Confúcio volta à cena: \"A Batalha pelo Império\" e o resgate do Confucionismo na China

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CONFÚCIO VOLTA À CENA: ‘A BATALHA PELO IMPÉRIO’ E O RESGATE DO CONFUCIONISMO NA CHINA Prof. Dr. André Bueno Curso de História da UERJ

Em 2010, o filme ‘Avatar’ foi um sucesso absoluto em todo o mundo. O roteiro não era novo: uma tribo extraterrestre e ‘ecológica’ era ameaçada pela ambição e ganância humana. Os seres azuis do planeta Pandora, invadido pelos ‘malévolos terráqueos’ eram o protótipo dos bons selvagens imaginados por Rousseau: corajosos, destemidos, de boa índole. Eles resistem à exploração, repudiam a invasão tecnológica, se recusam a vender a Natureza. Por se tratar de uma ficção, ao final, eles vencem. Exceto, claro, na China. Em quase todo mundo – eu disse, ‘quase’ – ‘Avatar’ superou todos os outros filmes nas bilheterias, menos na China. Lá, em 2010, outro filme conquistou o primeiro lugar nos cinemas, o que não deve ser desconsiderado: afinal, num país de um bilhão e trezentos milhões de habitantes, o público é capaz de desequilibrar qualquer estatística. E o filme que conseguiu essa façanha foi uma espetacular e bem produzida versão de vida de Confúcio, o grande sábio chinês. Nos causa estranheza como a biografia de um antigo filósofo pode parecer mais interessante do que a última novidade visual hollywoodiana. Não sei quanto ao leitor, mas isso significa, em minha opinião pessoal, um ponto a favor dos chineses. Há uma preocupação intelectual, uma admiração pelas próprias raízes históricas e culturais, sem ufanismos vazios, que deveria servir a nós, brasileiros, de exemplo. No entanto, existem outros aspectos que devem ser levados em conta nessa disputa cinematográfica.

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‘Avatar’ foi desbancado na China por ‘Confúcio’ por várias razões. Uma delas não deve ser levada muito a sério: a propaganda do governo chinês. Muito se falou na época do lançamento de ambos os filmes que o Partido Comunista chinês havia limitado o número de salas de exibição para ‘Avatar’, de maneira a incentivar o público a assistir ‘Confúcio’ – como se o povo não tivesse outra opção nos cinemas. Aliás, a falácia de tal afirmação reside no fato de que ‘Avatar’ foi liberado para exibição, e não teve mau desempenho nas bilheterias. A questão era cultural. Novamente, se falou muito da má vontade do governo chinês para com ‘Avatar’ por entender que ele fazia uma alegoria da causa tibetana: os seres ecológicos e ligados a natureza foram dominados por causa da exploração comercial de sua terra. Seus sentimentos religiosos e culturais foram ignorados pelo dominador. Além disso, eles eram azuis (cor da realeza tibetana). Obviamente, uma busca rápida pela internet nos permitirá observar, se tivermos o cuidado necessário, que todos os divulgadores desse tipo de notícia não têm uma fonte fidedigna, nem mesmo um decreto ou circular do governo chinês, para provar tais afirmações. Constatamos, ao fim, que alguns grandes jornais ainda se valem de fontes duvidosas, ou do famoso ‘disse-me-disse’, para redigirem seus artigos com interesses mais particulares do que podemos conceber. O problema cultural fundamental, pois, era outro: afinal, que filme era aquele que colocava o ser humano como vilão? A insistência na maldade humana, no pessimismo futurista e na culpabilidade pelo desejo de melhora de vida são elementos estranhos a um povo que vive um momento de pujança econômica e cultural. São, no mínimo, desagradáveis, e um tanto incompreensíveis. ‘Confúcio’, porém, é o contrário de tudo isso. É a história de um homem verídico, um pensador dedicado, um humanista convicto. Se ele encarou batalhas, era ele mesmo um pacifista. Ele enfrentou as dificuldades de sua época usando a cabeça, e não a violência. Seu legado é milenar e vivo. Confúcio foi um grande humanista, filósofo e educador. Um exemplo real, um modelo a ser seguido. Não fez milagres, não precisou apelar para forças espirituais, não disse que era abençoado, divino, nem que transcendeu o mundo. Era absolutamente humano, e conseguiu provar que a própria humanidade era capaz de salvar-se pela cultura e pela moral. Enfim, foi uma espécie de herói chinês - e para muitos chineses, isso talvez já fosse o bastante. 3

