Consentimento para matar: o contexto sociocultural como substrato do acontecimento na cobertura de guerra da imprensa norte-americana

August 24, 2017 | Autor: Eduardo Meditsch | Categoria: Journalism, War on Terror, United States, Sociology of Journalism
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Publicado originalmente como capítulo em MAROCCO, B.; BERGER, C.; HENN, Ronaldo (ogs.) Jornalismo e Acontecimento: diante da morte. Volume 3 da Série Tecer. Florianópolis: Insular, 2012. P. 131-146
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Consentimento para matar: o contexto sociocultural como substrato do acontecimento na cobertura de guerra da imprensa norte-americana
Eduardo Meditsch

Já há algum tempo temos procurado caracterizar a especificidade do jornalismo como forma social de produção de conhecimento sobre a realidade, a partir da perspectiva proposta por Robert Park e desenvolvida por Adelmo Genro Filho (PARK, 2008; GENRO FILHO, 1987; MEDITSCH, 1997). Nesta busca, logo nos confrontamos com o papel central da intersubjetividade para esta caracterização:
"A consideração da intersubjetividade, ao tomar o discurso, enquanto uso da linguagem, como forma de interação social, propõe uma alteração nos critérios de aferição de verdade no conhecimento: desloca este critério tanto da objetividade ideal (critério dominante no paradigma positivista) quanto da subjetividade (critério dominante no paradigma ideológico), e o recoloca na prática, que contém as duas, e só pode ser compreendida 'num mundo interpessoal de interações públicas' (conforme Toulmin)." (MEDITSCH, 2001:162)
No presente ensaio, procuramos avançar nesta questão a partir da aplicação do aporte teórico da Cognição Situada (KIRSHNER; WHITSON, 1997) para compreender melhor como as notícias são ao mesmo tempo condicionadas e direcionadas ao contexto em que são produzidas. O termo contexto aqui tem sentido diferente daquele em que é mais utilizado nos estudos clássicos de psicologia cognitiva e que se refere basicamente às referências que podem ser acionadas na memória de um indivíduo para interpretar uma informação nova. A perspectiva da Cognição Situada propõe justamente uma crítica à abordagem dos processos cognitivos que tem o indivíduo isolado como unidade de análise:
"O cognitivismo, como o behaviorismo, compreende o conhecimento e o aprendizado como resultantes da experiência com um mundo estável e objetivo. A comunidade e a cultura só podem aparecer na teoria cognitivista quando forem possíveis de decompor em elementos discretos que possam participar no estável e objetivo domínio da experiência. Desta forma, a possibilidade de explorar o aprendizado e o conhecimento como processos que ocorrem de forma local, num mundo subjetivo e construído socialmente, é severamente limitada tanto pelo paradigma cognitivista quanto pelo behaviorista. A insatisfação com esta limitação por parte de educadores, antropólogos, psicólogos e teóricos da sociedade forneceram o principal ímpeto para a teoria da cognição situada" (KIRSHNER; WHITSON, 1997:vi)
A teoria da Cognição Situada desde então vem sendo construída por diversos autores de diversas origens disciplinares, e tem sido aplicada principalmente na área da educação. Procura incorporar a tradição filosófica do pragmatismo norte-americano e da semiótica de Peirce às descobertas recentes da biologia e da psicologia sobre o funcionamento do cérebro e da mente, confrontados também às contribuições sociológicas de Vygotsky, Bakhtin, Foucault e Bourdieu às questões do aprendizado e do conhecimento. Com uma perspectiva tão aberta, não logrou ainda alcançar uma sistematização consensuada capaz de lhe garantir reconhecimento institucional entre as disciplinas tradicionais, mas permite lançar novas luzes sobre a complexidade da questão do jornalismo como forma social de produção de conhecimento. Até onde pude averiguar, esta perspectiva tem sido pouco explorada no campo da Comunicação para a análise de seus objetos, como também aconteceu antes com outra visão teórica/aplicada desenvolvida no campo da educação, a de Paulo Freire (MEDITSCH, 2002), que não por acaso tem inúmeros pontos de contato – nos fundamentos e nas proposições – com esta que aqui utilizamos.
