Considerações sobre Educação Musical: Psicanálise, Ideologia e Diversidade

June 14, 2017 | Autor: André Mourão | Categoria: Psicanálise, Educação, Educação Musical, Ideologia, Psicanálise e Educação
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ANDRÉ ALBUQUERQUE MOURÃO

CONSIDERAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO MUSICAL PSICANÁLISE, IDEOLOGIA E DIVERSIDADE

Trabalho apresentado ao Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, formulado sob a orientação do Prof. Dr. Leandro de Lajonquière, para a Conclusão de Curso de Licenciatura em Música.

CMU-ECA-USP São Paulo, 2015

Dedicado ao meu avô, Ivan da Mota e Albuquerque, que vivia assoviando canções

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a, Leandro de Lajonquière, pela orientação e generosidade. Teca Alencar de Brito, pela coorientação e confiança. Ivan Vilela, por compor a banca e por ser um grande mestre. *** Minha mãe, Helena, e meu pai, Pedro, pelo amor e orientação sempre. Minha avó, Eunice, e meu avô, Ivan, pela acolhida nesses anos de graduação. Minha avó, Maria Alice (Lico), pela ancestralidade musical nas embaladas ―sempre que o sono não vinha‖. Meu querido irmão, Rodrigo, minha cunhada-irmã, Verônica, e minha linda sobrinha, Alice. *** Toda a equipe e professores da Sim! Escola de Música (antiga Domus): Akira, Reka, Maurício, Mauricinho, Lucas, Michel, Jarbas, Paulo, Eron, Arnaldo, Gabriel, Miriam, Patrick, Igor e, em especial, Neusa. Todos os parceiros e parceiras das bandas e projetos musicais: O Maquinista, Pizza Punk, Iberosson, Orquestra Junina, Sapato Velho, Mistura no Sertão e aos foliões carnavalescos da Banda do Seu Lalá e do Bloco Bastardo. Pessoal da peça Cólera (o Bando!) e demais parcerias nas artes cênicas. Todos e todas que fizeram (e fazem) existir o CANiL_Espaço Fluxus de Cultura, lugar mais vivo e pulsante de toda a USP (e além!). Nina, Tomás e Haind, pela amizade e viagens futuras. Todos os amigos e amigas de hoje e sempre.

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RESUMO

A primeira parte deste trabalho levanta discussões sobre educação a partir de dois ângulos principais: de estudos psicanalíticos no âmbito educativo e da noção trazida pela concepção marxista de ideologia. Veremos não apenas o que podemos refletir a partir da psicanálise acerca da educação e dos possíveis laços educativos entre educadores e educandos, mas também como o processo de naturalização das ideias – o próprio processo ideológico – se faz evidente no campo da pedagogia. Podendo a psicanálise indagar sobre o porquê da aplicação de métodos e pensamentos cientificistas no campo pedagógico, acabaremos apontando à ideologia que impera na educação de nossos tempos e fazendo crítica à mesma. Focamos esta crítica naquilo que nos referimos como discurso (psico)pedagógico hegemônico, que é calcado em uma crença na aplicação da tese da adequação natural e que resulta em problemas tanto educativos quanto políticos.

No terceiro e último capítulo, traremos questões pertinentes à educação musical, mostrando que as especificidades próprias do ensino (da transmissão) de cada disciplina, em todas as suas tradições e inovações, não podem ser substituídas por uma ―ciência da educação‖, supostamente ―neutra‖ e normativa. Do mesmo modo, uma vez que a singularidade e os caminhos traçados em cada relação educativa nunca são sabidos a priori, apresentaremos, por meio de relatos pessoais e memórias ―emprestadas‖, um caso de uma educação possível (noção elaborada nos capítulos anteriores), ilustrada na figura do músico e educador musical Pedro Mourão. Como veremos, existem incontáveis caminhos para que uma educação se faça possível, portanto nossos exemplos aqui não tem a intenção de se colocar como modelos ideais, mas antes apontar justamente para a dimensão de imprevisibilidade e impossibilidade existente em toda educação, que exige do educador que se lança na aventura educacional a coragem de encarar – ao invés de mascarar – as próprias impossibilidades do desejo.

PALAVRAS-CHAVE

Psicanálise; Ideologia; Educação; Educação Musical; Pedro Mourão 4

SUMÁRIO

Introdução.........................................................................................................................................

p. 6

Capítulo 1: A Dimensão Ideológica.................................................................................................

p. 9

Capítulo 2: Psicanálise, Educação e Crítica ao Discurso (Psico)Pedagógico Hegemônico.............

p.16

Capítulo 3: Considerações sobre Educação Musical.......................................................................

p.46

Texto: Reflexões sobre situações de ensino envolvendo Pedro Mourão............................

p.49

1. Repertório, Tradição e Inovação 1.1

―„Adequar‟ o ensino musical às crianças‖..........................................................

p.54

1.2

―Ver desconsiderada toda a música que carregava significado‖.......................

p.58

1.2.1

Parênteses: uma história da música brasileira alternativa a partir do conceito de Canção .................................................................

1.3

1.4

p.60

―Ser considerado tradicionalista‖ (a disciplina e a fisicalidade do corpo envolvido na música)............................................................................

p.69

―Um diálogo entre escolhas do aluno e do professor‖ (a questão do ―gosto‖)...

p.73

2. Uma Educação Possível 2.1

―Se quer aprender música vai aprender de verdade!‖ ......................................

p.76

2.2

Contra a ―„Infantilização‟ do ensino‖..................................................................

p.79

2.2.1

A Apresentação de alunos.........................................................................

p.83

2.2.2

Os Corujas Psicodélicas............................................................................

p.86

Musicalidade.......................................................................................................

p.90

A Diversidade (À guisa de conclusão).............................................................................................

p.97

Bibliografia.......................................................................................................................................

p.102

2.3

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Introdução

Quando se fala em educação musical, evidentemente, está pressuposto que se irá tratar de especificidades ligadas tanto à música e suas possibilidades artísticas quanto à sua transmissão e transformação. Melhor dizendo, às singularidades do ensino de música. Ao mesmo tempo, não é uma grande surpresa afirmar que existam aspectos em comum no que diz respeito à educação de maneira geral, independente de qual disciplina se pretende ensinar.

Porém, essa última afirmação não deve ser confundida com aquela contida em certos discursos que pregam haver uma ―maneira correta‖ de educar, uma ―ciência da educação‖ que nos permitiria prever e controlar os efeitos educativos. Os aspectos em comum – a toda educação – aos quais nos referimos, abarcam uma diversidade de possibilidades, que variam caso a caso e traçam caminhos únicos, que nunca são sabidos a priori.

Acontece que os discursos cientificistas, por vezes, ameaçam minar qualquer possibilidade de que uma educação ocorra, impossibilitando o desdobramento do laço educativo ao se colocarem como substitutos da fala – da palavra – do adulto educador. Logo, levam este último a renunciar (inconscientemente, como veremos) da tarefa de educar.

Apesar de tantos outros discursos ideologizados terem tomado a pedagogia ao longo da História, reconhecemos hoje, no Brasil, a hegemonia de um pensamento nesse âmbito que se pauta na aplicação de ideias advindas das ciências psicológicas. Estas acabam servindo como justificativa para evitar tanto os verdadeiros problemas políticos em jogo quanto o próprio desejo em causa na educação.

Logo de início, gostaríamos de deixar claro que as críticas aqui presentes não são uma negação da pedagogia enquanto tal e tampouco se trata de um ―apontar de dedos‖ a esse ou àquele estudo, essa ou aquela instituição, etc. Antes procuramos mostrar e questionar a hegemonia discursiva presente hoje na pedagogia, decorrente do status que o saber científico tomou em nossa cultura. Em última instância, apontamos para a dimensão ideológica que há por trás da hegemonia –

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responsável por mascarar problemas tanto políticos quanto educacionais. A partir disso, buscamos fazer crítica dessa ideologia, evidenciando as ideias que são por ela naturalizadas.

Discutiremos durante todo o trabalho, entre outros pontos: as diferenças entre questões educacionais e políticas – tendo como substancial referência Hannah Arendt (1957); as confusões entre ―transmitir‖ e ―doutrinar‖; a posição do mestre e o educador possível enquanto adulto da práxis; reflexões sobre o que é ―imitar‖, ―brincar‖ e ―apre(e)nder‖; reflexões sobre o que é um ensino ―tradicional‖ e o que é ―inovação‖ em educação; o desejo em causa na educação e suas impossibilidades, trazendo conceitos e pensamentos psicanalíticos que nos ajudam a refletir sobre educação, mas buscando – o tanto quanto nos for possível – contextualizá-los e explicá-los, para que não se tornem palavras repetidas e vazias.

Este trabalho divide-se em três capítulos:

O primeiro, intitulado A Dimensão Ideológica, de caráter introdutório ao trabalho, traz a noção de ideologia, com base na apresentação do termo pela autora Marilena Chauí (2012). Partindo da concepção marxista do termo, mas não se atendo apenas a ela, enfatizamos principalmente a noção de naturalização de ideias e ideais1. Tomando brevemente como primeiro exemplo a própria psicanálise – opondo leituras que a aproximam ou a afastam da ideologização – procuramos sinalizar que, embora haja um grau de inevitabilidade no processo ideológico (fruto da própria práxis), o combate a ele configura uma luta política sempre necessária, que se dá no desmascarar das ideias naturalizadas. Porque o discurso (psico)pedagógico hegemônico é uma ideologia, a crítica a ele também teria a função de crítica da ideologia marxista, ainda que se dê, neste trabalho, principalmente via psicanálise.

Em Psicanálise, Educação e Crítica ao Discurso (Psico)Pedagógico Hegemônico, tomaremos como principal referência as ideias de Leandro de Lajonquière e seus estudos de ―psicanálise e educação‖. O autor, responsável por cunhar o termo discurso (psico)pedagógico hegemônico, traz um pensamento psicanalítico sobre a educação, não como algo que nos dita o que fazer para garantir que esta última aconteça, mas antes com intenções de levantar perguntas – deslocando e redimensionando certas questões – e chamar atenção àquilo que é nocivo ou que,

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Embora, como veremos, o discurso (psico)pedagógico hegemônico também tenha como finalidade última o mantimento da classe social dominante, de acordo com a concepção marxista de ideologia.

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justamente, não se deve fazer no âmbito educativo. Tratam-se de reflexões que nos levam a indagar sobre os motivos que podem animar uma ilusão pedagógica. Temos então que a primeira parte deste trabalho – os dois primeiros capítulos – não trata especificamente sobre educação musical, mas sobre o laço educativo em geral.

O terceiro capítulo, Considerações Sobre Educação Musical, atravessado pelas reflexões anteriores, mas não unicamente em referência a elas, discutirá questões particulares à educação musical, bem como relatos de casos desta área. Abrindo o capítulo, trazemos um texto2 no qual apresentamos a figura de Pedro Mourão, músico e educador musical. Partimos de memórias dele3 e de relatos de situações educacionais a ele ligadas, para ilustrar um caso de uma educação possível – que, como veremos, é muito diferente da ideia (ilusória) de uma educação perfeita. O texto em questão – ―Reflexões sobre situações de ensino envolvendo Pedro Mourão‖ – servirá, então, também como disparador para discutirmos questões referentes à educação musical, seu contexto no cenário brasileiro e fazermos ligações com as ideias dos capítulos anteriores.

Todavia, também neste último capítulo, almejamos, principalmente, discutir educação sob a perspectiva da noção psicanalítica de desejo – isto é, pensando nos agentes envolvidos na educação (educador e educando) enquanto sujeitos do desejo, em sua concepção freudiana. Nas palavras de Lajonquière, buscaremos ―pensar a educação no interior do campo da palavra e da linguagem animada pelo desejo e, dessa forma, colocar em relevo o seu estofo de laço social‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 78).

O termo diversidade, que permeia todo o trabalho, não diz respeito a uma definição fechada ou específica de algum(a) autor(a) ou estudo, mas se refere às possibilidades culturais diversas que existem como caminhos para a educação, ao pensamento e à prática, configurando algo cuja a aceitação é desejável, mas que é sempre ameaçado pela ideologia.

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Trata-se de meu trabalho final para a disciplina Psicanálise, Cultura e Educação (EDF0294), ministrada pelo Prof. Leandro de Lajonquière, na Faculdade de Educação da USP, cursada no segundo semestre de 2014. 3 Memórias estas que são um tanto minhas também, uma vez que se trata de meu pai.

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Capítulo 1: A Dimensão Ideológica

Antes de tudo, é importante dizer que a escolha de um raciocínio ligado a um pensamento psicanalítico em grande parte deste trabalho, não implica em encarar a psicanálise – o pensamento freudiano ou o raciocínio de Lajonquière – como uma verdade dada e absoluta; como uma verdade científica – no pior sentido da palavra, aquele referente à ideologia.

Veremos como a psicanálise permite desconfiar da aplicação de teorias psicológicas (e ―psicologizantes‖)4 na educação e, dessa forma, questionar de maneira contundente o discurso (psico)pedagógico hegemônico – foco do segundo capítulo deste trabalho. Porém, não é apenas via psicanálise que se pode tecer críticas a pensamentos ―naturalizantes‖.

No livro O Que É Ideologia (ed. 2012), Marilena Chauí nos apresenta o termo ideologia como sendo o processo de naturalização das ideias – filosóficas, científicas, técnicas, políticas ou de qualquer ordem –, que mascara a origem das mesmas, dando a elas vida própria e escondendo o fato de que toda a ideia é fruto da práxis do homem na História. Separando, logo de início, as noções de ideologia e ideário5 – frequentemente confundidas no senso comum –, Chauí introduz a concepção marxista de ideologia, onde se entende que o processo ideológico – a ideologia – ―é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados‖ (CHAUÍ, 2012, p. 94). ―A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade 4

Em grande parte por se tratar também de uma área do conhecimento ligada a saberes sobre o psi, mas partindo de paradigmas bem diferentes; psicanálise não é psicologia! 5 Por ideário entende-se o ―conjunto sistemático e encadeado de ideias‖. Enquanto por ideologia entende-se que não se trata de ―um ideário qualquer [...] a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política.‖ (CHAUÍ, 2001, p. 7)

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social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado.‖ (CHAUÍ, 2012, pp. 131-132).

Antes de chegar a definições como esta, Chauí parte de exemplos da filosofia grega e da física moderna que apontam para o fato de que o processo ideológico, tal como definido por Marx e Engels em A Ideologia Alemã (1932), esteve sempre presente nas tradições de pensamento da civilização ocidental. Tomando as ideias como anteriores à práxis e não como fruto dela, ―os homens não se percebem como produtores da sociedade, transformadores da natureza e inventores da religião‖ (CHAUÍ, 2012, p. 73). Dessa forma, diferentes ideologias se alternaram na história sempre que um grupo social – uma classe – ascendia numa revolução: ideais são difundidos como sendo universais e, uma vez que a classe em ascensão chega ao poder, tais ideais precisam ser mantidos dessa forma, mesmo que sejam particulares a essa classe – consequências de interesses particulares dela. Claro que não se trata de uma ―maquinação diabólica dos poderosos‖, pois a própria ideologia é fruto da prática social. ―O que ocorre, porém, é o seguinte processo: as diferentes classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como é vivido diretamente por elas, de sorte que as representações ou ideias (todas elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo as experiências que cada uma delas tem de sua existência nas relações de produção. No enteando, as ideias dominantes em uma sociedade numa época determinada não são todas as ideias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as ideias da classe dominante dessa sociedade nessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma (sua ideia a respeito de si mesma), representa sua relação com a Natureza, com os demais homens, com a sobrenatureza (deuses), com o Estado etc., tornar-se-á a maneira como todos os membros dessa sociedade irão pensar. A ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante tornam-se ideias de todas as classes sociais, tornam-se ideias dominantes.‖ (CHAUÍ, 2012, pp. 100-101)

Para além da concepção de Marx sobre ideologia em função de análises e críticas propriamente marxistas em seus meios, Chauí toca em assuntos muito próximos daqueles que discutiremos neste trabalho. Por exemplo, quando a autora mostra como opera o positivismo, onde ―o conhecimento teórico tem como finalidade a previsão científica dos acontecimentos para fornecer à prática um conjunto de regras e normas‖ (CHAUÍ, 2012, p. 33). Este, por sua vez, anunciará ―o advento da tecnocracia, que se efetiva no século XX‖ (CHAUÍ, 2012, p. 35). Depois, na última parte do livro, é apresentada a noção de Ideologia da Competência como algo derivado de ―uma mudança no processo social do trabalho‖, a partir, principalmente, da terceira década do

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século XX: ―a divisão entre os que possuem poder porque possuem saber e os que não possuem poder porque não possuem saber.‖ (CHAUÍ, 2012, p. 127).

Veremos como tal análise faz eco às críticas de Lajonquière em relação ao problema da crença na tese da adequação natural, aplicada no âmbito da pedagogia e ganhando a marca de legitimidade de um saber científico. Ambas as ideias (Chauí e Lajonquière), portanto, fazem crítica de discursos e pensamentos naturalizantes (um pelo viés marxista, outro pelo freudiano)6.

Sabemos também que a dimensão ideológica existe em qualquer linha de pensamento e está presente em todos nós e em todas as nossas vidas cotidianas – de diferentes maneiras para cada um, mas presente em todos. Como um grande sinal de alerta àquilo que vai contra a diversidade, pretendemos evitar ao máximo tal perigo7 e fazer o que Marx e Engels definem como contraponto da ideologia: a crítica da ideologia (CHAUÍ, 2012, p. 133).

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Tendo essas noções em vista, observa-se que há maneiras distintas de se debruçar sobre pensadores e suas ideias, que podem se afastar ou se aproximar do processo que faria delas ideologia. Luis Hornstein, no primeiro capítulo de sua Introdução à Psicanálise (1989) tece uma crítica à dogmatização da psicanálise (a nosso ver, o que ele trata por dogma é o que Chauí define como ideologia) e esclarece como optou por apresentar o conteúdo: ―(...) Habitualmente, costuma-se ensinar teoria psicanalítica de acordo com dois modelos: o primeiro é o modelo hipotético-dedutivo, que apresenta a teoria como um todo acabado, coerente, que vai desde as hipóteses mais abstratas até as mais específicas. [...] Oporemos a esse modo de ensino da psicanálise o método histórico-crítico, no qual, a partir da teoria já desenvolvida, tenta-se reconstruir o momento de gênese de cada conceito e seu posterior processamento intrateórico.‖ (HORNSTEIN, 1989, p. 25).

Ou seja, optará por um caminho de contextualização, não simplificado. Ora, contextualizar ideais dentro da História, mostrando que surgiram do homem e de sua práxis, é justamente uma das formas de lutar contra as forças que constituem uma ideologia. ―Ainda que se possam entender as

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Se o que a ideologia mascara, para Marx, é em última instância a luta de classes, o que o discurso (psico)pedagógico mascara é a ―realidade impossível do desejo em causa na educação‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 78) 7 Ainda que sempre haja certo grau de inevitabilidade no processo ideológico, ligado ao simples fato de nascermos em um mundo já em ―funcionamento‖.

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determinações afetivas que podem conduzir um analista ao dogmatismo, é necessário combatê-lo permanentemente‖ (HORNSTEIN, 1989, p. 27).

Em conversas informais com amigos e colegas, notamos que há muita incompreensão sobre os pensamentos freudianos. Claro que, por um lado, isso se deve pelo simples fato de que muitos nunca leram uma linha de qualquer escrito de Freud e se deixam levar na conversa pelo senso comum de ―achismos‖ e ―ouvi dizeres‖ (e é verdade também que ninguém tem a obrigação de ler ou gostar de psicanálise...). Mas entendemos, a partir dos apontamentos de Hornstein, que essa incompreensão se deve também a própria maneira como se fecha em si mesma boa parte da comunidade psicanalítica. Aqueles que naturalizam ideias psicanalíticas – e, por vezes, até as ―biologizam‖ –, tomando-as como a única explicação verdadeira para o ―desenvolvimento‖ da psique humana. Em outras palavras, aqueles que aproximam as ideias de Freud da ideologia.

