Considerações sobre dois textos dramáticos de Álvares de Azevedo.

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Considerações sobre dois textos dramáticos de Álvares de Azevedo.
LUIZ RENATO DE OLIVEIRA PERICO



Resumo: Esse trabalho analisa dois textos "dramáticos" de Álvares de
Azevedo, quais sejam Macário e Boêmios, destacando a intertextualidade
entre os dois, especialmente quanto á forma "dramática" dos dois e suas
relações com a binomia da obra de Azevedo.









Álvares de Azevedo, no prefácio à segunda parte de sua Lira dos Vinte Anos,
escreve que a unidade de seu livro, "verdadeira medalha de duas faces", "
funda-se numa binômia", dando voz às " duas almas que moram nas cavernas de
um cérebro pouco mais ou menos de poeta" (AZEVEDO, 1999;119). De fato, a
obra – póstuma, é bom lembrar, já que nunca saberemos se o livro veio a
público como o autor o pensou, o que complica um pouco as coisas,
principalmente em termos de edição – é dividida em duas partes: a primeira,
contendo 42 poemas, apresenta o que ele mesmo chama de " primeiros cantos
de um pobre poeta"( IDEM,IBIDEM; 13), de inspiração sentimentalista,
apresentando uma concepção platônica do amor, o canto da amada idealizada
em um mundo onírico. Temos até mesmo um poema como "A Cantiga do
Sertanejo", que dentro da temática desta primeira seção, reaproveita o tema
do nacionalismo, caro ao primeiro romantismo de Gonçalves de Magalhães, por
exemplo.

Se de fato a segunda parte apresenta os cantos que sucedem cronologicamente
os da primeira é algo que não sabemos; entretanto, seu prefácio a apresenta
como o lugar onde "dissipa-se o mundo visionário e
platônico"(AZEVEDO,1999;119) da primeira. Em vez daquela primeira alma,
idealista, que cantava o elevado, o idealizado, aqui ouvimos a outra, que
"vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis
do acordado"(IDEM,IBIDEM;119); é como de o mesmo poeta da primeira parte
descobrisse que " antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que
tem corpo"(IDEM,IBIDEM;119-120). Por isso mesmo, escreve o que vê, ouve,
sente: a beleza física, sensual e sensível, os fatos e personagens
cotidianos, prosaicos, temas "rebaixados", chegando ao "cúmulo" de cantar a
lógica mercantilista do mundo ( Dinheiro), "heroicizar" a figura de um
mendigo (III- O Vagabundo, em Spleen e Charutos) e a comparar-se a uma
lagartixa (IV – A Lagartixa, no mesmo Spleen e Charutos).

Essa binômia parece não se restringir apenas a este livro do autor,
transbordando para toda a obra, em prosa e verso, do nosso poeta. Para
melhor dizer, Lira dos Vinte Anos parece ser uma parte da obra "binômica"
do escritor. Antonio Candido observou como, em obras em prosa do autor, " a
organização formal mistura ( para usar conceitos dele[de Álvares de
Azevedo]) o 'horrível' ao 'sublime' e ao 'belo, doce e meigo'"(CANDIDO,
1989; 10).

É o que vemos em Macário, peça – não feita para o teatro, segundo o próprio
autor, e de fato prestando-se mais à leitura - dividida em duas partes "
relativamente autônomas, chamadas, talvez por isso, episódios, e não atos"(
PRADO, 1996; 129). Se no primeiro episódio – onde, segundo o mesmo texto de
Antonio Candido, "encontramos alguns dos momentos mais fortes do nosso
Romantismo (CANDIDO,1989;22) – vemos, antes de um debate, uma conversa
entre um jovem estudante adepto da visão "rebaixada" do mundo e seu
representante maior, o próprio Satan, no segundo episódio, aparece
Penseroso, jovem romântico, idealista, nacionalista e otimista, que, nos
diálogos travados entre os dois personagens, irá contrapor-se a este.

Paralelo a Macário encontramos, dentro da própria obra do poeta, na própria
Lira dos Vinte Anos. Boêmios, que têm por subtítulo Ato de Uma Comédia Não
Escrita, é poema em forma dramática, que tem por cenário a Itália do séc.
XVI e se apoia no diálogo entre dois personagens que, por falta de
indicação e por força da coerência para com o todo da obra do autor,
parecem ser dois jovens: Puff, hedonista convicto, e Níni, romântico, com
aspirações de poeta. Na verdade, antes de representar o diálogo entre os
dois personagens, o poema é uma "peça" que simula a representação de uma
peça que tem os dois como personagens, peça esta que é interrompida por "Um
Homem na Platéia" – só então percebemos que, além de um poema, o de Níni,
dentro do poema, temos uma peça dentro da "peça". No final, ainda temos um
Prólogo-personagem que faz as vezes de epílogo que faz algumas explicações
que parecem ser do próprio jovem poeta – não Níni, mas Álvares de Azevedo.