Para este estudo, interessa particularmente a visão da cognição situada de como se constituem os significados em situações particulares:
"Como interpretamos o significado de uma situação e como participamos de uma atividade situada depende de um largo sistema de formações culturais (discursos, gêneros, tipos de atividade, instituições, modos de representação) não totalmente disponíveis nem completamente contidos na própria situação imediata. (...) Interpretamos um textos ou uma situação em parte conectando o mesmo com outros textos e situações que nossa comunidade ou nossa história individual nos fez notar como relevante para o significado da situação presente. Nossa comunidade - e cada um de nós - cria redes de conexões (e de desconexões) entre textos, situações e atividades. (...) Essas redes de conexões que fazemos, e que são feitas na atividade de auto-organização dos sistemas maiores de que participamos, se estendem para trás no tempo, assim como para além no mundo social e material. (...) Mas todas estas noções só fazem sentido na medida em que enxergamos redes de conexões entre fatos, momentos, práticas, atividades, comunidades de práticas, períodos históricos, estágios de vida, textos e assim por diante." (LEMKE, 1997:49-50)
A visão sociossemiótica de Lemke de alguma forma representa um alargamento da teoria do discurso de Bakhtin (1986, 1992) - que define o uso da linguagem na prática como uma relação social fundamentada no dialogismo - na procura de captar a complexidade e a dinâmica do que chama de 'sistema ecossocial':
"Num modelo de sistemas ecossociais, as unidades de análise não são coisas ou pessoas, mas processos e práticas. São os processos e práticas que são interdependentes, ligados, criando as propriedades emergentes do sistema em auto-organização. (...) Indivíduos, como organismos, como sujeitos sociais, como identidades pessoais, são construtos e produtos da atividade do sistema mais amplo em auto-organização, a comunidade e sua ecologia semiótica; não são pré-dados ou unidades naturais de análise ou organização."(LEMKE, 1997:47)
É então enfatizada a relação dialética entre o individual e o contexto como mutuamente constitutivos: "uma relação dialética é mais do que o reconhecimento de efeitos recíprocos de dois termos um sobre o outro... Uma relação dialética existe quanto os elementos que a compõem são criados, são trazidos à existência, apenas com a conjunção de um com o outro" (LAVE, apud KIRSHNER; WHITSON, 1997:7).
Desta forma, no processo de conhecimento, "o que já aprendemos e experenciamos influencia nosso futuro aprendizado, de modo individual e idiossincrático, mas também em formas que nos marcam como produtos mais ou menos típicos de culturas, comunidades e histórias. (...) Nós aprendemos em atividades, mas mais totalmente em redes de atividades que são interdependentes entre si, que se facilitam e viabilizam, que se caracterizam por serem relevantes para a compreensão dos significados das demais. Estas redes são construídas diferentemente por grupos diferentes, e até certo ponto também por indivíduos diferentes. (...) Nós sempre percebemos, agimos e aprendemos participando da auto-organização de sistemas que são maiores do que nós próprios. A produção de significados, a atividade significante, chamemos ela de semiose ou de cognição, está tendo lugar naquele sistema maior e não somente em nosso corpo ou nosso cérebro. Nós damos corpo ao nosso passado, como nosso meio dá corpo ao seu (e portanto o nosso coletivo), e em nossa interação não apenas a memória, mas a cultura, os processos históricos e sociais são renovados e continuados, desviados e transformados." (LEMKE, 1997:52)
Se isso se aplica aos indivíduos como produtores de significados, certamente também se aplica às instituições que produzem conhecimento, e ajuda a compreender como elas, e o jornalismo entre elas, participa da construção social da realidade (MEDITSCH, 2010).