No que consiste, pois, o filme ‘Confúcio’? Qual sua relevância para o estudo da história chinesa, antiga e contemporânea? Embora seja uma biografia romanceada, o filme empregou as fontes originas sobre a vida de Confúcio para construir o roteiro, e podemos extrair algumas lições históricas bastante interessantes dele. Nesse ensaio, pretendemos fazer um passeio pelo filme, tentando entender suas afirmações, contradições e posturas, perante uma China antiga e a China Moderna. Passemos assim a uma análise mais detalhada do filme ‘Confúcio’. Confúcio, esse desconhecido Uma análise sobre o filme ‘Confúcio’ é particularmente interessante para nós, brasileiros, que sabemos muito pouco sobre a história do sábio chinês, e ainda menos sobre a época em que ele viveu. O próprio título com que o filme foi lançado no Brasil demonstra o absoluto desconhecimento sobre a História chinesa: ‘A batalha pelo império’ é de uma incongruência total. A China da época de Confúcio era um império, a dinastia Zhou (1027 a.C. até 221 a.C.). Naquela época, o império era organizado por laços feudais (o sistema Fengjian), que dividiam a dominação do território em reinos, estados e cidades. Cada nível tinha seus próprios administradores: reis, nobres (numa escala similar a que existia no Ocidente medieval milênios depois, tais como duques, barões, condes, etc.), governadores, funcionários, etc. Isso gerava um grau de autonomia bastante grande entre os Estados, e não raramente redundava em conflitos por questões fronteiriças ou econômicas. Esses conflitos vinham se tornando cada vez mais freqüentes, e a arbitragem imperial da casa imperial (os Zhou) estava cada vez mais distante. Todavia, o cenário em que Confúcio atuara está longe de ser uma batalha pela posse do império. Confúcio tem que lidar com as três famílias nobres que querem controlar o poder de Lu, sua terra natal, que é apenas um Estado entre outros tantos. Não há luta pelo império. O conflito de maior escala é uma luta entre reinos. A redimensão que o título em português dá projeta sobre a China uma realidade que não existia. Enfim, o próprio título não ajuda em nada a saber que se trata de uma biografia sobre Confúcio. Só a leitura da breve descrição no Box do DVD nos dá alguma informação, e mesmo assim, cheia de equívocos:

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Confucius é um poderoso e influente ministro que se destaca por seu prestígio e autoridade em um dos impérios da China antiga. Mas tanto poder traz consigo inimigos invejosos. Uma traição política coloca o imperador contra Confucius e ele é injustamente deposto de seu cargo e mandado para o exílio. Lutando contra os imperadores, Confucius não irá somente unificar uma nação, mas mudará a história da humanidade. Percebe-se que ao autor dessa peça literária não assistiu o filme; ou se assistiu, não entendeu bulhufas. Por conta da ausência de propaganda e da má distribuição, o filme não teve quase nenhuma repercussão em nosso país, o que demonstra que nossos conhecimentos (e interesses) sobre a China ainda engatinham. Mas porque precisamos conhecer Confúcio? Mas podemos nos perguntar: que diferença faz assistir ou não ‘Confúcio’? O quão relevante isso seria para nós? A pergunta já traz, em si, a armadilha capciosa da ignorância acomodada com o qual estamos acostumados. Podemos ver o filme simplesmente por questões de cunho cultural. Afinal, as pessoas gostam de filmes de dinossauros, ou mesmo de ‘Avatar’, e não se perguntam se esse entretenimento tem algum sentido, ou se é relevante. Por isso mesmo, perguntar qual seria a importância de assistir ‘Confúcio’ já é um indício de alerta intelectual. Contudo, acho razoável que certas dimensões do que o filme representa sejam válidas de serem apontadas. ‘Confúcio’ foi discutido amplamente em várias partes do mundo (Lee, 2011), por sinalizar uma mudança de mentalidade por parte do governo e do povo chinês. O pensamento confucionista foi proscrito da China comunista durante décadas, principalmente no período maoísta (1949-1976), e começou a ser ‘reabilitado’ num tempo histórico relativamente ‘curto’ para os padrões chineses. Além disso, o confucionismo é tido como a argamassa da cultura chinesa, o repositório no qual se preservam as tradições, os costumes, a maneira de ver o mundo, os fundamentos da moral e da ética. Por essa razão, estudar o confucionismo é abrir uma porta segura para o entendimento da mentalidade chinesa. O filme foi um sucesso na China pois marcou,

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em definitivo, o reencontro de uma nação com o seu guia intelectual, seu grande professor, um dos ‘fundadores’ culturais, por assim dizer, do que é ‘ser’ chinês. Desde o século 16, quando os jesuítas começaram a perambular pela China, perceberam a importância de estudar o confucionismo para poderem acessar as raízes da cultura chinesa. Os primeiros textos chineses a serem traduzidos num idioma ocidental (latim) foram os escritos confucionistas. Como veremos, Confúcio era um defensor ardoroso das tradições chinesas e um historiador ciente da importância do passado. Ao ler os textos confucionistas, vamos aos poucos traçando um panorama geral da China Antiga, e percebendo o nascimento dos mecanismos sociais e morais que permeiam a mentalidade chinesa. Por isso, não é exagerado dizer que quem não conhece a antiguidade chinesa não compreende o país de hoje. A China de hoje não é resultante de uma vitória do comunismo ou do capitalismo: ela carrega consigo uma ideologia própria de dedicação ao trabalho, de estudo, de cultivo pessoal, de conquista individual que se alicerça no passado chinês. Por essa razão os analistas ocidentais tendem a se equivocar constantemente sobre as posturas chinesas perante o mundo. A China de agora gosta de enfatizar sua autonomia ideológica e política, ainda que apele ocasionalmente ao discurso marxista. A retomada do confucionismo, porém, aponta para as novas opções políticas que se desenham para o futuro chinês. E o que temos a nossa disposição, no Brasil, para saber um pouco mais sobre Confucionismo? Pouco, ou quase nada. A biografia de Confúcio empregada para a realização do filme foi feita no século 2 a.C. pelo historiador chinês Sima Qian, e que pode ser considerada como o primeiro texto ‘oficial’ sobre o velho Mestre. Em português, temos apenas duas versões: a de Lin Yutang (1958) e de Wilhelm (2012), e lembremos, ambas traduzidas de outros idiomas que não o chinês. Existem algumas boas versões do Lunyu (Conversas, Analectos, Diálogos); por fim, apenas dois bons manuais sobre história do pensamento chinês (Granet, 1997 e Cheng, 2009), e apenas dois livros inteiramente dedicado a Confúcio (Anping, 2008 e Yudan, 2009). Gostaria de adicionar minha produção pessoal sobre o tema, mas ainda assim, é muito pouco no cômputo geral. Estamos amplamente despreparados para compreender a oba de Confúcio e sua dimensão mundial; o filme poderia ser uma porta para tal, mas sua 6