Nesse sentido, apesar do meu percurso iniciante e curto na psicanálise, percebo que muitos aspectos da obra de Freud afastam suas ideias de um dogmatismo (ou ideologia) – se lidas com atenção e rigor, claro, pois a interpretação está sempre a cargo do leitor e de como este se posiciona. Monique David-Ménard, discutindo sobre as ―ambiguidades epistemológicas do método‖ nas ciências, na filosofia e na psicanálise, coloca: ―Ao seguirmos certas indicações de Freud sobre o caráter provisório dos conceitos que emprega — o de inconsciente, por exemplo —, diz-se que ele se inscreve em uma tradição que insiste na especificidade dos objetos a serem descobertos e na importância dos momentos de fracasso em uma pesquisa, o que vai contra a ideia de um método universal que reduz o desconhecido através da aplicação das regras do pensamento verdadeiro.‖ (DAVID-MÉNARD, 2015)

Nas palavras de Hornstein: ―Um dos méritos de Freud foi o de manter sempre a teoria em estado nascente, evitando que coagule em um sistema perfeito, e mostrando, permanentemente, as limitações de sua elaboração‖ (HORNSTEIN, 1983, p. 28, grifo meu). E, mais a frente: ―A obra de Freud é complexa, não há que simplificá-la‖ (HORNSTEIN, 1989, p. 29). Tanto sobre esse aspecto de sua obra, quanto pelo fato de contextualizar o leitor sempre que julga necessário, se pode dizer que Freud é um autor generoso8. No próximo capítulo ficará claro que é bem possível adotar uma perspectiva freudiana para muitas questões extremamente atuais. 8

A disciplina PSC 1221 Introdução à Psicanálise: Freud, ministrada pela Profa. Dra. Maria Lívia Tourinho Moretto (que acompanhei na condição de ouvinte no segundo semestre de 2015), faz abordagem do conteúdo semelhante à

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Pois bem, essa atitude tomada por Hornstein no que se refere à maneira de ensinar – que poderíamos tranquilamente chamar apenas de bom senso –, logo no primeiro capítulo de um livro com intenções ―introdutórias‖, curiosamente, toca em questões que trataremos neste trabalho, relativas à educação. E isso se dá sem que seja explicitado (dito) que ali há uma discussão ―sobre educação‖ em si. Tampouco o texto é classificado como pertencente à ―área da educação e pedagogia‖.

Um ponto central da crítica de Lajonquière ao discurso (psico)pedagógico hegemônico dos dias atuais é justamente a consciência de que dentro desse discurso existe a ideia de ―O Pedagógico‖, que ganha vida própria. Ocorre, então, que os ―especialistas‖ em educação e pedagogia se tornam aqueles ―qualificados‖ a dizer o que se deve ou não deve fazer, a priori, quando se ensina – independente do que se ensina. E esses, tantas vezes, não sabem bem explicar do que se trata esse ―O Pedagógico‖9...

Situação semelhante foi identificada por Hannah Arendt, nos EUA, na década de 1950: ―(...) Sob influência da Psicologia moderna e dos princípios do Pragmatismo, a Pedagogia transformou-se em uma ciência do ensino em geral a ponto de se emancipar inteiramente da matéria efetiva a ser ensinada. Um professor, pensava-se, é um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa; sua formação é no ensino, e não no domínio de qualquer assunto particular.‖ (ARENDT, 2014, p. 231)

Uma das possíveis consequências de algo assim é a perpetuação de uma lógica mercantil que, no pior dos casos, leva a um sucateamento das universidades e instituições que visam a ―formação de professores‖, em detrimento das demandas do mercado. Notamos, novamente, a consonância entre as críticas de Lajonquière e Chauí: ―Um outro efeito da ideologia da competência aparece na busca do diploma universitário a qualquer custo. [...] O diploma confere ao que procura emprego a condição de ‗especialista‘ e de ‗competente‘‖ (CHAUÍ, 2012, pp. 130-131). descrita por Hornstein. Moretto faz piada com o fato de que quando alguém se diz ―freudiano‖, deveríamos perguntar, ―freudiano, mas de que ano?‖, em alusão ao fato de que Freud reviu muitas vezes o que havia dito. Também em aula, a Profa. comentou o modo de escrever de Freud que – ao contrário de Lacan, por exemplo – busca ser claro em relação a apresentação de conceitos e teorias, o que Moretto chamou de ―ser um autor generoso‖. Então me parece que, de um lado, temos o que Freud disse em determinado momento e, de outro, o que foi lido e interpretado daquilo que ele disse... 9 Evidente que não, pois ―a ideologia nunca pode explicitar sua própria origem‖ e o preço que se paga ―é a existência de ‗brancos‘, de ‗lacunas‘ ou de ‗silêncios‘ que nunca poderão ser preenchidos sob pena de destruir a coerência ideológica. O discurso ideológico é coerente e racional porque entre suas ‗partes‘ ou entre suas ‗frases‘ há ‗brancos‘ ou ‗vazios‘ responsáveis pela coerência. Assim, a ideologia é coerente não apesar das lacunas, mas por causa ou graças às lacunas.‖. (CHAUÍ, 2012, pp. 132-133).

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Essa pedagogia ―especializada‖, então, passa a apontar para falsos problemas como sendo a causa do fracasso educativo. Ou, se não falsos problemas, ao menos problemas de ordem secundária – uma vez que, para nós, como veremos, o cerne do problema na educação hoje está no fato de que ―os próprios adultos dão corpo, nos detalhes da vida cotidiana, a essa criança imaginária que vela a relação com o real da criança‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 45). Levado pelos pensamentos tecnicistas e tecnocratas, o pedagogo ideólogo passa identificar como responsáveis pelo fiasco no qual se encontra a educação nacional: o método usado, a instituição escolar (e sua não ―divisão por ciclos de ensino‖, por exemplo...), a falta de formação de educadores – sejam pais ou professores, que, justamente, não estariam ―bem informados‖ sobre as atualizações da ciência da pedagogia e sobre a maneira correta de se lidar com a criança –, etc. Tais sentenças científicas de ―por que o ensino não vai bem‖, escondem também desigualdades socais que para serem resolvidas nada teriam a ver com ―ajustes‖ no âmbito educativo – questões como, por exemplo, a distribuição de renda e o pagamento justo de salários aos professores. Dessa forma, tudo que vai mal à educação é justificado como uma falta de adequação técnico-pedagógica, deixando de se debater politicamente aquilo que é, justamente, político.

Outra consequência (e sintoma) estaria no gradual desaparecimento da palavra mestre. Segundo Slavoj Žižek, nossa época é a ―época na qual a tradicional figura do mestre vem sendo cada vez mais substituída pelo ‗expert‘, pelo perito neutro que é legitimado por seu saber (científico)‖ (ŽIŽEK, 2015). Porém, há que se diferenciar um mestre de um tirano: ―Devemos distinguir o mestre dos impostores da maestria revestidos com todo tipo de ouropéis autoritários. Há o discurso do mestre, mas não propriamente o mestre do discurso‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 55). Por vezes é precisamente a confusão entre o ato de transmitir e o de coagir que serve de pretexto para a recusa da posição de mestre – a própria renúncia ao ato educativo. Veremos que tal renúncia deriva da não aceitação (inconsciente) da impossibilidade de relação presente em qualquer relação entre um adulto e uma criança. Os pedagogos ―especialistas‖, guiados por aquilo que dita ―O Pedagógico‖ – sua própria ilusão –, se demitem da posição de mestre que deveriam ocupar e deixam de dirigir uma palavra educadora à criança ou jovem a sua frente. Dessa forma, parafraseando Lajonquière, a educação torna-se um fato de difícil acontecimento...

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Depois de colocadas todas essas questões, seria ridiculamente contraditório se, ao começarmos a tratar das contribuições que podem surgir dos estudos de ―psicanálise e educação‖, passássemos a propor medidas práticas que ―resolveriam‖ os problemas da educação via aplicação da psicanálise. Lajonquière enfatiza inúmeras vezes em seus trabalhos que não cabe à psicanálise a intervenção prática, mas sim o reconhecimento daquilo que é nocivo nos discursos naturalizantes, bem como o especular sobre o porquê da necessidade de sua aplicação por parte dos adultos educadores. ―Longe de propormos a forma positiva de uma educação adequada, ou seja, de mais uma nova teorização pedagógica, pensamos estar contribuindo no sentido de assinalarmos, apenas, aquilo que não deve ser feito, caso se deseje o acontecimento de efeitos educativos. Dessa forma, reiteramos que não cabe à psicanálise nem definir os parâmetros de uma educação ideal nem vir a se colocar perante a educação como a razão de ser de um laço social a ser emulado em maior ou menor medida. (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 19)

Tampouco se trata de uma disputa acadêmica entre psicanálise e outras psicologias, para debater quem está mais ―certo‖ sobre o ―funcionamento‖ da mente humana. ―Nossa crítica sistemática ao processo de psicologização da educação não deve ser confundida com uma negativa em reconhecer o pretendido estatuto científico ou consistência teórica de alguma psicologia em particular.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 58)

Enfim, trataremos todas essas questões mais detalhadamente. Por enquanto, fiquemos com o último parágrafo do primeiro capítulo de Introdução à Psicanálise. Ainda que o livro seja destinado a um público adulto, cita oportunamente para nós a relação ―tradicional‖ entre professor e aluno. O autor, mais uma vez, fala sobre uma educação possível, sem precisar levantar uma bandeira onde se lê, ―Veja, estou falando sobre educação!‖: ―Pretendemos criar um âmbito que, ainda que num primeiro momento seja configurado pelas tradicionais figuras de professor e aluno, possa ir se convertendo num espaço de intercâmbio produtivo de experiências e dificuldades que cada um enfrenta em sua prática, e que nos permita fundamentar em maior precisão as razões das posições teóricotécnicas que cada um assumiu.‖ (HORNSTEIN, 1983, p. 30).

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Capítulo 2: Psicanálise, Educação e Crítica ao Discurso (Psico)Pedagógico Hegemônico

O que seria o discurso (psico)pedagógico hegemônico?

Lajonquière identifica como sendo a tendência predominante hoje, no Brasil, da aplicação de ―saberes psicológicos modernos‖, em prol daquilo que ―imagina-se como dever a ser cumprido ou possibilidade a ser gestada no interior do campo educativo‖: ―(...) Assim, se outrora teólogos, moralistas, políticos, filósofos, humanistas e pais de família discorriam sobre as vicissitudes da educação, hoje em dia, ao contrário, os que reclamam para si a potestade de pensá-las e usufruem de certa hegemonia são aqueles que professam um discurso psicopedagógico.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 29)

Daí o uso dos parênteses em ―psico‖, uma vez que se trata da ―mesmíssima pedagogia, pois ela sempre foi uma reflexão mais ou menos sistemática sobre os fins e os meios da educação‖: ―(...) Dessa forma, quem sabe sobre a educação e portanto fala como especialista na matéria é o (psico)pedagogo – suposto hoje detentor de uma série de saberes ‗psi‘ aplicados que possibilitariam calcular os efeitos psicodesenvolvimentistas das metódicas intervenções ‗educativas‘ colocadas em ação.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 29)

E agora nos perguntemos, relembrando nossa breve discussão sobre ideologia: o que o discurso (psico)pedagógico hegemônico mascara? O que ele ―naturaliza‖?

A resposta a essa pergunta será basicamente todo o desenrolar de nosso texto nesta parte do trabalho e há algumas respostas possíveis. Mas a princípio detenhamo-nos na seguinte afirmação: o que se mascara é o real da criança, colocando em seu lugar uma criança imaginária – imaginada pelo próprio adulto –, batizada por Lajonquière (2010) de A Criança.

Os diferentes ideais de educação, alternados em diferentes épocas, tiveram sempre em comum a fabricação de uma ―representação de criança, ora anjo a ser protegido dos males adultos,

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ora animal a ser adestrado em nome da civilização também adulta‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 41). O fato é que são dois lados da mesma moeda. Nessa alternância entre ―o oito e o oitenta‖ pedagógico, encontramos, por vezes, uma aposta no ensino ―rígido‖, à moda ―tradicional‖ – este tipo, mais obviamente reconhecível, é o mais comumente criticado em nosso meio universitário.

Freud (1930), sobre a pedagogia de seu tempo e país, dizia que: ―(...) a educação age como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos. Torna-se aí evidente um certo abuso das exigências éticas. [...] fazem o jovem acreditar que todos os demais cumprem as prescrições éticas, que são virtuosos. Nisso é fundamentada a exigência de que ele também o seja.‖ (FREUD, 2010, pp. 106-107).

Exigindo algo que corresponde antes a um ideal de mundo do que ao real da diversidade, a pedagogia inúmeras vezes se perfilou ao controle do aprendizado de maneira tal que chegou a extremos de ―terrorismo pedagógico‖10.

Sobre casos desse tipo, Lajonquière coloca: ―A demanda educativa em lugar de deixar um lugar ‗vazio‘ que possibilite a produção de um sintoma de estrutura – a própria aprendizagem – pode acabar exigindo de uma criança a encarnação, de fato, dos ideais que animam o ato [...].‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 23)

O ato educacional do adulto acaba por professar um ―furor pedagógico‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 22) desproporcionado, que pode condenar alunos ―à inibição intelectual ou à repetição

ecolálica de conteúdos escolares‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 24).

De outro lado, existem pedagogias que caem também numa idealização educacional, obcecando com o controle sobre os resultados, mas por um caminho diferente. Essas vão no sentido de ―uma espécie de renúncia à instância educativa ou demissão do ato, em lugar de uma aposta redobrada à moda tradicional‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 24). No final das contas, se troca seis por meia dúzia: se antes o professor ensinava em nome da moral e dos bons costumes cívicos e/ou religiosos, agora ele é servo da ciência pedagógica da moda. 10

Que encontra um de seus exemplos máximos nas proposições do médico ortopedista alemão Daniel G.M. Schreber, no século XIX, que pressupunha que ―o adulto deve adquirir um domínio não só sobre as iniciativas infantis mas também sobre o corpo da criança‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 23)

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É aí que se situa o discurso (psico)pedagógico. Nele a renúncia ao ato educativo se dá à medida que este é substituído pela tese da adequação natural, provinda de saberes psicológicos que, se seguidos à risca, dariam conta de ―educar‖ por si só. Como se bastasse ―sentar e esperar‖ que o ―natural‖ da criança aconteça, intervindo apenas quando necessário (ou quando manda o manual) para botar de volta nos trilhos algo que saiu da linha certa da normalidade.

Aqui uma ressalva deve ser feita referente ao atributo de proporcionalidade na educação. Embora se possa eventualmente referir a termos como ―ensino desproporcional‖ ou ―inflação/deflação‖ de demanda educativa, o acontecimento da educação não tem a ver com encontrar a ―medida certa‖ – entre o ―tradicional‖ e o ―moderninho‖, por exemplo. ―É fato que na educação de uma criança o adulto tanto ‗ensina‘ quanto ‗espera‘. [...] Se o adulto não ensinasse, não mostrasse – deliberadamente e inconscientemente – ‗como é que se faz‘ não haveria nada para ser apre(e)ndido por parte da criança. Por outro lado, se o adulto não doasse para a criança, bem como a si mesmo, o tempo de espera, então, a criança não teria tempo nenhum para apre(e)nder a fazer como os outros.‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 78) Entretanto, essa medida nunca é sabida a priori. Ao contrário, sempre se revela a posteriori. Vale citar aqui uma nota na qual Lajonquière faz ressalvas a uma afirmação feita por ele referente à proporcionalidade de demandas educativas: ―Esta afirmação não deve ser confundida, sob nenhuma hipótese, com aquela outra – típica dos meios (psico)pedagógicos – relativa à necessidade de se ajustar a intervenção às capacidades psicológicas infanto-juvenis. Como assinalamos, há tempo, em De Piaget a Freud, o atributo de proporcionalidade da demanda nunca é sabido a priori e, por outro lado, revela-se com relação à pulsão de saber11.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 23) A ideia de que se deve apenas ajustar isso ou aquilo para que a educação aconteça é o que acaba justificando a renúncia ao ato educativo12, no caso do discurso (psico)pedagógico atual. Assim, a noção de obsessão pelo controle dos efeitos educativos pode parecer, a princípio, paradoxal, pois enquanto se procura controlar aquilo que se supõe natural e ―dominável‖ pela ciência, se mascara o gesto da renúncia. Ou seja, há a ilusão de que se está empenhadíssimo em educar, mas o que acontece de fato é o oposto, a abstenção.

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Trataremos do conceito de pulsão mais adiante. É bom já mencionarmos que tal renúncia é em grande parte inconsciente, como veremos adiante.

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Então, se tem algo relacionado à proporcionalidade das coisas a que podemos nos referir é que quanto maior a preocupação com a elaboração de (psico)pedagogias – quanto maior o ―inflacionamento das criações pedagógicas‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 27) –, maior a renúncia ao ato educativo em si. Pois é justamente no ajuste de ―ingredientes‖ que creem os psicopedagogos. ―(...) se nos preocupamos pelo acessório – a afetividade, a criatividade, a felicidade... –, é por conta do discurso (psico)pedagógico hegemônico. Ele dá vida ou estofo a problemas que tanto não são de fato tais quanto têm por função mascarar o gesto de renúncia que está em causa nos impasses educativos atuais. A pedagogia atual explica tudo aquilo que considera um fracasso educativo em termos de resultado de uma falta de adequação, ou relação natural, entre a intervenção do adulto e o estado psicomaturacional das crianças e dos jovens. Assim, oscila-se entre afirmações do tipo ‗ainda não está maduro para uma tal atividade‘ e ‗o método utilizado revelou ser pouco eficaz‘, bem como tenta-se encontrar a medida certa da coadjuvação de ambos os fatores. Sendo essa tese da conaturalidade a que funciona como algoritmo do raciocínio pedagógico, é possível escutar por aí afirmações singulares do tipo: ‗é por causa da falta de motivação‘, ‗porque é filho de pais separados‘, ‗porque é uma criança favelada‘, ‗porque a lousa é preta e não verde‘, ‗porque, no lugar de fazer uma aula de uma hora, fez uma aula de uma hora e meia e as pesquisas psicológicas alertam para o fato de se produzir estafa psíquica depois de uma hora‘.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 28)

Em relação à ―afetividade, a criatividade, a felicidade...‖ enquanto falsos problemas na educação, sabemos o quanto isto pode soar estranho a alguns leitores a princípio, mas pretendemos deixar claro ao longo deste trabalho que, sob uma visão psicanalítica, tais termos são um tanto quanto vazios para se tornarem justificativas e metas educativas – e até contraditórios, do nosso ponto de vista, se pensados enquanto atributos que brotam espontânea e naturalmente da criança13.

Tudo isso não significa que esforços em relação à construção de métodos de ensino, por exemplo, sejam totalmente em vão. Mas o cerne do problema no que toca à educação jamais deixará de estar na situação onde um adulto se vê frente a frente com uma criança e a ela deve endereçar uma palavra – uma fala – educadora. Uma vez que esse fato não seja ignorado ou evitado, sabemos que apesar das adversidades – de métodos ―pouco criativos‖, da condição econômica, de uma eventual ―necessidade especial‖ do aluno, etc. – as crianças podem vir a usufruir da transmissão do conhecimento e fazer laço social. O apontamento para esses falsos problemas – ou a imaginação de problemas onde não há – acaba funcionando como pretexto para que o adulto se demita da posição de educador, incapaz de lidar com a inevitável dose de mal-estar que essa carrega. 13

O que não significa, em absoluto, desconsiderar aquilo que a criança faz, sente ou traz à aula – deixaremos isso claro ao longo do trabalho.

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―Nesse sentido, não devemos nos surpreender se alguém afirmar que permite sempre e a toda e qualquer criança de ir no banheiro quantas vezes quiser para assim evitar que se faça xixi nas calças e, portanto, que fique traumatizada a ponto de se colocar em risco o desenvolvimento integral de suas potencialidades (sic!) e ter finalmente que encaminhá-la a uma psicopedagoga.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 34)

O problema dessa abstenção do adulto do ato educativo é que então se vai deixando as crianças ―à mercê de uma anomia espiritual‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 29). Para que as regras mínimas de convivência social sejam transmitidas precisa haver uma dimensão arbitrária, que tantas vezes está no simples ato de um pai ou um professor dizer à criança, ―porque não e ponto!‖. Do contrário, uma criança que só ouve ―sim‖ será o jovem que não aprende, por exemplo, ―que não se deve tascar fogo em pessoas que esperam adormecidas, a chegada do ônibus‖14 (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 29).

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No texto da filósofa Hannah Arendt, intitulado A Crise na Educação (1957), a autora discorre sobre problemas decorrentes da ideologização da educação nos EUA da época. Um dos problemas por ela identificado está relacionado à confusão feita entre autoridade educacional – de um pai, mãe ou professor(a) – e autoridade política. ―Na educação, ao contrário, não pode haver tal ambiguidade face à perda hodierna de autoridade. As crianças não podem derrubar a autoridade educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta – embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.‖ (ARENDT, 2014, p. 240)

Foi como se tivesse ocorrido algo do tipo: no século XX, século de importantes conquistas políticas – das mulheres, dos trabalhadores, etc. –, se quis estender tais liberdades às crianças. Mas estas não podem ser consideradas iguais perante os adultos, pelo simples fato de que chegaram ao mundo depois. Portanto, cabe aos adultos mostrar às crianças que mundo é esse e quais são as ―regras do jogo‖. A função do educador é precisamente ―servir como mediador entre o velho e o

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Lajonquière usa o exemplo do índio Galdino Jesus dos Santos que foi queimado por dois adolescentes brincalhões de classe média; coincidentemente esse incidente me foi bem marcante. Tinha sete anos à época e assistia chocado às notícias sem entender muito bem o porquê de aquilo ter acontecido.

