CONSIDERAÇÕES SOBRE A DETERMINAÇÃO DA FORMA JURÍDICA A PARTIR DA MERCADORIA

August 9, 2017 | Autor: Elcemir Paço Cunha | Categoria: Direito, Marxismo
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REVISTA CRÍTICA DO DIREITO Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

ISSN 2236-5141 QUALIS B1

NÚMERO 4 - VOLUME 64

Cleomar Rodrigues, dirigente da LCP, foi assassinado por pistoleiros a mando de latifundiários em 22/10/2014

1º de dezembro de 2014 a 31 de março de 2015 Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Crítica do Direito nº 1, vol. 9 São Paulo, 2011 Mensal ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

EDITOR RESPONSÁVEL Vinícius Magalhães Pinheiro CONSELHO EDITORIAL Alysson Leandro Barbate Mascaro Daniel Francisco Nagao Menezes Júlio da Silveira Moreira Roberta Ibañez Thiago Ferreira Lion Tiago Freitas Vinicius Magalhães Pinheiro

Sumário

EDITORIAL...................................................................................................................................... 4 A FELICIDADE NORMATIZADA: PEC 19-2010 E SEU DÉFICIT DEONTOLÓGICO.............................. 5 DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS, PROIBIÇÃO DE RETROCESSO E HISTORICIDADE: UM DIÁLOGO COM A OBRA HISTORIA Y CONSTITUCIÓN, DE GUSTAVO ZAGREBELSKY .................... 15 DIREITOS HUMANOS E EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO CONTRA DESASTRES HIDROLÓGICOS: UM ESTUDO SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICA.................................................................................. 24 O DEVER-SER NOS LIMITES DO SER-AINDA-NÃO: DIREITO E UTOPIA EM ERNEST BLOCH ......... 32 EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR: UMA PROPOSTA DE EMANCIPAÇÃO ...................................... 44 OS ESPAÇOS URBANOS DE CIDADANIA E DEMOCRACIA E O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO JURÍDICO DEMOCRÁTICO DE GESTÃO URBANA ................................................ 62 PLANO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA (PNPC-2011): UMA INICIATIVA CONTRA-HEGEMÔNICA FRENTE AO ESTADO PUNITIVO BRASILEIRO ......................................... 72 RISCO, EMERGÊNCIA E A CEGUEIRA DO DIREITO NO ESTADO DE EXCEÇÃO .............................. 86 PEDRINHAS E A REALIDADE DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO.................................... 121 PINKY E O CÉREBRO: O Domínio do Mundo pelo Direito.......................................................... 135 CONSIDERAÇÕES SOBRE A DETERMINAÇÃO DA FORMA JURÍDICA A PARTIR DA MERCADORIA ................................................................................................................................................... 148 UMA APRESENTAÇÃO DOS DILEMAS DA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR PELA LITERATURA DE BERTOLT BRECHT ...................................................................................................................... 167

EDITORIAL A Revista Crítica do Direito publica sua 64ª atenta ao status da luta de classes no Brasil. Cleomar Rodrigues, dirigente da Liga dos Camponeses Pobres do norte de Minas e do sul da Bahia no final de outubro. Mais um entre tantos outros crimes do latifúndio brasileiro, o caso de Cleomar serve-nos de balizamento sobre trato público com a questão agrária: aliado dos grandes proprietários ligados ao agronegócio, o Estado nada mais é que um comitê gestor de interesses de grandes capitalistas. As investigações criminais andam a passos lentos, a reforma agrária não sai do papel e a violência contra os trabalhadores é uma constante. Na atual edição, há novidades. A partir desta edição, a Revista Crítica do Direito terá periodicidade quadrimestral. Ainda, nossas edições contarão com versão em ".pdf", sem mais formato de site. Assim, nossas leitoras e leitores independentemente de acesso à internet poderão consultar a última edição. Boa leitura! Os Editores

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A DETERMINAÇÃO DA FORMA JURÍDICA A PARTIR DA MERCADORIA Elcemir Paço Cunha Professor Adjunto do Departamento de Ciências Administrativas, do Programa de PósGraduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Recebido em agosto/2014 Aceito em outubro/2014

Resumo Sustenta-se criticamente que a determinação fundamental de Pachukanis reside na ligação, por analogia, entre a análise de Marx da forma do valor e uma análise das formas jurídicas, particularmente a categoria sujeito de direito como equivalente à mercadoria. Esclarece a originalidade da determinação de Pachukanis, isto é, como um produto de sua elaboração teórica e não uma resolução marxiana propriamente, embora o próprio autor russo faça essa atribuição de gênese a Marx, ancorando-se inadvertidamente no ponto de partida expositivo de O capital. Sugere-se as possíveis contribuições da discussão acerca das abstrações razoáveis e também a possibilidade de vínculo entre a individualidade moderna – o exercício racional do egoísmo – e o sujeito de direito. Palavras-chave: Forma jurídica, mercadoria, método Notes on the determination of legal form from commodity One affirms critically that the central determination of Pachukanis lie on the linkage by analogy between the Marx’s analysis of value-form and an analysis of legal forms, above all the category of juridic subject as equivalent to commodity. We seek to explicit the originality of Pachukanis’ determination, that is, as a product of his theoretical elaboration and not a Marxian resolution, although the Russian author imputes to Marx the genesis of that determination taking inadvertently the expositive point of departure of The capital. We suggest the possible contributions of reasonable abstractions and also the possibilities of relation between modern individuality – the rational practice of egoism – and the juridic subject. Keywords: legal form, commodity, method I “Todo começo é difícil, e isso vale para qualquer ciência”, escreveu Marx a propósito do desenvolvimento do primeiro capítulo de sua obra magna. Seu conteúdo é, como veremos, pilar para as inquietações deste pequeno texto, sobretudo porque buscamos indicar, e apenas indicar, uma problemática ligada à determinação da forma jurídica. Tangenciamos uma discussão que é bastante profusa entre os interessados numa crítica, por assim dizer, marxista do direito. Essa discussão encontra lugar de destaque particularmente entre pesquisadores brasileiros. A disseminação do texto mais conhecido de Pachukanis contribuiu, sem dúvida alguma, para um contraponto ao tratamento que se encontra numa “ciência do direito burguês” (PACHUKANIS, 1989, p. 29) – incluindo a “subjetividade jurídica” (princípio formal da igualdade, liberdade,