Se em Macário, não fossem as "Páginas de Penseroso" – longa reprodução do
que parecem ser trechos do diário do personagem – e a própria indicação do
prólogo – "Não a fiz para o teatro" (AZEVEDO, s.d.;3) – talvez tivéssemos
dúvidas quanto às intenções do escritor de representar a peça ou não, a
própria inserção do "ato" em um livro de poemas, além de todas as
peculiaridades que já vimos, deixa claro que temos não um peça em verso,
mas um poema dramático. O poeta, tanto em quanto em outro texto, brinca,
subverte com a questão dos gêneros literários, manipulando o gênero
dramático para compor, no caso de Boêmios, um poema dramático, parte de um
livro de poemas, e no caso de Macário, algo não devemos definir sem atentar
para as palavras do próprio autor: " Quanto ao nome, chamem-no drama,
comédia, dialogismo – não importa."(IDEM,IBIDEM;p.3)

A binomia e a questão do (não) gênero literário aproximam, de fato, os dois
textos, mas estes são elementos depreendidos, abstratos; há dois elementos
concretos, dois substantivos, que aparecem ipsis litteris tanto em um
quanto em outro texto: um cenário – Itália- e um nome, Puff, que por
motivos que explicarei mais adiante, não compreendo como um personagem.

Tanto a segunda parte de Macário quanto a peça de Puff e Níni em Boêmios
desenrolam-se na Itália, sendo que a Itália do poema de Lira dos Vinte Anos
é a do séc. XVII e a dos diálogos de Macário e Penseroso, por falta de mais
indicações, parece ser a do séc. XIX, contemporânea do autor. Mas isso
parece ter pouca importância: uma vez que faltam referências factuais ao
país europeu tanto em um como em outro caso, parece que Itália é só o nome
de um cenário. Almeida Prado, analisando Macário, nota bem que o país-
cenário é " não a Itália histórica, mas o país sonhado pelas fantasias
românticas"(PRADO,1996;136). Depois, e aproveitando para abrir um
parêntesis, é interessante ver como, em Macário, temos um país nomeado como
cenário na segunda parte, mas é na primeira parte, onde não há referência
nominal a lugar algum, que temos referências diretas a uma cidade que "tem
o [nome] de um santo"(AZEVEDO,s.d.;10).

A cidade é São Paulo. Mais especificamente, a São Paulo na qual Álvares de
Azevedo estudava, na Academia de Direito do largo São Francisco. Macário
não conhece esta cidade. Quem a conhece é Satan, que a vai descrevendo de
modo nada elogioso para o jovem enquanto o leva para lá. Entretanto, eles
não entrem nela, pousam na casa de Satan, que fica na entrada da cidade, e
não dentro da cidade, assim como o cemitério que fica em frente à casa e no
qual se desenrolarão as últimas andanças dos dois personagens na primeira
parte. Depois de tanto se falar da cidade, Macário acaba por não entrar,
por não conhecer São Paulo.

Por quê? Talvez porque Álvares de Azevedo achasse que a São Paulo do séc.
XIX não fosse digna de ser cenário de uma peça sua, ou de qualquer peça ou
texto, não fosse um espaço ficcional adequado. A cidade, de acordo com as
palavras com as quais o "tinhoso" a descreve, é " devassa como uma cidade,
insípida como uma vila e pobre como um aldeia", nela as calçadas " são
intransitáveis", "as moças poucas vezes têm bons dentes", "as mulheres são
lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes
vadios"(IDEM,IBIDEM;10). Comparações com correspondências do poeta com a
família à época de estudante de Direito mostram que era mais ou menos isso
que o escritor pensava da cidade. Mas essas comparações fazem-se
desnecessárias. Mesmo sem as cartas já seria de se imaginar que pensasse
isso, do contrário, por quê descreve-la de tal modo e pela boca de tal
personagem? Parece-me que, se por um lado, há o que Antonio Candido afirma
que "se poderia chamar de ' a invenção literária da cidade de São Paulo',
que Álvares de Azevedo instaurou como espaço ficcional" (CANDIDO,1989;12),
por outro lado, é negado a esse espaço ficcional o papel de cenário, não é
permitido que os personagens vão além da sua entrada. Fim do parêntesis.
Falemos de Puff.

