Considerações sobre a filosofia de Cornelius Castoriadis e o problema da racionalidade histórica a partir de Max Weber

July 9, 2017 | Autor: Guilherme Bianchi | Categoria: Theory of History, Cornelius Castoriadis, Max Weber
Share Embed


Descrição do Produto

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

CONSIDERAÇÕES SOBRE A FILOSOFIA DE CASTORIADIS E O PROBLEMA DA RACIONALIDADE HISTÓRICA ATRAVÉS DE MAX WEBER Guilherme Bianchi Moreira*

Filósofo e crítico social que construiu sua carreira entre a Universidade de Atenas e a Academia Francesa, Cornelius Castoriadis ganhou reconhecimento internacional através de seu conceito de autonomia e o estabelecimento de uma crítica ao socialismo soviético, bem como às bases do pensamento marxista, no qual objetivou a fundação de uma nova práxis revolucionária que se afastasse dos perigos da filosofia da história marxista. Seus primeiros ensaios, escritos em 1944, se voltam à obra de Max Weber e compreendiam, entre outras coisas, a tradução pioneira e comentada dos “Fundamentos metódicos” de Economia e Sociedade e de “Sobre a teoria das ciências sociais”, o qual Castoriadis se serviu para problematizar a própria teoria marxista, que tanto o intrigava. Em 1988, com seu artigo nominado “Indivíduo, Sociedade, Racionalidade, História”, Castoriadis pretendeu, através tanto de uma releitura de Weber quanto de uma atenta análise da obra de Philippe Raynaud (então recém lançada) “Max Weber et les dillemes de la raison moderne”, retomar uma série de questões suscitadas pelos “ventos atuais” no meio acadêmico, que poderiam ser melhor elucidadas através de uma confrontação com a obra de Weber. Como veremos, questões que se referem especialmente ao limite da “racionalidade instrumental”

e

a

possibilidade

de

reconstituição

de

sentidos

históricos

pelo

historiador/sociólogo Para Castoriadis, o que Weber chama de individualismo metodológico parece ser, a princípio, o oposto de um individualismo “substancialista ou ontológico”. O método weberiano objetiva promover recursos através de construção (ou restituição) de significados subjetivamente compreensíveis do comportamento individual; essa construção deveria reduzir fenômenos estudados aos efeitos dos atos ou comportamento individuais. Só assim algo a mais da realidade poderia ser acessado, através compreensão. Compreensão essa que se permite através do que Weber chama de “reviver simpático/empático” (sympathisches Nacherleben) dos comportamentos e motivações outras. *

Graduando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto.

1

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

É a compreensão que deve levar em conta tanto as ações individuais, como as formações coletivas (Estado, família, etc.) que no fundo são também representações na cabeça de homens reais, que não existem por si só. “O trabalho sociológico empírico decisivo começa sempre com a pergunta: que motivos determinaram e determinam que os funcionários e os membros singulares dessa ‘coletividade’ se comportem de tal modo que ela foi gerada e continua a existir?” (Castoriadis, 1992, p. 47). Esse trabalho de compreensão se dá através de um caráter racional, ou então consiste em um reviver empático: emocional, artístico-receptivo. Ao mesmo tempo, Weber ressalta a dificuldade de compreensão de fins e valores últimos que se afastam radicalmente de nossas próprias valorações últimas. Uma dificuldade de compreensão que advém da quase impossibilidade de explicação Para Weber, na visão de Castoriadis “compreendemos mais facilmente um agir orientado conforme fins ou valores que nos são próximos, e (ou) que se desenvolve segundo uma racionalidade dos meios atendendo aos fins; compreendemos mais dificilmente e se for o caso não compreendemos absolutamente, um agir que obedece a fins que nos são estranhos, e (ou) cujo emprego se afasta sensivelmente da racionalidade dos meios atendendo aos fins” (Castoriadis, 1992, p. 47)

