Confluências entre Teologia e Literatura: Análise do demônico na obra de Júlio de Queiroz a partir de Tillich

July 24, 2017 | Autor: André do Amaral | Categoria: Poetry, Paul Tillich, Theopoetics, Anxiety of Influence
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Confluências entre Teologia e Literatura: Análise do demônico na obra de Júlio de Queiroz a partir de Tillich Diógenes Braga Ramos; André Luiz do Amaral

Resumo Este artigo explora caminhos de convergência entre os textos de Júlio de Queiroz, poeta brasileiro, e Paul Tillich, conhecido teólogo alemão. Para tal, parte do conceito de demônico, amplamente discutido em Tillich e presente, ainda que de modo incipiente, em Queiroz. Universos literários bastante diversificados são trilhados ao longo do texto, o que demonstra a importância do contínuo diálogo com a cultura, tão caro a Tillich. Faz-se, acima de tudo, um exercício teológico em torno do sagrado e do profano, do divino e do demônico. A maneira como os textos de Queiroz se relacionam com a teologia tillichiana não é tão direta, porém, o leitor familiarizado com Tillich não terá dificuldades em encontrar eixos de intertextualidade e, quiçá, detectar seus próprios. Mais que uma abordagem teórica a respeito de Tillich, o artigo arrisca-se a uma aplicação de seus métodos à literatura. Palavras-Chave: angústia da influência; demônico; teopoética; sagrado; profano. Abstract This paper explores convergent ways between Julio de Queiroz’s text, a Brazilian poet, and Paul Tillich, well-known German theologian. For such objective, this paper starts from the concept of demonic, widely discussed in Tillich and that is present, nevertheless in an incipient manner, in Queiroz. Manifold literary universes are followed up along the text, demonstrating the importance of the continuous dialogue with the culture, so esteemed by Tillich. Over all, a theological exercise is made among the sacred and the profane, the divne and the demonic. The manner of relating Queiroz’s texts to tillichian theology is not so obvious, however, a reader conversant in Tillich’s works will not have difficulties in findRevista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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ing axles of inter-textuality and, perhaps, detecting his own. More than a theoretical approach to Tillich, this paper risks itself in an application of thillichian methods to the Literature. Key-words: anxiety of influence; demonic; theopoetics; sacred; profane.

