“Considerações acerca de casa, quando precisamos de um teto para nos amar”

June 8, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Estética, Estetica, Patrimonio Cultural, Museologia, Historia del Arte, Arte contemporáneo
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“Considerações acerca de casa, quando precisamos de um teto para nos amar” “…Não haverá, enfim, Para as coisas que são, Não morte, mas sim Uma outra espécie de fim, Ou uma grande razão – Qualquer coisa assim Como um perdão?" (Fernando Pessoa)

“A chacun sa place…” diz o ditado. Cada um dos artistas ocupará uma sala, uma antecâmara ou um quarto da Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio. A ocupação será tranquila, pacata e subtil, dependendo do ponto de vista do espetador que é visitante mas não residente. Tratar-se-á de uma assunção de posse transitória, mantendo todavia um sentido para essa duração cronometrada em estado de “exposiçãomostra-presentação” afirmada a partir da condição e da existência de cada um dos 9 autores/artistas, convertidos em locatários estéticos. As suas peças são joias, requintados pensamentos tecidos em matérias plurais; são delicadas e persistentes detalhes isolados que se infiltram quase numa camuflagem mas sempre clamando por uma identidade única. As presenças dos artistas na casa museu destacam pela conivência que foi fruto de uma intuição, de uma cumplicidade e de uma assimilação (controlada) do ambiente, articulando-o com o conhecimento das suas respetivas obras. Entre as tipologias que se ajustam para classificar Casas Museus, poder-se-á pensar que é: uma casa de personalidades transversais, evocativas de antepassados que configuraram o presente de Marta Ortigão Sampaio; uma casa de histórias, compartilhando episódios de vidas compiladas de diferentes tempos – mais uma vez os antepassados e os seus tempos perdurados; uma casa moderna que se converteu em antiga, desabitada que passou a ser vivenciada por desconhecidos (o público) e conhecidos (os funcionários); uma casa que acolhe diversidade de coleções e relíquias testemunhadas pela personalidade; casa estética que é plural, ou seja, uma casa de estéticas divergentes que se consubstancia num heterogeneidade singular e pitoresca. É uma casa de colecionador, prevendo reações estimuladas por uma distendida profusão de objetos, de coisas, de artefactos, de obras, de convicções. Decididamente é uma casa que possui uma identidade pessoal, muito mais do que pretendendo sê-lo em termos sociais. Isto é, traduz a quietude de uma personalidade, alimentada por pequenos e subtis

caprichos de uma beleza sui generis, trabalhada a partir de “oscilações de gosto” resilientes e diversificadoras.

A casa – em termos mais abstratos - é conceito de síntese que concilia (por vezes) os patamares do individual e do gregário ou pode presidir à sua desavença; orientase (quase sempre) pela integração apropriada (ou congruente) entre o interior e o exterior; dirige (com forte razão de sucesso) a reconciliação entre pensamentos, recordações e sonhos; derrota (oh! utopia!) o maniqueísmo judaico-cristão – corpo e alma. A imagem, a fisicalidade da casa resolvem a dicotomia, reúnem em si, quer a solidariedade da memória e da imaginação, quer os antagonismos, as lutas pela autoridade poder inútil, as decisões legais moldadas sobre pessoas e bens. Mas, acredite-se que servem, sobretudo, para resolver a estrutura interna de cada um, em forte cumplicidade relacional, para instaurar uma certa pacatez e recato formatado por opções adaptadas.

As casas organizam o indivíduo, propiciando-lhe o reconhecimento visível de suas obsessões, fantasmagorias públicas ou delírios privados. Por extensão, uma casa museu que se destina a outrem, há de igualmente atravessar instâncias e acomodarse na pluralidade do visitante que, transitoriamente, se projeta ou exacerba a sua