Este texto parte portanto da concepção do jornalismo como conhecimento situado, isto é, condicionado por e direcionado para o seu contexto, para examinar o substrato do acontecimento nas notícias sobre atos de violência de Estado publicados no jornalismo norte-americano. O caso norte-americano é interessante por nos permitir demonstrar, com algum distanciamento crítico, a difícil tarefa de separação entre consenso cultural (common ground) e ideologia dominante na estruturação dos frames e modelos mentais que concorrem para a construção social da realidade com a participação do jornalismo.
Reese (2009) e outros autores norte-americanos estudaram a "Guerra ao Terror" como um frame proposto pelo poder (governo Bush) e assumido pela mídia norte-americana a partir do atentado de 11 de setembro. Partimos desta referência para no entanto ir além da visão conjuntural desses autores "liberais", percebendo a"Guerra ao Terror" como o desdobramento de um modelo cognitivo mais profundo e enraizado na cultura e nas instituições norte-americanas, e que por isso não pôde ser inteiramente revisto com a derrota dos republicanos e a chegada de Barack Obama ao poder. Este background, afirma a supremacia americana sobre os demais povos do mundo, apontando os Estados Unidos como realização máxima do projeto humano (e divino) sobre a terra e, em consequência, desumanizando os que aparecem como obstáculos à concretização deste projeto e justificando implicitamente o uso da violência de Estado contra estes adversários.
A motivação para este texto surgiu durante a estadia do autor nos Estados Unidos (entre 2010 e 2011) que propiciou um acompanhamento diário, ainda que não metódico, do jornalismo norte-americano, na cobertura de acontecimentos marcantes como a execução de Osama Bin Laden no Paquistão, as guerras do Iraque e do Afeganistão, a intervenção militar no Líbano e o crescente protagonismo da CIA nas ações militares dos Estados Unidos, que culminou com a nomeação de seu diretor geral (na gestão Bush) para o comando do Pentágono (na gestão Obama).
Apesar das diferenças ideológicas evidentes entre os dois governantes, que não devem ser menosprezadas, há uma extensa base de consenso entre suas percepções sobre o papel dos Estados Unidos no contexto internacional. Se o candidato da oposição republicana a Obama nas eleições de 2012, Mick Romney, proclama que "Deus criou os Estados Unidos para governarem o mundo", o próprio Obama, em seu discurso ao Congresso sobre o Estado da Nação, em 2010, afirmou que seu país "é o farol que ilumina o mundo". São variações sutis do que alguns críticos tem apontado como a exacerbação do nacionalismo nos Estados Unidos, que tem raízes históricas e culturais profundas.
O Nacionalismo Americano como Ideologia
Durante a exacerbação ideológica que caracterizou o primeiro mandato de George W. Bush na presidência, especialmente após o atentado de 11 de setembro, o bilionário e pensador democrata George Soros publicou um livro para advertir para o que lhe parecia uma 'bolha da supremacia americana no mundo'. Nunca, segundo ele, a diferença de percepção sobre os Estados Unidos tal como era visto por dentro e por fora havia sido tão grande: "A distância entre as percepções da América e do resto do mundo nunca foi tão larga. Para o resto do mundo, a América está abusando da posição dominante que ocupa." (SOROS, 2004:vii)
Na verdade, esta diferença de percepção sempre foi considerável, como historia o professor de Assuntos Internacionais e consultor do Departamento de Estado Howard Wiarda: desde as guerras que retiraram 40% do território do México em meados do Século XIX, passando pelas intervenções e anexações de países da América Central no Século XX, "ninguém pode questionar que o povo americano pensou que estava levando os benefícios de uma civilização superior (democracia, eleições, protestantismo, livre empresa) para terras e povos menos afortunados" (WIARDA, 1997:2).
