CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO MUSICAL: Engajamento do adulto ou renúncia ao ato

June 1, 2017 | Autor: André Mourão | Categoria: Filosofia da Educação, Educação Musical, Psicanálise e Educação
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CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO MUSICAL: Engajamento do adulto ou renúncia ao ato1 Vivemos em tempos onde não é difícil encontrar as mais variadas justificativas científicas como motivo para a realização de todo o tipo de atividade. Da prática de esportes às práticas educacionais encontramos estudos comprovando, por exemplo, que se deve aprender música, pois tal atividade “estimula o lado esquerdo do cérebro”; que se deve brincar com as crianças – e a elas comprar todo tipo de brinquedos e produtos – para que se desenvolvam de forma “natural e saudável”; ou ainda que se deve fazer sexo porque “ativa a circulação e diminui os riscos de infarto”. No âmbito pedagógico, a construção desse tipo de discurso cientificista se apoiou nos saberes advindos (e sucateados) da psicologia moderna e incorreu inúmeras vezes desde o século passado na tentativa de fornecer fórmulas que supostamente solucionariam os impasses educativos. Como consequência da massificação de certos ideais difundidos nesse campo, vemos a formação de uma concepção de ensino que se presta à crença em uma educação “normal”, que busca sempre aplicar de alguma maneira uma tese da adequação natural no âmbito educacional. Os efeitos dessa lógica predominante podem ser constatados tanto em fatos bastante escandalosos como, por exemplo, a oportunidade que é dada ao mercado farmacêutico e a indústria da patologização psiquiátrica do ensino, quanto em situações de maior sutileza discursiva. Tais observações feitas acima não devem ser entendidas, porém, como uma negação ao avanço científico ou à pretendida consistência teórica dessa ou daquela linha da psicologia. Tampouco se trata de uma negativa da pedagogia enquanto tentativa humana de buscar caminhos e explicações. Antes, buscamos apontar para o funcionamento de uma lógica discursiva que impera hoje no âmbito das discussões e proposições educativas. Uma lógica que acreditamos ser nociva porque se inclina à simplificação de questões e à naturalização de certas ideias – como, por exemplo, a naturalização da própria criança. Acontece que os discursos cientificistas – que encaram a infância como um dado natural – ameaçam minar qualquer possibilidade de que uma educação ocorra, impossibilitando o desdobramento do laço educativo ao se colocarem como substitutos 1

Texto a ser apresentado no FLADEM 2016, em Buenos Aires. Apresentação referente ao trabalho de TCC do CMU/ECA/USP, “Considerações sobre educação musical: Psicanálise, Ideologia e Diversidade”, 2015.

da fala – da palavra – do adulto educador. Logo, levam este último a renunciar (inconscientemente) da tarefa de educar. Lajonquière (1999) afirma que “se outrora teólogos, moralistas, políticos, filósofos, humanistas e pais de família discorriam sobre as vicissitudes da educação”, hoje quem “fala como especialista na matéria é o (psico)pedagogo – suposto detentor de uma série de saberes ‘psi’ aplicados” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 29). Deve-se salientar, novamente, aos interessados em ler os trabalhos desse autor, que a sua crítica àquilo que se refere como discurso (psico)pedagógico hegemônico não se perfila como uma antítese às teorias construtivistas ou vigotskyanas: procura-se indagar sobre o porquê da necessidade de aplicação das mesmas e refletir sobre o que este sintoma de abstenção do adulto do ato educativo pode nos revelar sobre as relações contemporâneas entre adultos e crianças. Cabe dizer, então, que o autor se inscreve numa linha de pensamento que busca operar a psicanálise não de modo a fabricar mais uma teoria (psico)pedagógica – que diria o que se deve fazer em sala de aula –, mas de modo a desnaturalizar certas ideias e revelar que não existe formula que faça desaparecer o fato de que cada relação educativa é absolutamente singular e única – e o desejo em causa sempre “infinitivamente pessoal”2. Nas palavras de Lajonquière, “pensar a educação no interior do campo da palavra e da linguagem animada pelo desejo e, dessa forma, colocar em relevo o seu estofo de laço social” (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 78), bem como “indagar-se – única forma de reconciliação possível consigo mesmo – sobre aquilo que a criança representa inconscientemente.” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 62). Acrescentamos que nosso objetivo deve ser também o de apontar ao status que a ciência – o saber científico e o cientificismo – tomou em nossa cultura e indagar sobre como esse status serve para mascarar problemas políticos, educacionais e, enfim, também para evitar questões ligadas ao desejo humano sobre as quais nada queremos saber... Não é difícil, aliás, constatar que a ciência ocupa hoje um lugar não muito diferente daquele da religião: tanto na concepção freudiana, enquanto uma forma de ilusão (FREUD, 2014), como na concepção marxista, resumida na a clássica fórmula “a religião é o ópio do povo” (CHAUÍ, 2012, p. 115). Nesse ponto consideramos que a concepção marxista de ideologia vem bem a calhar, pois se define justamente como o processo de naturalização de ideias e, portanto,

