Considerações sobre a História da polícia

September 21, 2017 | Autor: Claudia Mauch | Categoria: HISTORY OF CRIME AND LAW, Police History, Estado moderno
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Considerações sobre a história da polícia Cláudia Mauch*

Resumo: O texto apresenta uma breve história da “história da polícia”, localizando-a no campo dos estudos do crime e da justiça criminal.

Abstract: The aim of this article is to introduce a concise history of “the Police history” by placing it in the Crime and Criminal History Studies.

Palavras-chave: história da polícia, crime, violência, Estado moderno.

Key words: police history, crime, violence, modern State.

Os estudos históricos sobre a polícia situam-se no campo da história do crime e da justiça criminal, cujo grande desenvolvimento desde os anos 70 pode ser creditado ao seu desprendimento de uma história puramente legal e institucional. Abordando uma grande variedade de temas em diferentes períodos históricos e sob variadas perspectivas teórico-metodológicas, as pesquisas de história do crime e da justiça criminal são numerosas na Europa e nos Estados Unidos, tendo sido nas últimas décadas estimuladas pelas contribuições teóricometodológicas e temáticas de outros campos da historiografia. Nesse sentido, leituras da história social produzida pelos “marxistas ingleses”, da obra de Michel Foucault e de Norbert Elias, dos estudos de gênero e da chamada “nova história cultural” influenciaram investigações que buscam nos arquivos judiciais e policiais respostas para seus problemas de pesquisa. (PHILIPS, 1983; ROUSSEAUX, 1997).

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Mestre em História, Professora no Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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Em comparação, na América Latina, trata-se de campo relativamente novo, embora o número de historiadores latino-americanos interessados em temas como banditismo, policiamento, ideologias de ordem social, violência, prostituição, prisões e práticas judiciais, entre outros, venha crescendo nos últimos anos. Esse renovado interesse pode ser em parte creditado aos problemas políticos e sociais contemporâneos vinculados a crime, lei e justiça, tais como a permanência da violência policial no contexto democrático e a questão do tráfico de drogas, e sua relação com a própria construção das democracias na era pós-ditaduras. (SALVATORE, 1998). Os trabalhos especificamente voltados para a história da polícia começaram a surgir ao longo da década de 60, estimulados por uma nova produção sociológica que problematizava a relação entre a instituição policial e o público nos Estados Unidos, as características peculiares do trabalho policial e questionava o monopólio da violência legítima por parte da polícia e sua função de combate ao crime. (CHEVIGNY, 1995; BRETAS, 1997). A partir do trabalho pioneiro de Michael Banton (1969), várias pesquisas evidenciaram que o trabalho cotidiano do policial inclui uma série de atividades de “manutenção da paz” que vão muito além do combate ao crime expresso nas estatísticas oficiais, nos regulamentos e no discurso de autolegitimação da própria polícia. Isso significa que, em muitos eventos, a decisão tomada por um policial sobre o que deve ser feito não está prevista na lei nem nos regulamentos. Nesse sentido, sua prática cotidiana seria balizada tanto pela lei e pelos regulamentos da instituição, quanto pelas avaliações que fazem tais profissionais dos acontecimentos e dos indivíduos neles envolvidos, em meio às quais colocam em prática seus próprios valores, já que possuem grande poder de arbítrio na aplicação (ou não) da lei. (REISS JÚNIOR, 2003) É, portanto, na intersecção entre práticas do cotidiano do policiamento, leis e regulamentos, projetos e objetivos do Estado e as mais diversas pressões vindas de setores da sociedade, que se conforma a “cultura policial”, um saber não-ensinado nas escolas de polícia e que considera, inclusive, certas ações fora da lei como necessárias para a execução do trabalho policial: [...] em qualquer momento a forma de inserção do policial na sociedade em que age determina seu comportamento em grau muito maior do que o desejado por códigos e normas institucionais. A cidade, ou o bairro é o local de aprender o que não é ensinado na escola. (BRETAS, 1997, p. 25). 108