Como sabemos, Weber se referiu ao comportamento que se constrói na adequação de meios e fins como racionalidade instrumental. Para Weber, as leis as quais a sociologia compreensiva tenta compreender são de fato compreensíveis e unívocas na medida em que se encontram nelas motivações instrumentalmente racionais puras, e na medida em que essa relação (entre meios e fins) é racionalmente estabelecida. “Nesse caso, o seguinte enunciado é permitido: se agíssemos rigorosamente de maneira instrumentalmente racional, deveríamos agir assim e não de outra maneira.” (ibid. p. 48). Por outro lado, todo agir tradicional, grande parte do agir carismático, e “quase a totalidade do agir real que se desenvolve na semiconsciência apática” não são instrumentalmente racionais. O indivíduo age nesses casos instintivamente, ou por hábito. Nem por isso, ressalta Castoriadis, esse tipo de agir não deixa de possuir uma dimensão de “racionalidade”, pois, citando Weber ele lembra: “o agir significa um comportamento humano enquanto, a na medida em que, o ator ou os atores ligam a ele um sentido subjetivo” (ibid. p. 48). 2

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

O problema, e onde toda a crítica de Castoriadis virá a se desenvolver, se encontra aí. Porque a maioria dos indivíduos, na maioria de seus atos, agem porque “estão acostumados ou habituados” a agir assim? Qual o sentido disso para o “ser mesmo” dos indivíduos? O que falar da instauração primeira desses hábitos ou tradição? Ou ainda, o que dizer das “perspectivas e possibilidades de uma sociologia compreensiva, se esta deve limitar-se, diante dos 95% da história humana, a dizer: não é compreensível, mas é tradicional?” (ibid. p. 49). São perguntas que Castoriadis se coloca para entender os limites da compreensão da racionalidade na sociologia e na história (vale lembrar aqui que o próprio Castoriadis argumenta que não há distinção essencial em Weber entre sociedade e história). A sociologia deve, para além de explicar, compreender. E compreender o sentido existente “em”, “por” e “para” os indivíduos efetivos, sempre um sentido visado (gemeinter; Castoriadis argumenta que o termo alemão designa fortemente o lado subjetivo), mas sempre se atentando às consequências para um coletivo mais amplo. E o trabalho de explicação deve ser sempre também um trabalho de encadeamento de atos e fornecer assim, uma interpretação causal correta. A ligação de causalidade e compreensão é onde se encontra o fundamento do individualismo metodológico de Weber, e aonde também se estabelece um horizonte ontológico, para Castoriadis (aqui, é preciso dizer, Castoriadis sustenta a tese de que é impossível separar um método de uma ontologia, e, portanto, a obra de Weber guarda também uma ontologia, uma noção de ser no mundo). A causalidade, em Weber, não significa uma simples irreversibilidade nem uma ordenação arbitrária do tempo, significa, na visão de Castoriadis, a regularidade de uma consecução, cuja necessidade é expressa por uma lei universal. Mas não por isso, os fenômenos podem ser entendidos como reprodutibilidade de alguma regra, pois é precisamente a ausência dessa reprodutibilidade que confere todo seu peso às considerações de Weber sobre a racionalidade e a inteligibilidade. Mas há, ainda sim, um horizonte de reprodutibilidade em potencial, de forma que, sempre para Castoriadis, na qualidade de indivíduos racionais (que agem instrumentalmente), somos todos substituíveis uns aos outros, e diante das mesmas circunstâncias teríamos decididos empregar o mesmo meio X. A singularidade do evento é, dessa forma, dissolvida na concepção de reprodutibilidade em potencial do indivíduo que age instrumentalmente em relação aos fins. Castoriadis parte do pressuposto que o indivíduo sempre age instrumentalmente em relação a fins, mas aqui, vale dizer, a insistência weberiana na ética da responsabilidade mostra o 3