adesão ou inaptidão para testar a diferença de gosto, cronologia, situação, sentimento…e assim por diante, com tudo aquilo que conforma o humano. Por analogia, portanto, àquilo em que G. Bachelard acreditava situar-se, ser propriedade da “consciência vivida”, numa aceção fenomenológica do eu: « On n’a jamais vu bien le monde si l’on n’a pas rêvé ce que l’on voyait.” 1 Mesmo quando fugaz, alheia e desviante – adequando a experiência em consonância à disponibilidade e resolução do espetador, de um público que é “visita da casa”. O visitante traz consigo expetativas de “petit amusement”, de um certo “voyeurismo”, de incentivo à procura de espelhamentos ou rebatimentos de si, plasmados num fragmento de paisagem dentro de um quadro; de uma incidência de luz sobre um álbum de fotografias ou postais; da pele polida de uma escrivaninha; de um corpo moldado num estofo; de uma folha esmagada dentro de um caderno. Enfim, qualquer detalhe, qualquer minúcia é unidade de um “diário mínimo” parafraseando Umberto Eco. Les souvenirs du monde extérieur n’auront jamais la même tonalité que les souvenirs de la maison.2 Pois então, as casas são privilégio de real e circunstância condicionada de sonho e/ou deambulação. Podem repousar, por breves intervalos na passagem dos dias, no acolhimento que o olhar acha nos pequenos objetos pousados ou suspensos. Os espelhos possuem uma condição privilegiada para interromperem a realidade. Quando se cegam e voltam para as entranhas de si ou irrompem pela alteridade adentro, tornam-se símbolos que visitam lugares fantasiados de quotidiano. No decurso das horas, há sempre aquele minuto em que a pessoa se detém no sorvedouro do relógio e fica ciente de que, afinal, se perdura na repetição. A repetição diferenciada garante o estreitar das distâncias, reaproxima sentimentos opostos. “Muito mais tarde, apenas conheço a saída em frente, A distância que nos separa. Há muito tempo A evidência espalhada queria dizer alguma coisas, Os pequenos acidentes e prazeres Do dia à medida que desgraciosamente avançava, Como uma dona de casa nas suas tarefas. É agora impossível Restaurar essas propriedades na mancha de prata que é O registo daquilo que conseguiste ao sentar-te…”3 Os livros no escritório ou nas salas, surpreendentemente podem converter lembranças de viagens em residências de memórias. Daquele tipo de memórias que não advém 1

Gaston Bachelard, La Poétique de la rêverie, Paris, PUF, 1978, p.148 Gaston Bachelard, Poétique de l’espace, Paris, P.U.F., 1983, p.25 3 John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo e outros poemas, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, pp.167-171 2

apenas do que se vê, na sua aceção de registo ou documentação (ainda que do foro pessoal) mas elaborada a partir de assimilações descontinuadas de acontecimentos e intenções. As memórias acolhem dádivas que, por vezes, irradiam um tal constrangimento

que

as

torna

residentes

submergidos

importunos.

Incluem

efabulações que cada dia ou noite que passa, transfigura à “velocidade das plantas”, como escreveu Paulo Cunha e Silva a propósito da temporalidade na obra de Graça Sarsfield. Esta submissão à dilatação do tempo é redentora, auxiliando à transposição da insustentável lassidão dos dias conseguidos, quando se revoltam, ironizam e desenganam corações de cera a quererem saber-se em gesso. Conciliando a personalidade autoral com a tenacidade (de sentimento) e autenticidade (da lógica) das respetivas obras, os 9 artistas alocaram-se em cada um dos espaços que se afiguravam como plausíveis moradas – ainda que condicionadas - luminosas por um breve trecho de tempo. Todavia, haverá sempre uma morosidade de duração atravessada por escadarias quase imperscrutáveis ou quietudes turbulentas. As peças escolhidas situaram-se e despessoalizaram, ou pelo menos alteraram a sua razão artística, extrapolando as cláusulas de disposição. Esta casa [museu] muito em particular que não foi casa efetiva, onde se vivesse uma rotina, converteu-se num quotidiano de peças hieráticas, virtuosas, insuperáveis na estima, destinadas a serem consumidas pelos olhares. Paira a intensidade de pensar e a perplexidade perante estas coleções dissemelhantes, que acariciam a disseminação do gosto, enveredando por uma poética compósita. A carga psíquico do olhar ou o toque calcado de um tacão no chão, persistem tanto como os perfumes que subsistem depois das limpezas regulares. Os cheiros banais associam-se a frascos que são simulacros de existências parceladas, destituídas de razão sedentária, cumprindo viagens com castigo de Sìsifo. As ideias transformaram-se em poeiras coloridas, absorvendo todo a cor que o sangue acostuma acolher no coração. Os corações descansam enquanto se definem estratégias para sobreviver.