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personalidade jurídica, etc.) –, ciência esta erigida segundo os condicionantes de uma sociedade produtora de mercadorias. A questão mais central, porém, está na determinação fundamental estabelecida pelo autor russo entre a forma mercadoria e a forma jurídica. Metodologicamente, estabelece-se que “a gênese da forma jurídica está por se encontrar nas relações de troca” (Ibid., p. 8). Resolução angular debatida e explicitada particularmente pelo professor Naves e por outros pesquisadores que aprofundam determinados aspectos outros não necessariamente limitados às questões derivadas ou sob influência direta e exclusiva de Pachukanis. Importa precisar sobretudo que nessa determinação fundamental reside a ligação, por analogia, entre a análise de Marx da forma do valor e uma análise das formas jurídicas, particularmente a categoria sujeito de direito como equivalente análogo à mercadoria. Parte da problemática reside no fato de que a investigação de Marx não parece ter partido da mercadoria, como supõe Pachukanis; é a exposição de O capital que tem como ponto de partida a forma elementar da produção capitalista, já como resultado do momento investigativo. A intensão aqui não é de forma alguma acrescentar outras camadas de críticas, mas esclarecer a originalidade da determinação de Pachukanis, isto é, como um produto de sua elaboração teórica e não uma resolução marxiana propriamente, embora, como veremos, o próprio autor russo faça essa atribuição de gênese a Marx, ancorando-se inadvertidamente no ponto de partida expositivo de O capital. Passa a ser importante, primeiro, indicar o vínculo posto entre a elaboração do autor russo e a de Marx para, em seguida, retomar o próprio Marx no intuito de sustentar que a analogia da analítica é um produto autenticamente pachukaniano. Sugerimos brevemente as possíveis contribuições da discussão acerca das abstrações razoáveis (1) e também a possibilidade de vínculo entre a individualidade moderna (o exercício racional do egoísmo) e o sujeito de direito. II Como adiantamos antes, a influência de Pachukanis pode ser apreendida facilmente entre os pesquisadores brasileiros. Não apenas as ideias centrais e as colocações mais importantes são aparentes, como também o é aquele vínculo estabelecido entre o autor russo e Marx a respeito do nexo entre a forma mercadoria e o sujeito de direito. Sem qualquer pretensão de esgotar este aspecto, trata-se de evidenciar apenas algumas exemplificações que deem as provas necessárias. É possível capturar que tal nexo aparece frequentemente no interior de considerações de ordem metodológica. É possível ler, por exemplo, que: A teoria geral do direito e o marxismo teve o efeito de uma pequena revolução teórica na jurisprudência. Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao direito encontradas em O Capital – e não seria exagero dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê – mas principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx ao recuperar o método marxiano (NAVES, 1996, p. 2). Decisivamente ancorado no “método marxiano”, Pachukanis “retorna a Marx” e se arma das referências encontradas na obra magna e também da inspiração original de Marx. O ponto nefrálgico é que o autor russo, a partir desse registro, /.../ indaga se, da mesma forma que a economia política partiu das questões de natureza prática para formular uma disciplina teórica, a jurisprudência não poderia formular uma teoria geral do direito sem que se confundisse com a psicologia e a sociologia, ou seja, se não seria possível analisar a forma jurídica do mesmo modo que se analisa no campo da economia política a forma do valor (Ibid., p. 30). Isso concede conteúdo para o entendimento segundo o qual “o seu esforço [de Pachukanis, foi o] de pensar o problema do direito a partir das categorias fundadas por Marx” (Ibid, p. 185). Não obstante o fato de que envolve uma série de problemáticas a afirmação de que Marx funda

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categorias a partir do “campo” da economia política, uma vez que as abstrações são reais, isto é, expressões no pensamento de relações efetivas (como veremos mais adiante) e não conceitos arqueados subjetivamente, o que se coloca de mais importante é precisamente o esforço de uma analítica da “forma jurídica” tal como Marx procedeu para a análise da “forma do valor”, isto é, da mercadoria. Consideração de mesmo tom pode ser encontrada em outros lugares. Explicita-se igualmente um salto derivativo da análise da mercadoria para a análise da forma jurídica e, em seu interior, o sujeito de direito. Depois da reprodução do conhecido parágrafo inicial de O capital (2), lemos que: /.../ estas são as palavras que abrem O capital. Nelas, Marx explicita que a mercadoria deve ser o primeiro passo de seu caminho, isto é, explicita que a remontagem da economia política como totalidade concreta, de acordo com a análise dialética ali proposta, deve iniciar-se pela categoria mercadoria, a forma mais elementar, a forma que concentra em si a especificidade da economia capitalista e que permite desvelar toda a sua dinâmica (KASHIURA JÚNIOR, 2009, p. 48). Ponto angular dessa consideração é a determinação do ponto de partida como sendo a análise da mercadoria na qualidade de peça metodologicamente posta para uma “remontagem da economia política como totalidade concreta”. Certa ou errada com respeito à finalidade do ponto de partida, fica explicitado já aqui a mercadoria como “primeiro passo” para a investigação da “especificidade da economia capitalista” revelando “toda a sua dinâmica”. Na sequência aparece uma derivação na medida em que podemos ler ainda: “passando do campo econômico para o campo jurídico, no qual a principal referência teórica é dada por Pachukanis, a análise dialética deve encontrar a sua própria categoria fundamental, aquela que permite lançar luz sobre todas as demais categorias jurídicas”. Já nesse outro “campo” (que seria melhor apreendido como esfera ou complexo) fica explicado que: Na hierarquia interna dos elementos da forma jurídica, o sujeito de direito ocupa um posto peculiar: é o elemento ‘indecomponível’, o elemento que não exige previamente a mediação de nenhum outro para ser explicado e, ao mesmo tempo, medeia a explicação de todos os demais. Por isso, tal como a mercadoria no âmbito econômico, o sujeito de direito é, no domínio jurídico, a categoria que serve, na relação com todas as demais, de ‘chave’ para desvendar a estrutura interna da totalidade – a parte pela qual se desvenda o todo. O sujeito de direito, como categoria mais simples, é o ponto de partida para a reprodução no pensamento da estrutura da forma jurídica plenamente desenvolvida (Ibid, p. 48-9). Vemos que, por este prisma, o sujeito de direito está para o “campo jurídico” assim como a mercadoria está para o “campo econômico”. Metodologicamente, portanto, o mesmo lugar que a mercadoria ocupa para a investigação da economia capitalista, ocupa o sujeito de direito como “chave” para revelar a “estrutura interna” deste “campo” particular. Nessa mesma direção, assim como a mercadoria serviria como ponto de partida da investigação (marxiana), o sujeito de direito funciona como tal ao se pôr como elemento mais fundamental, forma elementar do paralelo “campo jurídico”. Numa direção um pouco distinta, não apenas em função de aparecer conjugadas as formas política e jurídica mas também por inserir argumento que restringe um espelhamento muito direto, é possível ler que: é verdade que a raiz comum tanto da forma política quanto da forma jurídica na forma-valor faz com que os fenômenos do Estado e do direito remontem à mesma lógica e se coadunem nas mesmas estruturas gerais da reprodução capitalista nas quais se acoplam. Mas tais formas

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sociais não se assemelham totalmente nem se equivalem como espelhos /.../ (MASCARO, 2013, p. 39). Não obstante a ressalva ao final, fica plenamente estabelecido o nexo entre a “forma jurídica” (e política) e a “forma-valor”. É mais difícil encontrar a vinculação com Marx dado que o texto em pauta escusou indicações referenciais que nos fossem úteis aos nossos propósitos. Isso não impede a constatação de haver o mesmo núcleo argumentativo que vimos expresso até agora, pois lemos que “o núcleo da forma jurídica, o sujeito de direito, não advém do Estado. Seu surgimento, historicamente, não está na sua chancela pelo Estado. A dinâmica do surgimento do sujeito de direito guarda vínculo, necessário e direto, com as relações de produção capitalista” (Ibid., p. 40); argumento que abranda a ressalva. Dito de forma mais direta, tanto a forma política quanto a jurídica “derivam todas de uma mesma forma comum, do valor e da mercadoria, que demanda não uma ou outra, mas sim uma e outra” (Ibid., p. 42). A fonte para todas essas indicações fundamentais é, obviamente, o próprio Pachukanis. Ainda que rápida, uma inspeção dos momentos mais importantes para o argumento aqui posto é imprescindível, sobretudo porque é o próprio autor russo que determina a mercadoria como ponto de partida da investigação marxiana. Do ângulo fundamental, portanto, vemos que: A análise da forma mercantil revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e desvenda os fundamentos dos esquemas abstratos da ideologia jurídica, o processo de evolução histórica da economia mercantil-monetária e mercantil-capitalista acompanha a realização destes esquemas sob a forma da superestrutura jurídica concreta (PACHUKANIS, 1989, p. 5). É a mercadoria que põe o caráter determinado do sujeito de direito e, logo, deve ser o ponto de partida, pois, como nos instrui Pachukanis, “Marx, como se sabe, não começa as suas pesquisas pela investigação da economia em geral, mas por uma análise da mercadoria e do valor” (Ibid., p. 21). Na sequência, em tom explicativo, afirma o autor russo: “pois a economia, enquanto esfera particular de relações, somente se diferencia quando surge a troca. Enquanto ainda não existem relações de valor, a atividade econômica só dificilmente pode ser diferenciada das outras atividades vitais, com as quais forma uma totalidade orgânica /.../”. Ao final, cita Engels ao transcrever a passagem segundo a qual “‘a economia política começa com a mercadoria, no momento em que os produtos são trocados uns pelos outros, quer seja pelos indivíduos, quer seja pelas comunidades primitivas’” (Ibid., p. 21-2). A partir dessa colocação, Pachukanis deriva por paralelismo que “podemos tecer considerações análogas em relação à teoria geral do direito. As abstrações jurídicas fundamentais que engendram a evolução do pensamento jurídico, as quais representam as definições mais próximas da forma jurídica como tal, refletem relações sociais bastante precisas e complexas” (Ibid., p. 22). Destaca-se “considerações análogas”. Mas, o que é ainda mais significativo, é a afirmação inicial de que seria amplamente conhecido que Marx começa suas pesquisas “por uma análise da mercadoria e do valor”. Essa investigação, iniciada pela mercadoria, revelou a própria determinação da forma jurídica porque, como nos informou Pachukanis, “Marx mostra ao mesmo tempo a condição fundamental, enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da existência da forma jurídica, isto é, da unificação dos diferentes rendimentos do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes”. E arrematou: “ele descobre, assim, o profundo vínculo interno existente entre a forma jurídica e a forma mercantil” (Ibid., p. 28). Podemos reter desses pontos algumas questões importantes. A primeira é, como já dissemos algumas vezes, a determinação da mercadoria como ponto de partida da investigação marxiana, elemento que aparece claramente não apenas em Pachukanis. A segunda é que o autor russo imputa a Marx o nexo entre a “forma jurídica” (sujeito de direito) e a “forma