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

desejo de Weber que o indivíduo fosse mais que isso, pudesse ir além do instrumentalmente racional. Se faltar esse potencial de reprodutibilidade produz-se o que Weber chama de “falta de adequação de sentido” (Fehlen an Sinnadaquanz), que reduz o fenômeno a algo incompreensível. Nem por isso esses processos são menos importantes, pois pertencem às condições e obstáculos que o mundo apresenta ao agir social dos homens. O historiador alemão Georg Iggers mostra que, apesar de Weber superar uma visão teleológica de história e a visão de um caráter objetivo de mundo, ele “(...) não abandona dois supostos fundamentais do pensamento histórico do século XIX, do historicismo clássico e do marxismo clássico: o de que existe uma continuidade coerente na história do mundo ocidental e que uma dedicação científica e intelectual a este mundo é possível.” (Iggers, 1998, p. 41-42)

O que há nessa questão para além de uma teoria do conhecimento? Há, para Castoriadis, a demonstração da ideia que denota que o compreensível é produto da ação individual: somente aquilo que fizemos e tudo o que fizemos é inteligível. Uma afirmação cara para Castoriadis, que busca ressaltar o instante de verdade parcial dessa ideia. Pois para ele, muitas coisas são inteligíveis sem que as tenhamos feito, e por outro lado, nem tudo que fazemos torna-se inteligível. “Eu não fiz a ideia de norma ou de lei (no sentido sociológico, efetivo – não no sentido transcendental); poderia inventar uma lei particular, não a ideia de uma lei social”. Para Weber, é necessário afiançar aí uma ontologia: se há sentido, é que há um sujeito que o estabelece. Só o homem estabelece o sentido. Para Weber, mais que isso, tem a responsabilidade de fazê-lo. “E se há um sujeito, é que ele é ou única fonte e origem única do sentido, ou correlato obrigatório deste” (Castoriadis, 1922, p. 54). “Nós não ‘compreendemos’ todos os comportamentos individuais, nem mesmo os nossos, longe disso, e podemos compreender ‘objetos’ irredutíveis a comportamentos individuais, quando pertencem ao campo do social-histórico. O mundo social-histórico é o mundo de sentidos – de significações -, e de sentido efetivo, mundo que não pode ser pensado como uma simples idealidade visada” (ibid., p. 55).

4

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

Não são os comportamentos individuais, para Castoriadis, que diferenciam a linha de separação entre a natureza da qual fala as ciências exatas e os fenômenos sócio-históricos. O que os difere é a efetividade da significação no horizonte do mundo sócio-histórico. “A compreensão é nosso modo de acesso a este mundo – e ela não passa necessária e essencialmente pela referência ao indivíduo” (ibid., p. 56). As significações do mundo, a produção de sentidos dos homens, não podem ser, para Castoriadis, reduzidas a mera figuras de racionalidade. Essa afirmação levaria a consideração de que todas as culturas produzidas na humanidade, a civilização asteca, hindu, bizantina, etc. representam simplesmente formas de diferentes configurações da racionalidade. Para ele, ao contrário, o mundo das significações precede qualquer racionalidade explícita, e a imaginação e o simbólico detém uma autonomia perante a esfera da racionalidade. A breve passagem de Castoriadis em seu livro “A instituição imaginária da sociedade” apresenta bem essa perspectiva: “A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva, do que nós chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações”. (Castoriadis, 2007, p. 176)

Os fenômenos social-históricos são, dessa forma, irredutíveis a uma análise do “agir individual” e apresentam coerência em relação ao sentido produzido. São ainda irredutíveis uns aos outros, e todos a um “progresso da racionalidade”, como Weber bem sabia. Não há como compreender um universo social-histórico só a partir desses elementos, mas devo, em verdade, compreender esse universo como forma por ela mesma instituída, seu mundo de significações, e preciso ainda compreender como se dão os processos de sucessão, como algo que preexiste a forma atual vem a se tornar ela, graças ao novo sentido criado pela sociedade. Disso, Castoriadis nota, Weber estava convencido (idem, 1992, p. 61): a incomensurabilidade de nossos valores e fins últimos com outros valores e fins últimos tem por referência a diversidade social-histórica das significações que animam o seu tempo. O problema é que, se a posição de Weber na recusa de consideração da racionalidade moderna como “superior” a outras formas de existência é clara, sua também recusa do “irracionalismo histórico” o obriga a instaurar o individualismo racionalista como horizonte 5