Com frequência a alma converge inteirinha para um bombom de chocolate embrulhado em papel de prata colorida. De tanto se desejarem saciadas, a alma do artista resgata ilusões e resguarda-as. Assim inicia a sua missão, ludibriando os visitantes descuidados que se deixem seduzir somente pelas aparências. Há que decorar, ornamentar os sentimentos de partículas antropofágicas que se descolem das paredes da casa, envergonhem no fundo das estantes ou escamoteiem no jardim. O jardim torna-se indesejável pois, em pleno outono, evidencia como está longe a evidência de um anoitecer prolongado. Quase é ignorado por quem o entenda, pese embora a sua insubstituível ação regeneradora. As flores de jardim em cidades a Norte e a Sul recolhem aromas e cores que se desconfiguram, sobrepondo-se como as memórias a que se aludiu, Há uma razão proporcional entre as camadas de vistas registadas no interior da alma a saltar para fora de si e aquilo tudo que o pensamento acolhe como sendo seu e, afinal, nunca o será. Nunca se será estrangeiro dentre da alma ou da razão de cada um que sabe os seus contornos.

Imagine-se uma viagem dentro de casa, um pouco mais materializada do que aquelas odisseias plácidas traçadas nas linhas de Xavier de Maistre em Viagem à roda do meu quarto (1794), a que seguiu Expedição noturna em redor do meu quarto (1825). No Brasil para o qual Marta Ortigão Sampaio viajou, como se sabe, existindo laços familiares de permanência, Machado de Assis escreveu sobre as viagens sedentárias, como o próprio autor as denominou, referindo-se a “Viagem à roda de mim mesmo”, Gazeta de Notícias, em 1885, “O programa”, A Estação, em 1882 e o conto “Uma excursão milagrosa”, Jornal das Famílias, em 1866. Trata-se, salvaguardando as diferenças de narrativas autorreflexivas, centradas na condição existenciada dos respetivos autores-viajantes, comprometidos em jornadas – quase peregrinações sobre si mesmo em territórios afetivos e alheios (mas de si) sem a deslocação efetiva

de um ponto a um destino que está sempre no próprio. A exposição Fortuna e Magnetismo, descansa o visitante, viajando-o pelos objetos, pelas intenções, por todo um acervo, um arquivo que se sabe e não se v^.

Entre as obras realizadas especificamente para esta intervenção conjunta e aquelas que escolhi por as associar, quase inconscientemente, a estes reinos, potenciam-se diálogos e surgirão surpresas e dilemas. Entre a subjetividade memorial do possuidor da Casa-Museu e a diversidade de pessoas que nela se adentrem, exploram-se destinos para as obras em permanência que assim se abeiram dos objetos e imagens fluídos e passantes. Nesta presença contabilizada em semanas, haverá demora capaz de as estabilizar, atribuindo-lhes uma carga extrapolatória que confirma a fruição feliz de novos elementos de uma família de objetos-ideias que, a bem da verdade, provam a pregnância do conceito de Ohram Pamuk, quando estipulou o seu Museu da Inocência. De certo modo, todas as coleções, acervos, arquivos, espólios, são ajuntamentos de memorabilas, maiores ou menores, em sua conceitualização e categoria, pois instituem o afeto e devem ser respeitadas pela decisão do colecionador formal, episódico mas cuja afetuosa tenacidade é matricial.

