CONHECIMENTO E CONSERVAÇÃO DA NATUREZA BRASILEIRA: O LEGADO DE DOMENICO VANDELLI (2008)

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* Artigo publicado no livro O Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli, Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2008.

CONHECIMENTO E CONSERVAÇÃO DA NATUREZA BRASILEIRA: O LEGADO DE DOMENICO VANDELLI

José Augusto Pádua Em 1786, foi publicada em Lisboa uma obra fundamental para entender o programa teórico e político do que hoje chamamos de iluminismo luso-brasileiro, inclusive no aspecto que aqui nos interessa mais diretamente: a emergência histórica de uma consciência crítica sobre a necessidade de conhecer e conservar o mundo natural brasileiro. O livro se chamava “Discurso histórico, político e econômico dos progressos e estado atual da filosofia natural portuguesa, acompanhado de algumas reflexões sobre o estado do Brasil”. Seu autor, Baltasar da Silva Lisboa, tinha nascido na Bahia em 1761 e seguido para Portugal quatorze anos depois, onde obteve o grau de doutor em Direito Civil e Canônico pela Universidade de Coimbra. Naquele contexto histórico, um número maior de jovens da elite colonial teve a oportunidade de realizar estudos superiores na Europa, conformando o que Kenneth Maxwell chamou de “geração de

1790”. 1 Vale lembrar que a formação superior de então, mesmo considerando os limites da vida acadêmica portuguesa, era ampla e diversificada, enveredando tanto pelo estudo das humanidades quanto da ciências naturais (segundo principio pedagógico iluminista de que a multiplicidade de matérias estudadas não fragmentava a inteligência, pois em todas elas se cultivava a razão como fonte única da energia do conhecimento).

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No livro de 1786, Baltasar via no avanço da filosofia natural – “a ciência que mais contribui para o bem comum” – a chave para fazer progredir a vida econômica e social no império português, superando a grave situação de crise pela qual passava (vivia-se então, entre outros fatores, o esgotamento das minas de ouro do Brasil, que 1 2

Maxwell, 1999 Cassirer, 1996.

serviu de esteio para a economia da metrópole ao longo do século XVIII). O “vasto continente da América há três séculos descoberto”, de toda forma, continuava sendo um espaço essencial para a renovação econômica do império, sendo necessário promover o estudo científico e o correto aproveitamento do seu enorme potencial no que dizia respeito aos três reinos da natureza. A realidade imediata da colônia onde havia nascido, porém, não produzia um quadro otimista. O texto de Baltasar, nesse ponto, assumia um tom particularmente crítico. A agricultura era praticada “o mais miseravelmente que é possível imaginar”, sendo exercida por “miseráveis escravos” que viviam “nus, tiranizados, mortos muitas vezes de fome”. As fornalhas eram pessimamente construídas, especialmente na lavoura do açúcar, gerando um enorme desperdício de madeiras nativas, cuja escassez já começava a inviabilizar a continuidade de muitas fazendas. A exploração dos recursos animais, por outro lado, ocorria de forma ignorante e rudimentar. A caça, como no caso dos veados “abundantes nos sertões”, era feita de tal modo que eram “a todo o tempo indiscretamente mortos” e “pelo diante serão mais raros”. A própria exploração dos bois era predatória, pois incluía o “costume de se matarem, logo que se quer completar certo numero de couros, bois, vacas e bezerros indistintamente, sendo conseqüência disso a diminuição do gado e a má qualidade dos couros”. A única esperança, aos olhos do jovem doutor de Coimbra, estava na promoção de um amplo programa de reformas baseado na filosofia natural, com o objetivo de aproveitar de maneira racional os recursos do país. Era necessário, por exemplo, promover a aclimatação de espécies úteis trazidas de outras regiões do planeta, como no caso do arroz, do anil, do café e das uvas. A lavoura do algodão, em especial, se bem organizada poderia suprir os mercados gerados pelas novas tecnologias industriais, já que na Inglaterra se estavam introduzindo “milhares de fábricas ao modelo das da Ásia”. Para que tudo isso ocorresse, no entanto, era necessário implantar importantes melhoramentos, seja no plano técnico (como no caso da disseminação dos arados e charruas ), seja no plano social (com um melhor tratamento e educação dos escravos, acabando com os “criminosos excessos” que contra eles se praticava). Mas o principal trunfo estava no aumento do conhecimento prático das espécies vegetais nativas. Para isso era preciso aproximar-se dos índios, pois “muitas outras [plantas] ignoramos completamente, mas sabemos sim que os índios conhecem imensas que servem de antídoto contra inumeráveis enfermidades”. Era importante obter conhecimentos dos índios “conciliados com brandura e prêmios”. O Brasil deveria