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novo‖ (ARENDT, 2014, p. 244), justamente para que se conserve a possibilidade de inovação – por mais paradoxal que possa parecer tal afirmação. ―(...) Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora [...].‖ (ARENDT, 2014, p. 243)

No caso analisado pela autora, um dos pretextos que se utilizou para a renúncia ao ato educativo foi um argumento político referente à autoridade15. Pensando novamente em termos de ideologia é notável como as ideias vão se naturalizando e atravessam os tempos. Vale colocar aqui dois relatos pessoais para ilustrar. Mais de uma vez aconteceu de estar junto a amigos – pelos quais tenho enorme carinho e admiração – e ocorrerem situações semelhantes. Numa, fazíamos um trabalho em grupo para uma disciplina da Faculdade de Educação e, honestamente, queríamos nos livrar logo da obrigação. Meu amigo então disse – num tom já de irritação com o tempo perdido: ―Ah, escreve aí vai, ‗o professor não é um mero transmissor do conhecimento...‘‖.16

Tempos depois, outro amigo relatou que tinha empacado num texto que escrevia, pois havia chegado a um ponto onde deveria escrever algo ―mais diretamente ligado à educação‖ – devido ao caráter pressuposto do trabalho – e estava sem ideias. E comentou como solucionou tal empasse: ―Ah, então eu coloquei lá, ‗o professor não é um mero transmissor do conhecimento‘ e umas coisas do tipo‖. Curiosamente essa ―resposta pronta‖ nunca vai de fato muito além dela mesma. No máximo leva algum complemento do tipo, ―o conhecimento é construído de forma conjunta entre aluno e professor‖ ou outras ideias que relacionam necessariamente ―transmitir‖ com ―doutrinar‖. Mas raramente há uma argumentação mais consistente que explique o que se quer dizer com ―o professor não é um mero transmissor do conhecimento‖.

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E como colocou Lajonquière certa vez em aula, quando uma pauta política passa a ser uma pauta pedagógica é porque justamente parou-se de discuti-la politicamente e, sintomaticamente, ela passa ser ―questão de educação‖. Exemplo: o tema cidadania sendo discutido na escola com crianças. 16 Claro que assumo também a responsabilidade por tal frase, uma vez que eu era integrante do grupo e devo ter deixado ficar por isso mesmo, tamanho era o tédio que me causava a obrigação.

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Claro que uma das origens dessa ideia está no fato de existirem, como já dissemos, os tiranos da educação – aos quais sempre daremos combate. Mas em vistas de encontrar melhores explicações e nuances para aquilo que se chama genericamente de ―ensino tradicional‖, citamos uma feliz diferenciação feita por Lajonquière: ―Por sinal, cabe alertar que nosso raciocínio [...] não pretende, em absoluto, endossar o voto tirânico de certos tradicionalistas. É verdade que todo tirano fala frequentemente em nome de uma tradição a ser protegida. Mais ainda, considera possível tal coisa. Eis aí a diferença! Outra coisa é apontar ao impossível de sua manutenção, sabendo do inevitável fracasso que não outro que a condição de experimentar num instante futuro a diferença dos tempos. Em suma, o sucesso de havermos um futuro – uma educação – perfila-se sobre um fundo de impossibilidade – aquela de haver repetição no tempo sem diferença.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, pp. 43-44)

Ou seja, a diferença entre aquele que ensina uma tradição17 sabendo – consciente e inconscientemente – que esta está fadada a mudança e aquele que procura ensiná-la buscando sua conservação total – o que é, antes de tudo, uma ilusão. Essa é, em parte, também a diferença entre autoridade educacional e autoridade política colocada por Arendt. Essa diferenciação é essencial para nós e deve nos acompanhar até o fim deste trabalho.

Ainda que esses meus queridos amigos ao trabalharem com crianças realizem um trabalho possível – pois, na hora da conexão com criança, na hora de encará-la frente a frente, lidam com os desconfortos da situação, evitando a renúncia –, é preciso ter cuidado com as ideias. Noções que nos parecem óbvias – como ―o professor não é um mero transmissor de conhecimento‖ – devem ser sempre repensadas, para não caírem no vazio onde habita a ideologia. A naturalização dessa ideia em particular pode ser um caminho para o ato de renúncia educativa ou levar, por exemplo, ao reconhecimento errôneo de que um professor está fazendo um ―mal trabalho‖, simplesmente por trabalhar em cima de algo taxado como ―tradicional‖. Tal acusação, quando infundada, vai contra a diversidade, pois, no final das contas, muitas vezes não gostamos daquele trabalho que é apenas diferente do nosso.

Seguindo no mesmo raciocínio, é nesse ponto que notamos também tanto o já mencionado desaparecimento da palavra mestre no Brasil quanto uma ojeriza de alguns ―militantes pedagógicos‖ em relação à ―aula expositiva‖. Como se qualquer aula que não seja ―em roda‖ (ao invés do formato ―tradicional‖ de filas de carteiras viradas para a lousa) ou que não seja num

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Seja capoeira, música caipira, canção popular brasileira, piano clássico...

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formato de ―discussão‖ com ―falas abertas‖ (ao invés de o professor falar, os alunos ouvirem e perguntarem eventualmente) esteja fadada ao erro e ao doutrinamento18.

Retomaremos mais à frente a ideia de transmissão na educação.

Até agora falamos sobre alguns fatos que revelam ideais pedagógicos em causa e sobre algumas consequências do discurso (psico)pedagógico. Assim, nos afastamos um pouco da explicação sobre aquilo que é mascarado: o real da criança. A seguir veremos como a psicanálise pode operar para nos revelar justamente o que leva à renúncia ao ato educativo – o porquê do mascaramento do real da criança.

De acordo com o que mencionamos ao final do primeiro capítulo deste trabalho, não caberá à psicanálise ditar ―o que fazer‖ no meio dessa alternância ideológica que tem demonstrado o espírito educacional moderno. Antes, caberá a ela assinalar qual é o desejo que anima a crença pedagógica.

*****

Relativo ao real da criança, outra coisa que é mascarada pela (psico)pedagogia é a ―impossibilidade de relação entre o adulto e a criança‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 18).

Mas de que impossibilidade estamos falando?

Para Freud, a missão histórica de toda a educação é a preparação da criança para o desejo (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 42). E de que desejo se estaria falando?

Em primeiro lugar, não se trata do sinônimo de querer. Não é um desejar corriqueiro do diaa-dia – ―eu quero aquilo‖. Não é um desejo consciente; o que nos remete diretamente ao único axioma da psicanálise: O Inconsciente. A elaboração desse conceito por Freud, fundamental para a psicanálise, engendrou aquilo que se chamou de virada cartesiana: se, pela lógica cartesiana, ―Penso, logo existo‖ (ou, como pode ser também entendida, ―Penso, logo sou‖), a partir da inserção 18

Claro que quando se trata de educação em artes (ainda que os eventuais problemas educacionais centrais aos quais estamos referindo sejam os mesmos em qualquer educação) existem certas medidas – tais como a disposição da sala – que nos parecem óbvias, pelo simples fato do uso do corpo e da espacialidade, que diferem de uma aula de matemática. Mas trataremos disso adiante.

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do inconsciente por Freud, Lacan propôs a inversão ―Penso onde não sou, logo sou onde não penso‖.

Essa inversão da máxima de Descartes foi possível graças à noção de que o pensamento, em sua concepção racionalista clássica, pertence à ordem do consciente – ou seja, não representa a totalidade do sujeito, mas apenas parte dele. De maneira bastante simplificada, podemos dizer que o grande paradigma que esse conceito traz é o de que o inconsciente é um todo em nós do qual não sabemos19.

Como na canção de Paulinho da Viola: ―Não sou eu quem me navega, Quem me navega é o mar‖20

O inconsciente, único determinismo da psicanálise, estaria presente em todo ser humano que vive em qualquer tipo de civilização (cultura). Entretanto, é um tipo de determinismo singular, pois não se trata de um fenômeno observável – nem comprovável organicamente, por meio de um exame, uma tomografia ou coisa que o valha. Não pode ser tido como uma ―verdade‖ pelas concepções da medicina, neurologia, psicologias organicistas, etc. Eis o porquê deste e de tantos outros conceitos que compõe a dimensão teórica da psicanálise serem tratados pelo nome de metapsicologia. Daí também se pode afirmar – ilustrando o que acabamos de dizer – que nenhum ser humano nasce com um inconsciente e, portanto, que a psique humana só se constitui dentro de uma cultura; só se constitui na alteridade – e na alteridade da palavra 21.

Voltando à educação, Freud coloca esta como sendo uma das três tarefas (profissões) impossíveis da humanidade – as outras duas sendo a política (o governo) e a própria psicanálise (FREUD, 1937). Posto que elas tenham em comum o fato de se darem apenas e necessariamente numa relação onde sempre há, no mínimo, dois sujeitos numa posição de fala – seja na relação professor/aluno, analista/paciente, sujeito-da-polis/sujeito-da-polis. Ou seja, são tarefas onde ―de

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Disso, não deve ser entendido – como tantos, infelizmente, entendem – que o psicanalista, ―especialista‖ sobre o funcionamento da psique humana, é detentor do saber sobre os desejos alheios e, em análise, ―esclarecerá‖ as pessoas do que elas realmente querem (e ainda será pago para isso). Tampouco o analista sabe de antemão, pois são infinitamente singulares os caminhos desejantes de cada sujeito, como esperamos deixar claro neste trabalho em nossas explicações sobre a psicanálise. 20 Timoneiro (Paulinho da Viola/Hermínio Bello de Carvalho). O ―mar‖ aí pode ser tranquilamente entendido como uma metáfora do inconsciente, do desejo... 21 Reiteraremos isso um pouco adiante.

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antemão se pode estar seguro de chegar a resultados insatisfatórios‖ (FREUD, 1937)22. Alguém sempre terá que abrir mão de algo. A impossibilidade à qual Freud se refere está associada, em última instância, à dimensão incontrolável própria do inconsciente.

Então a educação seria impossível? Evidente que não, pois, precisamente na forma como se lida com essa impossibilidade é que a educação acontece, em maior ou menor medida23. ―Justamente, a forma que o espírito moderno tem de lidar com essa impossibilidade não aponta à articulação fértil da diferença no sentido de uma possível sublimação do resto implicado na insatisfação em nível dos resultados. [...] Isso posto, é fácil perceber que a educação sempre carregou em si uma certa impossibilidade. Só que de uns tempos para cá há uma forma de lidar com essa impossibilidade que no lugar de permitir-nos fazer com ela coisas interessantes – fazer outras coisas apenas diferentes das que vínhamos fazendo e portanto evitarmos a massificação do gozo – atenta, em e por princípio, contra a própria educação. Ou seja, nos conduz a um impasse no processo de subjetivação inerente à educação. É precisamente perante essa impossibilidade que o homem moderno oscila entre reduplicar com insistência a aposta educativa ou renunciar ao ato.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, pp. 26-27)

Então, a referência aos ―resultados insatisfatórios‖ deve ser lida como ―resultados que nunca serão cem por cento satisfatórios‖. A sublimação ou o ―fazer outras coisas apenas diferentes‖ com a parte insatisfatória é precisamente o que diferencia uma educação possível de uma educação impossível24 – ou, se não impossível, de difícil acontecimento... Pois bem, quando a forma de se lidar com a ―realidade impossível do desejo em causa na educação‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 78) vai por um caminho de fuga e mascaramento, surgem ilusões tais como a (psico)pedagógica. Justamente porque lidar com o desejo, com a angústia de inúmeras situações na vida, não é fácil mesmo. Disso pode resultar que: ―Quando o adulto educa, ou seja, quando endereça a palavra a uma criança, bem pode, não estar falando de fato com ela. Pode estar só falando com aquela imaginária que habita tanto a sua neurose quanto aquela do ideário pedagógico hegemônico. Isso pode surpreender, mas é bem visível ou, talvez, devêssemos dizer audível, quando o adulto passa o tempo todo ‗falando da‘ criança, dessa outra genérica que hoje em dia tomou a forma de A Criança, mas não se engaja como sujeito na sua palavra junto àquela que tem na sua frente. No que tange a 22

Disponível em: 23 E como coloca Lajonquière, ―a despeito das ilusões pedagógicas, a educação, não poucas vezes, também acontece‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 23) 24 Em referência ao trabalho da psicanalista Maud Mannoni, Educação Impossível (1973), importante para a construção da crítica de Lajonquière.

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isso, que retorna do recalcado na educação, pela boca desta última, o adulto é surdo.‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 45)

Pensando novamente sobre A Criança – ou o real da criança que é mascarado – temos, acima, Lajonquière se referindo à negação ao gesto de escutar a criança. Como dizíamos anteriormente, um ensino tradicionalista de caráter conservador e um ensino que se subjuga aos conhecimentos psicológicos cientificistas, são dois lados da mesma moeda: em ambos o adulto não escuta a criança. Se no primeiro caso isso frequentemente se dá por acreditar que o desejo e a fala da criança devem mesmo ser ignorados – em nome do dever para com determinada moral a ser ensinada –, no segundo digamos que se escuta o que se quer ouvir. Pois, seguindo os manuais sobre o ―desenvolvimento da criança‖, sempre se espera escutar aquilo considerado ―normal‖ daquela idade em questão (fase específica do desenvolvimento), ao invés de ―aceitar inconscientemente o fato de que a criança à qual falamos nunca está aí, onde pensamos ela estar‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 45).

Portanto, é importante sublinhar que a impossibilidade à qual nos referimos – aquela própria do inconsciente e da condição de alteridade da cultura – pensada no contexto do campo educativo, não deve ser traduzida em um cinismo do tipo, ―já que não temos controle das coisas, larguemos mão de qualquer esforço, não vamos estudar nem preparar aulas ou pensar sobre o que vamos dizer ou fazer na hora de ensinar‖. Ora, pelo contrário. Não é possível dar uma aula de violão não sabendo tocar violão ou ensinar matemática não sabendo matemática!25 Porém, ao ensinar aquilo que se pretende, o adulto terá de lidar não apenas com suas próprias limitações, mas também com a incerteza de como aquilo será recebido pela criança. E, ao se abrir para escutar a criança, terá também de lidar com a possibilidade de ouvir algo que não goste – algo que não se quer ouvir, algo que a criança possa falar que gere desconforto ao adulto. A dimensão impossível da educação está ligada à importante diferença entre ―saber sobre e saber do inconsciente‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 60), que nos traz a psicanálise. Saber do inconsciente se refere à aceitação da dimensão impossível implicada em toda a educação, enquanto o saber sobre o inconsciente – ou o querer saber sobre o inconsciente – remete a perigosa obsessão pelo controle daquilo que não é totalmente controlável. Uma visão psicanalítica nesse ponto nos 25

―Obviamente, se retiramos o sentido daquilo que vamos ensinar ou mostrar de uma tradição de pensamento, tiramos tudo. Não fica nada. No lugar desse ‗nada‘ a pedagogia moderna coloca ‗o pedagógico‘. [...] é em nome dessa coisa anônima que se age na educação, é a ela que se deve obedecer‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 31). Trazendo mais uma vez a ideia de alternância de extremos pedagógicos como supostas soluções para educação, podemos pensar, novamente, na noção de troca de um ideal de ensino ―tradicional conservador‖ por um discurso científico-pedagógico.

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ajuda a perceber o grande problema que existe quando um sujeito se esforça muito para ―ser gostado‖. Qualquer educador mais experiente (seja na educação familiar ou escolar) – e não tomado por ilusões pedagógicas – sabe que não é um bom negócio perguntar a uma criança, ―você gosta de mim?‖. Insistir nessa pergunta então nem se fale. Aliás, o objetivo do adulto envolvido numa educação jamais deveria ser o de ―ser gostado‖. Mesmo porque o ―gostar‖ ou o ―ser gostado‖, bem como o ―se sentir feliz‖ ou o ―se sentir triste‖ são sentimentos passageiros e variáveis na vida. Sob essa perspectiva, a educação nada mais é – na concepção freudiana e psicanalítica, como coloca Lajonquière – do que uma relação de amor26. Isto significa que em alguns dias haverá maior inspiração, sensação de que a coisa vai bem, alegria; noutros, maior decepção, angústia, ―fase ruim‖; difícil de prever. Como em qualquer namoro, em qualquer aventura amorosa. Retomaremos essa ideia mais adiante.

*****

Agora que nos aproximamos um pouco mais da concepção de desejo psicanalítica, podemos explicar porque Lajonquière define a (psico)pedagogia como uma forma de ilusão. Em O Futuro de uma Ilusão (1927), Freud define uma ilusão como sendo uma crença animada por um desejo (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 70)27. Com ênfase na crença religiosa, Freud desenvolve uma tese sobre o porquê do mantimento da mesma. Em última instância podemos resumir que ―uma ilusão se mantém apenas porque cumpre uma função na economia psíquica‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 70). Isto é, se torna uma ferramenta psíquica para não encarar o desejo e sua impossibilidade. No caso da ilusão (psico)pedagógica, a crença nutrida está na ―natureza‖ enquanto entidade perfeita: ―A ideologia naturalista se nutre da ilusão de uma sabedoria natural, da ideia de que a natureza é uma mãe sábia, bem como de que tudo aquilo que sai do seu seio é perfeito de forma tal que à intervenção do homem cabe ou a estragar ou complementar sua empreitada.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 36)

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―Lembre-se que para a psicanálise o amor não é mais do que o ódio e vice-versa‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 176) Nas palavras de Freud: ―(...) chamamos uma crença de ilusão quando em sua motivação prevalece a realização de desejo (...).‖ (FREUD, 2014, p. 268). 27

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E o desejo em causa que é recalcado está relacionado com a já mencionada dimensão de impossibilidade embutida em qualquer relação que faça laço social – no caso, a relação entre adulto e criança28. ―De fato, o naturalismo acredita que a inocência e a espontaneidade, enquanto supostas características naturais de toda natureza, contagiam a intervenção humana à medida que essa última se ajusta àquela. Assim, na proporção de sua obediência à natureza psicológica infanto-juvenil, o pedagogo construtivista goza inconscientemente da possibilidade ‗natural‘ de vir a se imbuir de uma grandeza outra e, dessa forma, poder se esquecer da responsabilidade que lhe cabe pela fragilidade do acontecimento do humano.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 70) O adulto, então, se esconde do real e passa a endossar o seu próprio sonho, no qual idealiza a criança. E como disse Gilles Deleuze certa vez: ―Desconfiem do sonho do outro, pois se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão fudidos!‖29 (DELEUZE, 1999, pp. 8-9). ***** Acontece que, a partir da psicanálise, ―é um tanto duvidoso pensar que no nosso interior orgânico se aninham capacidades que amadurecem graças a uma estimulação ambiental correta‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 32) – ao revelar-se, por exemplo, o caráter pulsional polimorfo infantil (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 41).

O conceito de pulsão, quando pela primeira vez elaborado em maior abrangência e complexidade por Freud (1905), possibilitou a abertura de todo um raciocínio que romperia de vez a relação entre ser humano e determinismo biológico. Como colocado por Maria de Fátima Vicente (2014), o conceito de pulsão é ―aquele que permite alcançar e circunscrever a desnaturação da espécie [humana]‖ (VICENTE, p. 83). Ainda segundo a autora, a partir da teoria pulsional foi possível o ―reconhecimento, pela psicanálise, do

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Esse desejo também está ligado com a reconciliação ou não do adulto com a criança que ele mesmo foi um dia, mas trataremos disso mais adiante. 29 Tomamos a liberdade de modificar a tradução presente na bibliografia indicada. Como se pode verificar no vídeo da palestra, disponível em: , aos 25min e 10s, o filósofo diz ―vous êtes foutu‖, que na tradução indicada torna-se, ―estarão em maus lençóis‖, e na legenda do vídeo, ―estarão perdidos‖; optamos por uma tradução menos politicamente correta e mais fiel ao original.

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sentido sexual30 dos processos inconscientes‖ e tal reconhecimento ―evidencia a substituição daquele corpo [que se integrava aos processos cíclicos e regulados] por outro, o erógeno, que só se estabelece e se constitui em um laço com outro humano.‖ (VICENTE, p. 83). Em outras palavras, o psiquismo humano só se constitui na alteridade.

A diferença entre orgânico e psíquico não é simples. É uma questão que esteve presente durante toda a história da psicanálise, sendo responsável, podemos dizer, pelo próprio nascimento desta última. Desde os escritos de Freud junto a Breuer, no final do século XIX, notamos que uma questão já se delineava: a diferença da noção de sofrimento para a medicina e para a psicanálise31. Ou, ao menos, se pode dizer que em certas situações nas quais a psicanálise reconhece que há sofrimento no paciente, para a medicina não se configura como tal. Por exemplo: as causas da fome podem ser localizadas e reconhecidas organicamente – um sujeito tem fome, pois não come há certo tempo e isso provoca reações típicas em seu organismo perceptíveis e passíveis de identificação anatômica por meio de determinados exames. A partir disso, como explicar o que leva um sujeito que não apresenta nenhum sinal orgânico de fome, a continuar comendo compulsivamente a ponto de se tornar um obeso mórbido? Ou (talvez ainda mais estranho para a medicina) um sujeito que apresenta todos os sinais orgânicos de fome, mas é incapaz de ingerir qualquer alimento?