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

único de inteligibilidade da história de tal forma, que a análise que se pretenda científica restringe à racionalidade instrumental como seu único terreno sólido de pesquisa “e quanto mais postulamos que a ‘racionalidade’ é o horizonte último da compreensão, tanto mais o ‘valores últimos’ das diferentes culturas tornam-se de fato inacessíveis, e a compreensão do mundo socialhistórico se encontra reduzida à reconstituição de alguns fragmentos ou dimensões instrumentalmente racionais do agir” (Castoriadis, 1991, p. 62)

Poderíamos argumentar aqui, entretanto, que a racionalidade instrumental, em Weber, não é o horizonte último da compreensão, e sim o meio pelo qual a compreensão torna-se possível. De qualquer modo, a racionalidade instrumental é a cada vez socialmente instituída. Tomemos como exemplo a linguagem; essa acompanha toda a totalidade do mundo social na qual pertence, mas ela é impossível sem a co-determinação das significações sociais. Sem a instrumentação do significado nas coisas, as mesmas não poderiam ser compreendidas. É necessário um conhecimento do cristianismo para não ver no enunciado “1=3” (Santíssima trindade) um simples absurdo. (Castoriadis, 1992) Dessa mesma forma, se o objetivo é a realização do programa metodológico weberiano, o comportamento individual não pode ser reduzido a simples reflexo da racionalidade, pois apresenta uma estrutura de significados que não são apenas um “desvio” de uma racionalidade ideal. Isso não significa, porém, que outras “racionalidades” sejam inacessíveis para nós (já que também nosso processo de entendimento está imerso num imaginário instituído), acontece que esse acesso deve passar pela tentativa de “reconstituir as significações imaginárias da sociedade estudada” (Castoriadis, 1992, p. 63). Ainda em referência à Castoriadis, o problema também se encontra na dificuldade e impossibilidade que é perceber as ações individuais não-instrumentalmente racionais como meros desvios da racionalidade. O instrumento de comparação do componente racionalinstrumental e aquilo que dele se afasta seria insuficiente para a compreensão da ação, já que ela comportaria diversas outras dimensões que nada tem a ver diretamente com a racionalidade instituída. A compreensão ficaria incompleta, pois não se penetrou efetivamente nesse outro mundo de significações, motivações, etc.

6

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

“(...) o que me traria a tentativa de compreender o comportamento de Hitler, dos SS, de Stalin, dos membros dos partidos stalinistas, como um comportamento instrumentalmente racional, que, em certos pontos precisos, desviou dessa racionalidade? O que eu teria compreendido do totalitarismo? E como não ver nesse casso que o próprio emprego de uma ‘racionalidade instrumental’ demencial, até às vezes às suas mais detalhadas modalidades, foi totalmente dependente do imaginário totalitário e decisivamente co-determinado por este?” (Castoriadis, 1992, p. 64)

Como sabemos, os tipos ideais propostos por Weber objetivam o estabelecido de encadeamentos típicos de motivações e atos individuais, e também tipos ideais dos próprios indivíduos em questão, que nos possam auxiliar na compreensão da realidade estudada. Interessa saber, a cada vez, como a realidade se adequa ou se afasta do tipo ideal construído.. No sentido de Rickert, o que se deseja com o emprego do recurso ao tipo ideal é redução da complexidade do real, permitir ver o que não se vê devido à inapreensibilidade do real. Acontece que os tipos ideais, na metodologia de Weber, sempre tem que se adequar e conseguir descrever também ao comportamento individual. Dessa forma, algo como o conceito de mercado é entendido a partir dos comportamentos individuais o qual impulsiona e é impulsionado, o que, para Castoriadis, “despreza as condições social-históricas da verdadeira imposição do ‘mercado’ como instituição”1. As condições social-históricas não se limitam à existência “puramente individual”, mas pressupõe também um universo de sentidos. Mas, ainda assim, os tipos ideais propostos por Weber, se apresentam como uma ferramenta legítima de acesso às realidades estudadas. Os tipos ideais têm sempre um referente, que é o sentido social efetivo da realidade observada e sua validade é sempre discutida a partir à referência ao sentido efetivo. Esse sentido nunca está isolado, se encontra sempre em seu próprio universo de significações, e ainda assim, devem ser coerentes e idealmente exaustivos, no sentido de seu potencial de acesso à compreensão da realidade. Os tipos ideais devem estar conectados de forma interna e se referir, juntos, à instituição da