Num impressionante estudo sobre as origens e o recrudescimento do nacionalismo americano, o jornalista Anatol Lieven demonstra como o patriotismo historicamente adquiriu um caráter quase-religioso ao se amalgamar com a cultura protestante. O imaginário liberal-iluminista se funde com o imaginário bíblico para identificar o Reino de Deus com a democracia americana desde o deísmo dos fundadores da República, e se aprofunda através da história, como na Guerra Fria, apresentada como a luta contra "o comunismo ateu". .
"A Tese Americana também tem sido chamada de Credo Americano e de Ideologia Americana. É um conjunto de proposições sobre a América com o qual a nação se apresenta para si mesma e para os outros. (...) Ela sugere tanto que os Estados Unidos alcançou a melhor forma possível de sistema político como que este sistema pode ser exportado para o resto da humanidade. Séculos antes de Francis Fukuyama criar a frase, uma certa crença de que a América representava o fim da história já era comum no pensamento norte-americano e mais ainda no seu subconsciente. "Eu sozinho inauguro a grandiosidade, o tempo culminante", dizia o poeta Walt Whitman sobre seu país. Nas palavras de Richard Hofstadler, "tem sido nosso fado como nação não ter ideologias, mas ser uma." (LIEVEN, 2004:48-49).
Anatol Lieven conclui que "os mitos relacionados ao Credo incluem uma crença muito difundida de que os Estados Unidos são excepcionais em sua fidelidade à democracia e à liberdade e em consequência é um país excepcionalmente bom. E porque são excepcionalmente bons, são também excepcionalmente poderosos e por natureza não podem usar este poder para o mal. O Credo Americano é desta forma uma peça fundamental na crença da inocência inata dos Estados Unidos. Em seu estudo, Lieven faz um paralelo entre o desenvolvimento do nacionalismo norte-americano com o de outras potências do passado, como Alemanha, Japão e Rússia, e prevê as mesmas desastrosas consequências.
Richard Rubenstein faz uma relação similar ao analisar como os Estados Unidos se tornou um país beligerante, uma característica que ainda não tinha quando foi retratado pelo clássico de Alex de Tocqueville: "Desde que o livro Democracia na América foi publicado (em 1835), os Estados Unidos lutaram em dez grandes guerras, tiveram 18 longas campanhas militares contra os povos indígenas e interviram militarmente no exterior mais de 25 vezes. Se adicionarmos pequenas intervenções, ações secretas, assassinatos, ações combinadas e guerras encomendadas, este número explode, alcançando mais de 150 episódios violentos sérios desde a Segunda Guerra Mundial. Nenhuma outra nação tem uma história tão belicosa, e nosso passo está acelerando. Desde 1950, os Estados Unidos estiveram mais de vinte anos em guerra, com operações militares na Coréia, Indochina, Iraque e Afeganistão, matando mais de cem mil americanos, ferindo pelo menos cinco vezes isto, e consumindo vários milhões de vidas estrangeiras. Temos lutado continuamente desde 2001 sem visualizarmos um fim para a violência." (RUBENSTEIN, 2010:1-2)
Rubenstein entende que a belicosidade norte-americana é sustentada pela ideologia da 'religião civil' e seus nobres princípios, "tão elevados que fazem muita gente matar e morrer por eles, representando os Estados Unidos em seu melhor, mesmo quando têm sido usados para justificar a violência norte-americana no que tem de pior". E conclui propondo um paralelo com o fundamentalismo islâmico: "A utilização desta religião civil para promover guerras injustas e desnecessárias é tão nociva como o uso que o al-Quaeda faz da religião islâmica com o mesmo propósito. Reconhecer a existência e a potência desses princípios é reconhecer a possibilidade de nós também nos tornarmos jihadistas fixados na violência como uma panacéia – participantes de uma guerra eterna sobre a qual convencemos a nós mesmo que é justa". (RUBENSTEIN, 2010:27-28).