divulgação foi fraquíssima por aqui, como dissemos antes. A própria iniciativa desse livro, portanto, e a abertura de espaço para um artigo sobre este tema é algo inovador e previdente, no sentido de fornecer elementos para uma discussão posterior que possa fundar um interesse sinológico verdadeiro por Confúcio e pela China. O Confúcio dos livros e do cinema Como afirmamos na seção anterior, existe uma primeira biografia ‘oficial’ de Confúcio feita pelo historiador Sima Qian (145-85 a.C.), ele mesmo um zeloso confucionista. Esta é a biografia que serve de base ao roteiro do filme ‘Confúcio’, lançado em 2010 e dirigido pela cineasta Hu Mei. Todavia, o trabalho de Sima, embora fosse diligente e sério, estava envolvido nas questões intelectuais de sua época, a dinastia Han (206 a.C. – 221 d.C.). Sima teve uma certa dificuldade de relacionar as fontes disponíveis, passados quase trezentos anos desde a vida de Confúcio (551-479 a.C.). Nesse longo período, a China passara por diversos conflitos. Depois de cruentas guerras civis, o território foi reunificado sob a égide do estado de Qin em 221 a.C., inaugurando um novo sistema político imperial centralizado e uniforme. Qinshi Huangdi, o primeiro imperador Qin, autor de obras megalômanas como a Grande Muralha e a Tumba dos Guerreiros de Terracota em Xian, mandou perseguir e executar os acadêmicos confucionistas, bem como decretou a queima dos livros dessa escola. Qinshi não gostava dos confucionistas por acreditar que sua doutrina estava superada, e que ia contra o processo de reunificação da China. Seu receio maior, porém, é que as idéias confucionistas contaminassem a sociedade com desejos de autonomia, liberdade e consciência crítica, o que ia totalmente contra seu projeto autoritário e unificador. Em função disso, vários livros confucionistas se perderam ou ficaram escondidos por um bom tempo, até que o advento da dinastia Han os trouxesse de volta à luz. Foi nesse contexto que Sima Qian elaborou sua grande obra histórica, o Shiji (Registros Históricos), na qual elencava, entre outras coisas, a biografia de chineses eminentes e fundamentais na história do país. Entre elas, a de Confúcio é uma das mais extensas e abrangentes.

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Percebe-se, porém, os problemas com que Sima Qian teve que enfrentar para realizar a biografia de Confúcio. A dinastia Han havia adotado a doutrina confucionista como ideologia de governo, e tocar no nome de Confúcio era algo digno de um respeito cerimonioso. Circulavam muitas lendas a respeito da vida do Mestre, e a documentação era escassa. Havia também os palpites e intromissões de nobres e intelectuais na produção da obra; umas virtualmente poderiam ser boas, mas a maioria não tinha base alguma. Sima assumiu com coragem a redação do texto, calcado nas impressões que recolheu principalmente das fontes que consultou. Isso não impediu, contudo, que a obra apresentasse certas incongruências ou omissões. De fato, uma biografia mais completa sobre a vida de Confúcio pode ser feita pelo cruzamento de várias obas distintas. A primeira delas é o Lunyu (Conversas, ou Analectos), que contém fragmentos das conversas entre Confúcio e seus discípulos. No livro, várias passagens da vida de Confúcio, bem como seus aspectos pessoais, são tratadas ao longo do texto. O Mestre, porém, preferia ser lembrado por um livro que ele mesmo teria escrito, o Chunqiu (Primaveras e Outonos), uma crônica histórica no qual elencava uma série de passagens da história de Lu cuja interpretação continha uma fundo moral – ao menos, era o que Mêncio, um confucionista importante do século 4 a.C., dizia. Outro livro importante, embora considerado tardio, é o ‘Histórias da família Kong’ (Kongzi Jiayu), que contém uma série de anedotas e historietas sobre a vida de Confúcio e de seus discípulos. Todas as informações que esses livros traziam, porém, acabaram eclipsadas pela biografia feita por Sima, ao qual se considerava ter sintetizado o que havia de importante para saber sobre a vida do mestre. Isso nos remete ao filme: ‘Confúcio’ aborda a biografia proposta por Sima quando ele já está na fase adulta. Maiores detalhes sobre sua infância ou sobre suas propostas filosóficas acabam sendo postas de lado. Esse é um dado importante: Confúcio, ao contrário de muitos outros sábios da antiguidade, tem uma vida na infância e na juventude. A biografia de Sima os descreve: seus anos de atividade, sua família, empregos, etc. Em nenhum momento Confúcio passa por algum tipo de revelação transcendente. Sua vida é de estudo e ação, personificação de sua própria doutrina. A 8