Puff é o hedonista convicto personagem de Boêmios, isto já foi dito mais
acima. Abre sua participação no poema dramático dormindo no chão abraçado a
uma garrafa e a encerra dormindo, ignorando a declamação do longo poema de
Níni – que não é dos piores e bem poderia ter sido um texto da primeira
parte do próprio livro de Álvares de Azevedo, que, de fato, foi quem o
escreveu - após entupir-se de vinho e de empada.

Bem menos claro é o que faz Puff em Macário. Ele não aparece na peça
propriamente dita, sequer é um personagem, mas é o título de seu prólogo,
que é um texto importante para entender o pensamento, as diretrizes
teóricas de Álvares de Azevedo quanto à literatura ,ao teatro,
especificamente, mas que fala pouco quanto à própria peça, como escreve o
próprio autor no próprio prólogo, " o meu tipo, a minha teoria, a minha
utopia dramática, não é esse drama que aí vai"(AZEVEDO,s.d.;3). Depois,
para nós, aqui e agora, interessa mais aparição do nome do que o prólogo.

Por quê intitular um prólogo de Puff? Não faço ideia. Alguns dizem que Puff-
personagem é o "autor" do Puff-prólogo. Creio que não, e me explico: Puff,
em Boêmios, é um personagem que vive na Itália do séc.XVI. A primeira parte
de Macário, entretanto, passa-se no Brasil do séc.XIX. Três séculos de
distância tornam essa tese improvável. Ainda mais que no prólogo vemos
citados Goethe, Victor Hugo, Dumas, Byron, nascidos bem depois de 1600. A
menos que o gosto pelo macabro do poeta tenha chegado ao ponto de
psicografar seu personagem…

Além do mais, não sabemos a ordem cronológica da realização, da escrita dos
textos. Sim, porque se Macário é anterior à Boêmios, ou mesmo se o prólogo
tiver sido escrito antes de acabada a peça e escrito o poema, então não é o
personagem que escreve o prólogo, nem mesmo que lhe dá nome, mas, ao
contrário, é o prólogo que inspira o nome do personagem.

Não se pode saber ao certo o que o nome Puff faz no título do prólogo de
Macário, mas, tendo ou não ligação direta com o personagem de Boêmios, o
fato é que há a intertextualidade entre os dois "dramas", que apresentam
diálogos entre dois personagens, um idealista e um hedonista: Macário e
Penseroso em um caso, Puff e Níni no outro. E a intertextualidade se dá não
pelo nome do personagem idealista – Penseroso – mas do hedonista Puff. O
que me leva a fazer uma comparação entre Macário e Puff, os dois
personagens desidealizados, e de suas respectivas narrativas e deixar
Penseroso e Níni, que são mais contrapontos coadjuvantes daqueles do que
qualquer outra coisa - Pensoroso com certeza; Nìni, ao que me parece.

Protagonista, Macário e Puff "contaminam" seus respectivos textos com seus
"estados de espírito": de fato, enquanto a narrativa do taciturno – ainda
que falante – Macário se desenrola através de diálogos filosófico-
literários e acontecimentos aterradores, num tom sério, macabro e pesado,
em Boêmios parece que cada linha é com o cinismo e a ironia de Puff – mesmo
o poema longo e solene de Níni fica completamente ridicularizado quando
vemos o sono irreverente de Puff. Isso fica bem claro quando comparamos a
forma como o tema do anticlericalismo se manifesta nos dois textos.

Os padres, cônegos e clérigos em geral são apresentados em Macário como os
seres mais hipócritas, devassos, mulherengos e falsos da face da Terra e
são tratados de forma amarga, ríspida, severa, mesmo com desprezo, como
vemos nos dois trechos citados abaixo, com grifos meus:

Macário — Crer? e no que? No Deus desses sacerdotes devassos? Desses homens
que saem do lupanar quentes dos seios da concubina, com sua sotaina preta
ainda alvejante do cotão do leito dela para ir ajoelhar-se nos degraus do
templo! Crer no Deus em que eles mesmos não creem, que esses ébrios
profanam até do alto da tribuna sagrada?

(Azevedo, s.d.; 24)

Satan — (…)Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que
saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou
enjoado. Admiras-te? por que abres essa boca espantada? Antigamente o diabo
corria atrás dos homens, hoje são eles que rezam pelo diabo. Acredita que
faço-te um favor muito grande em preferir-te à moça de um frade que me
trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres que dariam a alma,
que já não tem, por uma candidatura.