Outro exemplo, o sono. Causas orgânicas que levam uma pessoa a ter sono são conhecidas. Como explicar então o que leva um sujeito que não apresenta nenhum sinal físico, orgânico, de sono ou cansaço, mas dorme o dia inteiro? Ou um sujeito que apresenta todos os sinais orgânicos de sono, mas se encontra num estado de atenção que lhe impossibilita dormir?

Casos clínicos como esses, sem correspondência orgânica, mas onde os sintomas eram visíveis – e tantas vezes, graves, levando o paciente à paralisia, por exemplo –, inquietavam Freud, médico-neurologista à época. Grande parte da comunidade neurológica32 atribuía a esse tipo de sofrimento (sem causa orgânica) a condição de puro fingimento por parte do paciente. O diagnóstico de muitos em relação ao padecer era: nada. Freud, como é sabido, não compartilhava da opinião do 30

Lembrando que, em psicanálise, a sexualidade (ou o erotismo), não tem a ver necessariamente com sexo genital propriamente, como se pensa no senso comum. Falar em sexualidade é falar sobre satisfação pulsional – e satisfação, por sua vez, não é o mesmo que felicidade (ou com ―se sentir‖ feliz ou infeliz). 31 Embora não se possa dizer que já houvesse a psicanálise nessa época. 32 Como infelizmente acontece até os dias de hoje...

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nada. Desse tipo de caso surge a noção psicanalítica de histeria33 e, partir desta, está aberto o caminho que levará ao nascimento da psicanálise34.

Damos agora um salto histórico-temporal à frente para voltar ao conceito de pulsão. De acordo com Freud (1915): ―Se abordarmos a vida psíquica do ponto de vista biológico, a ‗pulsão‘ nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo.‖ (FREUD, 2004, p. 148)

Se a pulsão é o ―representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo‖, torna-se vazia, em psicanálise, a ideia de separação entre corpo e mente. Mas então de que diferença entre orgânico e psíquico falávamos antes? Nos permitimos dar uma pequena volta para explicar.

Existe ainda latente no universo da psicanálise uma questão relativa à tradução do termo alemão Trieb. Acontece que alguns tradutores optam por, ao invés de pulsão, traduzi-lo como instinto. Os argumentos trazidos por Laplanche e Pontalis (1991) sobre essa questão de tradução nos esclarecem pontos importantes. Sobre o termo Instinto, temos como primeira definição: ―Classicamente, esquema de comportamento herdado, próprio de uma espécie animal, que pouco varia de um indivíduo para outro, que se desenrola segundo uma sequencia temporal pouco suscetível de alterações e que parece corresponder a uma finalidade.‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 241)

Depois há uma argumentação, onde encontramos: ―A concepção freudiana do Trieb, como força impulsionante relativamente indeterminada quanto ao comportamento que induz e quanto ao objeto que fornece a satisfação, difere nitidamente das teorias do instinto, quer na sua forma clássica, quer na sua renovação que lhes trouxeram as pesquisas contemporâneas (noção de padrão de comportamentos, de mecanismos inatos de desencadeamento, de estímulos-sinais específicos, etc.). O termo instinto tem implicações nitidamente definidas, muito distantes da noção freudiana de pulsão. Note-se, por outro lado, que Freud usa por diversas vezes o termo Instinkt no sentido clássico, falando de ‗instinto dos animais‘, de ‗conhecimento instintivo de perigos‘, etc.‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 242)

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Embora o termo já existisse antes, a partir de Freud ganha outras dimensões (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 211) 34 Que, podemos dizer, se consuma quando Freud abandona a hipnose.

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E, mais adiante: ―Vemos que Freud usa dois termos que podemos opor claramente, embora não tenha atribuído um papel explícito a esta oposição na sua teoria. Na literatura psicanalítica, a oposição não se manteve sempre, muito pelo contrário. A escolha do termo instinto como equivalente inglês ou francês de Trieb não só é uma inexatidão de tradução, como ameaça introduzir uma confusão entre a teoria freudiana das pulsões e as concepções psicológicas do instinto animal, e apagar a originalidade da concepção freudiana, particularmente a tese do caráter relativamente indeterminado do impulso motivante e as noções de contingência do objeto e da variabilidade das metas.‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 242)

Ainda de acordo com estes autores, sobre o termo Pulsão, lê-se: ―Em Freud encontramos os dois termos [Instinkt e Trieb] em acepções nitidamente distintas. Quando Freud fala de Instinkt, qualifica um comportamento animal fixado por hereditariedade, característico da espécie, pré-formado no seu desenvolvimento e adaptado ao seu objeto.‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 394)

Pois bem, a pulsão, em sua concepção freudiana, possui quatro aspectos principais35: 

Fonte – origem interna (isto é, no corpo) de cada pulsão



Meta (ou objetivo) – satisfação da pulsão (que será sempre parcial, devido à impossibilidade de sua plenitude)



Objeto – alvo da pulsão (que, como veremos a seguir, é variável)



Pressão – fator quantitativo variável de cada pulsão; força da pulsão

Foquemos em um dos aspectos: o objeto36. Em se tratando de uma pulsão (humano) e não de um instinto (animal), o objeto se apresenta como algo extremamente variável (de pessoa para pessoa, de pulsão para pulsão). Isso porque aquela pulsão que se originou no corpo – a fome, por exemplo –, não vai buscar sua satisfação sempre no mesmo objeto que lhe satisfez naquela mítica primeira vez – o seio materno e seu leite, seguindo o exemplo. Isso se dá à medida que o objeto original se inscreve como marca psíquica para, mais tarde, se ressignificar como representação psíquica. Entretanto, essa contingência do objeto, na teoria freudiana, ―não significa que qualquer objeto possa satisfazer a pulsão, mas que o objeto pulsional, muitas vezes marcado por 35

Como para nós, nesse momento, não está em foco a elaboração detalhada desses aspectos, sugerimos ao leitor interessado buscar as explicações sobre os mesmos no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (referenciado na bibliografia), onde também é apontada a localização destes na literatura psicanalítica. 36 Que não deve ser confundido com o ―sentido tradicional da filosofia e da psicologia do conhecimento, enquanto correlativo do sujeito que percebe e conhece‖, onde ―é aquilo que se oferece com características fixas e permanentes, reconhecíveis de direito pela universidade dos sujeitos, independentemente dos desejos e das opiniões dos indivíduos‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 321)

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características singulares, é determinado pela história [...] de cada um.‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 322, grifo meu).

Pensemos agora sobre o instinto animal. Um animal realiza suas ações de acordo com seus instintos e suas adaptações ao meio. Isso significa que essas ações – comer, dormir, defecar, etc. – possuem sempre o mesmo objetivo – necessidades fisiológicas ou ação comportamental herdada – e o mesmo objeto para satisfazê-lo – que varia entre espécies, mas é fixo em cada uma delas. Sendo assim, uma ação jamais adquirirá outro sentido – outro significado – para o animal37.

Sobre um humano recém-nascido podemos dizer que num primeiro momento suas ações são regidas por sensações físicas: o bebê chora após o parto, pois sente um desconforto no corpo e, por isso, grita. Esse primeiro grito é instintivo (ninguém o ensinou a gritar). Mas a partir, digamos, do segundo número dois da vida, suas ações e sensações físicas passam a ocorrer juntamente e/ou intercalados às ações e à fala de um outro – da mãe ou de quem quer que o esteja cuidando. Aos poucos, ações e sensações vão ganhando uma dimensão simbólica, cultural – ligada a história singular de cada pessoa, como vimos. Um pouco mais adiante na vida do bebê a palavra passará a se inscrever como elemento principal desse universo simbólico38. E eventualmente se apreenderá outras linguagens, como, por exemplo, a música.

Detalhando um pouco mais: num primeiro momento Freud propõe o Princípio do Prazer como o cerne da teoria pulsional, onde ―o aparelho psíquico é regido pela evitação ou evacuação da tensão desagradável‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 365). Esse princípio logo apresentou paradoxos em relação a outras referências teóricas, um deles estando ligado ―à própria definição de prazer e de desprazer‖, como sendo ―apenas a tradução qualitativa de modificações quantitativas‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 365). Freud não simplifica a questão e elabora o Princípio de Realidade (1911), complementando o do Prazer: ―(...) Forma par com o princípio de prazer, e modifica-o; na medida em que consegue imporse como princípio regulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais

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O que não deve ser confundido pela noção da capacidade do homem de adestrar um animal, o que é muito diferente de educar. 38 Isso não implica que os animais sejam seres ―inferiores‖ ou ―menos evoluídos‖, por serem desprovidos de fala ou da dimensão simbólica. Como coloca Lajonquière: ―A animalidade não está fadada ou destinada à fala, da mesma forma que a fala humana não está dada, não está escrita nem como possibilidade, nem como destino evolutivo.‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 86)

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curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior.‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 368)

Ou seja, a pulsão leva o sujeito a buscar sua satisfação – meta –, mas este encontrará pedras no seu caminho, parafraseando o poeta. As ―condições impostas pelo mundo exterior‖ – que seriam as pedras – são, portanto, fator fundamental que leva as pulsões a buscarem vicissitudes – daí a variabilidade do objeto. Por isso, repetimos, o humano só existe como tal na alteridade. Isto é, a partir do mundo exterior e do outro – e estes também são causas do inevitável mal-estar na civilização.

Enfim, vemos então como, via psicanálise, encontramos um caminho possível que nos leva a distinções cruciais entre humano e animal.

O músico e educador musical, Hans-Joachim Koellreutter certa vez disse à Prof.ª Teca Alencar de Brito: ―Escute aqui, Teca: natural é fazer xixi. Tudo o mais é cultural!‖39. Claro que a ideia principal de Kollreutter nessa afirmação estava contida na segunda frase – afirmar que ―tudo é cultural‖, em total consonância com Freud, aliás. Mas em psicanálise é possível ir além: fazer xixi, para o ser humano, tampouco é natural!40

***** Quando falamos anteriormente sobre o ―caráter pulsional polimorfo infantil‖, nos referíamos, portanto, a diversidade característica do ser humano – isto é, a variedade de atitudes, identificações, linguagens, desejos, simbolizações que encontramos dentro dessa mesma ―espécie‖ que é a humana. Esse é o real da criança, que o discurso (psico)pedagógico procura padronizar em A Criança.

Ainda sobre a diferença entre humano e animal, Lajonquière coloca: ―Os animais não falam, entretanto, isso não os impede de se comunicarem com maior ou menor desenvoltura graças a uma linguagem sempre consistente. Vale a pena lembrar aqui os estudos do etologista, prêmio Nobel de Fisiologia em 1976, Karl Von Frisch, sobre a maneira das abelhas se comunicarem entre si (BENVENISTE, 1976). A abelha que 39

BRITO, 2004, p. 138. Basta pensarmos em um caso bastante comum: uma criança que faz xixi na cama à noite (e não devido a problemas fisiológicos na bexiga...). Para além da necessidade fisiológica de evacuação, o significado que carrega a ação de urinar é único para cada ser humano. 40

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identificou a floreira com néctar retorna à colmeia e realiza uma dança composta de rodeios verticais e horizontais para informar a direção e o sentido, a respeito da luz solar, nos quais as outras devem voar. Porém, a engenhosidade da linguagem das abelhas só serve para veicular essa informação e, mais ainda, só por aquela abelha que tenha de fato localizado o néctar. As abelhas só veiculam informações que elas mesmas obtiveram na viagem de reconhecimento. Em suma: elas não fofocam. Que assim seja isso nada diz da retidão moral do ser abelhístico, mas apenas que a linguagem rodada uma ou outra vez na dança não permite dizer meias verdades, ou seja, ela é consistente, cerrada.‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 86)

Isso nos remete a famosa noção marxista de que o trabalho do homem difere do trabalho da abelha41 (MARX, 1983, p. 149). Isso porque as abelhas não tem História (além de não fofocarem)!

Voltando ao discurso (psico)pedagógico hegemônico, Lajonquiére identifica três consequências imediatas quando a educação passa a ser pensada como ―a estimulação com vistas ao desenvolvimento de capacidades maturacionais‖ (LAJONQUIÈRE,1999, pp. 40-41): 1) A suposição daquilo que já está n‘A Criança (bem como a imaginação desta, como vimos) e a necessidade de apenas complementar e ajustar. 2) A inversão temporal, isto é, ―ao invés de a educação estar tencionada pelo passado, passa a está-lo em direção ao futuro‖. 3) A demissão dos adultos do ato educacional e sua substituição pela ciência pedagógica que lhe dirá ―o que fazer‖, uma vez que os primeiros ―condenam-se a experimentar um sentimento de vergonha atrelado a um certo medo de vir a errar junto à criança‖.

Já discorremos sobre o primeiro e o terceiro ponto. Mas, aliados ao segundo, que nos é fundamental nesse momento, chegamos a uma noção importante: a educação como transmissão histórica42.

Vejamos o exemplo usado por Lajonquière para ilustrar o segundo ponto: ―(...) Quando um pai compra uma bicicleta para seu filho, pois ele mesmo sabe andar, já que seu próprio pai lhe havia comprado uma por determinados motivos que se perderam no tempo ou, ao contrário, porque nunca teve em decorrência de problemas financeiros ou religiosos, age – como qualquer mortal – em nome de uma certa contingência existencial chamada desejo. Quando esse pai compra a bicicleta esse passado abocanha o presente e 41

Poderia ser qualquer trabalho animal, obviamente, apenas coincidiu dos dois autores escolherem o mesmo animal como exemplo. 42 O que nos remete tanto à noção trazida por Arendt de se conservar um lugar para a inovação, quanto à diferenciação de Lajonquière sobre ―ensinos tradicionais‖ (ver pp. 21-23).

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historiza a criança. Entretanto, quando um pai dá um presente, em virtude da capacidade deste de vir a estimular as potencialidades do filho, justifica o ato nas benesses de uma realidade psicológica futura. Paradoxalmente, o adulto não dá um presente para seu filho, outorga aquilo que se supõe estar precisando a natureza. Ou numa outra perspectiva, não dá ‗um presente‘ para seu filho a partir de um passado mais ou menos esquecido, mas um futuro degradado na medida em que esse porvir já estaria contido em germe no eterno presente da natureza.‖ (LAJONQUIÈRE,1999, pp. 40-41)

Isso tem a ver com a dimensão arbitrária – já mencionada anteriormente – que existe em toda educação não (ou menos) iludida, onde se ensina (transmite) coisas por motivos do tipo, ―porque minha avó cantava isso quando eu era pequeno...‖, ―porque foi assim que me ensinou meu mestre antes de mim...‖, ou ―não pode pôr o dedo na tomada, porque simplesmente não pode, oras!‖. Ao invés de se ensinar de determinada maneira ―porque foi assim que mandou o ‗manual de como ensinar‘‖.

É comum notarmos no meio da pedagogia infantil atual a substituição do fazer pelo jogar ou pelo brincar – isso é reconhecido tanto por Arendt no seu tempo quanto por Lajonquière hoje. A justificativa estaria no suposto fato de que o jogo43 é o natural da criança. ―(...) Os adultos supõe, hoje, que a criança brinca por efeito de um saber real que clama por desenvolvimento e não por conta da tentativa de vir a se apropriar do suposto saber fazer adulto com o desejo. [...] O brincar não obedece a uma imitação psicológica no presente, mas à tentativa de responder à demanda dos adultos significativos, que à criança se endereçam não por aquilo que ela é senão por aquilo que não é e espera-se que seja num futuro. Esse um futuro não é aquele – O Futuro – pressuposto pelas teorias do desenvolvimento, porém aquele alimentado por uma memória passada, que ‗não cessa de não se inscrever‘ no dizer de Lacan. De fato, como o brincar infantil alimenta-se no passado, a criança enuncia ‗agora eu era...‘ (Jerusalinsky e Tavares, 1992). Assim, brincar é conjugar os tempos: o futuro do ‗vir a ser‘, o passado do ‗era-se‘ e o presente do ‗agora brinco‘. [...] Assim, brincar que ‗agora eu era‘ isso aí onde sou desejado é a possibilidade que cabe à criança de realizar de forma invertida o ideal em causa nesse lugar.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 39)

Os leitores ligados em canção popular brasileira certamente se lembrarão da letra de Chico Buarque sobre a melodia de Sivuca: ―Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês...‖44

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Isso não deve ser confundido com o conceito filosófico de jogo proposto por G. Deleuze, referido em trabalhos nos meios da educação artística. 44 João e Maria (Chico Buarque/Sivuca)

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O que acontece quando se educa em nome daquilo que se espera d‘A Criança – e do seu Futuro – é que se acaba criando precisamente uma educação focada apenas na criança e, no pior dos casos, ―a criança passa a ser pensada como cliente e a educação escolar como o processo pelo qual se deve outorgar-lhe aquilo que precisa para sua satisfação total‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 39). O adulto, se eximindo da responsabilidade de educar e transmitir, deixa de historizar o passado (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 43) e acaba negando à criança a possibilidade de que esta encontre seu lugar na história, favorecendo, ao contrário, o futuro de uma ilusão. ―(...) Parafraseando Marx – a última tese sobre Feuerbach –, digamos que o adulto da práxis não pensa ou contempla o suposto conjunto das capacidades psicológicas como uma realidade exterior para, assim, imitá-la com ajuste. Ele transforma o mundo infantil à medida que lhe injeta em germe o artifício de uma realidade adulta, isto é, o mesmíssimo desejo de saber, nas palavras de Freud.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 69, grifo meu)

Esse parágrafo de Lajonquière vem felizmente de encontro às relações que temos traçado entre a crítica à ilusão (psico)pedagógica – feita via psicanálise – e a noção de crítica da ideologia marxista. Tomamos a liberdade de sublinhar o termo ―adulto da práxis‖, pois seria esse, enfim, em nosso entender, o educador possível!

*****

É sobre essa perspectiva histórica que podemos dizer que o desejo em causa na educação é aquele mesmo que leva um professor a optar por tal ofício: nas palavras de Lajonquière, ―um professor é como um criminoso que retorna à cena do crime‖! Essa ótima metáfora45 diz respeito ao fato de que quando o adulto dirige a palavra a uma criança está, em certa medida, se endereçando àquela criança que ele mesmo foi um dia.

Alguns colegas que estão sendo agora contratados por escolas como professores integrais da grade fazem comentários nesse sentido. Relatam como é curiosa a sensação de voltar àquelas mesmas quatro paredes, porém estando agora ―do outro lado‖. ―Segundo a psicanálise, não se trata de ajustar a intervenção adulta a uma realidade infantil prévia, mas de indagar-se – única forma de reconciliação possível consigo mesmo – sobre aquilo que a criança representa inconscientemente. Como a criança que o adulto tem na sua frente remete de forma metonímica e metafórica àquela que ele foi, então a indagação 45

Que nada tem a ver com o juízo de valor de um crime, mas sim com um pensamento psicanalítico referente à ideia de que um criminoso, inconscientemente, deseja voltar à cena do crime.

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adulta acaba desdobrando a diferença que se aninha entre os tempos de ontem e de hoje.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 62)

―Em suma, um adulto consegue infundir-se na alma da criança que está na sua frente quando consegue reconciliar-se com aquela outra criança que ele foi uma vez‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 62). Ao mesmo tempo, não se trata de haver-se apenas com ―aquela criança que foi para os outros como também aquela criança que não foi, mas que era esperada por eles‖ (LAJONQUIÈRE, 2009, p. 169, grifo meu). ―(...) Aquilo que o mestre ensina, embora seja dele pois o apr(e)endeu, não lhe pertence. O aprendido é sempre emprestado de alguma tradição que já sabia o que fazer com a vida. Assim, aquele que aprende de fato contrai automaticamente uma dívida que, embora acredite às vezes tê-la com seu mestre ocasional, está em última instância assentada no registro dos ideais ou do simbólico.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 173)

O reconhecimento dessa dívida simbólica implica no reconhecimento da própria incompletude contida na dimensão arbitrária de toda educação. Isto é, ―reconhecer a dívida significa que o aprendiz, por um lado, declara ter tomado emprestado e, por outro, aceita que o emprestado acarrete uma eleição‖ e, em última instância, ―aceitar a vida que só o símbolo pode dar: uma vida à qual falta sempre um outro tanto para ser o ideal‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, pp. 174175).

