Congresso dos Juízes: quatro pontos polémicos

July 7, 2017 | Autor: Henrique Monteiro | Categoria: Magistraturas
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Congresso dos juízes : quatro pontos polémicos

A tensão entre comunicação social e justiça. Os julgamentos populares e falta de conhecimentos jurídicos da maioria das redações.

Há, e penso que sempre haverá, uma tensão latente entre Comunicação Social e Justiça. Do meu ponto de vista, tal deve-se essencialmente a duas recusas que são, por assim dizer, próprias de cada profissão:
- A recusa da Justiça em prestar contas, em comunicar de forma clara e inequívoca as suas decisões e o seu funcionamento, algo que, na verdade, é comum a quase todas as autoridades;
- A recusa da Comunicação em aceitar que a Justiça tem métodos, tempos e modos de fazer próprios - que não são necessariamente coincidentes com a chamada 'opinião pública' e que., no geral, é mais 'opinião publicada'.
Podereis ficar admirados por eu afirmar que há uma recusa de comunicar por parte da Justiça. Mas basta ler uma peça processual – seja produzida por partes ou seja uma sentença já lavrada e transitada – para qualquer leigo desistir do entendimento de boa parte do autêntico patoá. Aliás, em abono dos juízes, direi que médicos, Bancos, Companhias de Seguro, fornecedores de eletricidade e o que mais for, têm o mesmo defeito, muitas vezes com consequências mais perniciosas.
Essa recusa da comunicação tem uma parte que é absolutamente compreensível, e que diz mais respeito à fundamentação, a qual se tem de basear nas leis existentes, sendo que o legislador parece, muitas vezes, fazer tudo para não ser claro.
Mas tem outras que não se entendem. E aqui a minha crítica estende-se do exagero da abertura – o julgamento do Padre Frederico foi uma vergonha – ao exagero do encerramento.
Houve tribunais que usaram – e a mim parece-me bem - a figura de uma espécie de porta-voz que ao fim de cada sessão dizia, resumidamente, o que se tinha passado e que passos tinham sido dados.
Do meu ponto de vista, toda a legitimidade do juiz, vindo de várias origens, explana-se numa muito simples: entender que os processos, sendo cada vez mais mediáticos, necessitam também ser cada vez mais controlados pelo tribunal e pelos seis principais responsáveis.
A alternativa é deixar a transmissão ao estilo, ao jeito e às influências das partes, que vão formulando, em conjunto com os jornalistas, uma convicção por vezes pouco ou nada fundamentada, que tem como consequência a verberação do tribunal quando a sentença não corresponde à vox populi.
Acontece que na maioria das redações não há (nem teria de haver, embora um pouco de cultura geral não seja dispensável), mas não há conhecimento e menos ainda formação jurídica suficiente, pesem os esforços já feitos por diversos organismos, para a sucessão de casos que são cada vez em maior número e cada vez mais em simultâneo. Em todo o mundo a política judicializou-se, em parte porque os políticos se demitiram das suas funções, em parte porque há um conceito errado que estabelece que aquilo que não é ilegal é politicamente aceitável. Mas fazer essa distinção levar-me-ia para outros caminhos. O que quero aqui dizer é apenas que esta noção mais ajuda, ainda, a necessidade de haver especial cuidado com a comunicação.
Dirão os meritíssimos aqui presentes: mas nós temos de ter cuidado com um bando de energúmenos, ou vá lá, um conjunto de jornalistas que depois nunca dizem ou escrevem as coisas com o rigor e a exatidão que lhes devia ser requerida?
Terão razão, mas é assim que o mundo é. Mesmo para os jornalistas. Se não acreditam vejam as caixas de comentários da Net e retirem a seguinte conclusão: quem comenta percebeu o que foi escrito? Quase nunca! Mas quem escreveu – dou aqui o corpo ao manifesto – é, em princípio, um comunicador. Imaginem se não fosse.
O que se passa é que a ideia de democracia – sendo o pior dos regimes excetuando todos os outros, sem dúvida, como afirmou Churchill – democratizou-se. Ou seja, espalhou-se, abarca todas as pessoas, todas as correntes, todos os pensamentos. E toda a gente se sente não só já árbitro de bancada, mas juiz do supremo, comentador de política, médico (depois de uma consulta aos sintomas no Google) ou outra coisa qualquer. Este escrutínio, podemos lamentá-lo mas é inútil combatê-lo. Tem aspetos positivos – os de saberem os senhores (e todos os outros) que não podem fazer o que lhes apetece sem serem colocados em causa – mas tem muitos aspetos negativos, como o de aplainar todo o conhecimento, relativizar toda a sabedoria na confusão constante entre três categorias distintas: informação, essa sim espalhada, nem sempre criteriosamente, por todo o lado; e além da informação, conhecimento e sabedoria que são duas categorias distintas entre si e muito distintas da informação.
Acresce, que cada um de nós mede os outros por nós mesmos. É por isso que eu acredito que os profissionais de atividades jurídicas - sejam magistrados, jurisconsultos, académicos ou advogados, partem do princípio que as suas latinadas são percetíveis. Não é verdade!
A necessidade de clareza é intrínseca a uma Justiça feita em nome, pelo e para o povo. Essa clareza implica que a sua transmissão seja simples e também ela transparente e clara. Mas, infelizmente, além da opacidade da maioria dos atos vivemos para mal dos nossos pecados – e chego ao meu segundo ponto, numa sociedade que se pode chamar

