda nestas localidades, somou-se graves episódios de violência. Os casos de intolerância religiosa registrados no Rio de Janeiro e no Brasil não aparecem em números muito expressivos se comparados com outros países, mas se avolumam a partir da década de 2000. Vale lembrar ainda, como veremos mais a frente neste artigo, que o não registro dos casos de violência não significa a baixa ocorrência dos mesmos em nossa sociedade.

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Ambos os grupos têm origem no Rio de Janeiro, embora desenvolvam ações nacionais. Para saber mais ver, respectivamente, www.portalceap.org.br e www.eutenhofe.org.br 8 Dentre eles destaco o documento enviado a ONU e o Relatório anual da CCIR divulgados ambos no site www.eutenhofe.org.br 9 Mais detalhes do caso seguem à frente no texto. 10 Para saber mais ver Vital da Cunha, 2008 e 2010.

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O cenário da intolerância religiosa no Brasil e no exterior: argumentos e pesquisas O respeito à liberdade religiosa tornou-se uma bandeira defendida nos mais variados fóruns, congressos e seminários nacionais e internacionais. A conexão direta entre direitos humanos e respeito à liberdade religiosa é produzida como meio de fazer valer o que poderia parecer um direito privado e menor: o direito de professar uma religião e de integrar seus cultos e rituais. Na VI Sessão do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, ocorrida em Genebra/2007, a Santa Sé tomou a palavra em defesa da liberdade religiosa através de seu Observador Permanente, Arcebispo Silvano Tomasi. Ele ressaltou uma característica singular do direito à liberdade religiosa e de culto. Em pronunciamento disse: “O desenvolvimento da proteção e da promoção de todos os direitos humanos fundamentais mostra que a liberdade religiosa pode servir como elemento de síntese, como ponte entre as diversas categorias de direitos humanos". 11 No Rio de Janeiro e no Brasil, os principais argumentos acionados pelos grupos que compõem o campo de militância contra a intolerância religiosa12 são: 1) a intolerância religiosa derivaria de ou escamotearia uma intolerância racial13. Sendo assim, a intolerância religiosa seria fruto de ações pela evitação dos negros (de suas expressões artísticas, culturais e, logo, religiosa); 2) a prática desta intolerância seria um atentado aos direitos humanos. Assim, buscam promover uma adesão pública ao tema a partir do amalgama da democracia e direitos humanos com o problema racial; 3) neste sentido, visam a associar como num formato de slogan a intolerância à ignorância onde uma seria igual a outra; 4) a existência de um inimigo comum a todas as religiões: o neopentecostalismo cujo representante máximo seria a IURD. Neste cenário, estão unidos contra a intolerância religiosa as vítimas (atuais e do passado) e seus antigos algozes. A Igreja Católica, como vimos, religião oficial de Estado até a outorga da primeira Constituição da República em 1891 e religião predominante em nossa cultura até o presente, é um dos principais aliados do movimento pela defesa da liberdade religiosa no Rio de Janeiro e no Brasil. A mesma 11

Acesso: 01/01/2011. Fonte: http://storico.radiovaticana.org/por/storico/200709/156151_aumenta_a_intolerancia_religiosa_no_mundo_a_santa_se_pede_defesa_da_liberdade_religios a.html 12

Mas a frente no texto há uma identificação de alguns grupos de grande destaque na atuação nesta temática. 13 A Agência France Presse em Londres divulgou, em 01 de julho de 2010, dados do RELATORIO – ESTADO DAS MINORIAS E POVOS INDÍGENAS NO MUNDO 2010 da ONG MINORITY RIGHT GROUPS INTERNATIONAL no qual a intolerância religiosa no Brasil e em outros países poderia ser categorizada como o “novo racismo”.

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Igreja Católica que se calou diante dos vários episódios de intolerância praticados pelo Estado quando este era autor de invasões a terreiros e centros de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro durante os anos 1930 até os anos 1970 hoje participa dos eventos, encontros e seminários em prol da garantia da liberdade religiosa. O argumento que conecta a intolerância religiosa à intolerância étnica/racial é contestado por teses como as de Flávio Pierucci (USP) e Ricardo Mariano (PUC-RS). Para Pierucci, tal argumento teria como pano de fundo a afirmação de uma religião que seria negra, uma religião original, substancial e ideologicamente/idealmente de negros. O mesmo autor revela a fragilidade deste pensamento já que, além de ser autoritário e politicamente orientado, o cristianismo evangélico é predominantemente negro e que as religiões como candomblé e umbanda são cada vez mais freqüentadas e exercidas pelos brancos brasileiros. Para Mariano, no entanto, o argumento que conecta intolerância religiosa à intolerância étnica no caso brasileiro, considerando os principais atores em campo, não faz sentido já que a IURD e as demais igrejas neopentecostais derivadas de sua ideologia, estão centradas na questão espiritual, na “batalha espiritual” e não numa “batalha étnica/racial”. Muito embora esta seja uma importante discussão no campo da antropologia e da sociologia da religião, não será aqui desdobrada. Contudo vale salientar que a menção e discussão dos argumentos acionados pelos atores envolvidos na militância contra a intolerância religiosa é importante porque é a partir deles que são moldadas as demandas por políticas públicas em âmbito local e supralocal. O que as pesquisas revelam Embora leis internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948)14, a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação baseadas em religião ou crença (25 de novembro de 1981, resolução nº 36/55)15, a Lei da Liberdade Religiosa Internacional (1998)16, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (no sistema jurídico americano está no Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992)17; a Resolução de Combate à Difamação Religiosa (2007)18 venham buscar o estabelecimento de garantias 14