Nosso objetivo é investigar as confluências entre Teologia e Literatura na obra de Júlio de Queiroz a partir do conceito de demônico, comum tanto a Tillich quanto à crítica literária contemporânea.. De forma geral, nos parece que o termo demônico é uma expressão que faz parte do imaginário do ocidente, sendo muitas vezes mistificada de forma negativa e confusa. Pela brevidade desta comunicação, não será possível vislumbrar a totalidade da produção literária de Queiroz e, por isso, a análise teológico-literária se restringirá aos seguintes textos: Diálogos em tempos de AIDS, Missa para os tempos de agora, e A dança da morte (todos publicados em Sementes do Tempo); e Vozes Ceifadas (publicado em Perfume de Eternidade). Júlio de Queiroz tem formação em teologia e pertence à Congregação Beneditina do Brasil. É um escritor capixaba, radicado em Santa Catarina, que tem se dedicado a observar o cotidiano popular e apresentá-lo em seus escritos de forma inovadora e poética em diálogo com a religião.. O escritor faz parte da Academia Catarinense de Letras, da Academia Sul-Brasileira de Letras e da Academia Catarinense de Filosofia. Tem mais de 15 obras publicadas, entre contos, poesias, e romances. [1] Harold Bloom, crítico literário norte-americano, toma o termo demônico “do uso geral neoplatônico, em que um ser intermédio, nem divino nem humano, entra no adepto para o ajudar”. [2] A isto Bloom denomina a “angústia da influência” que um poeta recebe de seu precursor, um terreno escuro e demoníaco. [3] Por esta angústia, o poeta é imerso no estado de Satã, um solipsismo criativo que deve dialogar com seus outros eus [4] . Para Bloom, este estado é uma consciência constante do dualismo, de estar apanhado, na armadilha do finito, não apenas no espaço (no corpo), mas também no tempo. Somente um poeta forte pode suplantá-lo. A definição de demônico em muito se assemelha ao que os autores do Romantic Revival europeu, do fim do século XVIII e início do XIX, – cujos grandes expoentes foram Wordsworth, Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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Byron, Keats, Goethe, Shelley, Chateubriand e Manzoni – descreveram como o espírito inspirador que os dirigia. O próprio Goethe sugere em sua autobiografia (Dichtung und Warheit) que dämonisch é um tipo de fenômeno irracional ou poder que controla ou direciona o destino do indivíduo. [5] Todavia, alerta Bloom, a angústia da influência não se trata de uma “questão de contágio entre indivíduos, mas uma relação entre obras literárias”. [6] Em linhas gerais, se determinada obra fizer uma desleitura eloqüente, coerente e convincente da que a precede, poderá até prevalecer sobre ela.. Desleitura é, em suma, a infração da interpretação normativa que um autor faz de seu precursor, para então torná-lo totalmente novo. O resultado deste processo é a angústia da influência. [7] É inegável que Queiroz tem seus precursores. Influências de Dante, Milton, Dostoievski, Goethe e até mesmo de autores sagrados, como os evangelistas Mateus e Lucas, podem ser facilmente identificadas em sua obra. Mais pertinente ao nosso propósito é o conceito teológico do termo demônico. Em primeiro lugar, cabe dizer que a produção literária de Júlio de Queiroz se encaixa naquilo que Tillich classificou como o “reconhecimento cosmológico do incondicionado”, afirmando que não há manifestação cultural sem uma preocupação última, e que é possível perceber seu caráter teológico inconsciente. [8] O pressuposto básico desta assertiva e de toda a teologia da cultura é que a “religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da religião”. [9] O que importa à teologia, contudo, não é a forma da arte, mas o seu conteúdo religioso substancial. [10] Calvani, teólogo brasileiro, em sua pesquisa sobre Teologia e MPB, esclarece a relação entre religião e cultura ao dizer que em Tillich “toda grande obra de arte, toda filosofia importante, toda manifestação artística, é essencialmente religiosa porque manifesta a busca pelo absoluto”. [11] Para o teólogo Higuet, o Protestantismo “exige uma realidade secular, um protesto concreto contra a esfera do sagrado e contra a arrogância eclesiástica, um protesto incorporado ao secularismo”. [12] A obra de Queiroz conclama a um protesto emergente. A linguagem teo-poética proporciona uma dimensão de profundidade ao discurso religioso e, por conseguinte, à teologia.. A teo-poética é teologia eticamente responsável e reflexiva, que transcende o dogma e a sistematização do Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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sagrado, vinculando-se ao ser humano na amplitude de sua religiosidade. E se “o ethos é o daimon” [13] , constitui-se uma via dupla entre arte teológica e arte poética. O teólogo não deve ocupar o lugar do crítico de arte, mas em diálogo com a arte e com a cultura deve fazer uma construção teológica visando transpor os desafios e anseios em busca do sagrado.. Assim, a teologia da cultura consiste em penetrar nas mais diversas expressões culturais, pois estas estão aptas à revelação. [14] Para Tillich, o contexto cultural é o meio potencial através do qual o divino irrompe, [15] mesmo que a situação religiosa contenha tanto o divino quanto o demônico. Divino e demônico assumem, primeiramente, sua característica de ambigüidade como força criadora e destruidora em relação ao sagrado. [16] Esta relação é ambígüa porque as forças coexistem, isto é, onde estiver presente o divino, como autotranscendência da vida, estará também seu oposto, a profanação [17] ou secularização da vida, que distorce esta autotranscendência: o demônico, [18] uma vez que reclama para si o caráter de infinito, santo. [19] Quando qualquer forma de existência tenta usurpar este caráter santo, são demônios aspirando a santidade, ainda que se apresentem sob formas majestosas lhes falta a pureza da infinitude. [20] Nas artes, esta ambigüidade se faz presente quando um encontro com a realidade é promovido, mesmo se a experiência da realidade é negativa e seu lado auto-destrutivo pode ser visto, [21] pois a arte possui um poder transformador de reconciliação que transforma o demônico em algo positivo ao confrontá-lo com a realidade na estética da obra. O modo como esta tensão se faz presente em Queiroz é o que doravante nos propomos a descrever, à medida que os textos selecionados aqui são relatos da distorção do sagrado pelo demônico, isto é, pela reivindicação de um caráter infinito implícito em suas personagens como, por exemplo, Lúcifer, Satã ou a Morte. A relação com a Teologia de Tillich é mais incipiente que direta, porém, o leitor assíduo de Tillich não terá dificuldades em encontrá-la. Ademais, Queiroz se apresenta como crítico audaz da sociedade contemporânea, em especial, no que tange à dimensão religiosa e, por isso, pode-se dizer que sua obra representa o mais puro estilo protestante.