2

Verso da canção “O Quereres” de Caetano Veloso.

do ocultamento da origem das mesmas. Para Marx, esse processo estaria em função da dominação de classe, em favor sempre da classe dominante. Assim, ele funcionaria de modo a fazer com que as ideias e valores nascidos de interesses particulares a uma classe apenas, se tornem ideias e valores tidos como universais. A ideologia seria então “um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados” (CHAUÍ, 2012, p. 24). A partir dessa noção, Marilena Chauí (2012) nos apresenta a ideia de Ideologia da Competência, na qual se constata “a divisão entre os que possuem poder porque possuem saber e os que não possuem poder porque não possuem saber.” (CHAUÍ, 2012, p. 127). Vemos aí consonância com as críticas de Lajonquière: se uma ideologia da competência procura mascarar, em última instância, a luta de classes – ao construir o saber legitimado e os ideólogos que o perpetuarão –, os discursos pedagógicos cientificistas, por sua vez, mascaram não apenas problemas educacionais de fato, mas também questões políticas disfarçadas de problemas educacionais. Tivemos um bom exemplo disso quando, no segundo semestre de 2015, o Governo do Estado de São Paulo empreendeu uma tentativa de reorganização do ensino estadual, usando como pretexto argumentos técnico-pedagógicos para fins obviamente econômicos e de corte de orçamentos no setor público. A secretaria de educação tinha (como sempre) sua leva de “especialistas” que concluíram que o motivo pelo qual a educação ia mal no estado residia no fato de as escolas não serem divididas por “ciclos de ensino”. Nesse caso a argumentação era tão furada que bastava um mínimo que reflexão para dar-se conta, por exemplo, de que muitas escolas particulares em São Paulo não são divididas por ciclos e nestas o ensino transcorre sem maiores problemas... Entretanto ainda, o mais assustador é que mesmo com um “estudo científico” absolutamente mal embasado, tal reorganização teria passado sem constrangimentos, não fosse a inesperada e avassaladora reação dos estudantes secundaristas do mesmíssimo ensino público, que se opuseram à imposição tecnocrata do governo ocupando as mesmíssimas escolas públicas que seriam fechadas ou “reorganizadas”. O que se nota é que sentenças científicas de “por que o ensino não vai bem”, frequentemente escondem desigualdades socais que para serem resolvidas nada teriam a ver com “ajustes” no âmbito educativo – questões como, por exemplo, a distribuição de renda e o pagamento justo de salários aos professores. Dessa forma, tudo que vai mal à