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mercantil” (mercadoria) segundo um paralelismo, o que, como vimos também, não ficou limitado à esfera d’A teoria geral do direito e o marxismo. Mesmo considerando que “as premissas materiais da comunidade jurídica ou das relações entre os sujeitos de direito foram definidas, pelo próprio Marx, no primeiro tomo de O capital, mas apenas en passant, sob a forma de indicações muito gerais” (Ibid., p. 83-4), Pachukanis atribui a Marx o nexo (feito en passant) entre a mercadoria e o sujeito de direito. Como dito antes, Marx “descobre, assim, o profundo vínculo interno” entre ambas as formas. Essas indicações são importantes, pois pretendemos demonstrar ainda que limitadamente (tópico III a seguir) a problemática contida na suposição de ser a mercadoria o ponto de partida da investigação marxiana e (tópico IV adiante) o limite da atribuição a Marx de uma “descoberta” do “profundo vínculo interno” entre a “forma mercadoria” e a “forma jurídica”. III Ao explorar o primeiro aspecto, abre-se um complexo de problemas que não serão suficientemente tratados aqui. Para os nossos limitados propósitos, é importante considerar que o material reunido em O capital (publicado em 1867) é resultado de um longo trabalho de pesquisa que remonta ao início da década de 1840 quando se viu em meio às discussões, como se lê no Prefácio de 1859, sobre os “interesses materiais” (MARX, 1987, p. 261). Após o acerto de contas com a filosofia do direito de Hegel, avanço que propiciou o direcionamento para as “relações materiais da vida” (Ibid., p. 262) como gênese tanto das “relações jurídicas como das formas políticas [Rechtsverhältnisse wie Staatsformen]” (Idem; 1961, p. 8), chega à conclusão fundamental, enquanto “resultado de uma pesquisa conscienciosa e extensa” (Ibid., p. 265; Ibid., p. 11), de que a “anatomia da sociedade civil deve, contudo, ser procurada na economia política” (Idem), isto é, na expressão teórica disponível em seu tempo que buscava compreender o modo como os homens produzem as coisas. A pesquisa levada adiante se prova pelos artigos publicados, sobretudo os textos que tocam mais diretamente nas questões da economia política cujos elementos foram progressivamente aprofundados (pense em Trabalho assalariado e Capital, de 1849, na Contribuição à crítica da economia política, de 1859, em Salário, preço e lucro, de 1865, já às portas da publicação da obra magna). Entretanto, o material no qual Marx mais desenvolveu e registrou sua pesquisa é por muitos atribuído aos manuscritos que se estendem de 1857 a 1865, cuja parte bastante expressiva ficou conhecida por Grundrisse (1857-59) e foi publicada pela primeira vez em 1941. Não por menos, “costuma-se dizer que examinar os Grundrisse (e, nesse sentido, os demais materiais inéditos) é como ter acesso ao laboratório de Marx” (DUAYER, 2011, p. 13). Trata-se de reconhecer que este material é mais do que “experimentação e busca constante de uma forma expositiva adequada ao tema” (ROSDOLSKY, 1978, p. 36). Nele aparece propriamente a investigação marxiana, os resultados parciais. O estudo dos textos marxianos desde a juventude revela o hábito de fazer glosas aos demais textos pesquisados. E isso demonstra que Marx estudava escrevendo criticamente acerca dos materiais que compunham os objetos de preocupação. Precisamente este modo compunha o momento da investigação marxiana. Esse material consolidado nos Grundrisse, entretanto, não fez parte das leituras de Pachukanis. N’A teoria geral do direito e o marxismo Pachukanis tematiza a chamada Introdução de 1857, parte integrante do volumoso material de pesquisa de Marx, no capítulo Um, Os métodos de construção do concreto nas ciências abstratas. Tal introdução fora publicada por Kautsky em 1903 na Die Neue Zeit. Como indicado antes, a publicação dos Grundrisse em sua forma completa seria feita somente em 1941, quase vinte anos após a publicação do texto do autor russo. Este fato histórico, de um não sabido, poderia explicar porque Pachukanis terminou por precisar a mercadoria como o ponto de partida investigativo tendo como base do argumento o primeiro capítulo de O capital. Esse problema se torna mais complexo quando lemos no segundo posfácio da segunda edição da obra magna que:

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sem dúvidas, deve-se distinguir o modo de exposição segundo sua forma, do modo de investigação. A investigação tem de se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori (MARX, 2013, p. 90) (3). Por um lado, vem ao primeiro plano, com a primeira parte dessa passagem marxiana, a questão de que em O capital encontramos a forma expositiva na qual Marx inicia pela mercadoria ao invés de, por exemplo, pela A assim chamada acumulação primitiva. Essa decisão é de ordem expositiva e não investigativa. As razões para começar pela mercadoria têm respaldo na busca pela reprodução ideal do “movimento real” (voltaremos a este ponto adiante). Desse ângulo, a afirmação de Pachukanis de que “Marx, como se sabe, não começa as suas pesquisas pela investigação da economia em geral, mas por uma análise da mercadoria e do valor” encontra difícil sustentação. Que fique claro, a dificuldade advém da consideração de que a investigação marxiana teria partido da mercadoria, considerando o momento expositivo como o investigativo. Talvez o autor russo tenha, neste ponto, sido influenciado pela afirmação de Engels indicada antes, segundo a qual “a economia política começa com as mercadorias” (ENGELS, 1980, p. 476) – grafada ao final do parágrafo no qual argumentou ser a mercadoria o ponto de partida –, e também pelo fato de Marx iniciar a exposição de O capital pela discussão sobre a mercadoria. Pachukanis parece ter concluído, inadvertidamente, estar frente a frente na obra magna como o momento investigativo. Ganha ainda maior peso quando lemos nas primeiras linhas d’O capital já mencionadas antes, após indicar a sociedade produtora de mercadorias e a mercadoria individual como a sua forma elementar, que “nossa investigação [Untersuchung] começa com a análise da mercadoria” (MARX, 2013, p. 113; 1962, p. 49). “Untersuchung” como investigação, exame ou estudo como recurso da forma expositiva, mas não da investigação propriamente dita, já realizada antes. Estes motivos, somados ao fato de os Grundrisse terem sido publicados anos depois da elaboração de Pachukanis, podem explicar o complexo de problemas com os quais nos deparamos. A principal implicação é de ordem “metodológica”: se o ponto de partida da investigação não é a mercadoria, quais problemas emergem ao se determinar o sujeito de direito como o ponto de partida para a análise da forma jurídica? Uma resposta adequada requer uma discussão inteiramente dedicada, o que aqui seria impossível. O que não podemos deixar de reconhecer é a diferença fundamental entre a investigação e a exposição, o que nos leva a outra questão. Portanto outra questão que vem também ao primeiro plano é dada pela segunda parte da passagem anterior de Marx na qual se distinguiu a investigação da exposição. Apropriar-se da matéria em detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno, sua lógica própria, antecede a exposição e se confirma como o momento investigativo. Essa investigação, explica-nos Marx quando explicita as dificuldades contidas no primeiro capítulo de O capital, não pode ser levada adiante de outro modo que não por meio da força da abstração, pois “na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração deve substituir-se a ambos” (Ibid., p. 78). A parte dos Grundrisse na qual mais é desenvolvido o problema das abstrações é precisamente o texto já nominado como Introdução de 1857 que Pachukanis teve acesso. Algumas referências aparecem no capítulo Um, já citado, sobre o método e parece ser baseado nesse capítulo que se ergue aquela afirmação de que o autor russo “retorna à inspiração original de Marx ao recuperar o método marxiano”, ou ainda que “ter desenvolvido no direito as referências metodológicas de Marx é considerado um grande mérito de Pachukanis – com isso concordam inclusive muitos de seus críticos” (KASHIURA JUNIOR, 2011, p. 43). Obviamente que na década de 1920 as discussões acerca do problema do