“Art. 18. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. 15 “Art. 2º. Ninguém será sujeito à coerção por parte de qualquer Estado, instituição, grupo de pessoas ou pessoas que debilitem sua liberdade de religião ou crença de sua livre escolha”. 16 O Congresso aprovou essa lei para promover a liberdade religiosa como objetivo da política externa dos Estados Unidos e combater a perseguição religiosa em todo o mundo. A lei identifica ampla série de ferramentas diplomáticas e econômicas que podem ser utilizadas para encorajar a liberdade de religião e a consciência em todo o mundo como direito humano fundamental. As mais importantes dessas ferramentas são o Relatório Anual sobre Liberdade Religiosa Internacional e a atuação direta norte-americana (através do Escritório de Liberdade Religiosa Internacional) junto a governos estrangeiros. A lei também busca promover a assistência norte-americana às democracias recém-formadas na implementação da liberdade de religião e consciência. 17 “Art. 12. Liberdade de Consciência e de Religião [...] 2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças ou de mudar de religião ou de crenças”. 18 Esta legislação, que vem sendo alvo de controvérsias, pois favoreceria a perseguição a minorias religiosas, foi aprovada em março de 2007 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU.

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para o livre exercício de culto e de expressão religiosa, estudos internacionais mostram um quadro alarmante:

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1) A intolerância religiosa está presente em quase todos os países do mundo, embora em diferentes gradações; 2) É mais grave em países comunistas (como Coréia do Norte, China e Laos) e em países islâmicos (como Irã e Arábia Saudita); 3) Vem recrudescendo desde o início dos anos 2000; 4) É mais incidente contra os cristãos, pois estes estariam identificados com o “dominador” ocidental; 5) A América Latina é considerada, relativamente, tolerante; 6) Estas pesquisas mostram oposições importantes que vêm se consolidando no mundo e atravessam questões sociais, políticas e culturais, dentre elas a questão da intolerância religiosa. Neste sentido, observa-se que o conflito religioso é marcado pela oposição que vem se acentuando entre ocidente x oriente e entre democracia x regimes ditatoriais e totalitários. 7) É importante ressaltar, ainda, a partir da análise destas pesquisas e de outras fontes bibliográficas, que muitas das migrações e diásporas no mundo resultam de perseguições religiosas, da intolerância religiosa praticada por governos e sociedades contra minorias étnicas e religiosas.

Vamos às pesquisas. A classificação dos países de mais intolerantes a menos intolerantes tem relação com a existência de leis que garantam a liberdade religiosa ou que, por outro lado, estabelecem a religião oficial de Estado e as punições para aqueles que não a professarem ou contra ela se rebelarem. No entanto, existem países nos quais há leis que versam sobre o respeito à diversidade religiosa, mas que, na prática social, o desrespeito à lei é flagrante e há grande ineficiência na garantia da punição aos autores dos atos de discriminação e/ou violência contra as minorias religiosas. Entretanto, nos países classificados como intolerantes, não só as minorias étnicas e religiosas sofrem ataques do estado e/ou de segmentos sociais. Nestes também os ateus os sofrem. Na Indonésia, por exemplo, é ilegal ser ateu. Na Arábia Saudita, país no qual todos devem ser, por lei, muçulmanos, referir-se a si mesmo como ateu ou exmulçulmano seguidor de outra religião implica em risco de ser executado por apostasia. Somente será poupado aquele que se arrepender publicamente. Na Coréia do Norte, país classificado como o que mais atenta contra a liberdade religiosa20, cristãos são condenados à morte, outros são condenados a executarem

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Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional, do Escritório de Liberdade Religiosa Internacional do Departamento de Estado dos EUA, é publicado todo ano a partir de 1999. O Centro Internacional de Pesquisa em Liberdade Religiosa, do Hudson Institute (www.hudson.org) Center International Religious Freedom Survey) é responsável pela pesquisa; Classificação de países por perseguição (WWL, sigla em inglês) é uma lista de 50 países onde a perseguição de cristãos por motivos religiosos é pior. Este relatório é publicado a partir de 2002;