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Nessa perspectiva de análise, a instituição policial adquire uma certa autonomia na sua relação com a sociedade, deixando de ser simples executora de políticas do Estado ou das elites ou classes dominantes, já que esses não detêm total controle sobre suas atividades. Conforme Chevigny (1995), a polícia não somente mantém a ordem: ela reproduz a ordem e, ao fazê-lo, também a representa e a interpreta, podendo ter o poder de influenciá-la. Esses estudos foram fundamentais para que a polícia deixasse de ser vista apenas como parte da administração pública ou “braço armado” do Estado com funções previsíveis de repressão e imposição da lei. Em suma, a “desnaturalização” da instituição policial e das formas como se relaciona com a sociedade, bem como o reconhecimento e a busca da sua historicidade, foram essenciais para sua constituição como objeto de estudo por parte dos historiadores desde o fim dos anos 60. Outras influências importantes vieram das obras de Edward P. Thompson e Michel Foucault. No caso de Thompson, além dos seus estudos sobre motins e de sua crítica mais global aos reducionismos do estruturalismo marxista, importantes foram suas reflexões a respeito da lei como espaço da luta de classes e a recolocação da cultura no centro das preocupações dos historiadores de tradição marxista. Seus trabalhos influenciaram uma série de pesquisas referentes a crime e ilegalidades populares, polícia e legislação criminal na sociedade inglesa dos séculos XVIII e XIX, bem como às transformações no relacionamento do Estado com os “desviantes” durante o século XIX. (THOMPSON, 1987). Já a obra de Foucault foi fundamental para a definição dos próprios temas de pesquisa do campo da história do crime e da justiça criminal, na medida em que chamou a atenção não somente para as transformações nas instituições disciplinares e de punição a partir dos séculos XVII e XVIII, na Europa, como para a articulação entre as práticas desenvolvidas naquelas instituições e a constituição de novos saberes, novas concepções sobre o crime e o criminoso ou delinqüente, e dessas com o processo de expansão dos instrumentos administrativos e de vigilância vinculados aos modernos Estados-nação. (FOUCAULT, 1986). Apesar de ser de difícil definição devido à diversidade de formas institucionais e funções que adquire, pode-se dizer que a polícia moderna é uma instituição estatal criada para garantir a ordem e o cumprimento da lei, e seu surgimento na Europa está associado ao gradual declínio do poder privado e à concentração de poderes de vigilância e punição em órgãos dos Estados de tipo moderno. MÉTIS: história & cultura – MAUCH, Cláudia – p. 107-119

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A partir do século XVII verificou-se, em alguns Estados europeus, um processo gradual de desarmamento da população civil, tanto de poderosos rivais dos soberanos, quanto da população em geral, que se deu concomitantemente à expansão das forças armadas a serviço dos governantes. Paulatinamente, ocorreu uma divisão entre as forças armadas organizadas para ataque aos inimigos externos do Estado (os exércitos) e aquelas orientadas para o controle da população civil (as polícias), embora tal divisão nunca tenha se completado, principalmente no que se refere ao controle de áreas rurais. Nas áreas urbanas, onde, diferentemente das áreas rurais, a maior parte do espaço continuava sendo público, o patrulhamento e a vigilância mais sistemáticos passaram a ser exercidos por polícias distintas das forças militares que agiam por chamado nas zonas rurais. Segundo Charles Tilly (1996, p. 126-133), foi nos Estados mais urbanizados da Europa que a separação entre exército e polícia ocorreu mais cedo, mas somente no século XIX é que foram instituídas as forças policiais uniformizadas, assalariadas e burocráticas especializadas no controle da população civil. A moderna polícia personifica uma redefinição do crime e da ordem pública, bem como se articula com as transformações dos sistemas de justiça criminal e punição, e está vinculada à crescente intolerância em relação a tumultos de multidão e desordens urbanas muito mais do que à preocupação com o crime ou com a violência. (PALMER, 1990; LANE, 2003). Segundo Eric Monkkonen (1981, p. 40-42), nos Estados Unidos, no século XIX, a passagem da polícia do sistema de justiça para o de governo da cidade significou também a passagem da noção de caça aos criminosos para a prevenção dos crimes, num deslocamento do ato para o ator. Como na Europa, a ênfase na prevenção teria representado nova atitude diante do controle social, com o desenvolvimento pela polícia de uma habilidade específica, a de explicar e prevenir o comportamento criminoso, o que acabou redundando no foco nas “classes perigosas”, ou seja, em setores específicos da sociedade vistos como produtores de comportamento criminoso. Nesse processo se desenvolveram os vários campos de saber vinculados aos sistemas de justiça criminal, polícia e prisão, voltados para a identificação, explicação e prevenção do comportamento criminoso, agora visto como “desviante”, como a medicina legal, psiquiatria e especialmente a criminologia. Na Europa ocidental, as novas instituições estatais de vigilância deveriam controlar o exercício da força (monopólio da violência legítima)2