receber expedições de “naturalistas enviados por autoridade régia”, pois era premente “fazer ver todos os portentos que a natureza quis ocultar naqueles paraísos, onde parece que em nenhuma outra parte do mundo procurou manifestar tanto o seu poder”. 3 É interessante observar que o mesmo conjunto básico de preocupações e propostas apresentadas por Baltasar da Silva Lisboa, aqui resumidas de forma muito sintética, apareceu de forma recorrente, apesar das naturais variações de enfoque e de ênfase, nos escritos de vários autores luso-brasileiros da época. Seja no caso de nomes bem presentes na memória social brasileira, como Alexandre Rodrigues Ferreira e José Bonifácio de Andrada e Silva, seja no de outros praticamente esquecidos, exceto na obra alguns poucos historiadores especializados, como José Gregório de Moraes Navarro e José Vieira Couto. Um elemento comum servirá de elo de ligação entre todos esses autores e, a meu ver, estará na origem de muitas das suas concepções e percepções. O fato de todos eles terem sido alunos de Domenico Vandelli. O peso do sábio italiano na obra desses autores não deve ser subestimado. O próprio “Discurso” de Baltasar da Silva Lisboa manifestou explicitamente esse reconhecimento, ao considerar a vinda do “Dr. Vandelli” para Portugal como um marco na historia da filosofia natural no país. 4 Pode-se dizer que a forte influência de Vandelli manifestou-se em dois níveis. Inicialmente, em sentido mais geral, na qualidade de divulgador no fechado mundo intelectual português das novas visões que então surgiam na Europa sobre o mundo natural e a sociedade humana, como no caso das idéias Lineu sobre o “Sistema da Natureza” e das doutrinas econômicas fisiocratas de Richard Cantillon e François Quesnay. Tais visões ajudaram a construir uma base teórica para a formulação de diagnósticos críticos da situação do território e da sociedade brasileiros no período colonial tardio. Mas é preciso também reconhecer a relevância das reflexões elaboradas pelo próprio Vandelli, ressaltando a sua sensibilidade pessoal, transmitida aos seus alunos brasileiros, para temas delicados da ordem colonial, tais como a ignorância dos proprietários de terra, o absurdo da destruição dos recursos naturais e os males do escravismo. Esses temas vão aparecer explicitamente em seus escritos, inclusive de uma maneira que pode ser classificada como corajosa no contexto de uma sociedade tão hierárquica e conservadora como a de Portugal, um verdadeiro baluarte do Antigo 3 4

Lisboa (1786): 1, 2,38, 44,48,50, 55, 60,67,68. Lisboa (1786): 16

Regime (apesar dos modestos avanços que então se promovia no sentido de introduzir no país o iluminismo científico e econômico, mesmo que claramente divorciado do iluminismo político que, entre outros fatores, estimulou a Revolução Francesa). Uma preocupação central de Vandelli estava no caráter incipiente do conhecimento do mundo natural em Portugal e nas suas colônias. O próprio Lineu escreveu ao naturalista italiano manifestando sua inconformidade com essa falta de atenção, especialmente tendo em vista a riqueza natural dos domínios portugueses: “Bom Deus! Se os lusitanos desconhecem os bens de sua natureza, como serão infelizes todos os outros que não possuem terras exóticas!”. 5 Como resposta ao problema, Vandelli procurou incentivar a realização de viagens filosóficas de naturalistas, em geral seus alunos, aos territórios coloniais (comissionadas pelo estado português). Foram arranjos desse tipo, apesar dos claros limites de financiamento e de apoio logístico, que permitiram, entre outras, a realização da viagem de Alexandre Rodrigues Ferreira pela Amazônia entre 1783 e 1792. 6 O avanço do conhecimento, contudo, não esgotava os objetivos de Vandelli. A postura crítica, que constituiu uma das marcas essenciais da cultura iluminista, também esteve presente no contexto do iluminismo luso-brasileiro, mesmo que de forma cuidadosa e moderada. Desde Lisboa, valendo-se da correspondência de seus discípulos, Vandelli não se absteve de manifestar dúvidas e condenações sobre o que estava ocorrendo em diversas regiões do império. Um posicionamento que certamente estimulou a presença de uma postura crítica semelhante na obra de alguns dos alunos (como transparece no texto de Baltasar da Silva Lisboa). No caso do Brasil, o incentivo ao exercício da crítica racional em uma sociedade colonial fechada e tacanha constituiu um dos aspectos mais importantes do legado intelectual de Vandelli. A mais extensa e importante colônia lusitana, de fato, não carecia de elementos a serem criticados. A ameaça de destruição dos seus preciosos recursos naturais, que estavam sendo devastados antes mesmo de serem mais bem estudados, constituía um pesadelo para os observadores ilustrados. Na Memória sobre a Agricultura deste Reino e de suas Conquistas, publicada em 1789, Vandelli contestou o fato da agricultura que se estendia pelos rios do interior do Brasil estar fundamentada em “um método que com o tempo será muito prejudicial. Porque consiste em queimar antiqüíssimos bosques cujas madeiras, pela facilidade de transporte pelos rios, seriam 5 6