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trabalhos forçados em campos de concentração estatais por se reunirem em “igrejas domésticas”. No Irã, segundo país neste ranking, a polícia secreta investiga e persegue cristãos e seguidores de outras religiões que não o islamismo. O islamismo é a religião oficial de Estado e toda a vida social, política e econômica deve seguir conforme a interpretação da Lei Sharia. Segundo a interpretação da Sharia no Irã, qualquer mulçumano que abjurar deve ser morto. Nas Ilhas Maldivas, sexto país no ranking, é proibida qualquer prática religiosa não islâmica. Estrangeiros que professam outra religião são sistematicamente detidos e deportados para seus países de origem. No Iêmen, só são considerados cidadãos os iemenitas que professam o islamismo. É proibido o proselitismo religioso com vistas à conversão de muçulmanos a outras religiões. No norte do país é proibida qualquer edificação religiosa não islâmica. O Iraque, país que no ano de 2010 atingiu a oitava colocação no ranking dos países mais intolerantes do mundo, há intensa migração da população oriunda do recrudescimento dos ataques, desde 2003, aos cristãos. Dois casos ficaram muito conhecidos: 1) o atentado à bomba contra um ônibus de estudantes que resultou na morte de três jovens deixando mais 180 feridos; 2) o ataque à Igreja Católica Síria em Bagdá que terminou com a morte de 58 cristãos, tendo deixado feridos mais 60 cristãos ali presentes. No Uzbequistão, os não muçulmanos são multados e mais recentemente o estado passou a efetuar prisões de curto prazo de fiéis de outras religiões, notadamente, católicos e protestantes. O Estado vem também, nos últimos anos, diminuindo o número de licenças para a construção de templos religiosos não islâmicos. Para os cristãos a discriminação na sociedade implica em enorme dificuldade na obtenção de empregos pelos que professam esta fé. No Laos, segundo país comunista da lista dos dez países mais intolerantes contra os cristãos e décimo no ranking geral, há restrições legais aos cristãos porque são considerados, no mais das vezes, como agentes americanos infiltrados no país. Cristãos são detidos e torturados a fim de renunciarem a sua fé. Apenas no ano de 2010, vinte e cinco cristãos foram mortos por motivos religiosos e pelo menos mais vinte foram presos, enquanto inúmeros templos cristãos foram atacados e destruídos. O “Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional 2010”, do Hudson Institut, é publicado anualmente desde 1999. Em sua metodologia avalia os casos de intolerância religiosa ocorridos em cada país comparando, para efeitos de análise, o respeito à liberdade religiosa com o respeito a outros direitos como políticos e civis. Os resultados historicamente mostram que onde há mais respeito aos diretos civis há mais respeito à liberdade religiosa. Outros resultados apresentados no relatório de 2010 (e que se repetem com poucas variações nos relatórios de anos anteriores) alertam para o fato de que a intolerância religiosa no mundo ocorre não somente de estados em relação a algumas minorias religiosas, não só de umas religiões contra outras, mas também entre seguidores de correntes distintas de uma mesma religião como no caso da discriminação sofrida por cristãos não ortodoxos na Russia, Grécia e Armênia pelos cristãos ortodoxos destes países; ou no caso dos muçulmanos shiites do Paquistão e da Arábia Saudita que sofrem perseguição por parte dos Sunitas. No entanto, ainda assim, os casos mais incidentes e mais violentos são de religiões majoritárias e de Estados contra integrantes de minorias religiosas. Segundo o Relatório revela, desde a sua primeira edição, estes casos ocorrem, principalmente, em países comunistas e islâmicos. Dos 20 países que menos respeitam a liberdade religiosa, 12 são de maioria islâmica. E mesmo 20

Classificação de países por perseguição de 2011. Por ordem os dez mais intolerantes, segundo este relatório, são: Coreia do Norte, Irã, Afeganistão, Arabia Saudita, Somália, Maldivas, Iêmen, Iraque, Uzbequistão, Laos. Para saber mais ver: www.portasabertas.org.br

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em países nos quais há relativa proteção legal para o exercício da liberdade religiosa, esta encontra dificuldade em ser exercida pela violência praticada na sociedade e pela morosidade dos órgãos punitivos e repressivos do Estado. É o caso, segundo este relatório, da Indonésia e de Bangladesh (países que figuram no 5º e 6º lugares, respectivamente, entre os 20 mais intolerantes). Embora o Relatório apresente os comunistas, nacionalistas e islâmicos como os países mais intolerantes do globo, salienta que não há nenhum continente que seja tolerante e outro intolerante. Neste sentido, apresenta que países como Japão, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Botswana, Mali, Nambia, Senegal e África do Sul estão melhor colocados na pesquisa em termos do respeito à liberdade religiosa que países como Bélgica, França, Alemanha e Grécia. Ainda segundo o “Relatório sobre Liberdade Religiosa Internacional 2010” a Estônia e a Hungria são considerados os países nos quais mais há respeito à liberdade religiosa. Os países que têm sua formação cultural-histórica ligada ao cristianismo e ao budismo (Japão e Mongólia, por exemplo) são os países nos quais mais se respeita a liberdade religiosa. A exceção, no caso dos países de tradição budista são os comunistas que professam o materialismo como China21, Tibet, Laos e Coréia do Norte. No cenário mundial, os países latino-americanos aparecem, em sua maioria, como relativamente respeitadores da liberdade religiosa. O Brasil, seguindo o padrão do que ocorre na maior parte dos países da América Latina, é avaliado como relativamente tolerante. O Relatório de 2010, por exemplo, destaca a proteção legal para o exercício e expressão de crenças religiosas distintas e salienta o caráter laico do Estado brasileiro. No entanto, apresenta o número crescente de casos violentos de intolerância, sobretudo contra seguidores de religiões de matriz africana sugerindo que somente a presença de leis não é suficiente para se garantir o pleno exercício da liberdade religiosa. Se há intolerância religiosa em âmbito social o Estado deve desenvolver mecanismos de modo a garantir o exercício dos direitos pelos cidadãos afetados pela situação. Alguns casos registrados na imprensa (como na matéria citada em seguida) são reveladores desta situação no Rio de Janeiro e no Brasil. Ex-ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) do Governo Federal, o advogado Luiz Fernando Martins da Silva conta que recebeu diversas denúncias de praticantes da umbanda e do condomblé expulsos de comunidades dominadas por traficantes, em 2006, quando ocupava o cargo. Na ocasião, Luiz Fernando instaurou um processo administrativo e encaminhou para a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro. Segundo o advogado, o processo não foi para frente porque não houve interesse da governadora Rosinha Garotinho em apurar os casos. A liberdade religiosa no Brasil é um mito. Não existe - diz Luiz Fernando. (Fonte: Jornal Extra de 18 de março de 2008).