humanidade de Confúcio é tão importante na biografia de Sima Qian quanto no filme de Hu Mei: nenhuma delas pretende que Confúcio foi um santo ou deus. Ele foi humano, e o exemplo de que a humanidade pode mudar por si mesma. Essa explicação é importante, posto que a ausência da vida formativa de Confúcio foi uma opção do roteiro. Isso o diferencia dos apóstolos, profetas e santos da tradição judaico-cristã, cuja vida pregressa em geral é ignorada. Do mesmo modo, suas teorias sobre cultura, educação e ética são apenas pinceladas ao longo do filme; a ação centra-se na intriga das famílias poderosas de Lu, e nas duras peregrinações de Confúcio após sua saída de lá. O Mestre acaba aparecendo como um sábio, um homem sagaz e determinado, de conduta infalível. Contudo, não se detalha os fundamentos dessa sua postura ética - embora possamos pensar que, numa película de quase três horas de duração, isso seja igualmente pouco prático. Confúcio foi antes de tudo um educador. Sua preocupação central era: como resgatar sua sociedade da falência moral? A vida da China, em sua época, parece ter algumas semelhanças com a do Brasil de hoje: corrupção desenfreada, governantes inaptos, violência generalizada, exploração econômica, conflitos sociais... Confúcio era um, entre muitos pensadores desse período, que buscava uma fórmula para reverter esse quadro. Essa fórmula, ou método, era chamado de ‘Dao’ (ou Tao). Em sua análise, a decadência da civilização chinesa ocorria em função de uma falta de educação generalizada. Dito assim, essa afirmação nos parece algo moderno, e o exame de Confúcio ainda surpreende nos dias de hoje. Mas a proposta do Mestre era exatamente essa: as pessoas necessitavam de Educação para se realizarem. A Educação confucionista (Jiao) se baseava numa análise ética da cultura, buscando seus fundamentos e mecanismos. Seu método se pautava num estudo de vários clássicos antigos de história, cultura, poesia e ciência, que consistia no domínio da tradição (estudo, ou Xue). Para equilibrar o estudo das tradições, era necessária a sabedoria da vida prática, a experiência da vida pessoal (saber, ou Zhi). Ambas, se bem desenvolvidas, criavam o cidadão perfeito, o Junzi (ou, o ‘Educado’). O Junzi seria ciente de cultura e da moral, um bom cumpridor de leis e costumes, mas também autônomo e crítico, sendo capaz de defender a sociedade contra o que fosse 9

inapropriado. Outro objetivo do pensamento confucionista era preparar adequadamente os funcionários do governante, auxiliando na manutenção da ordem e na correção dos negócios públicos.

Com isso, Confúcio esperava ensinar as pessoas a viverem

harmoniosamente em sociedade. Sua doutrina enfatizava o papel da educação humanística na reforma humana, e identificava a família, junto com a escola, os dois pilares fundamentais do aprendizado humano. O Humanismo confucionista, Ren, é a harmonia plena da humanidade, Hen. É notável perceber a atualidade da obra confucionista, a ponto do leitor supor que essa é uma projeção moderna sobre o passado. Essa é a importância de um convite a leitura do confucionismo. Confúcio defendia noções que só muito tardiamente surgiram no Ocidente, e muito provavelmente essas é uma das razões da grande durabilidade e continuidade da civilização chinesa na história mundial. Toda essa discussão, porém, não aparece no filme, infelizmente. Apenas algumas passagens do Lunyu são citadas em cenas específicas, com um fim evidentemente didático. Já no fim do filme, antes dos créditos, somos informados do grande impacto que a obra confucionista teve na história chinesa e asiática. Devemos lembrar, contudo, que é uma produção chinesa, cujo objetivo era se comunicar com um público que já conhecia alguma coisa sobre Confúcio. Seu sucesso estrondoso dentro da China, atraindo o interesse de outros países, é que determinou sua exportação. Todavia, a ausência desse aspecto filosófico talvez tenha prejudicado o impacto do filme fora do âmbito chinês. Em termos de ação, o filme também não emprega coreografias marciais comuns as produções chinesas tradicionais, o que é mais um fator de desinteresse para o público médio ocidental, acostumado a apreciá-las. De qualquer modo, a biografia de Confúcio feita por Sima Qian tem seus erros e omissões. Wilhelm (2012) dedicou um pequeno ensaio ao exame das discordâncias e ausências no trabalho de Sima. Algumas de suas observações são pertinentes (como falhas nas datas cronológicas), outras nem tanto. A questão é que Sima teve acesso a materiais de que hoje não dispomos. Por outro lado, a sinologia moderna dispõe de tumbas, materiais e textos que já estavam dispersos naquela época, nos fornecendo um 10

quadro por vezes diferente daquele que surge nas fontes. Entre uma coisa e outra, o filme ‘Confúcio’ opta por começar a história do Mestre já em sua fase adulta e ativa, baseando-se no texto de Sima. Contudo, nas omissões desta biografia, o roteiro insere suas reflexões românticas e imaginativas sobre a história. ‘Confúcio’, portanto, é um filme feito com base em duas interpretações inventadas: primeira, a de Sima; e segunda, aquela em que o filme reinterpreta acontecimentos e momentos dentro das possibilidades abertas pelas omissões de Sima. Vendo assim, o filme poderia merecer uma certa desconfiança, mas não é o caso. As licenças poéticas apresentadas no roteiro não desvirtuam de todo a trajetória central de Confúcio presente nas fontes chinesas. O filme é construído de tal modo que os acontecimentos da vida de Confúcio são amarrados de forma contínua, e os momentos imaginativos do roteiro ficam circunscritos as cenas em que ocorrem, sem prejudicar a continuidade. Tal cuidado reflete uma preocupação da direção de Hu Mei em não adulterar demais a história, evitando cair em descrédito. O equilíbrio entre a ação e a biografia permite a construção de um filme denso, de difícil classificação. É um romance que não têm romances; um filme de ação cujas cenas de ação não são centrais; um filme reflexivo sem grandes reflexões; e mesmo assim, também não é um documentário. Dito assim, poder-se-ia especular que o problema do filme é que ele é amorfo; por outro lado, devemos refletir se Hu Mei não encontrou uma fórmula interessante para realizar a biografia de Confúcio sem banalizá-la ou torná-la um filme religioso. É com grande habilidade que o filme cativa, sem exagerar em nenhum ângulo que pudesse classificá-lo em nossas categorias cinematográficas. Se nesse ponto o filme é bem sucedido, passemos agora a análise de alguns casos específicos que surgem ao longo do filme, que nos permitem observar sua validade (ou não) histórica. O filme em si ‘Confúcio’ foi filmado com apoio do governo chinês, tendo a participação do galã Chow Yun-Fat no papel principal de Confúcio. O filme faz parte de uma série de produções históricas que tem se tornado moda na China, tais como ‘Herói’ (2002), que conta a história de uma suposta trama de assassinato de Qinshi Huangdi, tendo Jet Li no 11