(Azevedo, s.d., 10)

De forma bem diversa, embora pelos mesmos motivos, é o tratamento de Puff
para com os membros da Igreja: para o hedonista convicto, ele é o exemplo
máximo, ele os inveja por comeram tanto e da forma que comem e por viverem
enroscados a mulheres. O mais pode querer um Puff senão comer, beber e amar
como um padre? Chega mesmo a invejar a morte de um cônego, em episódio que
cito, com grifos, por ser exemplar e esclarecedor quanto ao tema:

PUFF

(…)

(Entra um criado correndo.)

Roa-me o diabo as tripas, se não vejo

Ali correr com pernas de cabrita

O criado do cônego Tansoni.



NINI

Onde vais, Gambioletto?



GAMBIOLETTO

Vou à pressa

Ao doutor Fossuário.

PUFF

Acaso agora

O carrasco fugiu?

NINI

Quem agoniza?

GAMBIOLETTO

O Reverendo e Santo Sr. Cônego!

Deitando-se a dormir, depois da ceia,

No colo de Madona la Zaffeta,

Umas dores sentiu pela barriga,

Caiu estrebuchando sobre a sala…

Morre de apoplexia.

NINI

O diabo o leve!

GAMBIOLETTO

E o médico, Srs.!

PUFF

Venturoso!

Sempre é Cônego… Nini, dulce et decus

Pro patria mori… É doce e glorioso

Morrer de apoplexia! Quem me dera

Morrer depois da ceia, de repente!

Não vem o confessor contar novelas,

Não soam cantos fúnebres em torno,

Nem se força o medroso moribundo

A rezar, quando só dormir quisera!

Venturosos os Cônegos e os Bispos…

E os papudos Abades dos conventos!



Eles podem morrer de apoplexia!

E se morrem pensando — cousa nova! —

Quem nunca no viver cansou-se nisso,

Se eles morrem pensando, ante seus olhos,

No momento final sem ter pavores,

Inda corre a visão da bela mesa!

A não morrer-se como o velho Píndaro

Cantando, sobre o seio amorenado

De sua amante Grega, oh! quem me dera

Cair morto no chão, beijando ainda

A botelha divina!

(Azevedo,1999;152-154)



Também muito diferentes são as formas com que os episódios macabros são
desenvolvidos nas duas narrativas, cada texto de acordo com o estado de
ânimo do protagonista. Em Macário vemos coisas como o diabo aparecendo como
" um vulto com um ponche vermelho e preto"(4) roçando a perna do jovem; a
sugestão de necrofilia, quando uma velha pergunta se o personagem quer ver
o cadáver nu da "vagabunda" desconhecida, "magra e lívida"(12,13) com quem
se deitara na noite anterior em um casebre, mesmos casebre e noite em que
ela morreu; um passeio de Macário e Satan pelo cemitério, onde escutam ais
de agonia, que o diabo revelam ser o último suspiro da mãe do jovem, o que
o leva a chorar "como uma criança"(15) e a renegar o demo. Tudo num clima
tenso, soturno, e pesado um conto que faz com que nosso conto de terror não
deva nada a um filme B dos dias de hoje.

Bem diversa é a maneira de Puff lidar com o macabro: ele o torna, como todo
o resto, objeto de gozação, o ridiculariza, torna o assustador engraçado.
Encerremos o nosso texto com o bizarro e divertido trecho abaixo, com
grifos meus, que exemplifica isso:

NINI

Tens medo de defuntos?

PUFF

Um bocado.

Sinto que não nasci para coveiro.

Contudo, no domingo, à meia-noite…

Pela forca passei: vi nas alturas,

Do luar sem vapor à luz formosa,

Um vilão pendurado. Era tão feio!

A língua um palmo fora, sobre o peito,

Os olhos espantados, boca lívida,

Sobre a cabeça dele estava um corvo…

O morto estava nu, pois o carrasco

Os mortos despe pra vestir os filhos

E deixa à noite o padecente à fresca.

Eu senti pelo corpo uns arrepios…

Mas depois veio o ânimo… trepei

Pela escada da forca, fui acima…

E pintei uns bigodes no enforcado.

(Azevedo,1999;154-155)















Bibliografia:



AZEVEDO, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Klick Editora, 1999.

AZEVEDO, Álvares de. Macário. Belém: NEAD: Núcleo de Educação Distância,
s.d. Disponível emwww.nead.unama.br

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite In A educação pela noite e outros
ensaios. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1989, pp. 10-22.

PRADO, Décio de Almeida. Um drama fantástico: Álvares de Azevedo In O drama
romântico brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.
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