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Os três poemas escolhidos se assemelham aos dramas litúrgicos da igreja medieval, nos quais havia diálogos entre a congregação e o celebrante. Os poemas são divididos em atos cênicos. A coexistência e interação que se vê nos diálogos das personagens com seus duplos em Dostoievski encontra-se também em Júlio de Queiroz. [22] Seus poemas apresentam polifonia à medida em que as diferentes vozes influenciam a voz primeira e, de certo modo, rompem com sua autoridade. Em Diálogos em Tempos de AIDS, há o envelope de um diálogo entre Lúcifer, que é o celebrante deste drama, e Deus. Há também relações dialógicas entre o vírus, os aventureiros, o jovem conquistador, a esposa enganada, o drogado e o recém-nascido, cada qual levantando sua contra-palavra inquietante. Lúcifer se proclama o criador do vírus, a “anti-vida escondida no rubro que a vida representa”, [23] mas a voz de Deus instiga: Lúcifer, meu reflexo bem-amado, por que insistes, no tempo em que te trancaste, em lutar contra ti mesmo, que sou eu? [24]

Talvez Lúcifer pudesse responder com Rilke: “Que será de ti, Deus, quando eu morrer?” [25] Pois, como em Tillich, Deus e Lúcifer (que em Queiroz representa o demônico) não estão em relações opostas, mas de interdependência, quase de simbiose. Segundo a voz de Deus a Lúcifer, a AIDS, vírus tanático e erótico, seria um poder demônico a ser vencido pelo incondicional: Essas criaturas-promessas, que desprezas e que, estonteadas vagam, desde o primeiro vagido unicelular em minha direção, obscuramente adivinham o que teu saber imenso desconhece ainda: só o amor basta, Satã, só o amor. [26]

As palavras ecoam de Paraíso Perdido, de John Milton, onde Adão, confuso, pergunta sobre o Universo e a vida. Eis a resposta que recebe do arcanjo: “O verdadeiro amor não se combina/ Da paixão coas Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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danosas turbulências;/ No bom-senso e razão tudo se firma;/ Refina o juízo, o coração ilustra;/ É o caminho por onde erguer-te podes/ Ao prazer eternal do amor divino”. [27] Mais adiante, novamente o arcanjo a Adão: “Basta-te que saibas/Que nos altos Céus somos ditosos/E que, onde amor não há, jamais há dita”. [28] Em Missa para os tempos de agora, não há um celebrante para o drama, apenas um coro que clama em louvor a Satã, um deus do capital, do lucro e do individualismo, forças destrutivas da sociedade contemporânea. Tillich pergunta com propriedade em um de seus sermões: Quem, nos anos recentes, e por certo em nosso século inteiro, não sente as forças irresistíveis que determinam nosso destino histórico e pessoal? Elas levam indivíduos e nações a conflitos indissolúveis, internos e externos; à arrogância e insanidade, à revolta e desespero, à desumanidade e autodestruição. Cada um de nós está envolvido nestes conflitos e é dirigido em maior ou menor grau por estas forças. A vida pessoal de cada um de nós é dirigida por elas. [29]