O aluno, por sua vez, aprende por amor, à medida que, como vimos, o mestre historiza seu passado e coloca o desejo em jogo, instalando no primeiro ―o desejo de saber mais sobre aquilo que cai no ato da transmissão‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 176). Claro que o adulto também ensina por amor, mas, uma vez não reconciliado com seu passado e não reconhecida a dívida simbólica, esse amor pode se tornar excessivamente narcísico. ―Como sabemos, a cota de narcisismo depositada na criança, idealizada ao ponto tal que o adulto quando olha nos olhos dela, recupera a felicidade que acredita ter perdido ou da qual supõe estar sendo privado. Assim, do fundo desse olhar, retoma-lhe sua própria imagem refletida às avessas ou, em outras palavras, quando olha para uma criança e focaliza de fato aquela outra ideal, todo adulto consegue se ver a si mesmo completo. [...] Ou seja, cada vez que se depara com uma criança vê nela esse ao menos um adulto do futuro a quem nada falta. Isso que sempre falta ao/no presente é, precisamente, a distância que o separa do ideal existencial. O adulto, em vez de experimentá-lo como uma impossibilidade e, por conseguinte, como uma dívida sempre simbólica, vive essa diferença no registro imaginário da impotência.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 190)

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Assim a máxima é invertida de ―ensina-se por dever, aprende-se por amor‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 173) para ―ensinar e aprender por amor‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 189). Mais uma vez nos repetimos a dizer que se vai, então, projetar um futuro imaginário àquela criança, mas agora vemos que isso se deve menos a uma preocupação genuína com esta última do que a uma necessidade narcisista – aquela que aparece justamente na atitude do adulto que procura desesperadamente ―ser gostado‖. ―Justamente, no que diz respeito a essa última grande dúvida pedagógica – a simpatia professoral –, observamos que ela é capaz de motivar atitudes ‗professorais‘ como, por exemplo, a oferta de bombons a alunos universitários no início de cada uma de suas aulas no intuito de criar certa empatia motivadora da aprendizagem46. Como mudaram os tempos! Quando frequentávamos as primeiras séries escolares éramos nós quem levávamos guloseimas e lembranças à professora. Estávamos sempre apaixonados pela professora! Ou, às vezes, simplesmente condoídos porque nos sentíamos preteridos! No entanto, era graças a professarmos esse amor/ódio que conseguíamos precisamente aprender.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 32)

***** É precisamente onde não há uma reconciliação razoável com a criança que fomos um dia – bem como com a que não fomos – que surge a renúncia ao ato e a obsessão pelo controle dos efeitos educativos. Lajonquière falava diversas vezes em aula sobre um discurso não raro de se encontrar hoje, que diz algo como, ―a educação que me deram foi um desastre, então farei tudo diferente quando for minha vez de educar!‖. Uma neurose assim não pode levar a outro lugar senão aquele de se esconder do próprio passado, negando-o, assim, também à criança e mirando apenas num futuro imaginado para esta última.

Sobre ajudar algo desse tipo a não acontecer, reiteramos algumas vezes que não cabe à psicanálise propor alternativas do tipo ―troque-se este objetivo, aquela atividade, esse exercício, e assim por diante‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 46). Todo o raciocínio de Lajonquière, como vimos, aponta justamente no sentido contrário à aplicação de teorias. Não obstante, o autor constata que: ―O próprio Freud apontou ao longo de sua obra [...] três linhas de ação possíveis no campo da educação‖, no que diz respeito a ―efeitos possíveis de sua invenção [da psicanálise] no que tange às crianças‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 40):

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―Este episódio foi informado por um aluno‖ (nota do autor).

38

 A psicanálise com crianças, isto é, o tratamento psicanalítico do sofrimento psíquico estendido àqueles mais novos no mundo.  Análise e questionamento da educação por meio da teoria psicanalítica (metapsicologia psicanalítica); ―devemos analisar as ideias e representações inconscientes que animam toda e qualquer educação. O questionamento via psicanálise da criança imaginária [...]‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 41). Sobre essa linha que Lajonquière desenvolveu seus trabalhos, bem com nós desenvolvemos este presente trabalho. 

Psicanálise dos adultos envolvidos em situações educacionais (isto é, praticamente todos); ―seria desejável que os adultos – educadores ou não de profissão – se submetessem em algum momento de suas vidas à psicanálise‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 42) Essas três linhas47 seriam indissociáveis umas das outras, da mesma forma como a

triplicidade que constitui o que própria psicanálise é: um tratamento do sofrimento psíquico (dimensão clínica); um método de investigação (dimensão de pesquisa); e um sistema teórico (dimensão teórica ou metapsicologia).

Novamente, não cabe pensar numa aplicação dessas linhas no sentido de uma garantia para que a educação aconteça. Isso seria cair na mesma ilusão pedagógica de ―resolução‖ da educação via métodos externos. Além do que seria simplesmente contra todos os princípios de Freud e da psicanálise obrigar alguém a fazer análise pessoal – justamente porque ―toda análise pessoal é isso mesmo: ‗pesssoal‘‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 44). Qualquer psicanalista que se preze poderá confirmar que a iniciativa de fazer análise deve partir do (futuro) paciente. Mas a própria singularidade da psicanálise nos leva a pensar sobre essas linhas não com intenções aplicatórias, mas antes reflexivas sobre seus possíveis efeitos. Primeiro, expliquemos nosso entender sobre o tratamento psicanalítico – a análise pessoal: este tem como meta última a singularização do sujeito. Em psicanálise não existe – como na medicina, por exemplo – uma ―curva de normalidade‖ predeterminada à qual a busca pela cura de determinado sintoma deveria se reportar. Sintoma, para a psicanálise, não configura necessariamente uma patologia, pois não é considerado uma disfunção; ao, contrário, possui uma função, que é a de economia psíquica. O modo como o sujeito lida com seu sintoma pode vir a

47

―Nenhuma dessas linhas foi de fato desenvolvida diretamente por ele [Freud], mas iniciadas por vários de seus discípulos imediatos‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 40)

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causar-lhe mais ou menos sofrimento e, aí então, dependendo do caso, se pode dizer, em psicanálise, que há patologia.

A psicanálise admite uma infinidade de caminhos para o sujeito. A partir de relações como, por exemplo, a edípica48, pode-se partir para inúmeros caminhos desejantes49. Vale a pena então pensar sobre os efeitos que a psicanálise poderia trazer no que toca a uma, digamos, ―formação‖ de educadores – sejam pais ou professores: ―Toda psicanálise marca diferentemente a vida da pessoa que a tenha levado adiante com certo sucesso. Supõe-se que entre o seu início e a sua conclusão passou a suportar a si mesma de forma diferente e, portanto, a estar melhor consigo mesma. Se assim for, é de se esperar que seu engajamento na vida cotidiana junto aos outros e, em particular, junto às crianças, seja mais aberto à novidade, à surpresa, à diferença, isto é, mais aberto ao desejo do que no tempo anterior, quando concentrava todo o trabalho psíquico na repetição do mesmo gozo.‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 44) Então, se o tratamento psicanalítico tem como finalidade a conciliação do sujeito com o

desejo, podemos dizer que o sujeito da educação é o mesmo que o sujeito da análise: tratam-se, ambos, do sujeito do desejo freudiano. Assim, Lajonquière propõe ―pensar a educação no interior do campo da palavra e da linguagem animada pelo desejo e, dessa forma, colocar em relevo o seu estofo de laço social‖ (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 78). Isso no que toca ao objetivo, pois para a criança a clínica seria ―totalmente diferenciada da educação, como causa de desenvolvimento subjetivo‖ (LAJONQUIÈRE, 2013, p. 41); e para o adulto a reconciliação com o desejo estaria, de um lado, nos processos psicanalíticos que ocorrem na relação analista-paciente e, de outro, no desdobramento da ―diferença que medeia entre a criança que foi uma vez para outros e essa outra criança real junto à qual deve sustentar uma palavra educadora‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 18).

*****

De qualquer maneira, seja por meio da psicanálise ou não, é desejável que o educador esteja minimamente conformado com o fato de que não existe educação ―normal‖. É desse tipo de crença que derivam não somente as consequências sobre as quais discorremos como, igualmente, a 48

Que muitos consideram um determinismo rígido freudiano, mas é apenas o reconhecimento de uma forma bastante recorrente de relações, que não exclui outros tipos que possam hoje estar surgindo. 49 Li certa vez um texto na internet que, apesar de sua autoria duvidosa, trazia um comentário espirituoso sobre o que seria uma análise ―bem sucedida‖: a pessoa sairia desta mais freaky do que quando entrou.

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necessidade de medicar uma criança que não apresenta uma ―normalidade‖ em seus ―níveis de atenção‖. É também evidente para nós que boa parte do sucesso da indústria farmacêutica e da psiquiatria reside precisamente no fato de que as pessoas desejam que seus problemas possuam causa orgânica – e que sejam, portanto, medicáveis. Ou, pior, que os problemas de seus filhos sejam assim solucionados. A vida não seria muito mais fácil se pudéssemos resolver tudo com remédios? É precisamente nisso que certas ―ciências‖ querem nos fazer crer. Mas, como bem lembra a canção, ―E se não tivesse o sofrer‖?50 ―Por que quando uma criança ou jovem abandona seus estudos seja porque assim quer ou porque precisa trabalhar para comer pontifica-se pedagogicamente que se trata de fracasso escolar? Por que quando uma criança ou um jovem obtém uma nota baixa numa avaliação durante a qual experimentou uma forte dor de barriga se diz que se trata de fracasso escolar? [...] Por que quando percebe-se que alguém esqueceu não pouco do ensino secundário considera-se que se trata de fracasso escolar? Por que quando numa turma há alunos que tiram dez e outros zero também pensa-se que estes últimos são candidatos ao fracasso escolar?‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 182)

A ―lamentação sistemática‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 18) de nossos dias em relação à não suficiência da prática pedagógica ou ao dito ―fracasso escolar‖ tem como ideal ―desmontar o próprio dispositivo educativo‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 182). ―(...) O ideal a ser atingido é a eliminação da própria escola. Obviamente, dessa forma, morreria a vontade de querer fugir dela, não se experimentariam dores de barriga por conta de estados nervosos associados à realização de provas, ninguém demoraria mais tempo para estudar que outro, não se esqueceria aquilo que nunca se aprendeu e, por último, acabaria a distinção entre alunos bons e alunos ruins.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 182)

Respondendo ao seu próprio questionamento, a canção mencionada acima sentencia, ―Melhor era tudo se acabar‖...

Acontece que o fracasso escolar não passa de mais um falso problema que, como todos os outros, decorre do próprio caráter impossível da tese da adequação natural. Não se trata de acharmos que a escola como tal – em sua concepção e tradição ocidental – seja o único caminho para a educação51. Mas a ―campanha generalizada de difamação da tradição escolar‖ esconde uma questão política bem mais séria.

50

Consolação (Vinícius de Moraes/Baden Powell) Vide a interessante reflexão de Lajonquière sobre a taxa de analfabetismo de 3% na República da Mongólia, onde 30% da população é nômade, além de ser um país bilíngue (LAJONQUIÈRE, 1999, pp. 184-185) 51

41

―Infelizmente, é muito fácil sucatear a legalidade inerente à simplicidade da transmissão educativo-escolar. Com efeito, parece-nos que para conseguir semelhante resultado deve-se, em primeiro lugar, formar recursos humanos precários, ou seja, apesar de muitos candidatos a professor virem a escrever com erros de ortografia, a possuir um vocabulário reduzido ou a não fazer direito as contas deve-se, mesmo assim, diplomá-los e colocá-los a alfabetizar. Em segundo lugar, é necessário que os governantes levem a diante numa campanha generalizada de difamação escolar – se possível com o apoio da imprensa – fazendo coisas como, por exemplo, pagar baixos salários, chamar os professores de vagabundos ou, simplesmente, enviar a polícia para reprimir manifestações públicas de descontentamento da categoria. Em terceiro e último lugar, deve-se investir o dinheiro disponível no aumento do processo de psicologização da educação para que, dessa forma, não apenas venha a entrar em pane a legalidade educativa senão que também seja possível gastar os recursos com a pedoburocracia no lugar de fazê-lo com o professor que ainda está, apesar de tudo, em sala de aula.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 186)

Uma vez ignorados fatos como, por exemplo, o de que ―geralmente uma política de distribuição de renda soluciona o problema da necessidade das crianças de famílias pobres terem que trabalhar‖52 (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 182), a (psico)pedagogia entra nesse cenário justamente como um dispositivo ideológico para manter a hegemonia da classe dominante. ―(...) Embora a escola seja ofertada, o cotidiano está tomado por uma desconfiança reacionária na possibilidade de o povo vir a se beneficiar de uma educação escolar. Assim, uma vez sancionadas simbolicamente as crianças do povo como incapazes de usufruírem de uma educação escolar no ideário elitista, o discurso (psico)pedagógico hegemônico sentencia cientificamente: ‗os pobres não aprendem por serem como eles são, isto é, pobres‘.‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 187)

É nesse ponto que podemos enxergar com maior clareza a dimensão ideológica do discurso (psico)pedagógico hegemônico. Em vias de fecharmos este capítulo de nosso trabalho e tirarmos algumas conclusões (considerações) do que vimos até agora, imaginamos que alguém pode muito bem argumentar reivindicando a nós exemplos de onde se pode encontrar esse tal discurso (psico)pedagógico.

Pois bem, em primeiro lugar não nos cabe aqui apontar o dedo para essa ou àquela instituição, essa ou aquela escola, esse ou aquele educador. Principalmente por sabermos que não é porque um educador se diz praticante – ou simpatizante – dessa ou daquela pedagogia – mais ou menos ―psicologizada‖ – que necessariamente ele estará tomado pela tarefa (pela ilusão) de tentar realizar uma educação impossível. Empiricamente acreditamos na existência de algo que se poderia chamar de bom senso. Como sabemos também que o problema da educação não está no método em si – mas sim em sua aplicação com intenções de eximir o adulto de sua posição de mestre –, alguém 52

E, seguindo, ―Observe-se que a maioria das que chegam a se beneficiar de uma bolsa-escola não só manifestam gostar de ir à escola senão também conseguem se alfabetizar‖ (Ibid.)

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pode reconhecer ideias ou estratégias de ordem didática interessantes desse ou daquele autor – mais ou menos pedagogo – e usá-las de maneira razoavelmente flexível em suas aulas.

Entretanto, a crítica que aqui se faz tenta apontar para a dimensão ideológica que há no discurso (psico)pedagógico. Em última instância atentamos para o status que a ciência – o saber científico e o cientificismo – tomou em nossa cultura. Não é difícil constatar que a ciência ocupa hoje um lugar não muito diferente daquele da religião, tanto na concepção freudiana – como formas de ilusão – quanto na concepção marxista – a clássica fórmula ―a religião é o ópio do povo‖ (CHAUÍ, 2012, p. 115) encontra na ciência de hoje uma analogia por vezes quase literal, se considerarmos o ―ópio‖ enquanto uma droga, um medicamento.

Então, além dos problemas educacionais acarretados por tais discursos, deve-se entender também o quanto eles refletem em questões políticas. A postura predominantemente tecnocrática adotada pelos alternantes governos no Brasil no que concerne à educação é evidente. Sem um mínimo consenso sobre o que deve ser mantido a despeito de qual partido político encontra-se no poder53, cada novo governo traz sua leva de ―especialistas‖ que ditam e desditam as ―medidas necessárias‖ para que a educação aconteça54. Como tal status científico não é de todo consciente – isto é, não é percebido conscientemente pela sociedade55 – a ligação da ciência com o mercado ou a transformação do saber científico em mercadoria acontece ―naturalmente‖. Assim, o setor público e privado da educação se tornam alvos do mercado (psico)pedagógico – com a diferença de que o setor privado, dispondo de mais recursos, sempre fica com a parte menos nociva do produto.

Em relação a exemplos do pensamento (psico)pedagógico, basta uma rápida pesquisa na internet para constatar alguns pontos mais óbvios de sua hegemonia. Termos do tipo ensino adequado, desenvolvimento natural da criança, ciência do aprendizado, técnicas de ensino, etc.,

53

O único consenso talvez seja justamente aquele que nunca se concretiza: o fato de que se deve pagar melhor aos professores. 54 Vide a reestruturação de escolas públicas empreendida pelo Governo de SP que ocorre enquanto escrevemos este texto. Escolas serão fechadas e alunos e professores serão realocados em novos prédios, em uma operação massiva e burocrática, com o dito intuito pedagógico de separar os ciclos de ensino. Não sabemos como isso vai terminar, mas depois de ouvirmos do secretário de educação do Estado que ―Os dados da secretaria mostram isso‖ como resposta à pergunta ―O que garante que essa reforma vai melhorar a qualidade do ensino?‖, em entrevista ao SPTV, nos damos ao direito de, no mínimo, enquadrá-lo na ideologia vigente. 55 Lembrando que se se tratasse de uma ―maquinação diabólica dos poderosos [...] seria muito fácil acabar com a ideologia‖ (CHAUÍ, 2012, p. 100)

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são encontrados sem muita dificuldade numa busca por assuntos relacionados à educação. Lajonquière cita o próprio MEC56. Mas talvez não seja tão fácil encontrar quem diga com todas as letras, ―Sim, eu sou guiado pelos princípios psicopedagógicos hegemônicos!‖. Justamente por se tratar de uma dimensão ideológica...

Daniel Revah, em sua tese Construtivismo: Uma palavra no circuito do desejo (2004), faz uma análise de cerca de quatrocentas matérias da revista Nova Escola – ―publicada ininterruptamente desde o primeiro número (março/86) até hoje [2004], numa média de dez números por ano‖ (REVAH, 2004, p. 17) e distribuída massivamente em escolas públicas por todo o país, graças a um contrato com uma empresa privada –, evidenciando o status científico que ganhara a noção de construtivismo e como tal status foi constantemente mantido pelas publicações. ―Quando aqui se afirma que o construtivismo se tornou um discurso hegemônico, isso significa concebê-lo como um discurso que sobrepuja outros discursos educacionais, ordenando o campo da educação escolar de uma determinada maneira. De modo que afirmar a sua hegemonia, tendo em vista por exemplo as práticas pedagógicas, não significa dizer que essas práticas sejam construtivistas nos termos em que muitos autores as concebem. Antes de tudo implica entender que todas as práticas tendem a ser pensadas e avaliadas a partir do que esse discurso instaura como saber legítimo, válido e verdadeiro. Hegemônico, portanto, não é apenas ou não é propriamente o que diz respeito à maioria. Antes é hegemonia de uma determinada ordem discursiva que a todos se impõe e a todos avalia [...].‖ (REVAH, 2004, p. 12)

Portanto, nem se trata de discutir se as teorias originais de Piaget são ―corretas‖ ou ―incorretas‖, mas antes mostrar como a ideia de construtivismo torna-se uma marca de qualidade apesar dos ―desvios, confusões, equívocos...‖ (REVAH, 2004, p. 23) que foram ocorrendo em suas aplicações no âmbito pedagógico. ―É comum que se pense o predomínio do construtivismo recorrendo-se a sua referência inaugural. Ela sustenta a crença de que a entrada em cena do construtivismo e a sua hegemonia é consequência do grande impacto que teve a bem fundamentada e importante investigação realizada por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita, aliada à solidez teórica da sua principal referência nesse registro teórico, a obra de Piaget. Vale lembrar, porém, que durante muito tempo vários pensadores e até o próprio Piaget passaram inadvertidos ou pouco repercutiram nos debates sobre a educação escolar, mesmo com suas obras publicadas. Portanto, o que suscita a entrada em cena de determinados discursos, ideias ou teorias que se tornam hegemônicos deve ser procurado em outro lugar e não propriamente ou não unicamente no seu suposto poder explicativo, na sua solidez teórica ou no seu caráter científico.‖ (REVAH, 2004, pp. 12-13)

56

―‗condições para que todos os alunos desenvolvam suas capacidades e aprendam os conteúdos‘ (MEC, 1997 : 45)‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 65) e ―‗algo natural do ser humano‘ (MEC, 1997 : 41)‖ (Ibid., p. 69).

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Esse ―outro lugar‖ ao qual o autor se refere pode ser entendido por nós como a própria dimensão ideológica. Sendo grande parte desta última inconsciente, a ―procura‖ por esse ―outro lugar‖ deve seguir justamente no sentido de indagar sobre os motivos (também em grande parte inconscientes) que levam um educador – ou um conjunto de educadores – a buscar a fórmula mágica da educação. Precisamente nesse ponto que a psicanálise pode operar, como vimos, fazendo uma crítica dessa ideologia.

Sobre o curioso fato levantado por Revah de que a teoria construtivista, apesar de já existente, esteve despercebida no Brasil por um tempo considerável, o próprio MEC nos informa: ―Nos anos 70 proliferou o que se chamou de ‗tecnicismo educacional‘, inspirado nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem sistêmica do ensino, que definiu uma prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor, com atividades mecânicas inseridas numa proposta educacional rígida e passível de ser totalmente programada em detalhes.‖ (MEC, 1997, p. 31)

Por essa e outras fontes ficamos sabendo que antes do construtivismo vigorar a ―moda pedagógica‖ predominante no país era baseada no behaviorismo do psicólogo norte-americano B.F. Skinner. Assim sendo, estamos convencidos de que a ciência psicológica é a razão de ser de nossa educação nacional já há algum tempo...

Reiteramos novamente, portanto, que nossa crítica não consiste em um apontar de dedos para falhas teóricas dessa ou daquela psicologia. Para nós o grande problema está na aplicação destas últimas, o que configura um gesto iludido massificado – ideologia – calcado na esperança de que algo externo a nós mesmos dê conta da tarefa de educar. E como nos projetam de maneira pessimista inúmeros filmes futuristas ou pós-apocalípticos, quanto mais a humanidade se torna dependente da ciência e da tecnologia menos somos capazes de encararmo-nos tête-à-tête – gesto este, fundamental para que a educação aconteça.