A carta aparece em Vandelli, 1789a: 135 Para mais detalhes ver Simon, 1983 e Pataca, 2006.

muito úteis para a construção de navios, ou para a tinturaria, ou para os marceneiros. Queimados estes bosques, semeiam por dois ou três anos, enquanto dura a fertilidade produzida pelas cinzas, a qual diminuída deixam inculto este terreno e queimam outros bosques. E assim vão continuando na destruição dos bosques nas vizinhanças dos rios” 7 Em outro texto, também publicado em 1789, a Memória sobre Algumas Produções Naturais das Conquistas, Vandelli logrou relacionar diretamente os dois males: a falta de conhecimento e a falta de conservação da natureza brasileira.. A destruição das florestas poderia provocar o desaparecimento de elementos ainda desconhecidos da flora tropical. Tal fato poderia inviabilizar as possibilidades de uso futuro do que hoje chamaríamos de “biodiversidade” : “entre as plantas das conquistas existem muitas desconhecidas dos botânicos, principalmente árvores de muita utilidade, ou para a construção de navios, casas e trastes, ou para a tinturaria. Porém no Brasil muitas delas com o tempo se farão raras e dificultoso o seu transporte. Pelo costume introduzido de queimar grandes bosques nas bordas dos rios para cultivar a maior parte do milho ou mandioca, e acabando-se a fertilidade deste terreno em poucos anos passam a fazer novas queimas, deixando inculto o que antes foi cultivado. E assim se destroem imensas árvores úteis e de fácil condução”. 8 Podemos notar em Vandelli a presença de algumas percepções que mais tarde foram renovadas e desenvolvidas nos escritos de vários dos seus ex-alunos brasileiros (especialmente na obra de José Bonifácio).9 O elogio do mundo natural, no conjunto desses trabalhos, estava diretamente relacionado com a sua utilidade para os seres humanos. A crítica da devastação, portanto, assumia um caráter político, cientificista e antropocêntrico. Um viés firmemente estabelecido no ideário iluminista (ao contrário das tendências pré-românticas de culto à natureza que começavam a emergir na Europa). Por outro lado, não se aceitava a existência de uma oposição entre o uso racional e a conservação dos recursos da natureza. A última só fazia sentido no contexto do primeiro. No caso da principal colônia portuguesa, na visão de Vandelli e de seus discípulos, estava se concretizando uma combinação altamente perversa. O território permanecia desconhecido e sub-explorado, já que o “imenso país do Brasil” estava

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Vandelli, 1789a: 131).

Vandelli,1789b: 147). Para uma reconstituição histórica do vínculo existente entre as lições de Vandelli e o nascimento de uma tradição de crítica ambiental no Brasil ver Pádua, 2002