1 Para Karl Polanyi, o qual Castoriadis parece concordar, a ideia de mercado foi, durante todo o século XIX .um projeto utópico e artificial, colocado em prática tanto pelo Estado quanto pelas forças interessadas em apagar a inclinação do homem à comunidade.

7

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

sociedade e sua pluralidade de significações, não se limitando à instrumentalidade do racional. “O pater familias romano se refere do interior – e não porque o teórico assim o ‘construiu’ – à esposa romana, o plebeu ao patrício e todos às leis da urbs, à religião romana, etc. Eles devem se ajustar a fim de produzir não somente uma sociedade que ‘funciona’, mas também um mundo coerente daquilo que (para nós) é sentido estrangeiro” (Castoriadis, p. 372, 2004)

Castoriadis (2007, p. 39) segue o pressuposto weberiano de que é necessário reconstruir continuamente encadeamentos de causação para os quais as ações são essenciais. A construção de encadeamentos ideal-típicos é o que torna possível a compreensão do que é o racional e sua forma específica de estabelecer a relação entre meios e fins. Mas esse acesso nunca é integral, sempre esbarra em um limite de compreensão.Esse limite se encontra no fato de que as significações imaginárias de fato não podem, para Castoriadis, ser acessadas em completo, muito menos em uma encadeamento de causa-efeito, pois são, elas mesmas, os pontos centrais de indeterminação do sujeito, daquilo que não pode ser posto em um plano cartesiano porque não pode ser reduzido a um dado. As significação imaginárias são o inexplicável para Castoriadis exatamente porque não têm como ser determinadas pelos indivíduos. Para Weber, tudo pode ser determinado pelo indivíduo, apesar dos limites sociais a sua ação. A realidade imaginária transcende o individuo, não se encontra essencialmente nele, mas na relação entre indivíduos, na relação entre eles e o espaço social, a cidade, as instituições e nas motivações que os impulsionam. Mas: “se alguém diz algo absurdo sobre o sentido profundo da religião grega, da religião hebraica, da religião cristã, pode-se demonstrar de forma prática que é um absurdo, que não se sustenta ou que deixa de lado coisas importantes. Mas não há nenhum meio, nenhum método para encontrar aquele que é o nó verdadeiro, pois esse nó verdadeiro nunca é dado a quem quer que seja em pessoa.” (ibid, p. 40)

É esse “nó verdadeiro” que não pode ser acessado, pois esse só se estabelece nas relações possíveis de cada época. Se pudéssemos ressuscitar um ateniense do século V ele não poderia dizer o que era Atenas de fato pois esse nó verdadeiro se realiza na cidade, no século, e através de todas as categorias de pessoas – homens, mulheres, camponeses, 8

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

filósofos, escravos etc – e tudo isso transcende o individuo. O sentido só é acessível na interrelação para Castoriadis, interação em vez de ação pensa ele. Para Weber ação por si só pressupõe interação. Porque, se admitirmos, segundo a lógica de Castoriadis, que o fator que fornece conteúdo para a transformação (ou permanência) das estruturas sociais não são nem o “real” nem o “racional”, mas sim esse elemento simbólico que é a criação imaginária das significações sociais, então devemos nos atentar para o fato de que somente a intencionalidade do agir humano não é suficiente pra compreender os processos de transformação da história, até porque, como ressalta o historiador alemão Jorn Rüsen, os acontecimentos históricos

(...) não se deixam compreender satisfatoriamente como resultado de intenções. É uma experiência trivial, mas nem por isso menos importante e constitutiva do pensamento histórico, a de que a maior parte das mudanças temporais que os homens provocam, em si próprias e em seu mundo, não correspondem às intenções que pudessem ter orientado as ações. Em geral, tudo acaba por ser bem diferente do que se tinha planejado a princípio. (Rüsen, 2007, p. 41).