educação é justificado como uma falta de adequação técnico-pedagógica, deixando de se debater politicamente aquilo que é, justamente, político3. Se esse seria o lado político que a dimensão ideológica dos discursos “psicologizantes” e “biologizantes” tentam mascarar, quais seriam os problemas educacionais evitados? Bem, em primeiro lugar, é precisamente no “ajuste” de fatores secundários enquanto solução para os impasses educativos que crê o discurso (psico)pedagógico hegemônico. Lajonquière coloca que a (psico)pedagogia predominante em nossos dias (essa ideologia, em termos marxistas) é a responsável pela nossa preocupação na educação com aquilo que é “acessório – a afetividade, a criatividade, a felicidade...” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 28). Sabemos o quanto mencionar a “afetividade, a criatividade, a felicidade” como falsos problemas na educação pode soar estranho a princípio – principalmente para nós, arte educadores(as), professores(as) de música, etc. Mas essa afirmação não significa, em absoluto, desconsiderar aquilo que a criança faz, sente ou traz à aula. O que se procura mostrar – com o apoio de uma visão psicanalítica – é que tais termos são um tanto quanto vazios para se tornarem justificativas e metas educativas – e até contraditórios, do nosso ponto de vista, se pensados enquanto atributos que brotam espontânea e naturalmente da criança. Se considerarmos que a crença no “natural da criança” é justamente um indício da renúncia ao ato educativo por parte do adulto, é nesse ponto que a psicanálise pode nos ajudar a refletir sobre educação enquanto uma transmissão sempre histórica e cultural – ou seja, é sempre dependente do engajamento de um adulto em transmitir um conhecimento pelo qual tenha desejo. “(...) Quando um pai compra uma bicicleta para seu filho, pois ele mesmo sabe andar, já que seu próprio pai lhe havia comprado uma por determinados motivos que se perderam no tempo ou, ao contrário, porque nunca teve em decorrência de problemas financeiros ou religiosos, age – como qualquer mortal – em nome de uma certa contingência existencial chamada desejo. Quando esse pai compra a bicicleta esse passado abocanha o presente e historiza a criança. Entretanto, quando um pai dá um presente, em virtude da capacidade deste de vir a estimular as potencialidades do filho, justifica o ato nas benesses de uma realidade psicológica futura. Paradoxalmente, o adulto não dá um presente para seu filho, outorga aquilo que se supõe estar precisando a natureza. Ou numa outra perspectiva, não dá „um presente‟ para seu filho a partir de um passado mais ou menos esquecido, mas um futuro degradado na medida em que esse 3

Então, vemos que também o discurso (psico)pedagógico hegemônico e os discursos técnicopedagógicos em geral têm como função a manutenção da dominação de classes, bem como o mascaramento da mesma – um movimento no sentido de “deixar tudo como está”.

porvir já estaria contido em germe no eterno presente da natureza.” (LAJONQUIÈRE,1999, pp. 40-41)

Tal reflexão nos é cara, pois vem de encontro à perspectiva sob a qual desejamos colocar a educação musical. Existe uma dimensão arbitrária em toda educação quando se permite ensinar (transmitir) algo por motivos do tipo: “porque minha avó cantava isso quando eu era pequeno...”, “porque foi assim que me ensinou meu mestre antes de mim...”, ou “não pode pôr o dedo na tomada, porque simplesmente não pode, oras!”. Mas é importante sublinhar que o desejo sobre o qual falamos, não é o senso comum do desejar enquanto sinônimo do “querer” corriqueiro. Estamos aí sob a perspectiva da noção do inconsciente – da metapsicologia psicanalítica; da noção do sujeito divido (sujeito do desejo), onde vale a virada cartesiana proposta por Lacan: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”. Ou, se apelarmos ao universo da canção popular brasileira: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”4. A partir dessa noção – fundamental para a psicanálise – podemos compreender porque Freud se refere às três tarefas (ou profissões) impossíveis da humanidade: a educação, a própria psicanálise e a política (o governo) (FREUD, 1937). Posto que em todas elas haja em comum o fato de se darem apenas e necessariamente numa relação onde sempre há, no mínimo, dois sujeitos numa posição de fala – seja na relação professor/aluno, analista/paciente, sujeito-da-polis/sujeito-da-polis. Ou seja, significa que os resultados serão em alguma medida sempre insatisfatórios (Idem). Essa dimensão de impossibilidade à qual nos referimos – própria do inconsciente e inerente ao desejo –, quando pensada no contexto do campo educativo, não deve ser traduzida em um cinismo do tipo a “educação é impossível”: “já que não temos controle das coisas, larguemos mão de qualquer esforço, não vamos estudar nem preparar aulas ou pensar sobre o que vamos dizer ou fazer na hora de ensinar”. Pelo contrário. Ora, não é possível dar uma aula de violão não sabendo tocar violão ou ensinar matemática não sabendo matemática5! Porém, ao ensinar aquilo que se pretende, o adulto terá de lidar não apenas com suas próprias limitações, mas também com a incerteza de como aquilo 4