papel central, ou como ‘O Nascimento da República’ (2009), feito em homenagem ao 60º aniversário da República Popular Chinesa. Esse filme conta a história da vitória comunista em 1949, e também trazia uma constelação de estrelas chinesas no elenco. O apoio estatal, e a escolha de atores renomados, visam reforçar a importância dessas produções. Passados muitos anos (e no caso de Confúcio, milênios), a tendência ao esquecimento e a perda da memória histórica é uma realidade. No caso chinês, isso é ainda mais preocupante; é praticamente senso-comum a crença de que a história é um dos elementos fundamentais na manutenção da cultura e da sociedade. Nesse caso, admite-se que uma ida ao cinema é adequada para tentar compreender, de forma resumida e introdutória, os acontecimentos da história da civilização. O interesse do governo chinês em produzir ‘Confúcio’ se vale desse caráter pedagógico do cinema, para fazer uma obra que valorize o passado sem, no entanto, problematizar as condições políticas atuais. As mensagens que essa prática nos enviam são significativas. Até 1976, ano de sua morte, Mao tentou difundir a história da reunificação do império por Qinshi Huangdi. Mao se inspirava em Qinshi: seu desejo de unificar o país se impunha acima de tudo, mesmo que custassem milhões de vidas. Do mesmo modo, apresentava as feições autoritárias e centralizadoras que o comunismo chinês tomara ao longo dos anos. A realização de ‘Confúcio’ sinaliza, pois, uma mudança de perspectiva por parte do governo chinês. Absorvendo o Confucionismo, o Partido Comunista Chinês cria para si uma alternativa filosófica e política própria, sem apelar para teorias estrangeiras (como é o caso do próprio marxismo), ao retorno do maoísmo, e gera uma solução de continuidade para a manutenção do poder. Veremos isso mais detalhadamente mais adiante. Por agora, nos interessa analisar o filme em si. São nas ‘brechas’ do texto de Sima que operam as liberdades poéticas do roteiro. Embora circunscritas a momentos específicos da narrativa, ela geram os elos da continuidade, formando um quadro geral do personagem que é sua caracterização.

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1.Confúcio, um ser humano: Como havíamos dito antes, um dos aspectos fundamentais do filme é privilegiar o aspecto humano de Confúcio. Ele não tem poderes especiais, nem faz milagres. Em todo o tempo, Confúcio é uma pessoa absolutamente realística, firme, determinada, porém com suas fraquezas e incertezas. Ele não é um zumbi dogmático e impassível, tais como os personagens religiosos das produções épicas ocidentais dos anos 50 e 60. No Lunyu, existem várias passagens indicando a vida caseira de Confúcio: uma pessoa calma, tranqüila, que gostava e cantar, beber e pescar. No filme, Confúcio faz o mesmo. Quando adota um menino que seria sacrificado, a primeira coisa que faz é dar-lhe vinho, uma ‘boas vindas’ ao mundo dos homens. Quando é perseguido, igualmente, passa fome e privação. E que faz? Canta, dança e toca música com seus discípulos. Igualmente, se irrita com os cavalos que empacam num meio de uma chuva, até cair sentado no chão e começar a rir de si mesmo. Por mais sábio que fosse, Confúcio não consegue evitar ou superar todas as intrigas políticas em que se envolve. Enfim: sua caracterização é de alguém absolutamente normal, exceto pela inteligência privilegiada e pelo caráter firme. Esse ponto é importante por duas razões: primeiro, de afastar o estigma religioso que ronda a figura do sábio. Os autores ocidentais tenderam a tratar a figura de Confúcio como uma espécie de profeta chinês, cuja doutrina embasava a moral dessa civilização. A questão é que como o mundo ocidental deriva a moral da religião, era demasiado complexo tentar compreender como Confúcio poderia ser um moralista sem ser religioso. Uma análise mais cuidadosa nos permite compreender que Confúcio estaria mais próximo de um sociólogo bem sucedido do que de um pregador. Suas idéias se tornaram políticas públicas de educação e moral. Mesmo os chamados ‘templos de Confúcio’ na China não são dedicados a orações, mas sim, ao estudo ou como símbolos de uma doutrina social. Muitos tinham bibliotecas, outros dispunham de espaços para a leitura e debate. Confúcio, portanto, não inventou nenhuma religião, nem foi um grande pregador de suas próprias crenças religiosas. Sua preocupação centravase em como curar a humanidade por meio dela mesma. Daí vem o segundo aspecto: a necessidade do cultivo pessoal. Se Confúcio foi humano, e como tal atingiu a sabedoria, então, o caminho está aberto para quem quiser. 13