De fato, as forças adoradas em coro, sob a égide de Satã, no texto de Queiroz, representam a distorção máxima da autotranscendência da vida sob a direção do espírito, pois a vida é destruída e dirigida por forças demoníacas, numa espécie de possessão coletiva. Este é para Tillich o caráter “estrutural” do demônico, como observa Ribeiro de Carvalho, “(…) trata-se de um poder supra-pessoal, que nos condiciona a todos e “nos possui”. Não é que demônios reais nos possuam, mas que somos condicionados por estruturas sociais” [30] Já em A Dança da Morte não há congregação, cada uma das personagens – o cardeal, a dona de casa, o drogado, o militar, o negociante, o papa, o político, a prostituta, o travesti e a virgem - falam por si, individualmente. O discurso que prevalece, contudo, é o da Morte. As cenas reiteram a voz do Adão de Milton: “Hora da morte, tu serás bemvinda!/ Por que de Deus a mão tanto retarda/ O que o decreto seu para hoje fixa?”. [31] Sobre a dialética morte/vida, Tillich adverte: “Todos nós permanecemos entre a fascinação da vida e a ansiedade da morte, e às vezes entre a ansiedade da vida e a fascinação da morte. Morte e vida são os maiores, os grandes poderes, que tentam nos separar do amor Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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de Deus”. [32] Se a morte é elevada ao caráter infinito, prevalecendo, é pelo poder demônico. O demônico (teológico e literário) está presente também em Perfume de Eternidade, especificamente no conto “Vozes Ceifadas”. A obra narra como Herodes lida com um câncer, que foi adquirido ao longo dos anos em que lutou pelo poder frente ao Império Romano e, conseqüentemente, junto aos judeus, tendo agora que se defrontar com o inferno que está às suas voltas, tentando tragá-lo. Seu texto precursor é Mateus 2.16, que narra a tentativa de Herodes de exterminar todas as crianças na expectativa de, com isso, eliminar Jesus Cristo, o Messias, pois o mesmo é uma ameaça ao seu poder hegemônico. Diante deste quadro, Júlio de Queiroz constrói seu conto. Faz uma desleitura ao apresentar uma nova interpretação do mesmo, utilizando uma linguagem filosófica e teológica, envolvida pela riqueza de termos literários. Como salientamos anteriormente, o texto narra os momentos de reflexão de Herodes e suas lutas pelo poder junto ao Império Romano. Júlio de Queiroz aponta estes elementos relativos à formação de Herodes, destacando que, mesmo com toda sua estrutura estóica, [33] não conseguia lidar com suas angústias e dores frente ao demônio. Como se pode constatar, Queiroz, através da desleitura do texto canônico, descreve eventos do cotidiano e dos anseios humanos: a doença, a dor e a busca pelo poder. A cobrança diante de Herodes é nítida e se dá através de sua postura maléfica em detrimento do poder a qualquer custo. O reflexo desta postura é expressa por Queiroz como a representação do mal em punição aos atos e atitudes da personagem. Para uma melhor compreensão do acontecimento com relação a Herodes é importante verificar a definição de hades: A etimologia da palavra hades é incerta. Ou se deriva de idein (“ver”), com o prefixo do negativo, a-, e, assim, significaria o “invisível”; ou se vincula com aianes, e teria o significado, originalmente, “lúgubre”, “horripilante”. Hades ocorre em Homero (na forma de Aides) como nome próprio do deus do outro mundo (II., 15, 188), enquanto, no restante da literatura gr., representa o outro mundo como habitação dos mortos que ali existem como sombras (cf. Hesíodo, Theog., 455; Homero, Od., Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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4, 834). Depois de Homero, pode significar o “sepulcro”, “morte”. Foi apenas paulatinamente que os gregos também ligaram a este conceito as idéias de – galardão e – castigo. Os bons e os justos recebiam recompensas no hades, no mesmo lugar onde os maus e os ímpios recebiam uma variedade de castigos. No Gr. Cl. Também é soletrado Aides (Iônico), Aidas (Dórico). [34]