A sociedade do segredo. E o segredo de justiça, como tentarei demonstrar, é uma enorme injustiça em muitos casos.
Eu sei que o princípio geral é o da publicidade. Mas, na prática, e na maioria dos processos que estão nas aberturas de telejornais, frontispício de sites e jornais, esse regra quase não existe.
Esta será, aliás a maior, mais séria e mais grave tensão entre Justiça e Comunicação Social. Se há casos indiscutíveis – envolvendo menores, ameaças ao Estado e à ordem e diversos outros – em que o segredo, mais do que a alma do negócio corresponde ao sucesso de uma investigação, na maioria dos casos ele apenas serve para uma coisa: deixar os jornalistas nas mãos de quem primeira quebra esse segredo.
E aqui não tenho dúvidas: o segredo é, por vezes, quebrado pelo Ministério Público ou pela Polícia Judiciária porque lhes interessa a publicidade da investigação, até para forçá-la ou conseguir obter meios que lhe faltam; outras vezes é quebrado pela defesa que quer antecipar-se e expor o que pode considerar as faltas da acusação (veja-se o caso da praia do Meco que me parece paradigmático); e, mais raramente, pela magistratura judicial, que tem atores a quem o gosto pelo justicialismo e pelos 15 minutos de fama não falta. (Há ainda os funcionários e outros possíveis intervenientes, como peritos, etc. que eu julgo serem interventores mais esporádicos).
O segredo, na maioria das vezes, não beneficia ninguém. Arrasta na lama os arguidos, descredibiliza as magistraturas e transmite, pela falta de comunicação clara já referida, a ideia de enorme confusão no meio daquilo que se convenciona chamar Justiça e que é mais do que magistratura judicial, mais do que magistratura do Ministério Público (que ao ter por dever chegar à verdade, influencia jornalistas dispensando-os de ouvir outras partes) e que é mais do que Polícia Judiciária e do que todos os outros intervenientes.
Acima de tudo, o segredo de Justiça não impede que existam processos de autêntica Justiça Popular, ao mesmo tempo que lhe evita a maçada do contraditório. Numa sociedade em que 'O povo é quem mais ordena' e onde a cultura política maioritária não entende que tenha de haver intermediários especializados, a própria expressão Justiça Popular parece positiva.
Mas esta ideia de que a complicação da Justiça é um emaranhado do qual nunca ninguém sai, salvo se for rico ou tiver influências, imbrica com outro ponto fundamental. A maioria das pessoas não distingue (e vou ao meu terceiro ponto)