Uma leitura da cobertura de guerra em jornais de referência
Tendo a guerra se tornado um elemento permanente da vida americana, a cobertura da mesma se tornou tão trivial como o acompanhamento de qualquer outro assunto de Estado em jornais de referência como o New York Times e o Washgington Post. No limites da proposta deste capítulo não foi possível uma análise aprofundada desta cobertura, que demandaria um estudo muito maior. Dentro da proposta que originou o livro, nos limitamos a fazer uma leitura de uma pequena amostra de notícias, selecionada por critérios qualitativos no período observado, procurando pontuar como as notícias publicadas 'conversam' com o contexto da cultura norte-americana, fundada no credo de sua excepcionalidade em relação aos demais povos. Utilizamos como amostra para a seleção das notícias utilizadas nesta análise as apresentadas nos destaques dos jornais New York Times e Washington Post recebidas através de suas newsletters distribuída por email, intituladas "today's headlines" (manchetes de hoje) em ambos os casos, e distribuídas no mês de março de 2012.
No dia 9 de março, por exemplo, é destacada no New York Times uma notícia sobre as negociações entre Estados Unidos e Afeganistão a respeito da transferência dos 3200 prisioneiros de guerra mantidos pelos americanos para o controle do governo afegão. (U.S. and Afghanistan Agree on Prisoner Transfer as Part of Long-Term Agreement) Embora os Estados Unidos admita transferir gradualmente este controle dentro de um acordo mais geral que aponta para a retirada das tropas norte-americanas do país ocupado militarmente em 2014, a matéria deixa claro que a nova situação ficará sob controle dos norte-americanos, que mantém "poder de veto" sobre quem os afegões poderão libertar de seus compatriotas presos, apesar do reconhecido descontentamento do governo afegão com esta situação. A reportagem apresenta como únicas fontes os oficiais norte-americanos, que se justificam com razões de estratégia militar mas também humanitárias: "eles (os oficiais americanos) disseram que os Estados Unidos vão também seguir monitorando o tratamento dos presos, numa tentativa de prevenir abusos aos direitos humanos que prevalecem em muitas prisões afegãs". No entanto, os Estados Unidos vão ainda manter sob seu exclusivo controle cerca de 50 presos não afegãos que se encontram no mesmo campo sob suspeta de pertencer a Al-Qaeda, e os oficiais "se recusaram a responder se eles haviam sido capturados nos campos de batalha de lá ou em qualquer outra parte". O sequestro de suspeitos de serem militantes islâmicos pela CIA e seu confinamento sem prazo e sem julgamento longe de seus locais de origem, como na base de Guantánamo, é uma das táticas implementada pelo Pentágono na luta anti-terrorista, questionada por organizações de direitos humanos mas não mencionada na matéria.
A mesma notícia faz referência a um segundo ponto de disputa com o governo afegão: o fim dos ataques noturnos pelas "forças especiais" norte-americanas – que ainda estaria "em discussão". "Forças especiais" se referem ao crescente protagonismo da CIA como uma força armada – ao lado dos tradicionais exército, marinha e aeronáutica – na estratégia militar norte-americana. É a CIA que opera os drones, os aviões-robôs de alta tecnologia pilotados por controle remoto a milhares de quilômetros de distância, a partir de bases em território americano, que vigiam o cotidiano dos talibans com suas famílias e os bombardeiam quando considerado adequado. As "forças especiais" comandadas pel CIA também fazem raids com helicópteros como a que executou Osama Bin Laden no Paquistão. "Os americanos insistem que os raids noturnos são fundamentais na sua estratégia militar no Afeganistão, pois ajudaram a capturar e matar milhares de combatentes e comandantes talibãs", explica a matéria. "Políticos em Washington tem sido altamente críticos do que eles caracterizam como a intransigência afegã nessas negociações sobre os prisioneiros", conclui o repórter, tendo como fonte, mais uma vez, um militar norte-americano. O outro lado da negociação não foi ouvido pela reportagem.