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Em matéria veiculada na Folha de São Paulo de 24/04/2011, é apresentado o caso das “igrejas subterrâneas” na China. Durante o domingo de Páscoa do corrente ano, policiais chineses detiveram mais de 20 pessoas numa operação contra cristãos protestantes que realizavam serviços religiosos em público em Pequim. Tratava-se de fiéis da Shouwang, uma das maiores “igrejas subterrâneas” chinesas. Estas são igrejas que se recusam a deixar o Partido Comunista controlar seus rituais e doutrinas, ficando, assim, ilegais perante o governo. “Os líderes da Shouwang estão em prisão domiciliar. O governo chinês alega que o seu povo possui liberdade de religião, garantida pela Constituição. No entanto, a lei só permite o credo em igrejas registradas oficialmente. As igrejas oficiais do país têm cerca de 20 milhões de fieis (...) Estima-se que 50 milhões de cristãos chineses façam parte das "igrejas subterrâneas". De acordo com Grammaticas (correspondente da BBC na China), ativistas cristãos chineses dizem estar sendo alvo de perseguição em todo o território do país”. Ver www.folha.uol.com.br. Acesso em 24 de abril de 2011.

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Casos de intolerância religiosa no Rio de Janeiro e no Brasil Segundo dados disponíveis em relatórios22da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro e das pesquisas internacionais supracitadas, os registros de práticas de intolerância religiosa são baixos em relação ao que ocorre em outros países23. Seriam em torno de 40 casos registrados na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Vale lembrar que somente a partir de 2008 o sistema informatizado da Polícia Civil do Rio de Janeiro começou a registrar as ocorrências conforme tipificado na Lei Caó. Embora tardiamente em relação à demanda dos movimentos sociais, esta iniciativa da polícia é pioneira em relação a outros estados da Federação (com exceção de São Paulo que conta com delegacias especializadas para os crimes de discriminação racial e intolerância religiosa desde 2006). Muitos problemas são mencionados nas entrevistas que realizamos, assim como em artigos e relatórios das mais variadas fontes quanto à subnotificação dos casos de intolerância religiosa. A subnotificação estaria principalmente ligada a uma percepção do policial civil na delegacia de que o crime de intolerância religiosa é de “menor potencial ofensivo”. Sendo assim, não acreditam que a notificação “vai pra frente”, isto é, chegará a se constituir em processo, e desencorajam os denunciantes durante os atendimentos feitos às vítimas nas delegacias. Neste sentido, uma importante liderança que compunha a CCIR, em entrevista para a elaboração deste diagnóstico, revelou sua descrença quanto à ação policial. Tendo sido procurada para orientar um pai de santo que teria sido agredido e tido sua casa invadida a liderança entrevistada disse: “Eu até recomendei que fizesse a denúncia pelo estatuto do idoso porque intolerância religiosa vai muito a critério de quem vai receber a denúncia. Agora, pelo estatuto do idoso o senhor, com certeza, vai ter mais êxito. Não perca tempo discutindo intolerância. Faça jus aos seus direitos por aquilo que a lei já assegura”. No entanto, a nova chefia da PCERJ parece estar sensível à questão levantada pelas lideranças religiosas e pelo movimento social organizado. Sendo assim, em discurso durante o evento comemorativo de três anos de criação da CCIR, a chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, delegada Marta Rocha, prometeu mais empenho da polícia na promoção de estatísticas que subsidiem tanto o movimento social, quanto o Estado para a implementação de políticas públicas, assim como firmou compromisso com a sensibilização/instrução de policiais na ACADEPOL – academia de formação de policiais civis24. Com toda a debilidade estatística e com o problema da subnotificação ratificada tanto pela atual chefe da polícia civil quanto pelo ex-coordenador da Coordenadoria de Informação e Inteligência da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro (CINPOL), delegado Henrique Pêssoa25, observa-se o crescimento do número de registros de casos 22

Ver relatório anual da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa de 2009 e Relatório apresentado à ONU em 2010 pela CCIR em www.eutenhofe.org.br 23

Dados obtidos no primeiro semestre de 2011. Ver reportagem na íntegra em www.eutenhofe.org.br 25 “A simples mudança no sistema de dados significou um avanço importante, mas não o suficiente. Deve-se preparar os policiais para lidar com esse tipo de caso, quebrando dogmas em relação à religião”, diz Carlos Nicodemus, coordenador jurídico da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. “O importante é que o fato seja registrado. Muitas vezes, uma investigação é demorada. Parece que não está sendo dada a devida atenção. A polícia às vezes investiga sem condições, por conta do efetivo reduzido”, diz o delegado Henrique Pessoa. “A Polícia Civil tem todo o interesse de que tudo que chega até nós seja 24