Após cada uma das intervenções na CMMOS, incorporam-se na sua memória coletiva, imagens das obras dos artistas que se instalaram nas sucessivas montagens. As substâncias e morfologias conceptuais das intervenções na CMMOS passam a integrar o imaginário acumulado, adicionando-lhe alternativas infindáveis ainda que precisas e fatuais. Ficam registadas nas paredes, no ar das salas e interiorizadas naqueles que com esta casa desdobrada em ambientes de mais próximo convivem. Se o Tempo é esse grande escultor como afirmou Marguerite Yourcenar, secundada pela Configuração do tempo que está nas obras de arte, como quis George Kubler ou, ainda, no cinema de Andrei Tarkovski tal como este o afirmou no seu livro Esculpir o tempo. Efetivamente são as ramificações do tempo que nos perseguem e protegem. Através do poder invisível de pessoas ausentes, aqueles que connosco conviveram, demostrando capacidade inexcedível, força e persistência, a presença das obras dos 9 artistas são celebrações de excelência. Acompanham as conversas supremas e acompanham o banquete dos pensadores e operadores estéticos. Essa presença metaforizada nas memórias de cada um, guarda-nos e é o teto de uma das “casas” da cidade. As lembranças são subtis e intensas, automaticamente irrompem ao cruzar-se a escadaria vazada, a galeria povoada ainda por sons de palavras ou na biblioteca, o palimpsesto escultórico de um rosto guardador de dentro dos livros, transfigurações de porcelana que saboreiam plantas, terra e frutos antropomórficos, tudo conversa, para quem saiba ouvir para além de ver. A sabedoria das coisas dos artistas explana-se em telas densas e cuja pele murmura discretamente nas paredes, converto-as em substâncias contaminadas por tópicos residuais e ontológicos: tudo é planta, pedra, rosto e nuvem da memória. A memória é um organismo que se liquidifica num cadinho purpurizado, devidamente afastado pelo vidro que impede o seu conteúdo se evapore quando exposto “en plein air”.

Criou-se um clima expandido, que regulamente aquela convicção de que o tempo, sendo invisível e inodoro – para os mais crédulos – tudo pode regimentar e, em paralelo, ser engolida num qualquer ponto de passagem, entre o reino do real e o reino do imaginário, espécie de Zone, consignada em filme pelo poeta e desenhista Jean Cocteau – Orpheu, onde reverbera uma paliçada espectral, ambicionada talvez por todos e abdicada pelo herói grego. As cabeças giram, contorcionam-se e regressam a si mesmas, mais ricas, pois se leem, se respiram ideias múltiplas. É suficiente tocar nos objetos e nas imagens com os olhos, basta aflorá-los com o pensar, pois uns e outras possibilitam a enormidade de fontes poéticas oferecidas pelos artistas, enquanto dinamismo e teatro de almas encarnadas.

Coda: Fortuna e Magnetismo carregam uma densidade que não se dissolve, nem mesmo na irreversibilidade do tempo. Nos tempos idos de Roma, o conceito de fortuna assumiu aceções que convergiam no fato substantivo da sua polissemia, ao ser incorporado de ambiguidades semânticas manifestas: por um lado, assinalava a condição de acaso e fortuito. Por outro lado, encarnando-se em força deificadora, fortuna foi digna de evocação, culto, celebração e santuário. Convertida numa potência extrema, impregnada de mistério, era convocada por todos aqueles que necessitavam de uma providência interventiva nas suas vidas. A sua força, suscitada com veemência, tornou-a cúmplice de magnetismo. O magnetismo ramificou-se, perfilando afinidades eletivas, donde as peças, objetos e, sobretudo, o ambiente (a envolvência) da CMMOS ter compelido a presença dos 9 artistas nesta exposição, à semelhança do que já acontecera na mostra anterior realizada em julho de 2014.

Maria de Fátima Lambert

Fortuna e Magnetismo – os locatários estéticos descansam nas Salas*: Alejandro Somaschini, Catarina Saraiva, Cristina Ataíde, Graça Sarsfield, José Rufino, Pedro Valdez Cardoso, Pedro Saraiva, Sebastião Resende, Susana Piteira *In memoriam Paulo Cunha e Silva

Casa Museu Marta Ortigão Sampaio – Porto 18 Novembro 2015 / 17 Janeiro 2016

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