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Capítulo 3: Considerações Sobre Educação Musical

Nesta parte do trabalho apresentaremos um texto a partir do qual levantaremos reflexões. Podemos apontar dois tópicos gerais principais – e interdependentes – que nos oferecerá o texto: 

Servir de disparador para pensarmos especificidades próprias da educação musical e situar a discussão sobre a mesma dentro do contexto brasileiro.



Apresentar o caso de um educador possível na figura de Pedro Mourão.

Antes de seguir, alguns esclarecimentos devem ser feitos relativos aos tópicos gerais acima e ao que se pretende a partir do texto. O texto em questão – ―Reflexões sobre situações de ensino envolvendo Pedro Mourão‖ – foi realizado por mim como trabalho final da disciplina Psicanálise, Educação e Cultura (EDF0294), ministrada pelo Prof. Dr. Leandro de Lajonquière, na Faculdade de Educação da USP, no segundo semestre de 2014. A proposta do trabalho consistia na escolha de uma situação educacional observada pelo aluno da disciplina e uma reflexão breve sobre a mesma. Não se cobrava um formato acadêmico de qualquer ordem para o texto. No programa da disciplina, lia-se: ―Liberdade total para a escolha de um episodio da vida cotidiana com as crianças a ser comentado a partir das noções e questões desenvolvidas no curso. O episodio pode ter sido fruto de uma observação espontânea, retirado de um jornal, de uma obra de ficção, de um documentário, etc.‖. Não era esperado que se concordasse (ou discordasse) com o raciocínio apresentado pelo professor, nem era obrigatório fazer uma relação direta com a psicanálise ou com a bibliografia do curso. Mas, evidentemente, se esperava que as ideias apresentadas no curso tocassem de alguma forma o aluno, repercutindo, em alguma instância, em suas reflexões.

Nossa proposta de reflexão em cima desse texto se dará um pouco da mesma maneira que a proposta sobre a qual ele foi realizado. Não buscaremos necessariamente colocar uma visão psicanalítica ou marxista sobre os tópicos e temas que serão levantados – isto é, não vamos aplicar as ideias dos autores citados anteriormente. Porém, tampouco desconsideraremos todas as reflexões prévias de nosso trabalho, nem hesitaremos em retomá-las quando julgarmos valer a pena. Mas 46

esperamos que o leitor que chegou até aqui esteja minimamente atravessado pelas ideias trazidas nas partes anteriores deste trabalho e possa, em certa medida, carrega-las por conta própria e fazer suas próprias associações com o que trouxermos de novidade.

Da mesma forma, o objetivo aqui não é justificar o trabalho de educador de Pedro Mourão por meio da psicanálise, da crítica da ideologia, etc57. Justificar seu trabalho, aliás, não é um objetivo em nenhuma instância. Mesmo porque a ideia de justificar algo é precisamente contraditória com nosso verdadeiro objetivo: apresentar a figura de Pedro Mourão como um educador possível; e deve ficar claro que um educador possível é bem diferente de um educador perfeito – acreditar na existência deste último, inclusive, seria uma ilusão. Ou seja, apresentaremos um educador possível dentre tantas possibilidades que existem de educadores possíveis – do contrário, estaríamos apresentando o educador possível.

Tendo isso em vista, enfatizamos que não faremos aqui uma exposição ou análise sistemática ou específica do trabalho de Pedro Mourão com intenções de registro acadêmico formal. Não pretendemos cartografar suas ideias, fazer descrições sistemáticas de aulas, realizar entrevistas, etc58. Antes, nos valeremos de minha experiência e de meus relatos como observador de seu trabalho – enquanto aluno, filho e também professor em sua Sim! Escola de Música (antiga Domus). Tendo estado nessas condições – colaborador profissional e educando/aprendiz –, para compor os relatos usarei memórias que são dele – que foram apreendidas por mim – e outras que são minhas, ilustrando um educador possível a partir da sua figura, dentro do contexto deste trabalho. Não foi dito com todas as letras, mas já deve estar claro que a situação educacional – ou o ―episodio da vida cotidiana com as crianças‖ – escolhida por mim para trabalhar no texto que produzi, há um ano, para a disciplina do Prof. Lajonquière, foi justamente ligada a meu pai. Porém, não escolhi uma situação específica, mas uma série de acontecimentos de sua vida relacionados com música, como uma forma de especular sobre o que o levou a optar pela profissão de músico e educador, antes de se tornar um ―profissional‖. Depois levanto algumas questões em relação às 57

É importante dizer, inclusive, que o próprio Pedro Mourão não possui nenhum vínculo em especial com a psicanálise, nem com nenhuma linha de pensamento apresentada neste trabalho até agora. Isto é, seu trabalho nunca foi pautado por esses raciocínios e estudos, na mesma medida em que ele nunca teve interesse em particular por eles. Quem os está trazendo sou eu. 58 Com exceção de uma descrição um pouco mais específica sobre a Apresentação de alunos que ocorre em sua escola de música. A necessidade (e vontade) de falar sobre esse aspecto – e, em particular, sobre a apresentação de um grupo de alunos no ano de 2001 – surgiu enquanto escrevíamos este trabalho e decorreu também da exigência de exibir uma parte prática do trabalho perante a Banca Examinadora – aproveitando o fato de que a apresentação mencionada encontra-se registrada em vídeo.

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situações contadas e, também de maneira breve, falo sobre alguns aspectos de seu trabalho como educador musical.

O texto é curto e deixa pano pra manga. Portanto, ao invés de modificar o texto em si, ―completando‖ lugares onde caberia um desenvolvimento maior de alguma ideia e fazendo dele o próprio terceiro capítulo deste trabalho, optei por apresentá-lo na íntegra, como um elemento a parte para, em seguida, discuti-lo ponto a ponto. Mas – como colocado no primeiro tópico geral – tampouco me limitarei apenas a discutir o que há no texto: antes, este será um disparador para falar sobre educação musical, sobre alguns de seus paradigmas no Brasil e para trazer eventualmente outros relatos e reflexões sobre situações educacionais, envolvendo ou não Pedro Mourão.

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Reflexões sobre situações de ensino envolvendo Pedro Mourão Para refletir sobre uma situação de ensino para a disciplina Psicanálise, Educação e Cultura, considerei que escrever sobre meu pai faria bastante sentido. No que toca à Psicanálise, por se tratar de minha figura paterna. No que toca à Educação, por ser ele um educador. Relatarei aqui o que sei sobre seu aprendizado e o que o levou exercer tal ofício – ele é um daqueles ―criminosos que retornam à cena do crime‖, na analogia do Prof. Lajonquière. E no que toca à Cultura (à Civilização)... bem, acredito que tanto a música quanto a educação podem, em certa medida, apaziguar nosso mal-estar dentro dela.

Pois então, se a missão histórica de toda a educação, segundo Freud, é a preparação do homem para o desejo, procuro especular aqui tanto os motivos e vontades que levaram meu pai a se tornar músico quanto os que o levaram de volta à ―cena do crime‖ educacional.

Nascido em Campinas, em 1954, nenhum parente seu era músico de profissão. Uma tia tocava piano clássico – aprendera quando menina, como tantas outras na época – e a mãe, minha avó, cantava um pouco em casa, sempre bem afinada. Seu irmão mais velho se interessou pelo violão, no fervor dos anos 60. Às vezes, numa roda de amigos ou coisa que o valha, meu pai pedia a alguém que já soubesse tocar violão para que lhe ensinasse algo do instrumento. Aprendia com facilidade. Provavelmente já arriscava cantar um pouco e, principalmente, batucava – no próprio violão deitado ou em algum objeto com ressonância boa para percutir. Logo as pessoas começaram a achar que ele ―levava jeito‖. E tão logo também veio a típica frase da mãe: ―se quer aprender música vai aprender de verdade!‖. E arranjaram para ele um professor de violão clássico.

Um clássico professor de violão clássico: método x, é pra tocar assim, não é pra tocar assado; sem muitas explicações, muita repetição; aparentemente sem muito sentido, sem muito desejo – pela aula, pois o desejo pelo violão e pela música persistia. Meu pai me comentou certa vez: ―era daqueles professores de música que fazem com que a música se torne apenas uma série de exercícios sem fim‖.

Vivência musical mais interessante, o moleque meu pai encontrou em um grupo de homens bem mais velhos que conheceu e que faziam um samba no centro da cidade. Todos negros. Gostaram dele. Virou mascote da turma. Também achavam que ―levava jeito‖ e o ensinaram a tocar cuíca e outros instrumentos de percussão. Lembro-me de quando ele me contou, emocionado, sobre esses homens, sobre os encontros, sobre a música que faziam e sobre a trágica morte de um deles, que foi atropelado. Disse que o enterro foi muito bonito, cheio de música.

Enfim, a música foi caminhando junto dele durante esse fim da infância e adolescência. Quando chegou a hora de escolher uma faculdade, aos 18 anos, decidiu vir para São Paulo, prestar a ECA/USP, onde 49

havia um recém-fundado curso de música. Para ingressar num departamento específico, no segundo ano – na época o primeiro ano era básico e geral para todos os alunos da ECA –, havia uma entrevista individual, realizada por um dos professores-fundadores do departamento. Começou perguntando ao meu pai qual era seu instrumento. Ao que ele respondeu: "Eu toco violão". Como se não tivesse ouvido a resposta, o maestro repetiu: "Meu filho, que instrumento você toca?". A resposta foi a mesma. O maestro, já mais exaltado, repetiu "Que INSTRUMENTO você toca, meu filho!?". Quando a mesma resposta foi dada pela terceira vez, o maestro deferiu: "Meu filho, violão não é instrumento!". Essa história se tornou famosa no departamento (hoje já é lendária) e meu pai teve que escolher a flauta transversal como instrumento (esse sim, ―de orquestra‖) para seu curso de composição, do qual desistiu de completar depois de quatro anos cursados.

Lá meu pai se viu cercado por uma tradição de ensino ligada à música erudita europeia. Os professores-chefes se autoproclamavam vanguardistas e seguiam o que consideravam serem os próximos passos depois da Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Webern e Berg). Do ponto de vista intelectual/acadêmico e artístico, essa posição teve sua importância. Foi nesse contexto e local que meu pai conheceu seus amigos e parceiros musicais com quem deu início ao Grupo RUMO, conjunto que faria história na música de São Paulo nos anos 80, classificado dentro do movimento chamado de Vanguarda Paulista. Embora o nome do movimento tenha sido cunhado pela mídia, o grupo se influenciou de fato pela noção de vanguarda – de experimentação, pesquisa e inovação na linguagem – vinda do universo da música erudita, trazendo esse caráter em suas composições e abrindo caminho para uma linha de estudos teóricos, porém no campo da música popular – estudos esses prosseguidos, na academia, por Luiz Tatit, um dos membros do RUMO.

Mas, no que diz respeito à educação, as coisas não se encaminharam bem para meu pai. Havia evidentemente um projeto ideológico em função do qual o departamento havia sido criado. Esse projeto era de interesse dos professores e não necessariamente dos alunos. Qualquer tipo de música que não se enquadrasse na linha evolutiva histórica tida como correta, não era considerada.

Até aí, pode-se dizer que, mesmo assim sendo, tais professores poderiam despertar o desejo nos alunos – com sua fervorosa crença no projeto ideológico-musical que tinham. Não foi o caso de meu pai. Além de sentir o peso de ver desconsiderada toda a música que carregava significado para ele até então, seu professor de flauta era um boçal. Mais um que transformava tudo o que há de carga emocional na música em puro exercício. As aulas se resumiam a ler um método de flauta, página por página, sem que o professor falasse uma palavra sequer. Anos mais tarde, meu pai revisitou o tal método e constatou que o problema não estava no livro. Por exemplo: as primeiras páginas continham exercícios de notas longas, coisa que um flautista nunca deve deixar de fazer – afinal, sua capacidade expressiva depende de tal recurso! Mas o professor, em sua abstenção, deu a entender que eram apenas páginas a serem viradas.

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Depois disso, meu pai se formou em Letras na USP, prosseguiu sua carreira artística com o Rumo e, paralelamente, se tornou professor, abriu sua própria escola de música e trabalhou com diversos projetos ligados à educação musical, tanto no ensino público quanto no privado. Meu pai costuma dizer que essa experiência na faculdade foi um dos motivos que o levaram a ser professor.

Em relação a tudo que escrevi até agora, dois pontos devem ser esclarecidos. O primeiro está ligado à mencionada ―tradição de música erudita europeia‖. Esta não é, em si, um problema. O problema não está no repertório em si. Menos ainda nos artistas, em Bach, Beethoven, Stravinsky, entre tantos outros que meu pai, obviamente, aprecia e reconhece o enorme valor. Ora, no Brasil podemos facilmente encontrar um garoto filho de italianos que cresceu dentro de uma tradição operística, por exemplo, e tomou gosto pelo gênero a ponto de desejar se tornar cantor lírico. Então onde está o problema? Está, no fim das contas, na conexão que se estabelece entre professor e aluno. Tendo isso em vista, daí sim se pode afirmar que a aplicação de um modelo de ensino se torna um problema. Quando se fala em ―importação‖ de um modelo de ensino europeu, a meu ver, se refere precisamente a esse ponto. No caso dos professores de violão e de flauta de meu pai, aplicar um método clássico foi a saída que encontraram para aquilo de que nada queriam saber: se conectar com o aluno. Assim, transformavam tudo em exercício e nada tinha a ver com o desejo. Este último estava em outros lugares musicais para meu pai – no samba no centro da cidade, nos Festivais da Canção da TV Record, nos discos dos Beatles, entre outros...

O segundo ponto está na seguinte questão que pode (e deve) ser feita: o que, então, meu pai faz com seus alunos? Faz tudo diferente do que fizeram com ele os professores eruditos? Em primeiro lugar, vale dizer que meu pai esteve, o tempo todo, inserido em uma tradição. Ele e outros tantos músicos (e não músicos) identificaram que a grande tradição musical no Brasil está na música popular e não na música erudita. O próprio trabalho do Grupo Rumo – e a produção teórica acadêmica de Luiz Tatit – apontam nesse sentido. Portanto, meu pai jamais negou a tradição, a história. Pelo contrário, procurou caminhos dentro daquela que identificou como sua. Tal identificação foi em grande parte intuitiva, mas houve também a percepção de que aquela tradição da qual versavam os professores da ECA, não tinha muito a ver com sua realidade musical. Nota-se então que o problema dos professores da ECA era, em grande parte, político. Pois, tendo como prioridade um projeto ideológico, buscavam a coerção dos alunos – puxando a sardinha pro seu lado, basicamente. Isso fez com que meu pai buscasse um lugar para si diferente daquele ocupado por eles... Mas não. Meu pai não faz ―tudo diferente‖ com seus alunos. É curioso que, sob a perspectiva de algumas linhas modernas e contemporâneas da pedagogia musical – que propuseram alternativas à tradição de ensino europeia clássica – ele pode até ser considerado tradicionalista. Nunca foi muito chegado à música erudita contemporânea – de onde provêm todas as ideias de improvisação musical no ensino com crianças – e não acredita que as crianças só possam aprender por meio de jogos – embora se utilize de jogos e 51

brincadeiras quando julga serem cabíveis. Segundo ele, para aprender e se expressar através da música é preciso compreender os elementos fundamentais que compõe a linguagem musical. Entretanto, está muito ciente de que o mais importante é compreender tais elementos intuitivamente, compreende-los no corpo – ideia esta que está em sintonia com pensadores modernos da educação musical. Em suas palavras: ―A linguagem musical trata da compreensão e expressão musicais e se desenvolve em dois níveis diferentes e complementares que não precisam estar necessariamente em sintonia: o intuitivo e o racional [...] A musicalidade é intuitiva, núcleo da linguagem musical [...] Por intuição entendemos o conhecimento ou apreensão imediata de um determinado objeto sem recorrer ao raciocínio.‖. Nesse sentido, a musicalidade é mais importante do que, por exemplo, a ―alfabetização musical‖ – termo que já esteve na moda nos círculos de educação musical e vendeu bastante. Ler música na partitura é algo importante, ferramenta maravilhosa e grande conquista para quem aprende, mas não é, de maneira alguma, indispensável. A musicalidade não depende de aprender a ler música. Vide a quantidade de músicos excelentes que sempre tivemos em nosso país e que jamais souberam ler uma nota no pentagrama. Por isso, o que basicamente acontece nas famosas aulas de musicalização de meu pai é que ele põe instrumentos (violão, guitarra, bateria, baixo, teclado, percussão, etc.) na mão das crianças e as ensina a tocar músicas. Aos poucos e à medida que vai se fazendo necessário, introduz conceitos, mostra organizações possíveis e faz, na prática, ligações entre o intuitivo e o racional. Enfim, vai dando nome aos bois.

Sob outro ponto de vista, no que toca à prática que acontece em suas aulas, foi bastante inovador. Quando começou sua vida de professor não era nada comum encontrar quem fizesse coisa similar. Predominava, digamos, uma ideia de ―adequar‖ o ensino musical às crianças, tanto em relação ao repertório das aulas – que eram constituídos de ―músicas infantis‖ – quanto em relação ao contato com instrumentos – que se dava de maneira ―medrosa‖. Avesso à ―infantilização‖ do ensino, meu pai sempre foi na direção daquilo que se mostrava pulsante na música que vinha do mundo, dele e das próprias crianças. Tendo sido criança uma vez, sabia que não precisava temer ensinar música ―de verdade‖ – pra valer –, ainda que isso não signifique desconsiderar que na sua frente estejam pequenos seres que, todavia, não são adultos.

Hoje são abundantes as escolas e práticas de música onde se vê grupos de crianças com guitarras em riste, baixo, bateria, violão. Mas isso não é sinônimo de um bom trabalho... Enfim, já reparei que tem que ―levar jeito‖ para ser professor também. E meu pai leva. Tem alguma coisa de inexplicável – uma dimensão difícil de por em palavras. Por isso talvez que ele não acredite em grandes cursos de formação de professores – desses de marca. Quando alguém quer conhecer seu trabalho – ou ―fazer estágio‖ – ele leva o sujeito para assistir suas aulas e depois se sentam e conversam. Pois cada aula é única, cada aluno é único, não há fórmulas, nem generalizações. Também o caminho que meu pai trilhou como educador é único, no sentido de singular. Mas não é o único caminho possível. 52

Ocorreu também que toda sua passagem pela ECA naquela época – que não é mais a mesma coisa hoje em dia, felizmente – o fez avesso à vida acadêmica. Hoje noto que ele não dispõe de muito material escrito, de livros, diplomas, teses e outros certificados que em geral acabam sendo, em nossa cultura hoje, ―comprovantes de competência‖. Me parece que isso faz dele um educador incrivelmente prático – coisa cada vez mais rara nos dias de hoje. Apesar de nunca ter tido tino comercial, seu trabalho e o nome de sua escola de música se mantiveram todos esses anos apenas na divulgação ―boca a boca‖. E quem já passou pelas suas aulas não esquece. Eu mesmo conheço uma porção de gente que o fez. Vez ou outra encontro algum colega músico (ou não músico!) que me diz alegremente, ―seu pai foi meu primeiro professor!‖, ―seu pai me fez gostar de música!‖, ―as aulas do seu pai eram fantásticas!‖...

Isso porque uma das primeiras coisas que meu pai faz é perguntar à criança o que ela gosta de ouvir, de tocar. Pergunta o que o aluno gosta em música. Procura saber o que o levou a estar ali. E o repertório da aula acaba sendo um diálogo entre escolhas (sugestões, vontades) do aluno e do professor – o desejo deste último também sempre está presente. Por isso, ter aula com Pedro Mourão, meu pai, é algo prazeroso: pois, intuitivamente, o que ele busca é o desejo, por mais que esse nunca seja plenamente alcançável.

53

Em vias de organizar os pontos a serem levantados a partir do texto acima, dividiremos duas seções: Repertório, Tradição e Inovação e Uma Educação Possível. Os subtítulos das seções são trechos retirados do próprio texto acima. Ambas as seções são interdependentes, de modo que serão referências uma à outra. A necessidade de divisão decorre mais de assuntos que extrapolam os conteúdos do texto em si.

*****

1.

Repertório, Tradição e Inovação

1.1

―„Adequar‟ o ensino musical às crianças‖

Dentro do âmbito da educação musical existe uma questão que sempre esteve presente: qual repertório ensinar? Qual repertório é ―adequado‖ a uma criança?

Por um lado, a questão do repertório enquanto paradigma do ensino constitui uma singularidade na educação musical – bem como na educação em outras artes e seus respectivos ―repertórios‖ – em relação a outras disciplinas. Se pensarmos num curso de matemática do ensino básico, por exemplo, o conteúdo a ser ensinado pode até sofrer pequenas variações, mas não há como haver grandes variações. Em qualquer lugar do mundo a linguagem matemática é, de maneira geral, a mesma. Por exemplo: ainda que se possa optar por ensinar equações de segundo grau no oitavo ou no nono ano, ensinar por esse ou por aquele caminho, o que importa aí é aprender equações de segundo grau.