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de intolerância religiosa desde 2008. Este crescimento pode ser motivado principalmente por: 1) Divulgação da Lei Caó e respectivo crescimento da percepção da intolerância religiosa como crime; 2) Aumento da violência associada à intolerância religiosa. Alguns casos de intolerância religiosa estão em destaque tanto na literatura que trata do tema (Santos e Esteves Filho, 2009; Giumbelli, 2003; Birman, 2003; entre outros), quanto nos relatórios da CCIR. São eles: 1) Até a vinda da família Real para o Brasil, os católicos não conviviam com nenhuma outra religião, ou melhor, nem sequer reconheciam como religião o que vinha dos indígenas e africanos e seus descendentes. Com a chegada da família Real e com a vinda de Luteranos e Anglicanos a questão da intolerância emerge no país. Em 1865, os presbiterianos ordenaram o primeiro pastor protestante do Brasil. Quando do seu falecimento em 1873, foi enterrado num cemitério administrado pela Igreja Católica. O Bispo da cidade mandou desenterrar o corpo do pastor José Manoel da Conceição (um ex-padre) sob a alegação de que este era um herege, um inimigo da igreja e ali não deveria estar (Santos e Esteves Filho, 2009); 2) Um bispo da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus – que em um programa levado ao ar no dia 12 de outubro de 1995, diante das câmeras de TV chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Ele foi condenado a dois anos e dois meses de prisão por crimes de discriminação religiosa e vilipêndio de imagem (Giumbelli, 2003; Birman, 2003). 3) STF negou o pedido de Habeas Corpus 82424/RS a editor que veiculava idéias odiosas de segregação racial e religiosa (contra judeus) em livros distribuídos pela internet (Zveiter, 2009). Complementando: “Caso Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a discriminação religiosa constitui uma espécie de crime de racismo, o que a torna um delito imprescritível e inafiançável. Ao manter a condenação de um editor de livros que atentava contra a dignidade da comunidade judaica, o Supremo afirmou aquilo que todos temos a obrigação de saber: a liberdade de expressão e a proibição de censura, previstas na Constituição, não configuram um direito absoluto, situado acima e ao largo do sistema jurídico. Não existem direitos absolutos, nem direitos desvinculados de deveres. Isto significa que, á medida que a liberdade de expressão passa a ser utilizada para pregar o preconceito e a discriminação, tem-se um quadro de abuso e não de uso do direito” (Hélio Silva Jr., 2009:205-06) 4) “Em 2001 um casal de fiéis do candomblé queria registrar a filha com nome africano, mas teve resposta negativa do oficial de registro. No TJSP foi dado ganho de causa para os pais. Em 2002, pela primeira vez, foi que o Poder

investigado”. Ver www.g1.com.br. Matéria veiculada em 26 de janeiro de 2009. Acesso em fevereiro de 2011.

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Judiciário Brasileiro reconheceu a validade de um casamento feito na Religião Afro-Brasileira”. (Hélio Silva Jr., 2009:205-06) 5) Em junho de 2009, no Rio de Janeiro, o pastor Tupirani da Hora, da Igreja Geração de Jesus Cristo, e seu seguidor Afonso Henrique Lobato tiveram prisão temporária decretada por "intolerância" contra religiões afrobrasileiras. Eles foram presos por postar textos e vídeos na internet que fomentavam o preconceito e a violência contra a umbanda e o candomblé. Foram soltos um mês depois, após prestar compromisso de comparecer em juízo. E continuavam aguardando julgamento no fim do período de elaboração deste relatório. (Henrique Pessoa, 2009: 235). 6) Em 2008, em Salvador, o Tribunal de Justiça da Bahia ordenou que a Igreja Universal do Reino de Deus indenizasse por danos morais os familiares da mãe de santo de candomblé Gildásia dos Santos por sua morte em 2000. A igreja recorreu da decisão da Justiça da Bahia ao Superior Tribunal de Justiça, mas em 2009 o STJ manteve a decisão, ordenando a igreja a indenizar a família. 7) A Prefeitura do Rio de Janeiro derrubou um templo afrobrasileiro (barracão e casa de Exu) no Grajaú, Zona Norte do Rio. A Operação Choque de Ordem alegou que o templo estava em área de risco. O sacerdote Marcelo de Paula – que estava com yawo (religioso em processo iniciático) e com dois ogans e ekedjis (sacerdotes) recolhidos para obrigação – teve que suspender os rituais. O templo Ilé Axé Kafun Legi Omin D´Umzambe (de tradição bantu) funcionava no local há mais de 20 anos. Fonte: http://blogdocappacete.blogspot.com/2010/03/intolerancia-religiosa-no-riode.html

O que chama atenção nestes como em vários outros casos de intolerância religiosa registrados é a) A incidência majoritária em relação às tradições de matriz africana e; b) A ocorrência em instituições públicas por atores isolados ou através de ações da própria Administração. Para denunciar publicamente o que diuturnamente acontecia em relação a minorias religiosas e étnicas, para acompanhar os casos registrados e para refletir sobre o que a violência direcionada a segmentos significava em nossa sociedade, muitos grupos se formaram e inúmeras iniciativas foram realizadas. Os objetivos destes grupos e iniciativas seriam promover o respeito à liberdade religiosa, denunciar os intolerantes provocando um clima de constrangimento público em relação a eles e suas atitudes e divulgar a intolerância religiosa como crime a ser judicialmente coibido e seus autores punidos.