Timoneiro (Paulinho da Viola/Hermínio Bello de Carvalho). O “mar” aí pode ser tranquilamente entendido como uma metáfora do inconsciente, do desejo... 5 “Obviamente, se retiramos o sentido daquilo que vamos ensinar ou mostrar de uma tradição de pensamento, tiramos tudo. Não fica nada. No lugar desse „nada‟ a pedagogia moderna coloca „o pedagógico‟. [...] é em nome dessa coisa anônima que se age na educação, é a ela que se deve obedecer” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 31). Trazendo mais uma vez a ideia de alternância de extremos pedagógicos como supostas soluções para educação, podemos pensar, novamente, na noção de troca de um ideal de ensino “tradicional conservador” por um discurso científico-pedagógico.

será recebido pela criança. E, ao se abrir para escutar a criança, terá também de lidar com a possibilidade de ouvir algo que não goste – algo que não se quer ouvir, algo que a criança possa falar que gere desconforto ao adulto. Também se implica aí que a própria lógica psicanalítica do “adulto que transmite um saber” ou da “criança que apreende o desejo” não pode ser traduzida ou transformada em uma fórmula ou método que ensine “como se faz isso”. Mas justamente no modo como se lida com essa dimensão de impossibilidade é que a ação educativa acontece. Portanto, a educação não ocorre graças à precisão de um cálculo que equilibre fatores que circundam o ato educativo. Aliás, a história nos mostra que apesar das mais variadas adversidades – de métodos “pouco criativos”, da condição econômica, de uma eventual “necessidade especial” do aluno, etc. – a educação sempre pode encontrar seu caminho e as crianças podem vir a usufruir da transmissão do conhecimento e fazer laço social. Isto se o adulto não evitar o tête-à-tête – ponto, este sim, central na constituição do ato. Isto se o adulto não olhar/ouvir apenas a si mesmo, num gesto narcísico que reside no momento em que, ao olhar/ouvir a criança, não olha/ouve a que está de fato em sua frente, mas apenas àquela que habita seu imaginário – ao invés de “aceitar inconscientemente o fato de que a criança à qual falamos nunca está aí, onde pensamos ela estar” (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 45). Quando um adulto se endereça a uma criança está sempre se endereçando de forma metafórica e metonímica tanto a “aquela criança que foi para os outros como também aquela criança que não foi, mas que era esperada por eles” (LAJONQUIÈRE, 2009, p. 62). Então há que se cuidar para que não se espere excessivamente que a criança a sua frente se torne aquilo que o educador(a) sonhou para si ou que foi sonhado por outrem6. Como disse Gilles Deleuze certa vez: “Desconfiem do sonho do outro, pois se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão fudidos!” (DELEUZE, 1999, pp. 89). A partir disso, podemos pensar na alternância histórica-social de duas principais concepções de infância na pedagogia: de um lado um selvagem que deve ser domado e conduzido ao mundo adulto (cartesiana), do outro uma ser puro e frágil que deve ser protegido do mundo adulto corrompido. Acontece que se trata de dois lados da mesma 6