Entretanto, alguém há de argumentar que o mesmo acontece com a música, pois, independente do repertório, os elementos fundamentais que compõe a linguagem musical são igualmente definidos – ritmo (duração), altura, timbre, intensidade, etc. E que, assim como estes são os elementos que o homem combina à sua maneira para construir qualquer música, também a equação de segundo grau é apenas um elemento, uma ferramenta, para se usar nos problemas matemáticos reais, criando diferentes significados.

Um segundo argumento ainda poderia ser feito em relação ao sentido que cada linguagem assume para cada pessoa. Inclusive, uma visão psicanalítica poderia embasar tal argumento, pois é 54

perfeitamente aceitável, em psicanálise, a ideia de que um sujeito se identifique mais com a matemática do que com a música (isso é até óbvio, nem precisamos da psicanálise...).

Pois bem, sobre este último argumento, de fato cada sujeito vai significar de forma única qualquer coisa aprendida. Até aí poderíamos negar a afirmação de que a linguagem matemática é a mesma em qualquer lugar do mundo. Não só seu significado difere para cada sujeito, mas para cada civilização – a cultura japonesa pode ter um pensamento matemático diferenciado do indiano, e assim por diante. Porém, não podemos esquecer de que aquilo que torna cada ser humano extremamente singular – a dimensão simbólica, ligada a história de cada pessoa – é, ao mesmo tempo, aquilo que o leva a se conectar com o outro. As mesmas vicissitudes que geram as diferentes culturas são também responsáveis pelo diálogo entre elas. E dessas relações – dessa práxis, consciente e inconsciente, do dia-a-dia – surgem os padrões estéticos, as recorrências linguísticas, as ideologias, etc.

Ou seja, para não nos perdemos em filosofar demais sobre o sentido diferente que cada átomo carrega para cada pessoa, lembremos que existem padrões, que se modificam pouco a pouco na práxis cotidiana e bastante com o passar do tempo, a longo prazo. A partir disso, não é nenhum absurdo afirmar que, em nossa sociedade hoje, a música corresponde culturalmente a uma diversidade muito maior de subjetividades em seus fazeres do que a matemática59.

Por exemplo, a equação 2 + 2 = 4, ainda que possa ser ensinada por diferentes caminhos em diferentes culturas, possui um significado universal. A música, apesar de possuir ―elementos fundamentais‖ que compõe sua linguagem – e que variam enormemente da música indiana clássica à popular cubana, da japonesa à árabe, etc. –, ainda assim possui, tanto no seu fazer como no seu apreciar ou interpretar, uma dose de subjetividade que nos leva a chama-la de arte60.

Voltemos à educação. Seja num ensino de artes ou não, as questões levantadas no segundo capítulo deste trabalho devem ainda ser lembradas: mesmo ao ensinar que ―dois mais dois são quatro‖ o laço entre adulto e criança, que fará possível a última apreender o ensinamento do primeiro, deve existir da mesma forma que em um ensino de artes. Se o professor de matemática, 59

E aí podemos colocar o ensino de matemática ao lado de qualquer outra disciplina que não seja artística – inclusive o ensino de línguas que, apesar de variar em cada cultura, não deixa de ter suas estruturações que precisam ser aprendidas pela criança que virá a ser um falante e escritor daquele idioma. 60 Lembrando que, em outros momentos históricos, outras disciplinas eram chamadas de arte; o que nos mostra como o homem transforma, através da práxis, tanto a concepção de arte, quanto a própria noção de subjetividade.

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por exemplo, acreditar não ser capaz de transmitir esse conhecimento e concluir que para tal terá de recorrer à (psico)pedagogia, é possível que as crianças não aprendam ―2 + 2 = 4‖ – e olha que isso seria um caso de gravidade próxima ao de não aprender que não se deve tascar fogo em alguém que dorme no ponto de ônibus.

Isto é, uma educação possível acontece na medida em que o adulto envolvido evita a renúncia ao ato educativo. Temos aí, então, que a singularidade da educação musical constituída pela ―questão do repertório‖ é a singularidade própria do campo artístico expressivo da música em si e que, embora esta reflita em certa medida na sua transmissão, não faz com que o ensino de música seja essencialmente diferente de qualquer outra educação. E o que chamamos aqui de essencial é precisamente a relação de amor61 que se estabelece quando uma educação é possível. A criança vai ―pegar‖ – apreender, tomar – uma linguagem, qualquer que seja – música, matemática, português, etc. –, quando reconhecer nela um objeto de – e do – desejo62. Eventualmente então, a criança, que virá a ser um adulto um dia, pode se identificar mais com uma determinada linguagem e fazer dela veículo de sua expressão, à sua maneira. Mas para que haja possibilidade de isso vir a acontecer (pois nada garante que acontecerá), o adulto deve estar envolvido na aventura educacional. Por esse lado da questão, o ―dilema‖ do repertório pode constituir um falso dilema. Por quê? Não é que não se deva estar atento com a música que se vai apresentar à criança. Mas quando se começa a supor de antemão qual seria a música – ou gênero/estilo musical – mais ―adequada‖ à criança, consequentemente, se supõe a própria criança. Uma vez suposta a criança, o adulto deixa de escutar aquela que realmente tem em sua frente e, assim, desconsidera sua história e tudo aquilo que ela pode já carregar consigo quando chega a uma aula de música. Deixa também de educar em nome de sua própria história e em nome do seu desejo – deixando de levar em conta fatos que o levaram à música, por exemplo – e passa a endossar uma educação, basicamente, sem nome, sem passado e sem desejo. Aí então, estão perdidas todas as singularidades – a do adulto, a da criança e aquela própria da arte. Aliás, aí já não há mais arte alguma.

Bem, mas nessas considerações sobre educação não há nenhuma novidade em relação ao que vimos anteriormente neste trabalho. Não é uma grande surpresa dizer que, assim como a pedagogia em geral, a ―pedagogia musical‖ também se alternou entre ―oitos e oitentas‖: por vezes 61 62

Ver p. 27 e pp. 36-38 De desejo porque passaria a ser seu uma vez reconhecido como um desejo do adulto educador.

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caindo nas mãos ―daqueles professores de música que fazem com que a música se torne apenas uma série de exercícios sem fim‖, por outras, se deixando levar por métodos ―adequados‖ às crianças – onde o adulto se ―utiliza‖ de canções nas quais a cada cinco palavras três estão no diminutivo, pois assim, usando a linguagem adequada para a idade, se conectaria melhor com a criança. Então, quando se coloca a questão do repertório dessa forma – ―qual repertório é mais adequado?‖ ou ―o que devo ensinar?‖ – se pode cair facilmente em todas as questões ligadas à obsessão pedagógica de controle, ao gesto de renúncia, etc. Mesmo porque o que se pode estar dizendo, no fundo, é: ―me diga o que eu devo fazer, por favor!‖. Para alguém que eventualmente faça esse tipo de pergunta – seja num ―curso de formação de professores‖ ou onde for – diríamos que um bom começo seria devolver a pergunta ao sujeito: ―o que você acha?‖.

Não estamos dizendo com isso que não possa haver quem simplesmente esteja começando a dar aulas e, por vezes, se sinta inseguro e procure uma conversa aberta com alguém mais experiente (mesmo aí devolver a pergunta talvez seja um bom começo...). Tampouco estamos querendo dizer que se deve escolher o repertório que dê na telha, sem se preocupar, por exemplo, em como lidar com canções que apresentam um conteúdo altamente sexualizado, às quais as crianças tem fácil acesso na mídia hoje em dia63. Todas as questões desse tipo são desafios constituintes da própria prática educacional e devem ser enfrentadas pelo professor caso a caso.

Ainda sob esse ponto de vista também é enganoso achar que uma educação musical que trabalhe com música popular seja ―de qualidade‖ – ou ―mordena‖, ―arejada‖ – somente porque trabalha com música popular64. Existem aqueles que consideram o termo ―música popular‖ um sinônimo de ―coisa boa‖ em educação (sic). Nos perguntamos: ‗coisa‘, no caso, seria ‗música‘ e ‗boa‘, ‗popular‘? O problema é que, uma vez que exista essa ideia, está aberto o caminho para que se use isso como ferramenta de marketing. Nos parece óbvio que um ensino que parte de um repertório popular não tem nada a ver com o modo como se vai ensinar. Por exemplo: a famosa rigidez de ensino da tradição europeia – onde se foca na técnica, horas de estudo, etc. – pode muito bem aparecer em um ensino de música popular. E também o universo popular se perfilou inúmeras vezes a eleger aquele que seria o ―erudito‖ dentre seus gêneros. É fácil encontrar escolas e professores que elegem o que é ―bom‖ dentro do popular – o jazz, o choro, a bossa nova – e, em nome unicamente daquela grande tradição à qual servem, desconsiderem também o que há de único 63 64

Embora essa seja uma questão bastante complexa, digna de um trabalho inteiro só sobre ela. A Profa. Teca Alencar de Brito faz comentários atentando para esse ponto em suas aulas.

57

no aluno. Ensinos assim podem até fazer sentido para alguma criança ou jovem que deu a sorte de se identificar com aquele estilo. Mas não se pode dizer que é uma educação muito aberta à diversidade...

*****

1.2

―Ver desconsiderada toda a música que carregava significado‖

Se por um lado a questão do repertório pode vir a se configurar como um falso dilema, por outro, existe a compreensão da música e da canção enquanto abarcadores da subjetividade e identidade cultural – como já discorremos brevemente na seção acima.

Tal compreensão, se pensada no contexto da educação, estaria intimamente ligada ao gesto de escutar a criança. Pois, se é importante que o educador preste atenção naquilo que a criança traz consigo – ou naquilo que ela mostra trazer consigo –, que seria algo relativo à sua história particular, podemos dizer que há um corresponde macro cultural a esses ―interesses‖ pessoais que tampouco deve ser desconsiderado. Em se tratando de música, nos referimos à própria produção musical de uma cultura específica – isto é, de um país, região, comunidade, etc. Não que uma criança que cresceu numa determinada cultura não possa surpreender a todos gostando de um tipo de música distante daquele que a rodeia, sem que ninguém saiba bem explicar o porquê disso. Mas nos parece que em situações de ensino onde um determinado estilo/gênero musical é desconsiderado em favor de outro, tocamos num ponto que, para além de educacional, é político.

Se a pedagogia inúmeras vezes se calcou em valores morais e/ou religiosos como referenciais rígidos para a educação, como já colocamos anteriormente – dificultando o ato de escutar a criança ou jovem –, também a educação musical se fez – como ainda se faz em muitos casos – serva de um repertório (estilo/gênero musical) eleito. Acontece que a ―eleição‖ de um repertório no âmbito do ensino pode se dar tanto pela via de algo como o discurso (psico)pedagógico – onde se supõe o natural da criança65 – quanto de acordo com aquilo que é considerado ―boa arte‖ por uma classe social. É sobre esse último tipo de pedagogia musical que

65

E, nesse caso, mais do que serva de um repertório ou estilo musical, a pedagogia musical serviria a própria ilusão de naturalização da criança.

58

reconhecemos evidentemente um caráter político da questão66. Justamente a valorização de determinado repertório sobre outro é, tantas vezes, decorrente de um embate social mascarado por uma ideologia – isto é, o repertório em si assume um caráter ideológico ou digamos que se torna uma ferramenta de expressão da ideologia67.

Do ponto de vista da concepção marxista de ideologia podemos constatar que a história, da forma como é contada pelo ―historiador ideólogo‖ (CHAUÍ, 2012, p. 92), é na realidade a história dos vencedores, da classe dominante. ―Porque a ideologia não tem história, mas fabrica histórias imaginárias que nada mais são do que uma forma de legitimar a dominação da classe dominante, compreende-se por que a história ideológica (aquela que aprendemos na escola e nos livros) é sempre uma história narrada do ponto de vista do vencedor ou dos poderosos. Não possuímos a história dos escravos, nem a dos servos, nem a dos trabalhadores vencidos – não só suas ações não são registradas pelo historiador, mas os dominantes também não permitem que restem vestígios (documentos, monumentos) dessa história. Por isso, os dominados aparecem nos textos dos historiadores sempre a partir do modo como eram vistos e compreendidos pelos próprios vencedores.‖ (CHAUÍ, 2012, p. 141)

Da mesma forma, a história da música brasileira, de diversas maneiras em diferentes épocas, foi construída de modo a esconder, por detrás dos debates intelectuais dos críticos e músicos que a escreveram, a hegemonia de pensamento de uma classe dominante. Ou, se pensarmos por outro lado – pelo lado da crítica da ideologia –, ao contrário: tais debates e maneiras de contar essa história simplesmente evidenciam o esforço de mantimento da dominação.

Não é o foco deste trabalho a elaboração e detalhamento dessa questão. Porém, levantaremos brevemente uma linha de raciocínio que oferece uma perspectiva alternativa sobre a história da música brasileira e que tange algumas questões prévias ligadas à educação discutidas aqui.

66

Nesses casos, aliás, a pedagogia musical nada mais seria do que um sintoma que representa, em última instância, a luta de classes. 67 Não que a arte não tenha sempre, em alguma instância, uma dimensão ideológica (como tudo aquilo que é decorrente da práxis). Mas não necessariamente essa dimensão é fixa desde o momento de criação, mas sim pode ser apropriada futuramente por essa ou aquela ideologia. Vide, por exemplo, o uso que se faz da música de Beethoven em diversos ideários – era tanto um símbolo para o nacionalismo nazista quanto é hoje hino da União Europeia (a Ode a Alegria, da Nona Sinfonia).

59

1.2.1 Parênteses: uma história da música brasileira alternativa a partir do conceito de Canção Do encontro abrupto e forçado de culturas – entre negros, indígenas e europeus –, surgiu no Brasil (assim como nas Américas em geral) uma cultura popular bastante singular que se moldou durante os séculos de convivência, desde a época colonial. O que acontecia na vida cotidiana, seio da práxis, durante esse tempo foi, inevitavelmente, levando a uma interação entre os sujeitos ali presentes e à formação de uma rede social complexa. Isto é, apesar das condições históricas desiguais que levaram a estarem ali reunidos brancos europeus e negros africanos, a práxis não deixou de acontecer e as diferentes culturas se influenciaram umas pelas outras. ―Estudar a cultura brasileira equivale a considerar inevitavelmente os seus processos de mistura que jamais se restringem ao campo étnico. Dos sincretismos religiosos à mixórdia televisiva do final do século, a tendência brasileira à assimilação foi sempre uma constatação tão presente nos trabalhos antropológicos [...]. A mistura é na verdade um fenômeno universal que adquire especial notoriedade no Brasil provavelmente pelo tratamento euforizante que sempre lhe foi dispensado a partir de Gilberto Freire. A assimilação é avaliada, na maioria das vezes, como um caso de enriquecimento cultural, no sentido de inclusão de valores considerados positivos, embora isso esteja longe de representar uma desobstrução plena das fronteiras raciais socioeconômicas ou mesmo dos limites que separam arte popular e arte de elite.‖ (TATIT, 2004, p. 91)

Das riquezas culturais nascidas de condições históricas miseráveis para a grande maioria dos habitantes desta terra, pouco disso era valorizado pela classe dominante. Como coloca Ivan Vilela (2013): ―(...) Naquele momento [século XVIII e início do XIX] nossa elite estava com os olhos voltados para fora, pronta para copiar o que vinha do Velho Mundo, da Europa. Não presenciando esse rico processo de formação da cultura popular que acontecia, essa elite, quando olhou para a própria cultura, não a reconheceu como sua.‖ (VILELA, 2013, p. 27)

No período citado, o que de mais relevante se produzia no ínfimo universo erudito da música brasileira era a música religiosa, que já transitava do chamado ―barroco mineiro‖ para o Rio de Janeiro – principalmente a partir da chegada da família real em 1808. Apesar de essa música religiosa apresentar elementos curiosos, bem como artistas talentosos que suscitaram interessantes estudos relativizando a ideia de que – apesar das vontades da elite – meramente ―imitava-se‖ a

60

Europa68, não é difícil imaginar a variedade de expressões culturais populares que já aconteciam por todo o Brasil e que não eram registradas. Essa noção de um ―não reconhecimento‖, de uma ―não identificação‖ da elite com a cultura popular pode ser encontrada sem grande dificuldade ainda em outros momentos da história brasileira. No início do século XX, a música popular de tradição oral69 se encontrou com novos meios técnicos de registro e reprodução, e a partir daí se consolidou uma nova música essencialmente urbana, que se moldaria intrinsecamente – para o bem e para o mal – ao mercado, à modernização da cidade e do campo, aos avanços tecnológicos – enfim, ao mundo, à práxis e às ideologias próprias de seu tempo.

Enquanto essas canções, veiculadas principalmente pelas rádios, já nas décadas de 1920 e 1930, traziam as principais vozes populares que ―entravam nas residências e nos estabelecimentos comerciais e se transformavam no leitmotiv da vida cotidiana‖, bem como tratavam de ―temas pouco cívicos como o ócio, a boemia e a malandragem‖ (TATIT, 2004, pp. 38-39), a ―visão modernista‖ de músicos intelectuais da época demonstrava uma ―dificuldade legítima em reconhecer na sonoridade da canção, sobretudo da canção desse período, um pensamento verdadeiramente musical.‖ (TATIT, 2004, p. 41). Importantes artistas como Mário de Andrade e Heitor Villa-Lobos, em suas concepções de ―uma espécie de ‗paternalismo folclorista‘, necessário, segundo os autores, para administrar o caos sonoro que então assolava o país‖, não foram capazes de ―incorporar o popular urbano na fase do nacionalismo musical modernista‖ (TATIT, 2004, pp. 38-39). ―Mas quando se fala em Villa-Lobos não se pode esquecer também de seu grande projeto cívico-educacional, empreendido sob os auspícios do governo de Getúlio Vargas, cuja consequência mais nítida foi a preparação de grandes massas corais, constituídas de jovens, para calibrar o éthos brasileiro nos termos de um amplo pacto musical. Mais uma vez, o folclore servirá de base consensual às estratégias pedagógicas do músico: só a cultura popular rural não estaria contaminada pelos desvios e vícios próprios dos centros urbanos.‖ (TATIT, 2004, p. 37)

68

Por exemplo, em A música na Capela Rela e Imperial do Rio de Janeiro (2005), de André Cardoso ou em A experiência barroca e a identidade local na Semana Santa de Campanha, Minas Gerais (2011), de Suzel Ana Reily. 69 ―Os artistas que se encaixavam na ‗tradição escrita‘ da música brasileira, na qual se insere não só a chamada música erudita, mas também alguns setores do choro ou até da modinha não sofriam especialmente com a impossibilidade de registro sonoro‖ (TATIT, 2004, p. 34)

61

O trecho acima toca de maneira oportuna para nós no ponto referente à problemática de caráter político no ensino de música. O olhar elitista sobre a produção popular urbana se reiterava mais uma vez, e assim ainda se daria diversas vezes durante o século vinte – no caso da ECA no início dos anos 1970, por exemplo –, bem como ainda se vê hoje. ―O popular pode ser admitido na esfera da arte quando, olhado à distância pela lente da estetização, passa a caber dentro do estojo museológico das suítes nacionalistas, mas não quando, rebelde à classificação imediata pelo seu próprio movimento ascendente e pela sua vizinhança invasiva, ameaça entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a própria concepção de arte do intelectual erudito.‖ (WISNIK, 1982, apud TATIT, 2004, p. 39)

É de interesse para nós nesse ponto tratar sobre o conceito de canção trazido por Luiz Tatit. A elaboração desse conceito redimensiona, consequentemente, a visão histórica sobre a música popular brasileira. Não sugerimos com isso que essa perspectiva histórica seja a ―verdadeira‖, mas que por meio dela se levante pontos que outros olhares não contemplaram. A partir de estudos na área da semiótica70, somados a conhecimentos musicais tanto empíricos – de sua vida como músico prático – quanto formais, Tatit reconheceu o fazer da canção como diferente do fazer musical – ou, ao menos, do fazer musical na sua concepção clássica. Isso implicou no reconhecimento de outra arte – outro artesanato criativo, fazer artístico – diferente da música. Ainda que fortemente ligada à música71, podemos dizer que a principal diferença está na ―matéria-prima‖: se, para a música, esta seria o som em si – suas possíveis combinações, decorrendo nas linguagens e nos sistemas musicais, bem como nas possíveis combinações e extrapolações dos mesmos –, para a canção, ela seria a fala, bem como a entoação e os princípios entoativos intuitivos da mesma. ―De fato, por meio da linguagem oral cotidiana, veicula-se um conteúdo abstrato que depende da base acústica inscrita nos fonemas e nas entoações, mas não há necessidade de preservação dessa sonoridade. Por isso, selecionamos e organizamos as palavras da melhor forma possível e convocamos as melodias entoativas apenas para produzir ênfases aqui e ali no fluxo discursivo, sem outro tratamento especial exigido pelo texto verbal. Não deixa de haver, mesmo nessa fase, algumas regras de condução melódica das frases, que as fazem parecer afirmativas, interrogativas, suspensivas, etc., e que já pertencem ao repertório 70