Grupos e iniciativas em prol do respeito à liberdade religiosa Dentre as iniciativas/ações que têm repercussão nacional destacamos, pela sua força e capilaridade, a CCIR, CEAP, ABLIRC e a Caminhada Contra a Intolerância Religiosa (sociedade civil), o Grupo de Trabalho Permanente de Enfrentamento à Intolerância Religiosa e para a promoção dos Direitos Humanos - Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Comitê de Diversidade Religiosa - Secretaria Nacional de Direitos Humanos (iniciativas 14

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da gestão pública) e o programa Sagrado – Canal Futura (iniciativa privada). Sobre estas iniciativas podemos dizer: A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR): a comissão é formada por diversas organizações religiosas, instituições estatais e vítimas de intolerância religiosa. Foi fundada em março de 2008 a partir da mobilização de religiosos em resposta a alguns acontecimentos sérios que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro. Paralelamente às manifestações (cuja de maior destaque até então são as Caminhadas Contra a Intolerância Religiosa ocorridas desde 2009 na praia de Copacabana, RJ), a CCIR começou a entrar com representações na justiça para garantir o direito das vítimas. A ONG Projeto Legal atende, gratuitamente, as vítimas de intolerância religiosa. O jurista Luiz Fernando Martins atua com ações coletivas, representando a Comissão em vários órgãos do país. A Comissão se destaca, ainda, por ter elaborado as bases do Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e entregou as propostas ao presidente da República, em 20/11/08, no Rio de Janeiro. (texto inspirado no original “Quem somos” disponível em www.eutenhofe.org.br). O Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP): “é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos, vinculação partidária ou religiosa. Foi fundada no Rio de Janeiro, em 1989, por ex-internos da extinta Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) com a ajuda de representantes da comunidade negra e do movimento de mulheres. A recorrente violação dos direitos fundamentais das classes menos favorecidas foi na realidade a grande inspiração para a criação do CEAP”. (disponível em www.portalceap.org.br). O pedagogo Ivanir dos Santos, membro fundador do CEAP, é coordenador da CCIR. A Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania (ABLIRC): foi constituída no dia 09 de novembro de 2004, em assembléia realizada no Salão Nobre da Câmara de São Paulo. A Associação nasceu da necessidade de organizar a sociedade civil para a defesa do direito fundamental de Liberdade Religiosa. Como estratégia de mobilização para destacar a importância deste tema, a ABLIRC desenvolve eventos com a participação de autoridades civis, militares, religiosas, acadêmicas e representantes da sociedade civil. Foram eles: 1º Fórum Brasileiro de Liberdade Religiosa e Cidadania, no Memorial da América Latina, em 2006; 7 Fóruns Paulistas de Liberdade Religiosa e Cidadania, percorrendo várias cidades do estado; 1º Fórum Estadual na Assembléia Legislativa do Espírito Santo e 1º Fórum Estadual na Câmara Municipal de Salvador, Bahia; além de vários Simpósios Regionais em diferentes partes do país. Samuel Luz é presidente da ABLIRC. (disponível em HTTP://ablirc.wordpress.com). O Comitê de Diversidade Religiosa foi instalado pela Ministra Maria do Rosário, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Governo Federal, em 30 de novembro de 2011. O Comitê conta com 30 membros de diversas tradições religiosas presentes no Brasil como Islamismo, Judaísmo, Budismo, Protestantismo, Religiões de Matriz Africana. Além de religiosos o comitê conta com a presença de representante dos Ateus no Brasil, de pesquisadores de diferentes Universidades brasileiras e de membros de organizações não governamentais com reconhecida trajetória no estudo das religiões e atuação em defesa dos diretos humanos de grupos marginalizados. O objetivo maior deste comitê é monitorar as políticas públicas em âmbito federal que venham a assegurar a liberdade de expressão religiosa e a laicidade do estado. 15

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O Grupo de Trabalho Permanente de Enfrentamento à Intolerância Religiosa e para a promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Governo do Estado do Rio de Janeiro foi instalado formalmente em 02 de fevereiro de 2012, mas já atua no âmbito da secretaria, tendo promovido uma série de atividades das quais se destaca o Iº Seminário Estadual Sobre Intolerância Religiosa e Direitos Humanos: Construindo Políticas Públicas (2009). Este grupo conta com representantes de diferentes tradições religiosas, assim como com representante da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, da Ordem dos Advogados do Brasil/RJ, com representantes de Organizações de defesa de Direitos Humanos sediadas no RJ, do Conselho Regional de Serviço Social, do Conselho Regional de Psicologia, e com pesquisadores da temática da intolerância religiosa e direitos humanos. Seu principal objetivo é acompanhar e propor a implementação de políticas públicas que venham a garantir o livre exercício da diversidade religiosa. Em âmbito privado destaca-se a Série Sagrado, um programa produzido desde 2009 pelo Canal Futura em parceria com a Rede Globo. Na série, que se renova a cada ano, são abordados temas tais como papel o das religiões no mundo contemporâneo, política, sexualidade, infância e religião, violência urbana, lugar da mulher no mundo contemporâneo, Estado Laico, vida após a morte, rituais, meio ambiente, eutanásia, corrupção, planejamento familiar, etc. Os mesmos temas são lançados para lideranças de tradições como Indígenas, Judaísmo, Islamismo, Catolicismo, Protestantismo, Espiritismo, Budismo, Pentecostalismo, Umbanda e Candomblé. Com isto, têm-se a oportunidade de saber o que as diferentes religiões professam sobre um mesmo tema ligado ao próprio campo religioso ou que esteja na agenda pública nacional. Todas estas iniciativas, com destaque para esta última, atuam diretamente na promoção de informações sobre variados credos a fim de romper com o circuito de ignorância quanto ao que cada tradição professa. A importância disto, segundo militantes e estudiosos do tema entrevistados nesta pesquisa, seria que a redução da ignorância e o (possível) aumento da empatia entre os fieis das várias tradições religiosas a partir da redução desta ignorância poderia interferir positivamente no cenário conflitivo de hoje reduzindo e, até, extinguindo os casos de violência física e de assédio moral causados contra religiões (e seus fiéis) diferentes da corrente majoritária hoje no Brasil, a saber, o cristianismo. Vale dizer, ainda, que todas estas iniciativas (assim como outras tantas existentes no Rio de Janeiro e no Brasil que não puderem ser mencionadas nos limites deste artigo) atuam na chave de defesa de uma cultura de paz, de respeito aos direitos fundamentais do homem (dentre eles a de expressão de fé e de pensamentos) e de uma educação mais plural.