Que se torne aquele adulto impossível – inexistente – “a quem nada falta” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 190)

moeda: se num o professor ensinava em nome da moral e dos bons costumes cívicos e/ou religiosos, noutro se fará servo das ciências e explicações que pregam o “natural da criança”, como se bastasse sentar e esperar que este último “desabroche”. Sob esse ponto de vista encaramos a seguinte discussão – tantas vezes latente em qualquer debate sobre educação – como uma falsa dicotomia: se trata da oposição “tradição x inovação”. Isso porque nenhuma inovação existe sem passado. Explico-me. A atitude de renúncia ao ato educativo da qual fala Lajonquière já havia sido reconhecida por outros pensadores. Hannah Arendt, em seu texto A Crise na Educação, de 1957, observa: “A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.” (ARENDT, 2014, p. 240). Podemos depreender desse texto da autora um raciocínio mais ou menos assim: no século XX, século de importantes conquistas políticas – das mulheres, dos trabalhadores, etc. –, se quis estender tais liberdades às crianças. Mas estas não podem ser consideradas iguais perante os adultos, pelo simples fato de chegarem ao mundo depois – “pegar o bonde andando”, como se diz em bom português. Portanto, cabe aos adultos mostrar às crianças que mundo é esse e quais são as “regras do jogo”. A função do educador, diz a filósofa, é precisamente “servir como mediador entre o velho e o novo” (ARENDT, 2014, p. 244), justamente para que se conserve a possibilidade de inovação – por mais paradoxal que possa parecer tal afirmação. “(...) Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora [...].” (ARENDT, 2014, p. 243)

Evidentemente que não estamos endossando a vontade dos tiranos da educação (esses sempre existiram e sempre existirão). Há que se diferenciar aquilo que genericamente se chama de ensino “tradicional”. Existe diferença entre aquele que ensina uma tradição – seja capoeira, música caipira, canção popular brasileira, piano clássico – sabendo – consciente e inconscientemente – que esta está fadada a mudança e aquele que procura ensiná-la buscando sua conservação total – o que é, antes de tudo,

uma ilusão. Inclusive, é dessa separação ou confusão entre política e educação a qual nos referíamos anteriormente7. Então, seja por confundir autoridade política com autoridade educacional ou por acreditar nas ciências (psico)pedagógicas a ponto de torná-las regras de conduta a priori para o ato educativo, o adulto pode, como já dissemos, se eclipsar desse mesmo ato. É aí que começam as suposições de que, por exemplo, “a criança brinca por efeito de um saber real que clama por desenvolvimento e não por conta da tentativa de vir a se apropriar do suposto saber fazer adulto com o desejo”, e se esquece de lembrar que “brincar que „agora eu era‟ isso aí onde sou desejado é a possibilidade que cabe à criança de realizar de forma invertida o ideal em causa nesse lugar.” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 39). Como na letra de Chico Buarque sobre a melodia de Sivuca: “Agora eu era o herói, e o meu cavalo só falava inglês...”.

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Tentamos, neste pequeno texto, trazer algumas reflexões que levantamos em “Considerações sobre Educação Musical: Psicanálise, Ideologia e Diversidade”. Elencamos brevemente, a seguir, alguns pontos sobre educação musical que pudemos levantar partir dessas reflexões. A primeira delas é que podemos afirmar que existem aspectos em comum no que diz respeito à educação de maneira geral, independente de qual disciplina se pretende ensinar – isto é, sendo música ou não. Porém, essa última afirmação não deve ser confundida com aquela contida em certos discursos que pregam haver uma “maneira correta” de educar, uma “ciência da educação” que nos permitiria prever e controlar os efeitos educativos. Os aspectos em comum – a toda educação – aos quais nos referimos, abarcam uma diversidade de possibilidades, que variam caso a caso e traçam caminhos únicos, que nunca são sabidos a priori. Uma educação possível8 acontece na medida em que o adulto envolvido evita a renúncia ao ato educativo. Temos aí, então, que a singularidade da educação musical 7