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método não tinham acumulado tantas páginas ainda (tenha em mente a publicação em 1923 de História e consciência de classe, de Lukács e seu autorreconhecido “exagero hegeliano” (LUKÁCS, 1977, p. 22; 2003, p. 21), que comporta a discussão sobre o método, no período da já iniciada Terceira Internacional). Não por menos, a discussão muito pouco revela aquela força da abstração e a conexão com a problematização das abstrações razoáveis conforme aparecem na Introdução de 1857. Basta ter em mente, por exemplo, a passagem na qual Marx especifica que a produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a algumas. Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem elas /.../ (MARX, 2011, p. 41). Pachukanis desenvolve muito pouco essa conexão, limitando-se a escrever que “partindo destas determinações mais simples [‘preço’, ‘valor’ e ‘mercadoria’], o teórico da economia política reproduz a mesma totalidade concreta, mas não mais como um todo caótico e difuso, e sim como uma unidade rica de inúmeras determinações e inter-relações” (PACHUKANIS, 1989, p. 32). Em seguida, estabelece certo paralelismo (4) por compreender que “estas observações, também, justificam-se quanto à teoria geral do direito” (PACHUKANIS, 1989, p. 31), sem apreender – o que é muito importante – as dificuldades envolvidas numa “aplicação do método de Marx” (5). Pachukanis desenvolve no capítulo outros pontos que, neste momento, não veem ao caso anunciar. É o suficiente somar ao pouco desenvolvido problema das abstrações razoáveis, as indicações dos tradutores do capítulo em pauta as quais revelam o caráter relativamente inacabado do material ou as possíveis condições dificultosas sob as quais se deu sua elaboração. Precisamente na passagem em que o autor russo aborda que “nas ciências sociais o papel de [sic] abstração é particularmente grande” (PACHUKANIS, 1989, p. 31), o tradutor da edição brasileira aqui consultada escreveu em nota que “Pachukanis não seguiu o texto original de Marx, parecendo tê-lo citado de memória” (Ibid., p. 32, nota 1 à mesma página) e, em seguida, transcreve o longo parágrafo marxiano que dá conta da complexidade da problemática. Na tradução para a língua inglesa, aparece a seguinte nota, que se soma à primeira: Onde Pachukanis cita ‘salários, lucro e renda’, Marx na verdade escreve ‘trabalho assalariado, capital’, e onde Pachukanis diz ‘preço, valor e mercadoria’, Marx grafa ‘troca, divisão do trabalho, preço’; isso quer dizer que Pachukanis tende nesse parágrafo a mudar as categorias das relações de produção para os rendimentos (PACHUKANIS, 2003, p. 66, nota 1 à mesma página). A despeito das muitas problemáticas aqui envolvidas, essas notas abrandam com peso relativo aquelas afirmações anteriores segundo as quais o autor russo recupera “o método marxiano” ou que tenha “desenvolvido no direito as referências metodológicas de Marx”. Mas isso apenas tem razão de ser mediante a problemática do entendimento de que a mercadoria é o ponto de partida da investigação. O fato de que “para a sociedade burguesa /.../ a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da mercadoria, constitui a forma econômica celular” (MARX, 2013, p. 78), não implica que estejamos diante do ponto de partida da pesquisa. Por isso a adequada apreensão da problemática das abstrações razoáveis em muito ajudaria na investigação da forma jurídica (assunto que está para ser desenvolvido em outra oportunidade). Além do mais, a própria Introdução de 1857 disponível a Pachukanis

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se inicia, não pela mercadoria, mas pela “1) A produção em geral”, seguida da determinação de que “α) o objeto nesse caso é, primeiramente, a produção material” (MARX, 2011, p. 39). Precisamente o texto donde o autor russo extrai os elementos “metodológicos de Marx” e, portanto, suscitam o momento investigativo, não parte da mercadoria. Tenha em mente a continuidade da letra marxiana: “Indivíduos produzindo em sociedade – por isso, o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente determinada” (Ibid., Idem.). É, de algum modo, sintomático que fique à mostra no desdobramento desse parágrafo da Introdução de 1857 o problema do indivíduo social “desprendido dos laços naturais” na sociedade da livre concorrência comparativamente às “épocas históricas anteriores” (Ibid., Idem.), cujo ponto alto da argumentação culmina na determinação de que o homem é um “animal social” que “somente pode isolar-se em sociedade” (Ibid., p. 40)? Não obstante, é possível explicar melhor o porquê da forma expositiva a partir da mercadoria em concatenação ao processo investigativo que tem nas abstrações razoáveis o momento angular. Sobretudo porque as “abstrações depuradas, a verdadeira face das abstrações razoáveis, são, portanto, o ponto de partida da elaboração teórica” (CHASIN, 2009, p. 127). De modo diferenciado, isto é, a despeito da distinção em relação às abstrações depuradas (assunto também de outra investigação), podemos compreender que: quer tomemos a própria totalidade imediatamente dada, quer seus complexos parciais [o direito, por exemplo], o conhecimento imediatamente direto de realidades imediatamente dadas desemboca sempre em meras representações. Por isso, essas devem ser mais bem determinadas com a ajuda de abstrações isoladoras (LUKÁCS, 2013, p. 304). Mas a conexão entre a investigação, as abstrações e a exposição em O capital a partir da mercadoria (da forma celular tal qual aparece ao caráter fetichizado enquanto coisa sensivelmente suprassensível) encontra seu ponto central na reprodução ideal do objeto real. É preciso ter em mente que, em relação a isso, a ordem de entrada dos materiais à cena discursiva e os lugares que nela ocupam não são estipulados por algum tipo de legalidade expositiva autônoma, mas pelo estatuto da reprodução ideal, forjado em subsunção ao composto ontológico do complexo estudado. O que não guarda identidade com a ordem e o modo de seus engendramentos reais, pois basta considerar que a forma da mercadoria enquanto mercadoria, ou seja, o modo de existência do produto do trabalho na sociabilidade particular da produção de mercadorias, como qualquer ente, compreende a simultaneidade de todas as suas características enquanto presença integrada e esculpida por suas categorias, ao passo que, obviamente, na análise e no discurso essa unidade imediata é impossível, cedendo lugar a um quadro estruturado pela sequencialidade da abordagem categorial. Adicionalmente, completou Chasin: a ordem das entradas e os lugares ocupados também não remetem, de fato, à sucessão pela qual o investigador, em suas inúmeras aproximações do objeto, se apercebeu e gradativamente apropriou de suas categorias. É a ordem, sim, de suas incorporações pertinentes ao concreto de pensamentos, ou seja, da integração de cada uma delas, pela via das múltiplas e sucessivas intensificações, delimitações e articulações das abstrações [razoáveis já depuradas], ao processo de reprodução mental do objeto real, de modo a recompor, ao nível da concreção realizada, na ordem própria ao concreto pensado, por conseguinte de seu discurso, o ordenamento intrínseco ao objeto em reprodução, de tal forma que a sequencialidade das categorias, no concreto pensado, seja a reprodução de sua simultaneidade real no objeto (CHASIN, 2009, p. 243-4).