O Hades se reporta a um estágio de sofrimento, de dor e de punição daqueles e daquelas que, em algum momento, não transcorreram conforme os padrões estabelecidos pela moral e pela ética da sociedade. Assim, Queiroz recorre ao Hades em seu conto para narrar como Herodes se relaciona com o punitivo, com o demônico. [35] O demônio, o inferno e o mal sempre rondaram as lutas, dores e anseios dos seres humanos. Observamos, nas próprias palavras de Queiroz, que o inferno pertence à dimensão mítica na narrativa: Forças malditas dos infernos, por que se juntarem às dores do meu corpo? Não conheço nenhum de vocês! Voltem para o inferno de onde vieram para atribular um velho doente, já sem forças para se defender. O inferno é feito de mentiras. Vocês vieram do inferno para me mentir. [36]

Está claro que se o inferno é feito de mentiras e as forças infernais querem mentir para Herodes, querem fazer dele o próprio inferno. Ora, é evidente o processo de demonização em relação às palavras de Ivan, em Os Irmãos Karamazov: “Com um tal inferno no peito, como é possível viver?”. [37] Nesta dimensão, Queiroz aponta Herodes e suas lutas pelo poder demonstrando seu sofrimento decorrente da ação punitiva do diabo e que Herodes haverá de pagar por suas ações, no inferno ou no hades. Contudo, nos defrontamos com a seguinte questão: até que ponto o diabo ou o próprio Deus é quem está punindo Herodes? Ou, como observamos em Grande Sertão: Veredas, o diabo não é apenas um estado de espírito do ser humano? Conclusões O demônico literário de Queiroz pode bem repousar em Milton ou Dostoievski, como vimos acima, se manifestando na ambigüidade, no Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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contra-sublime de personagens divinos-antidivinos: Herodes, Lúcifer, Satã e mesmo um Deus que é espelho de Lúcifer. Sempre há um portador particular de santidade, uma distorção do sagrado. A obra de Júlio de Queiroz é uma teo-poética às avessas, pela qual a um só tempo se diz – citando Heidegger - “o mais puro e o mais oculto”. [38] Nos escritos de Queiroz nos deparamos com o sublime e o intocável, o desconhecido que se apresenta através dos demônios que se levantam em nosso dia-a-dia. Em seus escritos podemos vislumbrar uma possibilidade de desmistificar o demônico e o Sagrado. O homem identifica o demônico ou o Sagrado a partir da sua própria percepção da realidade que se lhe apresenta, como notamos nos escritos de Queiroz, descritos acima. Conforme Merleau-Pounty, Há pois na percepção um paradoxo da imanência e da transcendência. Imanência, posto que o percebido não poderia ser estranho àquele que percebe; transcendência, posto que comporta sempre um além do que está imediatamente dado. E esses dois elementos da percepção não são contraditórios propriamente falando porque se refletirmos sobre essa noção de perspectiva, se reproduzirmos em pensamento a experiência perspectiva, veremos que a evidência própria do percebido, a aparição de ‘alguma coisa’, exige indivisivelmente essa presença e essa ausência [39] .

Júlio de Queiroz arrisca-se a escrever sobre a vida, mais que isso, como na sua Búdica, nos convida para a vida à beira do abismo de incertezas, mas ainda assim, para a fruição e a autocriatividade da vida: É a beira do abismo que existo. Um chamado, um passo inesperado: sou do negror. Sentei-me nessa borda, os pés balançando no nada. Ao longe, a clara noite, a madrugada esplêndida. Existo à beira do abismo. Alegra, canto. [40]