Esse detalhe é precioso. Na China atual, em que a concorrência econômica e social tem se tornado forte, o Estado tem abandonado muito das políticas sociais de emprego, saúde, moradia, etc., transferindo a responsabilidade dessas para os indivíduos e as famílias. Esse ponto sempre foi fundamental no discurso socialista, mas está sendo gradualmente modificado. Para que tais mudanças não proporcionem um impacto tremendo na sociedade, elas estão ocorrendo de modo discreto e constante, sendo acompanhadas de uma maior liberdade de ação em certos setores sociais. Ou seja: se antes o Estado fornecia tudo, mas tentava impedir o crescimento do indivíduo (no maoísmo, seu ‘aburguesamento’), agora ele estimula a busca pelo ganho pessoal, mas a contrapartida é que o cidadão assuma suas responsabilidades sociais. Nesse ponto, o discurso confucionista é perfeito para resolver a questão. O indivíduo não é desestimulado de seu crescimento pessoal: ao contrário, ele deve apenas ter em mente que há um equilíbrio social maior no qual ele está inserido. O próprio Confúcio dava exemplos de desprendimento, e dizia que o conhecimento era mais importante que a riqueza material. Embasados nisso, milhares de chineses tem se dedicado a um aprimoramento de suas capacidades individuais e produtivas por meio, justamente, da educação. Abundam histórias nas TV’s e rádios chinesas de pessoas que superaram a pobreza dos tempos antigos e agora desfrutam de uma vida confortável graças ao esforço, persistência e determinação. Para muitas dessas pessoas, os heróis antigos são os modelos a serem seguidos. Eram humanos, e como tal, empreenderam e obtiveram sucesso. Confúcio é um deles, e não poderia ser retratado de outra forma no cinema. Sua absoluta humanidade enfatiza o potencial e a capacidade de transformação que o indivíduo possui. Nesse ponto, enfim, Confúcio seria a prova viva de que acreditar no trabalho e na educação constitui uma forma de redenção social. O próprio Sima Qian fala, no final da biografia: ‘ele foi um simples homem do povo’. O que impressiona, portanto, é como sua doutrina conseguiu se firmar por tanto tempo na história chinesa. Essa é uma questão relevante, que só fortalece a teoria da capacidade humana de operar mudanças. Confúcio também afirmou no Lunyu: ‘não é o caminho que faz o ser humano, o ser humano é que faz seu caminho’. Isso sintetiza praticamente tudo que o confucionismo defende.

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2.Zilu e Yanhui Dois discípulos de Confúcio aparecem com certo destaque no filme: Zilu e Yanhui. Zilu é mais velho, tem praticamente a mesma idade do mestre, é durão, corajoso, um tanto rude, mas é amável e sua lealdade é indiscutível. Em um dos debates entre ele Confúcio, quando Zilu é chamado a assumir um cargo, o Mestre lhe pergunta qual a razão de tanta pressa, e ele responde: ‘para ver sua doutrina vencer mais rápido’. Tal diálogo não existiu, ou não se encontra nas fontes. Em outro momento, quando Confúcio encontra a cortesã Nanzi, Zilu reclama duramente com o Mestre - essa sim, uma passagem existente, mas atenuada no filme, como uma mera conversa. Zilu é o arquétipo do discípulo devoto, cuja simplicidade e rudez mascaram o amor de seu coração. Embora o filme tente escapar de qualquer conotação religiosa, é difícil não lembrar de Pedro, apóstolo de Jesus, quando se olha para Zilu. No entanto, Zilu morreu antes de Confúcio. Não se sabe exatamente como isso ocorreu, e no filme a explicação de sua morte é dada por uma batalha mortal em defesa de um jovem príncipe, seu protegido. Uma morte heróica e digna. Zilu nunca negou seu Mestre, mas o interpelava duramente quando se irritava com situações que escapavam a sua compreensão. A caracterização de Zilu tem relação com o ideal da simplicidade sincera e devotada. Ainda que não se tornasse um grande intelectual, Zilu conseguiu ir longe, e só pereceu em função do descontrole de suas ansiedades e desejos. Isso não impediu, porém, que Confúcio sentisse imensamente sua morte. O mesmo pode ser dito de Yanhui, o discípulo preferido de Confúcio. Sua morte é ‘explicada’, no filme, na heróica tentativa de salvar os livros do Mestre que caem na água, numa malfadada travessia por cima de um lago congelado. Ele é, também, um dos primeiros a segui-lo no exílio. Yanhui era muito jovem, e tinha uma facilidade natural para aprender. Até hoje Yanhui é considerado o modelo do discípulo perfeito. Confúcio chorou desesperadamente sua morte, a ponto de seus discípulos acharem que ele estava passando dos limites. Confúcio respondeu: ‘se não for por ele, por quem seria?’. O centro da análise da figura de Yanhui é sua morte heróica. Não há nenhum indício nos documentos de uma cena como essa. Ele pode ter morrido simplesmente de doença ou fraqueza (o Lunyu diz que aos trinta anos seu cabelo já embranquecera), mas a morte 15