A questão é saber de que forma a crítica de Castoriadis à metodologia weberiana abre a possibilidade de fundamentação de um novo modo de fazer histórico que possa, para além de uma análise “racional”, reviver os elementos significativos de sociedades outras através da narrativa. Essa tentativa deve presumir a capacidade de estabelecer familiaridade com o objeto/sujeito do passado, e ainda, a capacidade de se descentralizar do próprio imaginário social de época para que seja possível centrar-se em imaginários outros e se relacionar com esse de formar a torna-lo compreensível para nós. Tornar compreensível é o que interessa para Weber e sua sociologia histórica. A compreensão é o objetivo porque por meio dela se alcança a reflexividade. A crítica central de Castoriadis procura denotar o erro (e o perigo) da crença em leis históricas que se efetivam enquanto uma forma nova de heteronomia, que buscam transpor, para além da ação humana, os motivos e causas das instituições e das significações sociais. Disso Weber bem sabia. A remissão da fonte de instituição social para outras formas que não a ação humana autônoma (a existência de uma tal natureza humana, a existência de leis racionais de realização, seja do Estado ou da Revolução, etc.) apagam a possibilidade de 9

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

pensar formas de ação que fujam e “extrapolem” o “permitido e autorizado” pela História. A capacidade de brotar o novo, da criação imanente, daquilo que justamente é característica do homem: o abismo desse com a “animalidade” ou “naturalidade”. A “volta” a Weber, nesse sentido, significa a capacidade de restaurar a visão de que, se existe algo que “produz” a história e a sua sucessão, esse algo é o individuo e sua capacidade de ação para além de qualquer determinismo. A compreensão, através da história, das significações individuais e coletivas denota o que Castoriadis tanto busca: que a história é sempre criação, e é sempre posição do novo. O tempo enquanto emergência do outro, do singular, de novidades nãotriviais, que só são o que são, devido ao caráter de criação que organiza a ação. O problema, em nossa perspectiva, parece ser o fato de onde se localiza o ponto de origem dessa criação. A centralidade que Castoriadis confere às instituições nesse processo é fundamental, mas pode significar também uma perda significativa para uma metodologia centrada no sujeito, em nome de uma razão centrada mais em instituições figuradas e substanciais do que na ação individual. Ou, seguindo a crítica de Habermas

"Castoriadis não consegue resolver o problema, e isto porque o seu conceito de sociedade, em termos de ontologia fundamental, não deixa lugar para uma práxis intersubjetiva que possa ser atribuída a indivíduos socializados. No fim a práxis social é absorvida na maré anônima de uma instituição, produzida pelo imaginário, de mundos sempre novos". (Habermas, 1990, p. 303).

O problema seria como conjugar os elementos constitutivos dessa "maré anónima da instituição" da qual fala Habermas, sem desconsiderar o indivíduo na ação. Qual a articulação possível entre a sociedade, enquanto instituição de um mundo, com a práxis intermundana. Acreditamos que compreender a posição castoridiana em relação a obra de Weber, que tanto insistiu no potencial histórico da ação individual, pode nos auxiliar em uma compreensão fundamentada dos problemas próprios à filosofia de Castoriadis no que concerne as relações entre sociedade, ação humana e imaginário.

Referências

10

Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O giro-linguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Ouro Preto: EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2007. CASTORIADIS, Cornelius. O Mundo Fragmentado. As Encruzilhadas do Labirinto 3. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana Maria Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. IGGERS, Georg. La ciencia histórica en el siglo XX. Las tendencias actuales. Barcelona: Idea, 1998. RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado – Teoria da História II: Os Princípios da Pesquisa Histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007

11

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.