Este estado de espírito "de intransigência" do governo afegão é atribuído pela reportagem ao episódio em que vários exemplares do Corão, livro sagrado dos islâmicos, foram queimados por soldados americanos numa base daquele país. A queima dos livros provocou protestos violentos em todo o país, que resultaram em 29 mortes, e no estremecimento das relações entre as forças de ocupação e o governo afegão. Mas, "os oficiais americanos caracterizaram a queima dos livros como sem intenção e pediram desculpas", justifica o texto assinado pelo repórter Rod Nordland.
No dia 10 de março, é publicada no New York Times uma matéria sobre a insegurança dos empregados nos projetos governamentais civis (USAID) e não-governamentais norte-americanos (ongs como CARE) que atuam em "apoio ao desenvolvimento" do Afeganistão, por conta da decisão do governo afegão de proibir companhias de segurança privadas de atuarem no país (Security Fears Lead Groups to Rethink Work in Afghanistan). Estas companhias privadas, segunda a matéria, geralmente são dirigidas por ex-soldados americanos e britânicos e contratam guardas locais. O governo afegão decretou o seu fim e criou em substituição uma guarda especial pública que pode ser contratada por particulares. A matéria enfatiza que o USAID é o maior doador de recursos ao desenvolvimento do país ocupado, apesar de seu investimento ter diminuído de 3,4 bilhões em 2010 para 2 bilhões de dólares em 2011. Embora a nova guarda já tenha sido contratada por instituições como a International Relief and Development, ela não é considerada confiável por muitos profissionais norte-americanos que estão no Afeganistão: "há medo de que a guarda vá se mostrar menos eficiente que o próprio exército afegão e sua polícia, que é visto por muitos como corrupto e várias vezes voltou as suas armas contra as forças ocidentais junto com que trabalha". A reportagem constata que vários funcionários norte-americanos estão guardando armas em seus locais de trabalho, embora isso seja proibido pelas leis afegãs. A matéria de Matthew Rosenberg e Graham Bowley conclui que a ajuda humanitária norte-americana no Afeganistão vai diminuir por causa das condições adversas: "Está ficando difícil, disse Jennifer Rowell, coordenadora da CARE no Afeganistão. O conflito está piorando, e vai continuar a piorar. O país está num estado de lento declínio", disse ela. Também nesta matéria, nenhum afegão foi ouvido.
No dia 12 de março, recebe destaque no mesmo jornal a notícia de que um sargento norte-americano matou 16 civis afegãos, incluindo mulheres e crianças (An Afghan Comes Home to a Massacre). A matéria desta vez registra a reação dos familiares das vítimas (especialmente de um homem chamado Abdul Samad, que perdeu a mulher, oito filhos menores e outros dois parentes no ataque), talvez pela situação inusitada dele ter sido um refugiado do Taliban que estabeleceu a família ao lado de uma base militar norte-americana, pensando que ali estaria protegida, embora já tivesse tido uma casa destruída pelos bombardeios da Otan. Afinal, "algumas aldeias tiveram que ser inteiramente destruídas por decisão dos comandantes, uma vez que não conseguiram estabelecer um controle seguro sobre elas". O sargento apontado como autor dos assassinatos saiu da base norte-americana durante a noite, invadiu três casas de civis e fuzilou as famílias inteiras. O secretário de defesa norte-americano considerou o caso "um ato criminoso" e prometeu ao presidente do Afeganistão que o militar responsável prestará contas à justiça. O acusado foi preso e levado para os Estados Unidos, não tendo sido entregue às autoridades afegãs. A matéria registra que as fotografias das vítimas correm pelas redes sociais afegãs e que muitos duvidam que o ataque tenha sido feito por uma pessoa isolada. Helicópteros e outros soldados teriam sido vistos no local, aumentando os clamores pela retirada das tropas americanas no país, mas embora a matéria cite esta versão, não ouve as eventuais testemunhas. Em vez disso, registra que "no entanto, fontes oficiais americanas garantem que foi um ato isolado, e que os helicópteros foram enviados depois do ataque para socorrer sobreviventes feridos".