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Que fique claro que o fato de Marx iniciar o texto de O capital pela mercadoria revela que a investigação indicou o caráter elementar da mercadoria na produção capitalista, fruto da subordinação da reprodução ideal às determinidades do objeto, o que não significa sinonímia com o “modo de seus engendramentos reais”. Ao mesmo tempo, uma determinada ordem expositiva remete às “incorporações pertinentes ao concreto de pensamentos”, de tal maneira que a articulação das categorias expresse na reprodução ideal a logicidade própria da matéria antes investigada. Se o movimento real é exposto de maneira adequada, pode ser que o “observador”, disse Marx, tenha a “impressão de se encontrar diante de uma construção a priori” embora não se trate, como não se tratou na mobilização e articulação das abstrações razoáveis, de conceitos determinados de antemão. E isso é muito reforçado por dois pontos. O primeiro se encontra no já citado Prefácio de 1859 à crítica da economia política em que, ao anunciar ter deixado de lado precisamente uma introdução (a Introdução de 1857) porque temia que perturbasse a apresentação dos resultados por antecipar variadas questões, escreveu que “o leitor resoluto a segui-lo [Marx]” teria que “elevar-se do singular ao universal [einzelnen zum allgemeinen aufzusteigen]” (MARX, 1987, p. 261; 1961, p. 7). Expressa-se aqui a exposição que partirá da forma mais elementar, singular, da sociedade produtora de mercadorias às determinações mais gerais contidas em Para a crítica da economia política que, como Marx deixa registrado, trata-se da base para o primeiro capítulo de O capital. O segundo ponto, para nós mais importante, revela-se pelas notas críticas de Marx às considerações de Adolph Wagner acerca da elaboração contida em O capital. Tratando-se do entendimento de Wagner com respeito à discussão do primeiro capítulo de sua obra magna, escreveu Marx: Eu não parto de ‘conceitos’, logo nem do ‘conceito de valor’, e de forma alguma eu me ocupo em ‘dividi-lo’. De onde eu parto [Wovon Ich ausgehe] é a mais simples forma social em que assume o produto do trabalho na sociedade contemporânea, e esta é a ‘mercadoria’ [die ‘Ware’]. Eu a analiso inicialmente na forma em que ela aparece. Aqui eu constato que ela é, por um lado, em sua forma natural [Naturalform] um objeto de uso, também denominado valor de uso; por outro lado, portadora [Träger] de valor de troca, e sob este prisma ela mesma é um ‘valor de troca’. A análise procedente da última mostrou-me que o valor de troca é apenas uma ‘forma fenomênica’, uma representação autônoma [selbständige Darstellungsweise] do valor contido na mercadoria, e então eu parto para a análise daquele [valor]. E depois de citar uma passagem d’O capital, na qual mostra que a mercadoria é um valor de uso ou um objeto de utilidade e um “valor”, ele continua: Portanto, não divido o valor em valor de uso e valor de troca como opositores nos quais a abstração ‘valor’ se divide, mas a forma social concreta [konkrete gesellschaftliche Gestalt] do produto do trabalho; a ‘mercadoria’ é por um lado valor de uso e por outro ‘valor’, não valor de troca uma vez que a mera forma aparente [bloße Erscheinungsform] não é seu próprio conteúdo (MARX, 1989, p. 544-5; 1987, p. 369). O próprio Marx explica o desdobrar da análise da mercadoria contida no primeiro capítulo. Mas não devemos nos enganar e confundir o ponto de partida da análise ou exposição (isto é, a mercadoria tal como ela aparece) com o ponto de partida da investigação já realizada e que, portanto, implica o ponto de partida da exposição como resultado da pesquisa. Não resta dúvida quando, parágrafos depois, escreve Marx que “o que mais perturba o senhor Wagner em minha exposição [Darstellung], porém, é que não faço o favor de cumprir com o patriótico ‘esforço’ professoral alemão de confundir valor de uso com valor” (Ibid., p. 547; Ibid., p. 371). Que seja registrado a grafia de “minha exposição” como equivalente de “de onde eu parto”, isto é, a mercadoria como abstração razoável em oposição a “conceitos”. Somados todos os

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pontos, permanece a questão de fazer reflexão sobre uma investigação da forma jurídica levando-se em conta toda a problemática que uma teoria das abstrações suscita. Assim como os Grundrisse propriamente ditos, essas críticas a Wagner (ao contrário do Prefácio de 1859) não estavam disponíveis a Pachukanis, uma vez que este último manuscrito, escrito em 1881, somente veio a público, em russo, em 1930; logo, seis anos após a publicação d’A teoria geral do direito e o marxismo. Ao menos, parte dos problemas, aqui apenas aludida, estava disponível a Pachukanis por meio da Introdução de 1857, mas, como dito antes, faltava ao seu tempo um aprofundamento dos problemas os quais dependeram, inclusive, de muitos anos (posteriores ao autor russo) de domínio do epistemologismo, das celeumas provocadas pelas separações entre o jovem e o velho Marx, entre ciência e ideologia, entre saber interessado e verdade, e outros mal-entendidos que possivelmente teriam cobrado do autor russo um desenvolvimento mais sistemático dessa matéria fundamental na qual se constituem as abstrações razoáveis e que ajudam a elucidar o complexo de problemas engendrado pela determinação da mercadoria como ponto de partida do momento investigativo. IV O segundo aspecto com o qual devemos lidar possui nuances mais complexas e também dificilmente seria resolvido aqui. Mas não podemos deixar de ao menos lançar luz sobre a existência do problema em si, deixando para outro momento a possibilidade do desenvolvimento mais apurado. A questão que nos ocupa é a afirmação de Pachukanis de que o próprio Marx descobriu o vínculo interno entre a forma-mercadoria e a forma jurídica, ligando portanto a mercadoria e o sujeito de direito. É preciso retomar, pois, os pontos mais centrais contidos em O capital e por meio dos quais Marx expressou considerações mais detidas da problemática em pauta. Uma resolução mais definitiva exigiria uma análise muito mais dedicada. Então, nunca é o bastante dizer que aqui, como antes, trata-se tão somente da identificação do problema. Os pontos não são de forma alguma desconhecidos pelos estudiosos da esfera do direito a partir dos achados de O capital. O famoso parágrafo do capítulo 2, O processo de troca, é frequentemente evocado para aludir o vínculo entre as relações jurídicas e o conteúdo concreto economicamente determinado a partir das relações materiais. Na passagem, escreveu Marx que “as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras”, isto é, os homens as conduzem e estabelecem tais relações. Por isso, Marx acrescenta: Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados (MARX, 2013, p. 159-60; 1962, p. 100). Tendo em mente as trocas simples, como proprietários privados está dada a possibilidade da troca, não sua execução por necessidade anterior. Daí, Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de