E que foi empírica e espontaneamente reconhecida pelos secundaristas de São Paulo mencionados antes: ali se tratava, sim, de uma questão política mascarada de “ajuste pedagógico”. Então, tomaram a iniciativa de fazer um ato político, indo às ruas e ocupando os prédios das escolas. 8 Conceito utilizado por nós no trabalho referido em nota no início do texto. A noção de uma educação possível oposta, justamente, a ideia ilusória de “a educação perfeita”, pois existem incontáveis caminhos

constituída por questões específicas da área é a singularidade própria do campo artístico expressivo da música em si e que, embora estas reflita em certa medida na sua transmissão, não faz com que o ensino de música seja essencialmente diferente de qualquer outra educação. E o que chamamos aqui de essencial é precisamente a relação de amor9 que se estabelece quando uma educação é possível. A criança vai “pegar” – apreender, tomar – uma linguagem, qualquer que seja – música, matemática, português, etc. –, quando reconhecer nela um objeto de – e do – desejo10. Eventualmente então, a criança, que virá a ser um adulto um dia, pode se identificar mais com uma determinada linguagem e fazer dela veículo de sua expressão, à sua maneira. Mas para que haja possibilidade de isso vir a acontecer (pois nada garante que acontecerá), o adulto deve estar envolvido na aventura educacional. O segundo ponto que talvez tenhamos tocado mais neste texto é referente à noção de inovação em educação – e em educação musical. Esperamos não ter passado a ideia de que o esforço para a construção de novos métodos, novas práticas, enfim, novas tentativas sejam em vão. De maneira alguma o são. Porém, ao trazer para a sala de aula novos instrumentos, música popular, canções, improvisação livre, brincadeiras ou, afinal, trazer à luz algo que não se estava fazendo – um lugar novo –, nada disso fará a coisa acontecer por si só. Aquilo que é

trazido à aula deve ter algum sentido – tanto para o aluno como para o educador. Tampouco, a noção de envolvimento do adulto no ato deve ser entendida como um “fazer apenas o que o professor quer”. Inclusive, se esta última proposição fosse colocada como oposição simétrica a “fazer apenas o que o aluno gosta”, cairíamos na mesma falsa dualidade que a massificação de proposições pedagógicas insiste em colocar. Por meio de relatos de situações educacionais envolvendo música, observa-se que o professor(a) pode tomar a atitude de surdez em relação ao aluno(a) tanto pela via “tradicionalista” quanto pela via “moderninha”. Ou ainda quando se confundem questões políticas com educacionais. Por exemplo: um professor se preocupa porque uma criança ou jovem apresenta certa obsessão por um artista ou gênero musical e demonstra uma vontade de soar para que uma educação se faça possível. Portanto os exemplos e relatos de casos (como o do músico e professor de música Pedro Mourão que usamos no trabalho referido) não tem a intenção de se colocar como modelos ideais, mas antes apontar justamente para a dimensão de imprevisibilidade e impossibilidade existente em toda educação, que exige do educador que se lança na aventura educacional a coragem de encarar – ao invés de mascarar – as próprias impossibilidades do desejo. 9 “Lembre-se que para a psicanálise o amor não é mais do que o ódio e vice-versa.” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 176) 10 De desejo porque passaria a ser seu uma vez reconhecido como um desejo do adulto educador.