Sugestões de militantes e estudiosos para a formulação de Políticas Públicas de garantia do respeito à liberdade religiosa no Estado do Rio de Janeiro Como podemos observar pelas iniciativas destacadas acima (e por outras tantas que vêm tomando o espaço público mais recentemente), muito se caminhou na direção da garantia do respeito à liberdade religiosa, mas há ainda muito a ser feito em termos de políticas públicas. Neste sentido, foi com base nas discussões das organizações competentes, nas entrevistas realizadas para a pesquisa citada, nas leituras da bibliografia de referência e inspiradas pelas iniciativas de outros Estados da Federação que sistematizo aqui algumas propostas que poderiam vir a nortear políticas públicas 16

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exitosas no combate à intolerância religiosa e pela garantia do respeito à liberdade de crença e culto no Estado do Rio de Janeiro. A partir da análise do material citado, foi possível registrar alguns consensos em torno de caminhos a seguir no combate à intolerância religiosa. Dentre eles, o que esteve presente na avaliação geral, destaca-se a importância atribuída à introdução do tema do respeito à diferença, de modo geral, e do respeito à liberdade religiosa, em particular, transversalmente nas escolas. Este seria o espaço, por excelência, na percepção destes atores, para a difusão de valores capazes de formar uma geração mais conectada à percepção e ao respeito aos direitos fundamentais do ser humano. Sobre a importância da educação escolar Dom Antônio Augusto Dias Duarte, bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro por nós entrevistado, disse: “Primeira diretriz para o respeito aos direitos fundamentais é a educação. Educar não é apenas formar. Educar é dar as pessoas conhecimento e a possibilidade de viver os profundos e inalienáveis valores humanos. Valor da vida, da religião, da liberdade, da família, o valor da solidariedade social, o valor de trabalhar pelo bem comum, bem social”. Evidentemente que esta percepção da educação escolar não é unanime entre os entrevistados. Há um amplo debate social e acadêmico sobre o papel da educação e da religião no espaço escolar (Giumbelli,2010; Cunha, 2009; Lui, 2009). No entanto, esta colocação traduz não somente o que a Igreja Católica entende por educação, mas a importância do espaço escolar na difusão dos valores ligados aos direitos humanos. A inserção do tema na grade curricular é sugerida não só para o Ensino Básico, mas também nas Academias de formação policial como modo de formar e transformar concepções a respeito do outro, do respeito às suas concepções e diferenças sejam elas raciais, religiosas ou étnicas. Na sequencia, apresentamos algumas ideias que podem vir a balizar políticas públicas que atuem efetivamente no sentido de garantir o respeito à liberdade religiosa no Estado do Rio de Janeiro. Por políticas públicas entendemos uma postura do poder público diante de problemas identificados em âmbito social seja a partir de diagnósticos técnicos, seja a partir de pressão e demandas sociais. Sendo as políticas públicas um reflexo de situações sociais, elas devem ser alteradas conforme se alterem os cenários que as originaram. A percepção do caráter dinâmico das políticas públicas é fundamental para que estas tenham êxito no contexto social ao qual devem estar relacionadas e no qual serão aplicadas. Pretendemos aqui, tão somente e de modo qualificado, lançar as bases para uma ação do poder público que pode ter nesta iniciativa uma inspiração e, ao mesmo tempo, um incentivo ao trabalho coletivo e a ser executado com a máxima brevidade. As propostas serão apresentadas em blocos. Trata-se de uma separação meramente didática com fins a tornar mais claras as fundamentações ideológicas e as competências para a sua implementação. Destaco, novamente, que não se trata de “inventar a roda”, mas de uma compilação de idéias qualificadamente analisadas para a promoção de ações públicas no sentido de garantir o respeito à liberdade religiosa. Propostas: 1) Bloco Informação e Diálogo:  Criação, em âmbito do estado, de um canal de diálogo permanente entre lideranças religiosas, militantes e estudiosos com o poder público. 17

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Construção de uma agenda para a escuta e encampação de novas demandas dos atores sociais. Criação de campanhas públicas nas mídias (televisiva e radiofônica) com o objetivo de informar a população sobre os diferentes cultos, crenças, escrituras e símbolos sagrados afirmando que o respeito a esta diversidade é igual ao respeito à democracia e aos direitos universais do homem; Elaboração e distribuição de cartilhas e vídeos sobre a importância do respeito à liberdade religiosa e do caráter criminosa das ações de intolerância religiosa; Desenvolvimento de estudos em parceria com organizações da sociedade civil e/ou com universidades para produção de dados que subsidiem ações efetivas na direção das comunidades que sofrem com práticas violentas fomentadas pela intolerância religiosa; Monitoramento e avaliação das políticas de combate à intolerância religiosa produzindo indicadores que possam sinalizar o sucesso ou a necessidade de mudanças nas ações adotadas.