Este massacre de civis foi tema de várias outras matérias na imprensa norte-americana, que em geral deixaram de lado as consequências causadas aos afegãos e passaram a tratar do caso como um problema técnico da operação de guerra pelos Estados Unidos – como num forum em que vários especialistas em defesa discutiram os prós e contras da atual forma de serviço militar no país, atualmente prestado por forças armadas profissionais totalmente voluntárias - publicado pelo mesmo New York Times em 21 de março (A Draft Would Force Us to Face Reality, etc). Ou, de outro lado, no drama do sargento a quem é atribuída a autoria do massacre, apontado por sua defesa e por várias matérias, como a publicada no dia 22 no mesmo jornal, como sendo mais uma vítima das neuroses de combate que acometem centenas de militares da ativa e veteranos de guerra no país. O advogado de defesa alega que o militar sofreu um ferimento no cérebro durante um acidente de carro enquanto servia na Guerra do Iraque (U.S. Sergeant Faces 17 Counts of Murder in Afghan Killings).
No dia 24, o resultado de um outro caso envolvendo a morte de 24 soldados paquistaneses num bombardeio aéreo americano (apresentado como "bombardeio da Otan") é tema de matéria no New York Times (U.S. Plans no Charges Over Deadly Strike in Pakistan). Ao contrário do que ocorreu no caso do sargento, os militares americanos decidiram não responsabilizar nenhum membro de suas forças pelo ataque realizado na fronteira do Afeganistão com o Paquistão que resultou nas mortes. Segundo a versão americana, atribuída a fontes cuja identidade é mantida, a pedido, em sigilo, os militares americanos agiram em legítima defesa pois os paquistaneses teriam atirado antes. A matéria admite que esta versão não é aceita pelo Paquistão, que acusa os Estados Unidos de agirem nas suas fronteiras sem cumprir os acordos firmados de revelar a posição de suas tropas. A matéria prevê que a decisão de inocentar os militares vai irritar mais os paquistaneses, cuja relação com os americanos tem sido afetada por vários outros incidentes, como o assassinato de dois civis por um agente da CIA numa cidade do país e a invasão de seu espaço aéreo sem autorização para executar Osama bin Laden. O ataque que deixou 24 mortos na fronteira é tratado na matéria como "acidental". O texto registra que o presidente Obama não pedirá desculpas em público ao Paquistão pois pode ser cobrado por isso pelos republicanos. O único especialista consultado na matéria é um general aposentado da força aérea que agora atua na Duke University, para quem "a falta de punição disciplinar num caso como este não significa que esteja se acobertando alguma coisa, mas indica simplesmente que um trágico acidente ocorreu, e querer responsabilizar criminalmente por fatos como este não é uma opção correta a fazer." No encerramento da matéria, um porta-voz da OTAN relata procedimentos que foram adotados para que o acidente não se repita.
No mesmo dia 24 de março, no Washington Post, aparece um outro tipo de matéria que parece estar se tornando cada vez mais frequente: o perfil de um agente secreto, que humaniza o crescente envolvimento da CIA no esforço de guerra norte-americano (At CIA, a convert to Islam leads the terrorism hunt). O agente de codinome Roger é apresentado como um jovem de subúrbio que sobe na hierarquia da organização, servindo em missões em vários países, até se tornar chefe do Centro de Contraterrorismo: "suas primeiras missões no exterior foram na Africa, onde a combinação de governos disfuncionais, sangrentas guerras tribais e mínima interferência dos superiores lhe proporcionaram uma experiência que seria particularmente valorizada no mundo pós 11 de setembro". Mas Roger, um americano convertido ao islamismo, não faria parte da primeira leva de agentes empregada após o 11 de setembro, e "nunca teria servido nas prisões clandestinas onde os priosioneiros da al-Qaeda eram submetidos a questionáveis técnicas de interrogatório".