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em sociedades em que os níveis de violência física nas relações interpessoais e do Estado com a sociedade estavam em declínio. Segundo a difundida teoria do processo civilizador (ou processo de civilização) de Norbert Elias, no Ocidente moderno, a agressividade, assim como outras emoções e prazeres, foi domada, “refinada” e “civilizada”. No Processo civilizador, de 1939, Elias (1990) estabelece um contraste entre a violência “franca e desinibida” do período medieval, que não excluía ninguém da vida social e que era socialmente permitida e até certo ponto necessária, com o autocontrole e a moderação das emoções que acabou por se impor na modernidade. A conversão do controle que se exerceria através de terceiros ao autocontrole é relacionada à organização e estabilização de Estados modernos, nos quais a monopolização da força física em órgãos centrais permitiu a criação de espaços pacificados. Em tais espaços, os indivíduos passaram a ser submetidos a regras e leis mais rigorosas, mas ficaram mais protegidos da irrupção da violência na sua vida, na medida em que as ameaças físicas tornaram-se despersonalizadas e “monopolizadas” por especialistas. Constitui-se uma “forma peculiar de segurança”, caracterizada pela pressão contínua e uniforme, quase despercebida, que não controla o indivíduo de forma direta, mas que não deixa de ter sobre ele influência decisiva: “A agência controladora que se forma como parte da estrutura da personalidade do indivíduo corresponde à agência controladora que se forma na sociedade em geral.” (ELIAS, 1993, p. 201). Apesar das controvérsias existentes acerca da teoria do processo de civilização, nos últimos dez ou quinze anos, entre os historiadores que investigam crime e violência, ela tem sido largamente reconhecida e utilizada por acomodar as evidências acumuladas por estudos empíricos que apontam para o declínio da violência interpessoal na Europa entre o período medieval (século XIII) e os anos 70. Nessa longa duração, o número de homicídios teria desenhado uma curva descendente, assim como, conforme Spierenburg (2001), teria declinado também o contato direto com a violência nas experiências das populações européias. Os casos em que as evidências apontam em direção contrária são vistos como exceções e descontinuidades que não chegam a invalidar a teoria proposta por Elias em 1939 e desenvolvida no restante de sua obra e na de seus colaboradores, que não se reduz a uma evolução linear e universal de uma sociedade violenta para uma menos violenta e estaria aberta a novas elaborações.

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When the guns of European states were pointed away from their own populations, they pointed in the direction of the New World as well as Asia and Africa. Some of the violence that was withdrawn in the interests of civility in Europe was exported as slavery and colonialism. While brutal and public punishment was fading in Europe, it was still being used against slaves and, by extension, against other dispossessed people. (CHEVIGNY, 1995, p. 20).

Diferentemente da Europa, nas Américas, as instituições governamentais tiveram, em comparação, menos controle dos instrumentos de força, de modo que diferentes formas de violência privada persistiram. No caso do Brasil, basta lembrar o poder de punição que detinham os senhores em relação aos seus escravos e as formas violentas que assumiam determinadas punições aplicadas pelo próprio Estado no mesmo período, o que remete ao que Michel Foucault (1986) denomina “fundo supliciante” remanescente após a criação da prisão. A aceitação por parte de setores das elites de atitudes mais “civilizadas” inspiradas nos europeus não significou necessariamente a concomitante pacificação das relações sociais, uma vez que uma de suas bases, o princípio da igualdade perante a lei, era “para inglês ver”, como lembra Holloway para o Rio de Janeiro no século XIX. Nesse contexto, a montagem de instituições policiais teria ocorrido sem o mesmo nível de legitimidade e consenso que a polícia inglesa, por exemplo, acabou por conquistar, abrindo caminho para o uso disseminado da força em relação aos mais pobres. (HOLLOWAY, 1997). Ao historicizar a brutalidade policial no Brasil, Holloway mostra de que maneira, ao longo do século XIX, a violência física foi incorporada às estruturas regulamentares de repressão como parte das técnicas usadas para manter o comportamento da população dentro de limites considerados aceitáveis pelas elites e para infundir terror. A análise feita por Bretas (1997) do cotidiano das delegacias no Rio de Janeiro mostra que o uso da violência física contra os que não podiam recorrer a padrinhos continuou a fazer parte do trabalho policial na República Velha. Diversos estudos têm mostrado que o uso da violência na resolução de conflitos é algo disseminado na sociedade brasileira e não só característico do trabalho policial. (FRANCO, 1997; ZALUAR, 2004). Em termos genéricos, pode-se dizer que os estudos de história da polícia dividem-se entre aqueles que analisam as práticas da instituição