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“quase despovoado e inculto”. Mas nos arredores dos poucos assentamentos europeus campeava a exploração rudimentar e destrutiva. Tal fato não se devia, por certo, ao meio natural. Para o naturalista italiano era “escusado indicar a bondade do clima, a fertilidade dos terrenos, porque tudo isso é bem conhecido”. O problema central estava na falta de luzes e no modo de organização da atividade produtiva. Mesmo adotando uma linguagem prudente, Vandelli será um dos primeiros a criticar o trabalho escravo, um fundamento da economia e da sociedade coloniais. Em suas próprias palavras, a “principal causa porque no Brasil nunca poderá ter grande aumento a agricultura” encontrava-se no fato de que “o trabalho de toda a agricultura é encarregado aos escravos pretos, não havendo branco algum que se digne ser lavrador”. 10 Em outro momento, na Memória sobre Algumas Produções Naturais das Conquistas, igualmente de 1789, ao elogiar os esforços para “amansar e civilizar os índios e costuma-los à agricultura e a algumas artes”, ele destacou o fato de que com essa política o país não iria “necessitar de tantos negros, os quais com o tempo devem encarecer de modo que pouca conveniência se terá em transportá-los para o Brasil”. 11 Penso que os textos citados nos parágrafos acima, bem como a síntese das idéias apresentadas no “Discurso” de Baltasar da Silva Lisboa, são suficientes para visualizar a importância central de Vandelli na inauguração de uma crítica sistemática da exploração do território e de seus recursos no Brasil da virada do século XVIII para o XIX. Em primeiro lugar, pelas novas concepções do naturalismo ilustrado europeu que disseminou em aulas freqüentadas por estudantes da metrópole e da colônia. Em segundo lugar, pelas idéias que efetivamente expressou sobre a realidade do mundo luso-brasileiro da época, inclusive no que se refere à coragem de colocar o dedo em feridas que continuaram a sangrar no Brasil do século XIX - para não falar em seus modos de sobrevivência no presente - como a destruição da natureza e o trabalho escravo. Em terceiro lugar, pela abertura mental que suas lições e ensinamentos proporcionaram para um grupo expressivo de intelectuais brasileiros, alguns dos quais exerceram um papel relevante na própria criação do país independente. Vandelli e seus discípulos foram responsáveis por inaugurar uma atitude de crítica sistemática diante dos usos destrutivos da natureza brasileira. Apenas esse motivo, para não falar de tantos outros, já seria mais do que suficiente para estimular um reencontro com a sua obra, que merece um lugar de maior destaque na memória 10 11

Vandelli, 1789a: 130-131. Vandelli, 1789c: 145.

social do Brasil. Diante das lições do mestre, podemos lembrar das palavras formuladas em outro contexto por seu aluno José Bonifácio, quando defendeu que o uso das florestas, e por dedução dos recursos da natureza, fossem sempre orientados por “homens sábios e zelosos”, de modo que se “aproveitem as boas idéias antigas e corrijam as más por outras melhores, fundados em princípios científicos e na experiência do século” 12. REFERÊNCIAS

- Cassirer, Ernst, 1966, La Philosophie des Lumieres, Paris, Fayard. - Lisboa, Baltasar da Silva, 1786, Discurso Histórico, Político e Econômico dos Progressos e Estado Atual da Filosofia Natural Portuguesa acompanhado de Algumas Reflexões sobre o Estado do Brasil, Lisboa. - Maxwell, Kenneth, 1999, “A Geração de 1790 e a Idéia do Império Luso-brasileiro” in Chocolate, Piratas e Outros Malandros, Rio de Janeiro, Paz e Terra. - Pádua, José Augusto, 2002, Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista, 1786-1888, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. - Pataca, Ermelinda, 2006, Terra, Água e Ar nas Viagens Científias Portuguesas (17551808), Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas. - Silva, José Bonifácio de Andrada e, 1815, “Memória sobre a Necessidade e a Utilidade do Plantio de Novos Bosques em Portugal”, Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1991. . - Simon, William, 1983, Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808), Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical.

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Silva, 1815: 51. A estreita relação entre Bonifácio e Vandelli transformou-se mais tarde em uma ligação familiar. Sua filha mais velha casou-se com o filho do naturalista italiano.

- Vandelli, Domenico, 1789a, “Memória sobre a Agricultura deste Reino e de suas Conquistas” in Academia das Ciências de Lisboa, Memórias Econômicas Volume I, Lisboa, Banco de Portugal, 1990. ---------------, 1789b, “Memória sobre Algumas Produções Naturais deste Reino” in Academia das Ciências de Lisboa, Memórias Econômicas - Volume I, Lisboa, Banco de Portugal, 1990. ---------------, 1789c, “Memória sobre Algumas Produções Naturais das Conquistas” in Academia das Ciências de Lisboa, Memórias Econômicas Volume I, Lisboa, Banco de Portugal, 1990.

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