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Diógenes Braga Ramos é doutorando em Literatura (com linha de pesquisa em Teopoética) pela UFSC, mestre em Teologia pelo IEPG/EST e pastor ordenado da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. André Luiz do Amaral é graduando em Teologia pelo Seminário Teológico “Rev. Antonio de Godoy Sobrinho” e bacharelando em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina. NOTAS [1] FERRAZ, Salma. “A esfinge pejada de mistérios: travessias e travessuras de Judas”, p. 249. [2] BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: uma teoria da poesia, p. 26. [3] BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: uma teoria da poesia, p. 39. [4] BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: uma teoria da poesia, p. 39. [5] CUDDON, J. A. The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory pp. 204; 771.. [6] BLOOM, H. Jesus e Javé, p. 66. [7] BLOOM, Harold. Jesus e Javé, p. 65. [8] TILLICH, Paul. Theology of Culture, p. 27. [9] TILLICH, Paul. Theology of Culture, p. 42. [10] CALVANI, Carlos E. B. Teologia e MPB, p. 47. [11] CALVANI, Carlos E. B. “Momentos de Beleza – Teologia e MPB a partir de Tillich”, p. 26 [12] HIGUET, E. “Alguns aspectos do catolicismo brasileiro atual - Considerações a partir da visão da modernidade em Paul Tillich”disponível em http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio01/alguns-aspectosRevista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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do-catolicismo-brasileiro-atual-consideracoes-a-partir-da-visao-damodernidade-em-paul-tillich/ [13] BLOOM, H. A Angústia da Influência: uma teoria da poesia, p. 115. [14] DA SILVA, Antonio Almeida Rodrigues. “Teologia da Cultura: a essência do incondicionado nas multiformes expressões culturais”, p. 107. [15] DA SILVA, Antonio Almeida Rodrigues. “Teologia da Cultura: a essência do incondicionado nas multiformes expressões culturais”, p. 112. [16] TILLICH, Paul.. Dinâmica da Fé, p. 14 [17] AGAMBEN, Giorgio. Profanazioni, p. 83. “‘Profano’, può scrivere cosi il grande giurista Trebazio, ‘si dice in senso próprio ciò che, da sacro o religioso che era, viene restituito all’uso e alla proprietà degli uomini’ (D. 11, 7, 2). [18] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, p. 545. [19] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, p. 561. [20] TILLICH, Paul. The Shaking of the Foundations, p. 90 [21] TILLICH, Paul. Theology of Culture, p. 73. [22] BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoievski, p. 22. [23] QUEIROZ, Júlio de. Sementes do Tempo, p. 73. [24] QUEIROZ, Júlio de. Sementes do Tempo, pp. 73-82. [25] RILKE, R. M. Poemas, p. 51. [26] QUEIROZ, Júlio de. Sementes do Tempo, p. 82. [27] MILTON, John. Paraíso Perdido, p. 239. [28] MILTON, John. Paraíso Perdido, p. 240. [29] TILLICH, Paul. The New Being, p. 55 [30] RIBEIRO DE CARVALHO, Gulherme Vilela. “ ‘A Antecipação Ansiosa do Demônico’ em Edvard Munch” disponível em [31] MILTON, John. Paraíso Perdido, p. 315. [32] TILLICH, Paul. The New Being, p. 57. [33] O estoicismo é uma escola que passa da busca do conhecimento no mundo exterior para o interior. O estóico Zenão de Cítio (336 – 263 a.C.), ensinava que o homem deve viver uma vida austera tanto moral quanto fisicamente resistindo aos males e sofrimentos do mundo exterior. Revista Eletrônica Correlatio n. 11 - Julho de 2007

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[34] BROWN, Colin; COENEN, Lothar (orgs.), Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1022. [35] QUEIROZ, Julio de. Perfume de Eternidade, p. 33: “As vozes ululantes vindas do Hades, a sombria terra do esquecimento, não formavam palavras, não tinham sentido. Mas ele sabia que de um momento para outro elas passariam a ter e o ameaçariam”. [36] QUEIROZ, Julio de. Perfume de Eternidade, p. 35 [37] TORRES QUEIRUGA, Andrés. O que queremos dizer quando dizemos “inferno”?, p. 52, apud GUARDINI, R. El universo religioso de Dostoievski, 2ª ed., Buenos Aires, 1954, p. 142. [38] HEIDEGGER, M. Hölderlin y la essência de la poesia, p. 29. [39] MERLEAU-PONTY, Maurice. O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas, p.48. [40] QUEIROZ, Julio de. Sementes do Tempo, p. 25.

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