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tomada como um todo (partindo de perguntas como: O que é a polícia? e O que ela faz?), e aqueles que entendem que é necessário investigá-la a partir das práticas dos seus agentes (deslocando as perguntas para questões do tipo: Quem são os policiais? e Como eles atuam no dia-a-dia?).3 Muitos trabalhos exclusivamente preocupados com a função de controle social da polícia e/ou com a resistência interposta pela população às suas intervenções acabam por também encará-la como instituição homogênea e manipulada pelos interesses dos governantes e da classe dominante. Nesse sentido, explicações da polícia a partir de sua função de controle social correntemente pressupõem uma instituição homogênea e uma identificação automática dos seus membros com os objetivos de imposição da lei e ordem determinados pelo Estado e pelas elites, bem como tendem a não focalizar as tensões e os fracassos na imposição desse controle e a sua constante recriação. Por outro lado, nem todas as funções desempenhadas pela polícia são repressivas, já que, dentre as tarefas cotidianas de policiais, muitas seriam melhor definidas como serviço social do que imposição da lei. Nesse sentido, é preciso levar em conta críticas que chamam a atenção para o fato de que o conceito de controle social tem sido usado para definir instituições e projetos de reforma social tão diferentes quanto hospitais psiquiátricos, organizações de caridade e polícia, por exemplo, sem que sejam respondidas questões sobre quem exerce tal controle, quando, por quais razões, por que meios e com qual efetividade; e sem o estabelecimento das diferenças entre formas de controle coercivas e não coercivas.4 Assim, embora a polícia desempenhe função de controle social, nem todas as suas práticas devem ser rotuladas a priori como tal, a fim de que possam ser estudadas em suas várias dimensões. De forma semelhante, a utilização corrente da noção de resistência supõe que atitudes de revolta da população com relação a ações policiais possuam um sentido (oposição a um projeto articulado de disciplinarização promovido pelas classes dominantes ou à polícia como braço repressor do Estado), quando é difícil qualificar o que é ou não é uma ação de resistência no relacionamento diário de policiais com a população. Mesmo quando a documentação indica resistência clara e aberta à polícia, nem sempre se trata propriamente de oposição “à polícia” vista como instituição, e sim, a algumas das funções dos policiais, principalmente as mais claramente repressivas e violentas. O uso acrítico da noção de resistência pode obscurecer outras dimensões presentes nos

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conflitos entre policiais e população. Mas, por outro lado, abandoná-la também poderia significar diminuir a importância das atitudes de insubmissão à autoridade policial. James Scott (1985) usa o termo resistência para qualificar uma multiplicidade de ações e representações que constituem “as pequenas armas na luta de classes” e não somente o desafio consciente e articulado à dominação. Admitindo-se que os modos de resistência têm espectro tão grande quanto as técnicas de controle e dominação, a resistência não deve ser tomada como rótulo que antecipa explicações sobre conflitos, mas como problema a ser investigado, o que significa para o historiador da polícia prestar atenção às formas de insubmissão desorganizada, mas constante, presentes, por exemplo, na desobediência, nos xingamentos e deboches dirigidos pela população aos policiais (as “armas dos fracos”, para utilizar expressão de Scott), como também na inércia de policiais em cumprir funções predeterminadas. Uma das contribuições da “nova história cultural” à história social foi ter chamado a atenção para a diversidade de experiências das pessoas comuns. Natalie Davis (1990) demonstrou que as experiências dentro de um grupo profissional podem conformar identidades que se relacionam de forma complexa com outras dimensões da vida social. Essas identidades não são únicas nem fixas e se constroem historicamente através de discursos e práticas nas relações, por exemplo, de um grupo profissional com outros grupos ou hierarquias sociais. (CERUTTI, 1998). O fato de os policiais serem predominantemente recrutados nas classes populares não significa que não possam atuar na repressão a comportamentos típicos dessas classes. Ao fazê-lo, cumprindo funções determinadas de cima, o fazem à sua maneira, incorporando na sua prática cotidiana valores da sua classe e os reinterpretando. A partir de estudos sociológicos realizados desde os anos 60, a produção acadêmica sobre polícia tem desenvolvido a idéia de que a cultura profissional é variável importante nas análises do trabalho policial. Colocadas inicialmente por Jerome Skolnik, e posteriormente desenvolvidas por outros autores, as características centrais da cultura policial seriam a idéia do trabalho como missão, a valorização da ação, o cinismo, o pessimismo, a desconfiança em relação aos não-policiais, solidariedade interna, isolamento social, conservadorismo, machismo, racismo e pragmatismo.5