O de certa maneira surpreendente esforço de relações públicas de um serviço secreto através da imprensa, que contraria uma tradição de discrição neste serviço, coincide com a ascensão do chefe da CIA Leon Panetta ao comando do Pentágono, já era sentido desde o ano anterior quando se noticiava nos jornais, por exemplo, que os agentes da CIA estariam ajudando os rebeldes da Líbia. E prosseguem após o período restrito desta amostra, como na matéria publicada em 29 de julho pelo New York Times sobre o cotidiano dos militares que operam os drones por controle remoto desde as bases dos Estados Unidos, e entre um ataque mortal e outro podem buscar suas crianças no colégio (A Day Job Waiting for a Kill Shot a World Way). Por razões justificadas, em todas estas matérias as fontes são mantidas em sigilo.
Mas nem todo o esforço de relações públicas parece suficiente para sustentar o apoio da população norte-americana a uma guerra que perdeu a popularidade. Uma pesquisa realizada pelo New York Times em parceria com a rede de TV CBS é publicada no dia 26 de março indicando que o apoio à guerra no Afeganistão caiu drasticamente (Support in U.S. for Afghan War Drops Sharply, Poll Finds): "a pesquisa indicou que mais de dois terços dos consultados – 69 % - pensam que os Estados Unidos não deveriam estar nesta guerra. Há só quatro meses atrás, eram 53% os que diziam que os americanos não deveriam mais lutar nessa guerra que já dura há uma década". Embora o apoio ao fim da guerra seja geral, incluindo eleitores independentes, democratas e republicanos, a matéria repercurte este resultado da pesquisa apenas entre militares e especialistas em segurança, que atribuem os números a uma falta de compreensão da população sobre a estratégia de retirada lenta e gradual definida pelo Pentágono.
O contexto na construção do acontecimento: uma perspectiva de estudo
A limitada amostra empírica e a acanhada metodologia que servem de referência a este capítulo não permitem generalizações a partir de seus achados, mas sugerem novos estudos sobre a desafiante questão da determinação do contexto sobre a construção do acontecimento nas notícias. O que se observa em primeiro lugar nos casos relatados é um descumprimento quase total dos princípios de verificação, imparcialidade e fiscalização do poder que o jornalismo norte-americano de referência exige de si mesmo e que, bem ou mal, costuma praticar com algum cuidado em outras áreas de cobertura nos jornais de referência aqui observados (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004).
A hipótese a que se chega a partir deste estudo exploratório é de que o contexto sociocultural do nacionalismo norte-americano, exacerbado após o 11 de setembro, não permite, obstaculariza ou pelo menos desencoraja uma postura independente na cobertura dos assuntos militares em que o país está envolvido. No entanto, o fato desta cobertura perder a sintonia com o público a que se destina,como demonstrado na pesquisa de opinião citada em uma das matérias, indica a presença de outras variáveis fundamentais que desencorajam qualquer conclusão reducionista, e que remetem provavelmente à questão mais estudada da relação do campo jornalístico com o poder.
A determinação do contexto sobre as notícias seria melhor demonstrada por estudos de jornalismo comparado, com a análise da construção dos mesmos acontecimentos pela imprensa dos diversos países envolvidos em conflitos assim como em países neutros. O método comparativo é o mais antigo utilizado no campo, desde a introdução da disciplina "Jornalismo Comparado" na primeira escola de jornalismo norte-americana em 1908. Mas, geralmente, desde essa origem norte-americana, passando pelo auge de sua utilização na Science de la Presse francesa desenvolvida por Jacques Kayser e exportada para a América Latina, adotou um viés quantitativo que limitou o seu potencial. A perspectiva da cognição situada e os estudos sobre a construção do acontecimento no jornalismo abrem um novo panorama para a sua utilização, capaz de ajudar a delimitar a especificidade do conhecimento que a informação jornalística é capaz de produzir.

Referências:
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