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mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte [Träger, ou melhor, como portador] das quais elas se defrontam umas com as outras. (Idem; Idem.) Aspecto de suma importância é reter a forma do contrato que assume a relação jurídica, volitiva, na qual se reflete a relação econômica, material. Não haveria tal relação jurídica sem a relação objetiva entre proprietários dispostos à troca (novamente, tendo em mente as trocas simples, sem uma coação econômica como vemos na “troca” entre trabalho e dinheiro na compra e na venda da força de trabalho como mercadoria). A questão dos contratos também aí indicada é expressiva nesse reflexo, sobretudo tendo em mente a fixação das relações jurídicas e políticas como contrato (pensamos, obviamente, em Hobbes). É útil uma passagem d’A ideologia alemã apenas para reforçar este aspecto, quando Marx e Engels comentam a obra de Bentham. Escreveram eles: “ver, nesta obra [de Bentham], o capítulo ‘a luta do iluminismo com a superstição’, onde a teoria da prestabilidade é apresentada como o resultado último do iluminismo”. Disso devém o aspecto central: A aparente tolice que consiste em reduzir todas as múltiplas relações dos indivíduos entre si a uma única relação de prestabilidade, essa aparente abstração metafísica deriva de que no interior da moderna sociedade burguesa todas as relações são praticamente subsumidas a uma única e abstrata relação monetária e de regateio. Tal teoria surgiu com Hobbes e Locke /.../ (MARX, 2007, p. 395). Vê-se que na elaboração teórica, particularmente da filosofia política, aparece tal redução do complexo de relações à relação de prestabilidade (logo, os contratos) porque na própria efetividade a multilateralidade das relações humanas é compactada à mercantilidade. Aqui se mostra uma determinação social do pensamento que diz alguma coisa a respeito das formas jurídicas (6) como algo que precisa ser retomado. Mas essa conexão não é completamente desconhecida antes do pensamento marxiano, de uma investigação da superestrutura não autonomamente. Hegel havia percebido, ainda que preso na mistificação da filosofia especulativa que põe o Estado como a máxima e sublime realização do homem, que na teoria dos contratos havia uma transposição conceitual. Hegel escreveu que “a ingerência dessa relação contratual, assim como das relações de propriedade privada em geral, nas relações estatais, produziu as maiores confusões no direito do Estado e na efetividade”. A despeito do idealismo aqui estampado, ele prossegue afirmando que: Assim como em períodos anteriores os direitos e as obrigações do Estado foram vistos e afirmados contra os direitos do príncipe e do Estado como uma propriedade privada imediata do indivíduo particular, assim também, em período mais recente, os direitos do príncipe e do Estado foram considerados objetos de contrato e nele fundados como mero elemento comum da vontade, surgido do arbítrio dos que estão reunidos em um Estado. Por diferentes que sejam, de uma parte, esses dois prontos de vista, eles têm em comum, de outra parte, ter transferido as determinações da propriedade privada para uma esfera que é de uma natureza totalmente outra e superior (HEGEL, 2010, p. 107-8, § 75). O Estado, segundo Hegel, não se funda nos contratos. Essa ideia é um erro, segundo ele, derivado da transferência das determinações da propriedade privada à esfera do Estado, o que obstrui sua altivez, sua superioridade em relação à propriedade privada! Aliás, essa relação entre propriedade privada e Estado ocupa lugar destacável na filosofia alemã que, até a crítica de Marx em 1843 (Cf. MARX, 2005; 2010), pareceu entender o poder político como poder de controlar a propriedade e não como o poder de protegê-la. De toda forma, vemos que o contrato como forma jurídica e política surte na elaboração teórica como determinação social de uma sociabilidade marcada efetivamente pela prestabilidade geral.

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É possível ainda adicionar um reforço para aquele problema do reflexo antes indicado a partir das já citadas notas críticas às considerações de Wagner. Nelas Marx explicou que para Wagner “o direito vem primeiro e então vem o comércio; na realidade tudo de passa de outro modo: primeiro surge o comércio e depois um sistema de leis se desenvolve a partir disso”. A essa formulação que explicita a prioridade das relações materiais, o momento preponderante do complexo do ser social, Marx adiciona que: Na análise da circulação das mercadorias [presente n’O capital] demonstrei que nas trocas desenvolvidas os participantes tacitamente reconhecem um ao outro como iguais pessoas e proprietários de suas respectivas mercadorias a serem trocadas por eles; eles já fazem isso enquanto oferecem seus produtos uns aos outros e concordam em comerciar entre si. Essa relação fática [faktische] que somente devém por meio e na troca recebe mais tarde uma forma jurídica [rechtliche Form] no contrato, etc., mas essa forma não cria seu conteúdo, a troca, nem o existente relacionamento mútuo entre as pessoas (MARX, 1989, p. 553-4; 1987, p. 377). O contrato como forma jurídica homogeneizadora reflete (não sem heterogeneidades) a relação material, relação entre individualidades indiferenciadas. Seja como for, o ponto a não ser perdido de vista é o conteúdo concreto dado pelas relações materiais ao contrato que, na qualidade de forma e peça jurídicas, reflete aquelas relações marcadas pela mercantilidade, o que supõe e engendra uma indiferença universal entre os “livres trocadores” representantes das mercadorias. Isto soa muito mais factível para ligar, de maneira ainda muito provisória, o sujeito de direito como reflexo dessa luta de todos contra todos em que cada um é obstáculo e meio para a realização dos interesses egoístas. É bastante interessante essa dimensão do problema, não por destacar uma alegada ligação interna entre a mercadoria e o sujeito de direito – ligação que, aliás, não é possível afirmar a partir das passagens anteriores –, mas, antes de tudo, por indicar que nessa relação econômica como livres proprietários, os indivíduos sociais são mutuamente indiferentes porque tão somente personificam relações econômicas, são seus portadores. Demonstra-se aspecto semelhante em outra passagem, presente no tópico A compra e a venda da força de trabalho, do capítulo quatro d’O capital (A transformação do dinheiro em capital), também frequentemente evocada como prova daquela ligação interna e que é muito útil para capturar determinações da forma jurídica. Na passagem, Marx escreveu que A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todoastuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral. No complemento seguinte, ainda podemos ler que: Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital

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e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalho. /.../ (MARX, 2013, p. 250-1). Essa passagem repleta de sutilezas críticas traz à baila pelo menos três aspectos. Por um lado, demonstra que é da esfera da circulação simples que os ideólogos retiram tais conceitos (liberdade, igualdade, propriedade, utilidade geral). Como também disse Marx em outro lugar, ao tratar desses mesmos conceitos criticamente (particularmente a liberdade e a igualdade), como ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base; quando desenvolvidas em relações jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em uma outra potência. E isso também se verifica historicamente. A igualdade e a liberdade nessa extensão são exatamente o oposto da liberdade e igualdade antigas, que não têm justamente o valor de troca desenvolvido como fundamento, mas se extinguem com seu desenvolvimento (MARX, 2011, p. 188). Que base? A do valor de troca, pois, como dito antes nesta mesma parte do texto marxiano, “igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade” (Idem). Por outro lado, a passagem sugere igualmente que tais formas ou conceitos não expressam autenticamente as relações reais dado que, ao menos no que se refere à compra e a venda da força de trabalho, não se confirma na objetividade uma troca entre livres proprietários de mercadorias, pois, como sabemos, trata-se de uma coerção muda da economia que leva à venda da força de trabalho como única propriedade do trabalhador no interior de uma relação que apenas na aparência se confirma como uma relação de troca (temos em mente a exploração do trabalho, a produção do mais-valor). Vale lembrar aqui a lei da troca de mercadorias em que o capitalista faz uso do seu direito como comprador para prolongar a jornada de trabalho e o trabalhador, como vendedor, faz uso do seu com vistas a diminuir a jornada. De tal maneira, “tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força” (MARX, 2013, p. 309). Por outro lado ainda, o tom marcante da passagem é o mesmo que vimos antes, o da mercantilidade em que todos concorrem contra todos (a base real para o “estado de natureza” hobbesiano) sob orientação de seus interesses egoístas racionalmente exercitados (ALVES, 2006) nos limites de uma indiferença universal. Em suma, são “reciprocamente indiferentes”, são “indiferentes uns para os outros; suas outras diferenças individuais não lhes interessam; são indiferentes a todas as suas outras peculiaridades individuais” (MARX, 2011, p. 185), ou seja, se igualam pela indiferença mútua, de modo que “o interesse universal é justamente a universalidade dos interesses egoístas” (Ibid., p. 188). São bem conhecidas as considerações marxianas sobre o egoísmo socialmente engendrado e desde muito cedo Marx conectou esse ser social particular com a mercantilidade que marca a sociabilidade capitalista (Cf. MARX, 2010). O ponto que chama a atenção é que nenhum desses três aspectos aponta diretamente para um vínculo interno entre a mercadoria e o sujeito de direito, mas aponta para o valor de troca como base real que engendra e é aprofundada por um tipo de individualidade social historicamente determinada e marcada pela indiferença universal, base que cria as condições para a constituição, por parte dos ideólogos, de conceitos homogeneizados em forma jurídica e que refletem aquele conteúdo concreto mas não de maneira plenamente autêntica (7), no caso, porque expressam, parafraseando Marx, muito mais a “aparência enganadora das coisas” (MARX, 2012, p. 109). Assim como vimos com o contrato, conceitos (inclusive a ele relacionados) como a liberdade e a igualdade, são o valor de troca em outra potência (que não tem sentido de maior poder, mas de esfera derivada não mecanicamente determinada) quando

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são desenvolvidos “em relações jurídicas, políticas e sociais”. Trata-se de uma proximidade com a análise de Marx desenvolvida ainda precocemente em Sobre a questão judaica ao tratar da constituição do Estado político e sua relação contraditória com os elementos da sociedade civil-burguesa, onde lemos que: O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na sociedade burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. A relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra. A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político a supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano, isto é, sendo igualmente forçado a reconhecê-la, produzi-la e deixar-se dominar por ela. Na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal (MARX, 2010, p. 40-1). Depreende-se disso a possibilidade de um operatório de mesma natureza, uma cisão entre o homem real no interior de suas relações concretas e a forma jurídica desenvolvida de modo heterogêneo e que reflete de maneira não autêntica as relações efetivamente existentes. Na homogeneização típica da forma jurídica abstraem-se todas as diferenças, todas as contradições que marcam as relações entre os homens reais, e nessa tipicidade própria está contida sua inautenticidade imanente – que não é abalada pelos recentes esforços de um póspositivismo. É importante dizer que este aspecto não passa inteiramente despercebido a Pachukanis quando afirma que “o sujeito de direito é, em consequência, um proprietário abstrato e transposto para as nuvens” (PACHUKANIS, 1989, p. 94). Mas o desenvolvimento por meio da igualdade dada pela indiferença geral entre individualidades em concorrência universal parece fornecer outras determinidades para a determinação da forma jurídica. Disso resulta que é mais preciso, como se aproximou Pachukanis ao escrever sobre o “proprietário abstrato”, apreender que o sujeito de direito é o próprio homem abstrato e reflete de forma heterogênea e não autêntica o homem egoísta efetivamente existente; o contrato, por sua vez, reflete também de forma problemática as relações entre essas individualidades que exercitam os cálculos atinentes aos seus fins privados; a igualdade reflete a indiferença universal e a liberdade, a luta de todos contra todos. Uma última passagem nos servirá de desfecho para o complexo de problemas cuja existência nos limitamos a apresentar. Voltando ao capítulo da mercadoria, precisamente na exposição marxiana sobre as manhas do valor, disse ele que o fato de que nas formas dos valores das mercadorias todos os trabalhos são expressos como trabalho humano igual e, desse modo, como dotados do mesmo valor é algo que Aristóteles não podia deduzir da própria forma de valor, posto que a sociedade grega se baseava no trabalho escravo e, por conseguinte, tinha como base natural a desigualdade entre os homens e suas forças de trabalho.

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A isso corresponde a discussão sobre o trabalho abstrato ou trabalho em geral como algo social e historicamente determinado na sociabilidade do capital (Cf. MARX, 2011, p. 57ss; 2013, p. 255ss). Assim, continuou Marx, O segredo da expressão do valor, a igualdade e equivalência de todos os trabalhos porque e na medida em que são trabalho humano em geral, só pode ser decifrado quando o conceito de igualdade humana já possui a fixidez de um preconceito popular. Mas isso só é possível numa sociedade em que a forma-mercadoria é a forma universal do produto do trabalho, e portanto, também dominante. O gênio de Aristóteles brilha precisamente em sua descoberta de uma relação de igualdade na expressão de valor das mercadorias. Foi apenas a limitação histórica da sociedade em que ele vivia que o impediu de descobrir em que ‘na verdade’ consiste essa relação de igualdade (MARX, 2013, p. 136). Como podemos ver, apenas uma sociedade na qual os produtos do trabalho assumem a forma mercadoria e, assim, na qual a relação social dominante é a dos proprietários de mercadorias, cria a possibilidade da fixidez de um conceito de igualdade humana. Pode-se dizer o mesmo, por exemplo, a respeito da liberdade como manifestada no contrato entre compradores e vendedores da força de trabalho. A resolução dos mistérios que rondam o valor tem por condição primeira uma abstração efetiva, objetivamente engendrada em terreno social historicamente determinado, das diferenças do trabalho humano acompanhado da indiferença universal e do exercício racional do egoísmo; a segunda condição vinculada é a fixidez de um “conceito de igualdade humana” derivado, como vimos, do valor de troca que, desenvolvido em relações jurídicas, políticas e sociais, é forma em outra potência. E é essa fixidez do conceito de igualdade humana equivalente a um preconceito popular a última condição permissiva para que se decifre o segredo da expressão do valor. Não é tão simples encontrar em todas essas passagens centrais de Marx, salvo o melhor juízo, um “profundo vínculo interno existente entre a forma jurídica e a forma mercantil”, da maneira como afirmou Pachukanis. Há, como pudemos ver, uma relação de pressuposição ontológica na qual apenas uma sociedade determinada cria as condições objetivas para tais expressões jurídicas. Talvez essa colocação de Pachukanis se retroalimente por sua ideia também problemática de Marx haver partido da mercadoria como o ponto inicial da investigação. Disso resulta que a elaboração teórica do profundo vínculo entre a mercadoria e o sujeito de direito é uma determinação originalmente pachukaniana, não de Marx. V Mas não se trata de supor que o autor russo esteja equivocado em sua compreensão. Afirmamos, outrossim, que o profundo vínculo interno entre a mercadoria e o sujeito de direito não parece ser, até o presente momento e considerando as limitações existentes, uma determinação puramente marxiana. Existem elementos que permitem sustentar que, na verdade, trata-se de um produto original de Pachukanis, algo derivado de sua importante pesquisa acerca das formas jurídicas. Pode-se especular se não seria derivado também, em parte, de sua leitura que imputou o ponto de partida do momento investigativo marxiano à mercadoria. Esses dois problemas, portanto, insinuam estar relacionados. É preciso considerar a diferença estabelecida por Marx entre a investigação e a exposição, ambas subsumidas à lógica da coisa. Ao deixar isso de lado, tendo em mente também o não sabido a respeito dos Grundrisse, das notas a Wagner e outros problemas, fixou metodologicamente a transposição da análise da mercadoria para a análise da forma jurídica, uma problemática “aplicação do método de Marx”. A originalidade de Pachukanis está, então, duplamente determinada: assumir a mercadoria como ponto de partida e estabelecer o seu vínculo com o sujeito de direito. Por certo que deixamos indicadas algumas poucas possibilidades para o aprofundamento do estudo das formas jurídicas que a discussão sobre as abstrações razoáveis cria, sem