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Diferentemente de outros grupos profissionais como engenheiros, técnicos ou operários, cujo trabalho pode ser compreendido sem referência necessária ao sistema de valores pessoal ou do grupo, o trabalho policial não é do mesmo modo objetivado. Isto é, embora procurem se apresentar como combatentes do crime, as tarefas do policial são muito variadas e pouco definidas, e ele tem um grau de autonomia para executálas. Segundo Dominique Monjardet, mais do que um profissional (detentor de um saber específico e/ou monopolizado), o policial partilha com seus colegas uma “condição”. O risco no trabalho, que seria para outros autores um dos traços mais característicos da profissão, para Monjardet não se refere tanto ao perigo embutido em sua atividade cotidiana (uma vez que nem todos os policiais exercem funções arriscadas), mas ao fato de que, mesmo fora de serviço, um policial pode ser alvo de agressões deliberadas não pelo que está fazendo, mas simplesmente por ser representante da força pública. Como tal, o policial é também sujeito a uma suspeição constante. Para o autor, esses traços da “condição policial” produziriam uma forte solidariedade entre eles, que é o que definiria, enfim, sua identidade profissional, fundada na sorte comum e na supervalorização da diferença que estabelecem entre quem é e quem não é policial. (MONJARDET, 1996). Via de regra, a imagem da polícia refere-se à função de combate ao crime. Historicamente, em diferentes países, policiais querem ser percebidos pelos outros – outros grupos profissionais, a sociedade e o próprio Estado, que é seu empregador – como aqueles cuja função social maior é o combate ao crime. E é sobre essa função que são produzidas as estatísticas e as justificativas da própria existência da polícia, quando, na prática, já foi demonstrado que seu trabalho inclui uma diversidade de atividades de manutenção da ordem e prestação de serviços, além do enfrentamento de contingências não-previstas em regulamentos e leis. Relatórios oficiais de governantes e chefes de Polícia comentam e calculam praticamente só a atividade policial contra as ações definidas como crime na legislação penal, enquanto os registros de ocorrências documentam uma miríade de tarefas muitas vezes difíceis de serem colocadas nas estatísticas. As práticas descritas em documentos produzidos pelos próprios policiais podem indicar se eles recorrem ou não às imagens construídas no discurso dos governantes para legitimar ou justificar suas condutas ou, colocando de outra forma, em que medida suas ações são pautadas pelas regras explícitas da instituição. Mesmo filtradas, as falas de policiais existentes nos registros podem ser vistas como esforços de MÉTIS: história & cultura – MAUCH, Cláudia – p. 107-119

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justificar e atribuir sentido a condutas previstas, se muito, apenas de forma genérica no texto legal ou nos regulamentos das instituições. No Brasil no século XIX até meados do século XX os policiais eram normalmente recrutados dentre as classes populares e lançados nas ruas com a função de impor a ordem, sem treinamento formal, para uma atividade socialmente malvista e de baixa remuneração. No contato cotidiano com a população, acabaram por desenvolver estratégias nãoprevistas nas políticas oficiais e nos regulamentos para a imposição de sua “autoridade”, o que nem sempre significava imposição da ordem tal como pensada pelas elites.

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Notas 1

A expressão é oriunda da definição de Estado, de Max Weber, mas segundo Tilly e Giddens deve ser utilizada com alguma precaução. Para o primeiro, a definição de Estado como “comunidade que reivindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da força física/violência dentro de um território” faz sentido para os Estados europeus que conseguiram assegurar historicamente o controle sobre os meios de coerção. (TILLY, 1996, p. 126). Giddens (2001, p. 43-44) destaca que a definição de Weber se aplica ao Estado-nação moderno, pois somente nesses Estados o alcance administrativo do aparato de Estado corresponde a um território definido.

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No primeiro grupo estariam as três linhas de interpretação criticadas por Marcos L. Bretas: a institucional (a polícia é o que as leis e os governantes determinam que seja), a quantitativa (o que ela faz está expresso nas estatísticas criminais) e a do controle social. (BRETAS, 1997, p. 14-17).

3

Críticas levantadas por Mayer (1985, p. 17-38). O autor propõe que analiticamente o conceito de controle social seja quebrado em duas categorias: os controles coercivos, que utilizam força legal ou extralegal, e os controles sociais que implicam formas de auto-regulação sem o uso da força como meio, formando juntos um sistema de controle. As distinções entre situações de controle poderiam ser feitas com base nas possibilidades de escolha disponíveis para os alvos das investidas desse controle. Vejase também Ignatieff (1987, p. 185-193).

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“A redescoberta perpétua dessas características se deve evidentemente a suas associações com certas condições estruturais básicas do ambiente policial em qualquer lugar: a representação e o exercício da autoridade e o perigo relativamente imprevisível dos enfrentamentos – apesar de tanto o significado social da autoridade como a seriedade do perigo variarem histórica e geograficamente.” (REINER, 2003, p. 495).

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