A faculdade de julgar e a faculdade de aplicar o Direito
A faculdade de julgar é, infelizmente, a nível da opinião pública e da Comunicação Social, confundida com a faculdade de aplicar o Direito. Ora, nada na Filosofia indica que a uma boa capacidade de julgar corresponda uma igualmente boa capacidade de aplicar o Direito, a lei, as respetivas molduras penais, assim como o inverso é verdadeiro.
Não me interpretem mal, sobretudo porque eu vejo este assunto mais pelo meu campo (que é o das ideias) do que por outro qualquer, mas penso que semelhante confusão é feita por muita gente de dentro da comunidade jurídica. Isso leva – não sei se estes termos estão certos, mas espero que compreendam a ideia, a uma prevalência do formalismo sobre o julgamento do ato em si. Recentemente, aliás, falou-se numa nova atitude dos tribunais (com as condenações do processo 'Face Oculta' e de um processo envolvendo uma ex-ministra da Educação) como se uma nova atitude não devesse decorrer de reflexões profundas, alterações dos códigos e várias outras envolventes.
Um dos aspetos muito criticados – e com certa razão, diria – é algum excesso de juventude dos juízes. Na verdade, a faculdade de julgar está necessariamente associada à experiência e esta, indubitavelmente aos anos que já se viveu. Uma boa faculdade de julgar pode ser detida por alguém praticamente iletrado, mas ninguém que não tenha frequentado um curso de Direito (e provavelmente algo mais) poderá ter uma boa capacidade de aplicar o Direito.
Daqui decorre o quê? Do meu ponto de vista decorre, desde logo, uma enorme desconfiança sobre a preparação vivida de alguns juízes (não falo da preparação técnico-jurídica); em segundo lugar, de que a sociedade devia abrir a faculdade de julgar, sobretudo em de assuntos não especializados, a pessoas que não têm necessariamente de ser da carreira da magistratura. Não via qualquer mal em que em Tribunais como o Constitucional houvesse profissões não jurídicas entre os seus membros. Como não vejo mal, pelo contrário, na generalização daquilo que, em parte, já existe – os jurados, que acabam por ter um papel importante (em Portugal, decisivo noutras latitudes) na faculdade de julgar.
Um juiz com uma ótima capacidade e um excelente conhecimento das leis pode deitar tudo a perder se a sua capacidade de julgar for esdrúxula ou pouco perspicaz. A justiça é, em princípio, feita em nome do povo. E tem de ser compreensível para o povo. Um dos princípios é saber exatamente o que se está a julgar – qual o crime exato, que perguntas exatas necessitam ser respondidas. No entanto, como acima ficou dito, olha-se as mais das vezes para uma sentença e não se entende. Eu, por exemplo, nunca entendi como pôde ser à porta aberta o julgamento do Padre Frederico, como pôde ser o Padre Frederico condenado com base em provas circunstanciais. Não insinuo que o juiz tenha feito mal o seu trabalho, pode ser que de acordo com a lei isso seja absolutamente explicável. Mas o que eu exijo, como cidadão e penso que os juízes devem exigir, como cidadãos e como magistrados, é que tudo seja claro. Do mesmo passo – e perdoem-me se falo apenas de processos mediáticos – não compreendo como se podem mudar circunstâncias (data, hora, local) de crimes a meio do julgamento. Mais uma vez digo que não critico o juiz que o permite ou que o faz. Mas gostava que a lei fosse clara no que é permitido e não. Clara e outra coisa que ela não é, do meu ponto de vista – simples de entender.
Ou então, que alguém autorizado pelo presidente do tribunal em causa explique detalhadamente o que se passou.
A Justiça é, juntamente com a Defesa e a Segurança a mais antiga e nobre tarefa de um Estado. E se esse Estado for um Estado moderno a Justiça é central. Como dizia Aristóteles, a função essencial da política é a realização da Justiça. Mas como pode haver política privada, que não seja destinada à polis? Parece um contrassenso, mas na verdade entronca em algo que me assusta e é o meu quarto ponto:
A Justiça privada – Já disse que é algo que me assusta. Mas sem nos apercebermos, cada vez mais litígios, nomeadamente no plano dos negócios passam para tribunais arbitrais que são autênticos remakes da justiça privada.
Só assim se entende que o Estado pouco possa fazer, sem contrariar um contrato que ele próprio assinou, quando descobre que esse contrato é ruinoso. A coisa julga-se em Londres com uns bancos e uns tantos intermediários. As partes acordam como podem. O princípio em si não é condenável, mas se os Estados (ou entidades supranacionais) não colocam na balança os interesses gerais da comunidade, mas apenas os interesses das partes envolvidas, sabemos imediatamente qual é a parte fraca – é o ausente contribuinte, que não tem quem o defenda. Isso passa por outra questão que a meu ver teria de ser resolvida com coragem neste país: serem os juristas do Estado e os magistrados do MP a representar sempre o Estado, ao invés de escritórios de advogados. Não é só por estes serem pagos a peso de ouro. É sobretudo porque os interesses privados, legítimos, devem estar separados em absoluto do interesse público. O Estado deve meter-se em menos coisas e, em contrapartida, ter meios e ser implacável naquelas que lhe dizem direito. Se quiserem, isto é uma espécie de fusão entre a Public Choice de James Buchanan e as conceções de John Rawls.