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mencionar as possibilidades de uma análise imanente do direito enquanto ideologia ou de se levar mais a fundo a inautenticidade imanente da forma jurídica. Desenvolver a pesquisa nessa direção suscita questões importantes que se esquivam do paralelismo problemático, daquela “aplicação” por analogia “do método de Marx”. Sugerimos que não se trata de “aplicar” o método ou fazer com a forma jurídica o mesmo que fora feito com a economia política – que faz relativamente perder de vista o complexo de complexos e uma análise do direito integrado ao ser social de forma heterogênea como reflexo não autêntico –, mas de descobrir a dialeticidade da coisa inquirida em sua relação com as forças motrizes objetivas, trazendo à baila sua dinâmica própria enquanto complexo parcial, para usar expressões de Lukács. Abrese, assim, a necessidade de voltar à investigação sobre uma resolução metodológica para a determinação da forma jurídica. Adicionalmente, ficou também indicada outra possibilidade também aludida pelo próprio Pachukanis. A partir da produção em geral e dos indivíduos produzindo em sociedade, temos em mente a relação recíproca entre a individualidade moderna – aqui tratada de forma muito geral enquanto egoísmo racionalmente exercitado na luta de todos contra todos que, em conjunto com outras coisas, demarca a diferença específica da sociabilidade contemporânea –, e suas expressões como sujeito de direito, e as suas relações reduzidas à mercantilidade como base real do contrato também como forma jurídica. Encontra também aí lugar as mediações de concreção dessa reciprocidade. É também verdade que este aspecto precisa, como os demais, ser desenvolvido, mas fica a possibilidade de se aprofundar a investigação pela cisão dos homens reais e de suas relações concretas em dois (no espírito de Sobre a questão judaica): de um lado, a mundaneidade das relações objetivas marcadas pela indiferença universal e, de outro, as suas formas abstratas, ou melhor, trata-se de uma abstração efetiva entre o homem real no interior de suas relações materiais e a forma jurídica homogeneizada, desenvolvida de modo heterogêneo em relação à sua base e determinada como reflexo não autêntico de seus pressupostos objetivos; daí, a indiferença universal como igualdade, a luta de todos contra todos como liberdade, etc. Fica patente, por fim, a necessidade sempre presente de retomar detidamente as discussões de Marx a propósito dos complexos de problemas aqui aludidos, mas também muitos outros para determinar a categoria do direito no pensamento marxiano. Referências Alves, A. J.L. A individualidade moderna nos Grundrisse. Verinotio, n. 4, ano II, abril de 2006. Cava, B. Pachukanis e Negri: do antidireito ao direito do comum. Revista Direito e Práxis, vol. 4, n. 6, 2013, pp. 2-30. Chasin, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009. _______. O integralismo de Plínio Salgado. Editora Ciências Humanas, 1978. Duayer, M. Apresentação. In: Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011. Engels, F. Karl Marx, A contribution to the critique of political economy. Collected Works, vol. 16, Lawrence & Wishart, 1980. Hegel, G.W.F. Filosofia do direito. São Paulo: Unisinos, 2010. Kashiura Júnior, C. N. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Kashiura Junior, C. N. Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis. Direito e Realidade, vol 1, n. 01, 2011.

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Notas: (1) Contribuições que já aparecem em outras discussões, mas também no direito ainda que em meio a outras problemáticas. Cf. Cava, B. Pachukanis e Negri: do antidireito ao direito do comum. Revista Direito e Práxis, vol. 4, n. 6, 2013, pp. 2-30. (2) “a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa investigação começa, por isso, com a análise da mercadoria” (Marx, 2013, p. 113). (3) Ou ainda, tenhamos em mente que já na Introdução de 1857 lemos que Marx pensava em desenvolver melhor “a relação que a apresentação científica tem com o movimento real” (2011, p. 41-2). (4) Paralelismo que vimos antes e que também podemos encontrar assim expressado, pelas palavras de Kashiura Júnior: “o pensamento de Pachukanis está claramente construído sobre mesmo método dialético a partir do qual Marx elaborou O capital, o que resulta numa análise tendente a reconstruir o direito como totalidade concreta; o mesmo que Marx, do ponto de vista econômico, buscou fazer com o capitalismo, com vistas a explicitar toda a sua dinâmica interna e todas as suas contradições imanentes”, Cf. Dialética e forma jurídica, op. cit., p. 42-3. Ou ainda, como diz Pachukanis, “O que Marx diz das categorias econômicas é, também, totalmente aplicável às categorias jurídicas”, Cf. A teoria geral do direito, op. cit., p. 37. (5) Pode-se ilustrar este problema – mas sem reduzir Pachukanis inteiramente a isso – pela ressalva de José Paulo Netto (2011, p. 13) quando escreve que considerar a questão do método pelo corte da “aplicação dos princípios da dialética”, logo “o conhecimento da realidade não demandaria os sempre árduos esforços investigativos, substituídos pela simples ‘aplicação’ do método de Marx, que haveria de ‘solucionar’ todos os problemas: uma análise ‘econômica’ da sociedade forneceria a ‘explicação’ do sistema político, das formas culturais etc.”. Acrescente-se, ainda mais importante, que “tudo que aparece e se move na reflexão marxiana é a substância e a lógica do próprio objeto, reproduzido em sua gênese e necessidade historicamente engendradas e desenvolvidas. Donde a identificação da dialeticidade como lógica do real, movimento das categorias enquanto formas de existência, que os concretos de pensamento reproduzem. Razão pela qual a dialética só é passível de descobrimento, jamais de aplicação” (Chasin, 2009, p. 236). É inegável que existe uma problemática na determinação das formas jurídicas a partir dessas considerações as quais precisam ser consideradas em estudos futuros. (6) Esta questão, na compreensão do direto como ideologia, coloca-nos para além das abstrações razoáveis porque indica a necessidade do estudo das formas ideológicas em seu caráter relativamente autônomo. Impossibilitados de desenvolver qualquer outra coisa sobre isso aqui, fica indicado apenas como possibilidade de uma análise imanente, pois, “Por análise imanente não se compreende o estudo que confere ao produto ideológico explícito, origem e desenvolvimento imanente ao próprio campo das ideologias. O que vale dizer que as ideologias, como todas as manifestações superestruturais, não possuem uma história autônoma, mas esta sua condição de dependência genética das forças motrizes de ordem primária não implica que elas não se constituam em entidades específicas, com características próprias em cada caso, que cabe descrever numa investigação concreta que respeite a trama interna de suas articulações, de modo que fique revelado objetivamente seu perfil de conteúdos e a forma pela qual eles se estruturam e afirmam”. Chasin (1978, p. 77). (7) Lukács, ao comentar uma passagem de A miséria da filosofia em que se lê que “o direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato” e destacar aí a prioridade do econômico – o que envolve um complexo de outros problemas importantes impossíveis de serem tratados

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aqui (Cf. Sartori, 2011, p. 3ss) –, afirmou que “tomando-se esse sistema [direito] como unidade indivisível de um nexo interno e simultaneamente como coleção de imperativos (em sua maioria, na forma de proibição), que surgiram para influenciar os pores teleológicos dos homens, a constatação marxiana de que é impossível que tal sistema possa espelhar de modo adequado o contexto econômico real se torna diretamente evidente. /.../ o sistema não brota do espelhamento da realidade, mas só pode ser sua manipulação homogeneizante de cunho conceitual-abstrato” (Lukács, 1986, pp. 190-191). Esse aspecto do espelhamento não autêntico é um ponto também a ser mais desenvolvido a respeito das formas jurídicas.

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