épica valoriza o ideal da dedicação. Assim, o que pode ter sido apenas uma circunstância de saúde torna-se um sacrifício, valorizando o discurso da dedicação e redimensionando o personagem ao papel de herói secundário. Zilu e Yanhui são os contrapontos dessa narrativa; um se perde pelos sentimentos, e outro, pela juventude. Em ambos os casos, pois, a circunspecção, a ponderação e o autocontrole são fundamentais, e levam a perfeição. Mas a perfeição, essa foi Confúcio que atingiu. 3.Nanzi Nanzi era a concubina do Duque Ling, do Estado de Wei, e a biografia de Sima indica que ela, até certo ponto, o controlava. No Lunyu, Confúcio a repudia, mas vai ao seu encontro quando ela o convoca para uma entrevista. No Shiji, Zilu discute asperamente com o Mestre, achando que isso era impróprio (com o que o próprio Confúcio concorda). É absolutamente impossível para nós, agora, saber que tipo de situação Confúcio passou nesse caso. Possivelmente Nanzi queria angariar respeito com a visita do Mestre, ou incitá-lo a residir em Wei e ajudar o Duque. De qualquer modo, aparentemente ela respeitava o Mestre, dando margem à interpretação dúbia que, no filme, se transforma num jogo de sedução. Nanzi surge como uma mulher belíssima que tenta seduzir Confúcio. No entanto, sua atração não parece ser meramente física, mas principalmente, intelectual. Confúcio resiste ao seu encanto, constrangendo-a com lições de moral – sutis, porém, de modo a não ofendê-la. No dia seguinte, Confúcio pressente que a situação é difícil de ser administrada e vai embora. Se por um lado Confúcio mostra um autocontrole perfeito, por outro, ele parece leniente o suficiente para reconhecer indícios de uma grande inteligência em Nanzi. A especulação em torno desse possível jogo de sedução representa, no filme, o teste do autodomínio pessoal que Confúcio tanto valorizava. Ele diz no Lunyu: ‘nunca vi alguém que prezasse mais a virtude do que a beleza física [sexo]’. A lealdade e a sinceridade são, na doutrina confucionista, mais do que valores isolados. São virtudes que, se praticadas corretamente, afastam-nos dos problemas cotidianos, das pessoas inconvenientes e das

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situações de perigo. Contudo, olhando para a vida de peregrinações e riscos pelos quais passou Confúcio, isso parece quase uma ironia teórica. 4.Confúcio, General Das liberdades tomadas em relação a Confúcio, talvez a mais complicada de todas seja a do ‘Confúcio General’. Confúcio defendia a prática das artes marciais (como arqueria e cavalaria), mas não era afeito a questões militares. Todavia, no incidente do Paço, quando Confúcio e o Duque de Lu se vêem cercados por inimigos, o Mestre elaborara uma estratégia capaz de salvá-lo da armadilha. Nesse episódio, há uma adulteração significativa entre a narrativa de Sima e do filme. No Shiji, o acordo é interrompido por uma encenação musical-militar de mau gosto, que Confúcio repudia. Não ocorrem violências ou ameaças mortais. Do mesmo modo, Confúcio aparece comandando as forças de Lu contra um general insurreto, sem a ajuda das outras famílias poderosas. Sua estratégia militar domina os sublevados, com o uso de estratagemas elaborados e de bestas de repetição. Não é preciso muito para perceber que há licenças demais nessa parte da caracterização. As bestas de repetição só vão existir praticamente mil anos depois. Quanto aos estratagemas, não existe qualquer evidencia de que Confúcio fosse um estudioso militar: aliás, ele mesmo diz isso ao Duque Ling de Wei, quando esse o convidara a comandar suas forças. De qualquer modo, era Confúcio que estava na linha de frente em ambas as situações. Essa é a ‘deixa’ para construir, no personagem, as feições de um ‘líder militar pacifista’, ou ao menos, de um gênio capaz de resolver qualquer situação, mesmo um conflito desse gênero. Podemos entender que essa perspectiva preenche a lacuna da ‘ação’ no filme. No Lunyu, Confúcio responde ao um de seus discípulos que, se tivesse que escolher um comandante para o exército, o faria pelo uso da estratégia, e não pela força ou destemor. Na China atual, a literatura estratégica (como no caso da ‘Lei da Guerra’ de Sunzi) voltou à moda, em função das questões políticas e econômicas que o país atravessa. Não cai mal, pois, dizer que Confúcio também entendia disso. Todavia, extrapola qualquer possibilidade de veracidade que, até aqui, marcavam as inserções feitas no filme.

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5.O encontro com Laozi Num dado momento do filme, Confúcio encontra com Laozi, outro grande sábio chinês, que teria sido um de seus mestres. Embora essa informação conste no Shiji, ela parece se tratar de uma construção absolutamente apócrifa, que não se encontra nas outras fontes. Laozi parece ter sido um mito, e não há provas de sua existência. Afirma-se que foi contemporâneo de Confúcio. As poucas informações que temos dele vêm de outra biografia do mesmo Shiji de Sima Qian. Aparentemente, esse encontro nunca teria ocorrido, e nem mesmo Confúcio era afeito a doutrina dos daoístas, os seguidores de Laozi. Todavia, a lenda existia na época de Sima, e ele a incorporou. Ao passar essa informação no filme, talvez a intenção seja dar legitimidade tanto à sabedoria de Confúcio quanto à existência de Laozi. A questão é que, nesse ponto, Hu Mei simplesmente deixou de lado o exercício crítico da história e reproduziu a fonte literalmente, criando um momento especial na narrativa. Esses cinco casos nos permitem vislumbrar a formação do personagem ‘Confúcio’ ao longo do filme: uma pessoa comum, de inteligência destacada, incorruptível, amável e sábio. Um homem de múltiplas capacidades, cujo contato com o desejo (Nanzi), a violência necessária (Guerra) ou o Místico (Laozi) não desvirtuam seu caráter, nem o desvia de seus propósitos humanos. Confúcio se transforma, pelo filme, num modelo de cidadão ideal e atemporal, servido tanto a sociedade da época quanto a de hoje. Isso vem a calhar, tendo em vista as mudanças nos rumos políticos do país. A compreensão de Confúcio hoje, na China A realização do filme ‘Confúcio’ veio acompanhar uma série de medidas que o governo da China Popular vem adotado, já alguns anos, para restaurar o confucionismo a uma condição de filosofia e teoria política legitimamente chinesa. Trinta anos atrás, falar de Confúcio seria praticamente um crime na China comunista. As mudanças políticas desenvolvidas por Deng Xiaoping (1978-1992) facilitaram o ressurgimento gradual dos estudos confucionistas no país (antes restritos a Taiwan, Cingapura, Hong Kong, Coréia do Sul e Japão). Em 1987, foi realizado um congresso internacional sobre Confucionismo no país. Em 1991, o autor Jiang Qing lança um audacioso livro 18