Estas propostas são orientadas pela concepção de que o problema da intolerância religiosa está fundamentado, principalmente, a) na ignorância quanto a direitos e deveres; b) na falta de informação qualificada sobre as religiões e suas cosmologias; c) e na falta de espaços de escuta e reconhecimento do outro como igual.

2) Bloco divulgação de valores a partir de ações integradas entre Secretarias de Estado.  Colocação transversal do tema da intolerância religiosa em diferentes secretarias de estado para que sejam sensíveis, na elaboração de ações e políticas, à esta questão;  Criação de um calendário de campanhas nas escolas estaduais com vistas a divulgar diferentes cultos, crenças, escrituras e símbolos sagrados afirmando que o respeito a esta diversidade é igual ao respeito à democracia e aos direitos universais do homem. Com estas campanhas escolares tentar-se-ia formar as bases de uma sociedade na qual grande constrangimento público se associaria a práticas de intolerância religiosa. Seria uma tentativa de reduzir o espaço como ambiente social para a difusão de idéias e atitudes intolerantes. Seria, ainda, uma tentativa de promover o clima no qual ser intolerante corresponderia a ser antidemocrático, retrogrado e démodé. Respeitar as diferenças estaria imageticamente e ideologicamente ligado, assim, ao pleno exercício da cidadania. A realização destas campanhas seria uma parceria da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Assistência Social com a Secretaria Estadual de Educação.  Promoção de eventos pela SDHSS em parceria com outras secretarias de estado tais como a secretaria de educação, meio ambiente, entre outras, tal como foi feito em âmbito federal para a comemoração do primeiro dia de combate à intolerância religiosa, em 2008. Na ocasião, foi promovido um evento pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Ministério da Cultura, com o apoio dos Ministérios do Meio Ambiente, Educação, Justiça e Relações Exteriores. O objetivo central foi refletir sobre mecanismos de enfrentamento do preconceito e para a criação de formas de estimular a sociedade para a 18

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valorização da diversidade religiosa. Participaram representantes de mais de 70 instituições e segmentos religiosos. Estas propostas são orientadas pela concepção, já apresentada em momento anterior deste texto, de que o combate à intolerância religiosa passa por uma reformulação ideológica para a qual o espaço escolar se mostraria dos mais profícuos. Nesta chave de análise, isto é, de que é necessária a formação de novas mentalidades, o espaço escolar parece privilegiado, assim como ações integradas de secretarias que passariam a adotar a temática como de interesse comum se co-responsabilizando por sua implementação. Com esta reunião de atores públicos, seria possível disseminar uma cultura de paz e de respeito à alteridade. Na escola seria possível estimular o diálogo entre os diferentes através da “curiosidade epistemológica”, nos termos de Paulo Freire. Assim, os diferentes, ao invés de se ignorarem, passariam a dialogar e a se conhecerem, seus sistemas de crenças e valores.

3) Bloco da criação de órgãos públicas  Criar uma secretaria estadual de combate à intolerância religiosa.  Criação de promotorias e juizados especializados no combate à intolerância religiosa. Segundo os atores entrevistados, talvez o volume de casos não justifique a criação de promotorias e juizados, mas a temática poderia ser acolhida por alguns já existentes. Estas propostas são orientadas pela idéia de que a criação destes órgãos dão projeção ao tema, tendo um efeito social e político importante no sentido de afirmar o caráter criminoso da intolerância religiosa, assim como a importância de combatê-lo. 4) Bloco Sociedade Civil com Estado  Valorização pública, a partir de apoio político, de grupos e iniciativas sociais já existentes na direção do combate à intolerância e respeito à diversidade religiosa no Rio de Janeiro – apoio e participação em passeatas, fóruns e seminários debatam o tema;  Criação de Conselhos para a diversidade religiosa e espaços de debate e convivência ecumênica para fomentar o diálogo entre estudiosos e praticantes de diferentes religiões. Esta proposta é orientada pela idéia de que já existem muitas e competentes iniciativas sendo desenvolvidas em âmbito social e que devem ser apoiadas e somadas aos esforços do Estado no sentido de promover o combate à intolerância religiosa. Assim, ao invés de dividir grupos e ações, estariam todos atuando em prol do objetivo maior a ser alcançado. Para finalizar, gostaria de afirmar a importância das ações públicas em prol da redução dos conflitos religiosos identificados hoje e que se espraiam para os campos político e cultural, mas, sobretudo, gostaria de destacar o caráter fundamental de iniciativas e ações ligadas ao movimento social/organizações da sociedade civil e ligadas ao setor privado, com destaque para a Série Sagrado, pois estas vêem contribuindo de modo decisivo para o tratamento qualificado deste tema na agenda 19

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pública em âmbito nacional. Assim, sustento que estas iniciativas devem ser amplamente reconhecidas e incentivadas.

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