“igualzinho” àquilo que ouve. Estaria essa criança simplesmente imitando? Se for um artista pop ou gênero em voga no mercado cultural, estaria essa criança/jovem simplesmente influenciada pelo poder midiático absorvedor? Podemos dizer apenas que, apesar da violência com a qual a parte mais nociva da indústria cultural pode se abater sobre o público jovem e infantil, é impossível afirmar que algo carregue um mesmo significado para todos. Ora, desconsiderar algo que tenha despertado interesse em um jovem, mesmo que se trate de algo considerado de “má qualidade” artística sob a ótica do adulto, seria tomar a mesma atitude de “surdez” em relação ao aluno – o que não significa deixar de debater questões sobre produção cultural! Já a suposição de que a criança esteja apenas imitando algo, quando deveria estar “criando” ou “descobrindo”, só pode decorrer de uma preocupação ligada à própria crença de que a criança possuiria uma inclinação inata à inovação. Isto é, do ponto de vista da “criação artística” o adulto estaria preocupado com o fato de a criança estar imitando aquilo que já foi feito quando poderia estar caminhando para o “despertar” e para o “desenvolver” de sua “arte interior”, “pura” e “nova”. Se esquece aí que “o brincar não obedece a uma imitação psicológica no presente, mas à tentativa de responder à demanda dos adultos significativos, que à criança se endereçam não por aquilo que ela é senão por aquilo que não é e espera-se que seja num futuro” (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 39). A grande nocividade de uma prática educacional baseada nessa crença reside no fato de que aquela criança que procura soar “igual” ao “ídolo”, não terá de se haver precisamente com a impossibilidade que existe neste desejo. Mas se, ao contrário, o professor for caminhando na trilha do desejo e mostrar ao aluno, por exemplo, possibilidades reais que existem para executar (tocar) aquela determinada música, o aluno irá se deparar com dificuldades reais – bem como com eventuais facilidades. E essas mesmas (im)possibilidades o levarão a trilhar seu próprio caminho a partir daquele desejo ideal. Concluindo, queríamos salientar que talvez o ponto mais importante para nós nesse texto está na questão do envolvimento do adulto no ato educativo. Não existe educação que não seja uma transmissão histórica e não há nada que brote “naturalmente” em uma criança – esta última que sempre nasce antes de nascer, nas expectativas, sonhos e esperanças que nelas são depositadas precisamente pelos adultos que nesse mundo já residem.

Freud, por ocasião do 50º aniversário da escola onde havia estudado quando jovem, escreveu e leu um discurso em frente a professores, alunos, ex-professores e exalunos. Em um trecho, lê-se: “Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente. Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? – ela foi por causa disso definitivamente bloqueada. Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformávamos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamos-nos de sua excelência, seu conhecimento e sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido suas inconveniências para os interessados. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los.” (FREUD, 1974, pp. 162-163)

Quando o desejo flui – essa “corrente oculta e constante em todos nós” –, emerge também a singularidade daquela pessoa, bem como a fantasia dos alunos e alunas. Isso acontecendo, apesar de não ser uma garantia de que os alunos vão “gostar” do professor, abrem-se caminhos possíveis para que a educação aconteça, em toda sua imprevisibilidade. Justamente quando há a possibilidade de haver surpresa no meio do caminho, a educação se torna a preparação da criança para o desejo11 – pois este último, justamente, deixa de ser escondido ou evitado em alguma tentativa de driblar a dimensão impossível nele implicada.

11

A missão histórica de toda a educação é, para Freud, a preparação da criança para o desejo (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 42).

BIBLIOGRAFIA ARENDT, Hannah. A crise na educação (1957). In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo, SP: Perspectiva, 2014, pp. 221-247. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2ª ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 2012. DELEUZE, Gilles. O ato de criação (Palestra de 1987). Tradução de José Marcos Macedo. Edição brasileira: Folha de São Paulo, 1999. Disponível em: FREUD, Sigmund. Algumas Reflexões Sobre a Psicologia Escolar (1914). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas, Vol. 13. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Imago, 1974. Análise terminável e interminável. 1937. Disponível em: LAJONQUIÈRE, Leandro de. Do que não se quer saber na formação de professores (2013). In: PESSOA DE CARVALHO, Anna Maria (org.). Formação de professores: múltiplos olhares. São Paulo: Sarandi, 2013, pp. 39-60. Educação e infanticídio. Educação em Revista (UFMG), 2009, v. 25, nº 1, pp. 165-178. Figuras do infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

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