Os magistrados judiciais têm a enorme responsabilidade numa democracia. O que me leva ao quinto ponto, que aquele de Aristóteles que já citei:
A responsabilidade social dos juízes na prossecução daquilo que é o essencial da política - realizar a Justiça
É bom não esquecer que os magistrados são os agentes daquilo que é essencial na política, entendida a palavra no seu aspeto mais nobre: a política tem como objetivo central, dizia Aristóteles, a realização da Justiça.
Mas os agentes não são apenas juízes. O Presidente da República é o Supremo Magistrado da Nação; os deputados eleitos pelo povo são magistrados do povo e, por excelência, o topo da pirâmide dos três poderes postulados por Montesquieu. A magistratura determina diversos aspetos da realização dessa justiça: a penal, a cível a fiscal, etc. até chegar à Constitucional onde hoje em dia são julgados aspetos da política social, para além da que regula as próprias relações entre os poderes e as relações entre os seus agentes.
Mas pergunto (e a pergunta é inocente, embora não pareça): devemos evoluir para julgamentos onde o tribunal decide o que é necessário ou não a um Ministério? (recordo o caso Maria de Lurdes Rodrigues). Se me perguntarem se o estudo que ela mandou fazer (e que pelo que sei era coligir dados já publicados) era fundamental ser feito por um jurista com tais honorários, eu concordo com o tribunal. O meu problema é se toda a Justiça é, por assim dizer, judicializável sem que os poderes se atropelem.
Senhores Juízes, meus senhores e minhas senhoras,
A Justiça é, de facto, o Alfa e o Ómega da civilização em que nos inserimos. Juntamente com alguma literatura, é ela que nos liga à nossa tradição mais antiga, à civilização que se convenciona chamar judaico-cristã, ou mais simplesmente 'ocidental'.
Sem Justiça não há cidadania nem democracia, nem liberdade nem nada do que é importante numa sociedade aberta.
A injustiça começa por ser, quase sempre, fautora de descontentamento das populações, de falta de confiança dos cidadãos, de desprestígio das instituições. Isso implica que cada juiz saiba que preside ou participa num órgão de soberania que é o Tribunal e que esse órgão de soberania é fundamental na harmonia do país. Se no Parlamento pode haver insultos e desacatos, a Justiça tem de ser um lugar de recato, reflexão e harmonia. Sê-lo-á se funcionar como deve.
A própria Comunicação Social só pode ser inteiramente livre se a Justiça funcionar. Se funcionar, sem atrasos, sem confusões (e agora cabia falar do Citius, mas vou resistir) as sociedades são mais livres, mais seguras e mais confiantes.
Este ponto sobre a responsabilidade social dos juízes leva-me ao que pode ser o meu polémico, o sexto ponto:
Como promover o estatuto dos juízes – na magistratura o recato deve ser mais importante do que a reivindicação?
Transparência, clareza, firmeza – tudo isso pode ser insuficiente ou irrelevante se os juízes não souberem ocupar o seu lugar na hierarquia da comunidade. E a hierarquia, a importância, a responsabilidade não se mede apenas nem sobretudo em termos remuneratórios. O juiz, até nos jogos de futebol, é tanto melhor quando mais trabalhar e menos notado for. Não quero com isto dizer que não sejam tão cidadãos como os outros. Mas quero dizer que são cidadãos com direitos diminuídos – e defendo isto também para militares, agentes de segurança e jornalistas. Todas as profissões que tocam e implicam com o cerne da Liberdade – que é a liberdade dos outros devem ter consciência absoluta – e talvez até leis claras – que lhes limitem os direitos. Não há pior para mim do que ver jornalistas em manifestações, sejam elas sobre o que forem, ou a assinar abaixo-assinados que não estejam estritamente relacionados com a sua profissão (v.g. liberdade de expressão; libertação de jornalista presos, etc.).
Penso que pedir recato aos senhores juízes é uma forma de reconhecer o papel ímpar que têm na sociedade: fazer justiça. As regras que essa mesma sociedade definiu como fundamentais para a sua vivência comum; decidir sobre o destino dos suspeitos de terem prevaricado.
Por motivos profissionais já tive, infelizmente, de percorrer muitas salas de tribunais. Encontrei de tudo, como sempre acontece. Mas deixem-me citar o Dr. Silva Lopes na sua teoria do 'carolismo'. Fazemos parte de um júri que atribui prémios às escolas e ele ensinou-me que em todas as organizações, em todas as profissões, em todas as sociedades, há 10% de carolas que puxam para cima e para diante e 10% de mandriões que puxam para baixo e para trás. Os restantes 80% adaptam-se ao estilo dos 10% que forem mais dinâmicos.
Por isso, cada um de nós, na sua profissão deve perguntar a si mesmo pela sua ética, pela sua responsabilidade e pela sua atitude. E ser exigente. Contribuiremos assim, ou pertenceremos mesmo, aos tais 10% que puxam para cima e para a frente.

Muito obrigado






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