chamado ‘Confucionismo Político’, no qual traça as linhas de um ‘Novo Confucionismo’ para a China, incluindo aí um programa político, ético e social que recolocaria o confucionismo na sua posição de primazia no pensamento chinês. Em 1994, o governo decide inaugurar uma rede de Institutos para o ensino da língua chinesa no mundo, doravante chamado ‘Instituto Confúcio’. Por fim, em 2006, mais uma vez o governo patrocina a edição de um livro, ‘Confúcio com amor’, da intelectual Yudan, que vulgariza as lições do confucionismo para o uso no cotidiano. Todas essas iniciativas refletem a distensão dos temas políticos na sociedade. Convertida numa superpotência mundial, a China atual tem consciência das contradições representadas pela ideologia marxista e pela economia de mercado. Tendo em vista a fragmentação do discurso comunista, o Estado chinês vislumbra as opções que possui para manter a estabilidade das instituições políticas, da economia e da sociedade. Contudo, como elaborar uma nova proposta de sistema político sem resvalar nas pressões dos modelos ocidentais? Nesse caso, a retomada do confucionismo pareceu uma resposta adequada. Como dissemos antes, a ideologia confucionista do desenvolvimento pessoal e da responsabilidade social preenche as ausências do Estado, que tem dirigido seus esforços no crescimento da economia e na manutenção da ordem. De todos os setores estatais (com exceção clara das forças armadas), apenas a educação ainda recebe uma atenção especial, por ser considerado o elemento básico de toda e qualquer mudança. A construção do cidadão ideal confucionista vem de encontro a essa necessidade de um novo modelo social para a China moderna. Poderíamos nos perguntar por que os chineses vão buscar no seu passado modelos inspiradores, e aí voltamos a uma das questões levantadas no texto. A consciência de ‘ser chinês’ foi construída ao longo de séculos por meio da cultura e da valorização da história. Embora o marxismo tenha sido responsável por recolocar a China no topo das nações mundiais, recuperando-a depois de anos de pobreza e exploração econômica, os chineses mantiveram consigo a percepção de fazerem parte de uma civilização antiga e poderosa, que até o século 18 foi uma das mais avançadas 19

do mundo. O confucionismo foi, de certa maneira, o grande articulador dessa civilização, e a manteve culturalmente unida, mesmo nas suas piores crises. Por essa razão, faz todo sentido para os chineses buscarem, no seu passado, as fórmulas para se autogovernarem. Um confucionismo moderno, adaptado as questões contemporâneas, mas que preserva o modelo do cidadão ideal, o junzi, é a possível resposta para um futuro em que o marxismo poderá deixar de existir, e o maoísmo – enquanto interpretação do marxismo – se esgotará naturalmente. No livro ‘Confucionismo político’, de Jiang Qing, que é considerado o livro básico desse ‘Novo Confucionismo’, norteando as discussões sobre o futuro da China, não se menciona em momento algum abandonar as conquistas do sistema republicano. Os chineses não se pretendem mais uma dinastia, mas sim, um povo independente e com sua própria cultura, administrando por si mesmos, dentro de seus próprios modelos políticos, os destinos da nação. Nesse aspecto, o filme ‘Confúcio’ cumpriu a tarefa – ao menos, dentro da China – de legitimar a retomada dos estudos confucionistas em todos os níveis da sociedade. O sucesso do filme expressa a busca de uma civilização por suas próprias origens, e a retomada dos modelos que inspiraram sua continuidade. O grande objetivo de ‘Confúcio’, enfim, fora atingido. E não foi o próprio Confúcio que disse: ‘mestre é aquele que, por meio do antigo, conhece o novo’? Bibliografia BUENO, André História da China Antiga. In http://china-antiga.blogspot.com/ 2005 ANPING, Ching. O Autêntico Confúcio. São Paulo: JSN, 2008. BELL, Daniel A. & CHAINBONG, Haim. Confucianism for the modern world. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. CHENG, Anne. Diálogos de Confúcio. São Paulo: Ibrasa, 1997. CHENG, Anne. História do pensamento chinês. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. GRANET, Marcel. O Pensamento Chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 (original, 1927). JIANG, Qing Zhengzhi ruxue (Confucionismo político). Yucheng: Harvard University press-Yusheng Academy, 1991 (2003). LAU, D.C. Analectos de Confúcio. Porto Alegre: LP&M, 2011.

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