Principalmente na fundamentação teórica da semiótica francesa de Greimas e Zilberberg. O próprio Tatit reconhece que há, obviamente, ligação forte entre os dois fazeres, e que o fazer musical, em sua concepção clássica, é o mais presente no que toca ao ―entorno‖ da canção – dado que o centro da canção (sua espinha dorsal) é a relação entre melodia e letra. Este ―entorno‖ seria, numa maneira simplificada de dizer, o arranjo – que pode interferir enormemente em muitos aspectos da própria canção. Pode ser responsável pela mudança de gênero musical na qual se insere aquela versão da canção – pois, como sabemos, a canção pode aparecer ―vestida‖ de qualquer estilo musical, seja samba, tango, rock, blues, etc; ou pode também, inclusive, ressignificar o sentido trazido pela relação melodia-letra. 71

62

intuitivo dos falantes. Entretanto, esse ‗acompanhamento‘ sonoro não merece um arranjo especial – elaborações de rimas ou de reiterações entoativas, por exemplo – pois será descartado assim que for transmitida a mensagem. Ao se transformar em canção, a oralidade sofre inversão do foco de incidência: as entoações tendem a se estabilizar em ‗formas musicais‘, na medida em que se instituem células rítmicas, curvas melódicas recorrentes, acentos regulares e toda sorte de recursos que asseguram a definição sonora da obra (...).‖ (TATIT, 2004, pp. 41-42)

A canção seria, então, a musicalização da fala – ―musicalização da instabilidade da linguagem oral‖ – e, no Brasil, decorreria da consolidação de ―um longo processo de musicalização da oralidade brasileira‖ (TATIT, 2004, p. 173). ―Entre o lundu, de origem fincada nos batuques e nas danças que os negros trouxeram da África e desenvolveram no Brasil, e a modinha, cujo caráter melódico evocava trechos de operetas europeias, um gênero apontando para os terreiros e o outro para os salões do século XIX – mas ambos já impregnados de sensualidade híbrida que, muitas vezes, os tornavam indistintos –, configura-se a canção do século XX, a esta altura apontando também para um terceiro elemento que se tornaria vital à sua identidade: a letra. Não tanto a letra-poema, típica das modinhas, ou a letra cômico-maliciosa dos lundus, mas a letra do falante nativo, aquela que já nasce acompanhada pela entoação correspondente. Sem nunca deixar de lado o lirismo ou mesmo a comicidade que já reinavam no período oitocentista, a nova letra, que só se consolidou nos anos 1920 com Sinhô, substituiu o compromisso poético pelo compromisso com a própria melodia, ou seja, o importante passou a ser a adequação entre o que era dito e a maneira (entoativa) de dizer, bem mais que o valor intrínseco da letra como poema escrito ou declamado.‖ (TATIT, 2004, pp. 70-71)

A espinha dorsal de uma canção está na relação entre letra e melodia, de modo que seu sentido é intrínseco à própria maneira como se trabalha musicalmente a fala, pois se trata da inseparabilidade desses dois elementos citados. Mesmo que o canto sempre tenha sido uma dimensão potencializada da fala (TATIT, 2004, p. 41), a singularidade da canção – em relação à ópera, por exemplo – está na radicalização da proximidade entre essas duas expressões vocais (o cantar e o falar), evidenciada, por sua vez, nas análises propostas e realizadas por Tatit72. Partindo de análises semióticas – configurando o território teórico da semiótica da canção, inaugurado pelo autor citado – sobre o princípio entoativo presente na linguagem oral, são depreendidas, num primeiro momento, inflexões entoativas (tonemas) – ascendentes, descendentes ou suspensivas – e paralelismos entre as mesmas, que culturalmente já implicam sentido à frase: sentido de conclusão de uma ideia ou de tensão que sugere continuidade, etc. Depois, numa 72

Diversas vezes durante este trabalho atentamos ao perigo de se resumir ideias e teorias – precisamente o que tentaremos fazer a seguir. Isso pode dar a sensação de que tais ideias e teorias estão dadas, constatadas naturalmente e acabadas. Como sabemos não ser esse o caso – nem o objetivo da teoria, nem a intenção do autor – indicamos fortemente ao leitor interessado o livro O Século da Canção (2004) como introdução e contextualização histórica do assunto e O Cancionista (1995) para maior aprofundamento das análises de canções.

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dimensão mais complexa, durante o percurso melódico pode-se expandir mais ou menos a tessitura das enunciações e ativar outros recursos que ora prestigiam a configuração rítmica, ora a orientação melódica (TATIT, 2004, p. 74), o que decorre em outras significações ao que se está dizendo. Das combinações entre as muitas possibilidades de fixação musical da entoação, Tatit classificou três procedimentos gerais da compatibilização entre letra e melodia: a tematização, a passionalização, e a figurativização. Toda canção carrega elementos de todos esses procedimentos, que geram as tensões e distensões que dão movimento e sentido àquilo que o enunciador – ―ser sensível‖73 – da canção expressa. Este último pode estar, por vezes, em predominante disjunção com o objeto de desejo (canções passionais), enquanto, por outras, será maior a conjunção entre eles (canções temáticas). Assim, ―todo tema está inserido numa sequência melódica à qual se integra por identidade e alteridade ao mesmo tempo‖ (TATIT, 2004, p. 182).

A figurativização é o procedimento pelo qual o compositor (intuitivamente) se vale dos fenômenos mais próximos da fala crua – mais próximos do princípio entoativo – para fazer seus contornos melódicos: ―consiste numa elaboração entoativa da melodia aproximando o canto da coloquialidade da língua oral, como se oferecesse ao ouvinte momentos reais de enunciação‖ (SEGRETO, 2014, p. 7). É justamente no reconhecimento desse processo – que ―é o contrapeso em relação aos dois outros procedimentos de adequação mais ligados à música: a tematização e a passionalização‖74 – que se depreende a singularidade da canção. ―(...) Bem mais poderosa que os tradicionais recursos enunciativos de ancoragem na primeira pessoa, no ‗eu lírico‘, a entoação atrela a letra ao próprio corpo físico do intérprete por intermédio da voz. Ela acusa a presença de um ‗eu‘ pleno (sensível e cognitivo) conduzindo o conteúdo dos versos e inflete seus sentimentos como se pudesse traduzi-los em matéria sonora. De posse dessa força entoativa, e valendo-se do poder de difusão das ondas radiofônicas, os cancionistas se esmeraram em fazer dos intérpretes personagens definidos pela própria entoação. Ouvia-se então a voz do malandro, a voz do romântico, a voz do traído, a voz do embevecido, a voz do folião, todas revelando a intimidade, as conquistas ou o modo de ser do enunciador.‖ (TATIT, 2004, p. 76)

Evidente que esses processos são intuitivos ao compositor – ao cancionista – na mesma medida em que o ato de falar também o é – o que leva Tatit a afirmar que todo falante é um cancionista em potencial. A partir dessas análises, então, apreende-se, como já foi dito, que no centro da canção temos a fala – a inseparabilidade entre letra e melodia enquanto veiculação de

73 74

Referência de Tatit à J.-J. Rousseau em ―Ensaio sobre a Origem das Línguas‖. Idem

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sentido 75 – e possíveis formas de ―musicá-la‖, mais do que um pensamento propriamente musical na sua concepção clássica. Como ilustração, se poderia dizer que o artesanato da canção se faz evidente também na sensação gerada no ouvinte (não necessariamente consciente) de que aquele conteúdo – aquela letra, aquele texto – poderia ser dito com aquela melodia76.

Mesmo que se trate de uma melodia já existente, onde a letra é colocada tempos depois ou vice-versa, o letrista será aquele capaz de dar àquela melodia uma letra compatível com as sugestões entoativas da melodia, bem como um melodista saberá melodizar aquela letra intuindo contornos melódicos que poderiam ser um possível modo de dizer do texto. ―(...) uma espécie de oralidade musical em que o sentido só se completa quando as formas sonoras se mesclam às formas linguísticas inaugurando o chamado gesto cancional. Tudo ocorre como se as grandes elaborações musicais estivessem constantemente instruindo um modo de dizer que, em última instância, espera por um conteúdo a ser dito.‖ (TATIT, 2004, p. 69).

Para nós aqui e agora, interessa bastante a ideia de que a canção traz em si o modo de dizer do cancionista. Este último está no centro desse processo todo – tanto do processo histórico da canção quanto do processo criativo da mesma, que se faz até hoje. O que conhecemos hoje como canção se consolidou, como já mencionamos, do encontro dos ―sambistas‖ – o primeiro nome ligado a um estilo para designar o que Tatit chama de cancionistas – com o registro sonoro, no início do século XX. ―Alheios a qualquer formação escolar, de ordem musical ou literária, esses sambistas retiravam suas melodias e seus versos da própria fala cotidiana. Serviam-se das entoações que acompanham a linguagem oral e das expressões usadas em conversa. [...] Do ponto de vista rítmico, no despontar do século XX, o velho batuque tinha sido suficientemente depurado para engendrar numerosos gêneros que, a esta altura, já vinham se agrupando sob a designação genérica de ‗samba‘. Ora, tudo isso carecia de registro ou teria o mesmo destino dos lundus e maxixes perdidos no século anterior. Se a base rítmica da batucada, por sua sonoridade reiterada, favorece a memorização, o mesmo não se pode dizer da melodia e da letra. Essas se comportam à imagem e semelhança de nossa linguagem cotidiana, na qual o som daquilo que se diz desaparece tão logo a mensagem tenha sido transmitida. [...] Portanto, o encontro dos sambistas com o

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De tal modo que ao analisar uma separada da outra se estaria desconsiderando parte elementar da expressividade cancional. As propostas de análise de Tatit possibilitam tocar de maneira precisa nessa inseparabilidade, enquanto outras isolam melodia para análise puramente musical e deixam a letra para análise do sentido de seu conteúdo (social, político, literário, etc.). 76 Ou, ao contrário, jogará precisamente com uma não-compatibilidade, gerando, por exemplo, canções que tem um tom cômico justamente pela maneira forçada como aquela letra é dita por aquela melodia. Ou, noutro exemplo, em uma canção exageradamente passional, com as notas se alongando numa dor gigantesca e que, por isso mesmo, também pode se perfilar ao cômico – como é o caso de diversas canções bregas ou românticas.

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gramofone mudou a história da música brasileira e deu início ao que conhecemos hoje como canção popular.‖ (TATIT, 2004, p. 34-35).

Ao mesmo tempo, o ouvinte também foi peça central na consolidação da canção enquanto tal. ―A canção brasileira, na forma que a conhecemos hoje, surgiu com o século XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença: as coisas ditas poderiam então ser reditas quase do mesmo jeito e até conservadas para a posteridade. Não é mera coincidência, portanto, que essa canção tenha se definido como forma de expressão artística no exato momento em que se tornou praticável o seu registro técnico.‖ (TATIT, 2004, p. 70) Pois bem, se o modo de dizer – a oralidade – popular é o centro dessa expressão musical que

passaria a ser predominante no Brasil77, temos aí a virada histórica da música brasileira. Quando a canção passa a ser difundida em maior escala, primeiramente por meio da rádio e depois, ao longo do século da canção, via outras mídias – o disco, a TV, a internet, etc. –, diversos modos de dizer populares vão ganhando espaço cultural expressivo: o modo de dizer do negro sambista, do nordestino, do caipira, do jovem da periferia, etc. Ou seja, aqueles grupos sociais que tinham sua cultura marginalizada e não podiam contar sua história nos ―livros dos vencedores‖, agora passavam a cantar a própria história!78

Não que não cantassem a própria história antes, porém, graças ao feliz encontro com a possibilidade de registro sonoro, passavam a ter outro caminho para fazê-lo e, mais ainda, para serem escutados. Ora, toda essa perspectiva faz eco à ideia de historizar o passado79 que vimos no último capítulo, mas de um ponto de vista macro social – e não de relações particulares, como é o caso da relação entre um educador (carregando sua história) com o educando.

Evidentemente que tudo isso não significa que a canção esteja livre da ideologia. Como qualquer arte ou qualquer fruto da práxis, também serviu à ideologia e caiu nas mãos de ideólogos. Por exemplo: ―Percebendo a força enunciativa da canção popular no final da década de 30, o Estado Novo de Getúlio Vargas chegou a encomendar aos compositores temas mais ‗edificantes‘ e, 77

―Isso não significa a ausência no país de uma tradição eminentemente instrumental, empenhada em desenvolver recursos que independam de qualquer gênero de oralidade‖ (TATIT, 2004, p. 70) 78 Em referência ao feliz título do livro de Ivan Vilela, Cantando a Própria História. 79 Ver p. 36

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sobretudo, posturas mais disciplinadas e pedagógicas para os personagens gerados na instância do ‗eu‘.‖ (TATIT, 2004, p. 77)

O universo da canção80 – que se modificou artística e politicamente ao longo do século – também passou por ―eleições‖ elitistas, onde determinadas produções cancionais – determinadas obras cancionais ou determinados artistas – acabaram como representantes das classes intelectuais dominantes.

Sob um ponto de vista, o debate entre os intelectuais que defendem a Bossa Nova e Tom Jobim e os que a desqualificam em nome de Chopin e da música erudita81, se apresenta como um conflito e não uma contradição82 de classes. Mas diversas vezes a parte da elite ligada à música erudita, menos inclinada a legitimar a arte popular urbana vinda das classes baixas, se valeu da ligação da canção popular com o mercado como argumento para desqualificar aquela forma de arte. Ora, como se tal ligação não existisse em qualquer produção do homem moderno, uma vez que passou a fazer parte de nossa cultura. O lado mais nocivo do ―mercado‖ – posto assim, entre aspas, pois não se trata de algo definido e definitivo, tendo passado por muitas transformações durante os tempos – pode acometer qualquer estilo ou gênero musical.

Muitas vezes os aplicadores de Adorno se mostraram avessos a qualquer tipo de arte mais ligada a produção e divulgação ―de massa‖. Como coloca Alfredo Bosi: ―Confundindo os meios técnicos com os fins, denigrem uma forma de comunicação [a utilização do disco] que se revelou fecunda a partir dos anos 1920‖ (BOSI, In: VILELA, 2013, p. 17). Ainda que Adorno seja uma ―leitura necessária, sem dúvida, em certo nível de abstração socioeconômica‖ é, ao mesmo tempo, ―insuficiente se atentarmos para a relação existencial compositor-cantor-ouvinte que se perfaz na audição da melodia gravada.‖83. Segundo Vilela: ―(...) Adorno escreveu sobre o assunto [o avento do disco] acerca do surgimento do disco. A perda da ‗aura‘ no momento em que se tirou a música da sala de espetáculo e a colocou em um disco que era muitas vezes reproduzido em ambiente não próprio para a audição. Segundo Wisnik, em seu livro O Som e o Sentido, a burguesia, no século XIX, na época com acesso à instrução e fina cultura, para se distanciar do povo, criou novos códigos de conduta para o concerto musical. Adorno trouxe para o disco esse olhar, que se por um lado apresenta 80

Ainda que não necessariamente reconhecido nesse estatuto teórico que trazemos aqui. Referência à velha história de que Jobim teria plagiado trecho de uma melodia de Chopin. 82 Na concepção marxista um conflito exprime ―apenas oposições no interior da mesma classe‖; enquanto contradição seria precisamente a expressão de um embate entre ―duas classes sociais contraditórias‖ (CHAUÍ, 2004, p. 104) 83 Idem, p. 19. 81

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imensa coerência, por outro traz às manifestações artísticas populares um olhar elitista [...]. Não seria mais razoável nos apoiarmos então nos textos de Walter Benjamin, que sugeriu que deveríamos olhar de uma maneira diferente à produção musical a partir do advento do disco e da reprodução das obras de artes?‖ (VILELA, 2013, p. 66)

Tatit jamais desconsiderou o mercado e o contexto histórico no qual surgiu a canção popular brasileira em suas teorizações, mas atentou para o fato de que o mercado não foi sempre o mesmo – de modo que dizer, por exemplo, que à época do surgimento da rádio no país havia uma ―indústria cultural‖ como tal é errôneo e improcedente historicamente. E mesmo quando há ―indústria cultural‖ há também boa arte.

Enfim, o reconhecimento da singularidade que há no fazer cancional é importante, pois legitima essa forma de expressão – que se mostrou tão fértil no Brasil, com grandes artistas vindos de todas as classes sociais. Também evidencia a diversidade da expressão musical. Se tantas vezes assumimos que os parâmetros essenciais constitutivos da música são, naturalmente, aqueles clássicos como a harmonia, melodia, contraponto, ritmo, etc., esquecemos que todas essas concepções também vieram de teorizações elaboradas por pensadores do passado. Então, por mais válidas que estas últimas sejam, por que não apresentar um ponto de vista diferente que enxergue outros horizontes, que o olhar clássico não contempla? No caso da canção, vários elementos levantados nas teorizações de Tatit são possivelmente mais condizentes à realidade musical brasileira – claramente oriunda de uma cultura mais oral e intuitiva do que escrita e erudita84. Assim, se a música erudita ocidental carrega uma porção significativa da história da Europa, no Brasil é a canção popular que mais tem a dizer sobre nosso povo.

Podemos até imaginar como a aceitação do fato de que a musicalidade se expressa num leque de diversidades – por exemplo, no fazer musical de um regente, mas também no fazer cancional de um letrista – poderia refletir num contexto prático. Ainda que ninguém seja obrigado a gostar de ou a estudar sobre canção popular, um mínimo de entendimento e compreensão pode levar um músico que compõe a banca de um concurso público – de seleção de professores, de vestibular, etc. – a reconhecer como a musicalidade opera no universo cancional, podendo perceber, assim, a manifestação da mesma em um candidato com perfil de cancionista – presente no trabalho musical com a oralidade, na habilidade de compatibilizar letra e melodia em uma composição, etc. Ao

84

Isso não deve ser entendido, de forma alguma, como uma possível justificativa cínica ao analfabetismo, à renuncia educativa ou à má administração política do ensino nacional – que seriam ―apaziguados‖ pela produção cancional.

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contrário da situação onde esse mesmo candidato é julgado apenas pelos parâmetros tradicionais da música.

No caso da ECA, à época da fundação do curso de Música, podemos afirmar que a canção era desconsiderada. É claro que em se tratando de uma universidade, onde não há crianças sendo educadas por adultos, mas antes adultos falando a adultos, já não se trata mais da mesma educação na qual nos focamos neste trabalho. Mas, a nosso ver, se queremos ter uma universidade que cada vez mais abarque de fato um universo de diversidades, não podemos ter uma mentalidade onde aquilo que é diverso seja encarado como adverso (ainda que isso não signifique que todos devam concordar entre si nas suas linhas de pensamento).

*****

1.3

―Ser considerado tradicionalista‖ (a disciplina e a fisicalidade do corpo

envolvido na música) Queremos reforçar novamente o cuidado que se deve tomar ao utilizar termos como tradição ou tradicionalismo no ensino. Lembremo-nos da feliz diferenciação feita por Lajonquière entre quem transmite uma tradição sabendo do ―impossível de sua manutenção‖ e quem o faz em prol de sua conservação total e com intenções coercivas direcionadas ao aluno85.

Tanto Tatit quanto Pedro Mourão passaram pelos primórdios do curso de Música da ECA na condição de alunos. Lá, de fato, havia um grupo de intelectuais cujas atitudes podem tranquilamente se enquadrar como mais uma versão do olhar elitista sobre a cultura popular brasileira. Sendo assim, uma porção de jovens que ali chegava, entusiasmada com a música que vinha dos discos, das rádios, da TV – arte de altíssima qualidade –, encontrava algo bem distante de sua realidade musical. E não eram recebidos com muita simpatia86.

Entretanto, é interessante notar como a intransigência dos professores fez tanto Mourão quanto Tatit ―se mexerem‖. Mourão partiu para a educação musical, buscando fazer algo diferente do que até então tinha experienciado na área; enquanto Tatit acabou se encontrando no campo da 85

Ver pp. 21-23 Sabemos, inclusive, de relatos sobre discursos homofóbicos por parte de professores. Comentários preconceituosos em relação ao visual ―hippie‖ – os cabelos compridos, as vestimentas, etc. – eram intrínsecos ao próprio discurso de desconsideração e desqualificação da música popular da época. 86

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Semiótica, a partir do qual desenvolveu suas teorias sobre a canção – investigação esta que jamais teria espaço no Departamento de Música da época. E, se para alguns alunos ali possivelmente a situação levou a uma desistência total da profissão de músico, para outros tantos, tais professores foram mestres.

Essa diversidade de casos pode não justificar o elitismo ali em causa, mas nos faz lembrar que o desejo pode estar onde menos se espera e se manifestar de formas inusitadas. É possível (ainda que nem de longe seja a regra) que um professor ao qual se tem (uma consciente) aversão faça com que o aluno ―se mexa‖ muito mais do que um professor ―amigão‖ e ―descolado‖. Mesmo que isso não seja percebido pelo aluno à época.

No texto apresentado no início deste capítulo, sobre meu pai, Pedro Mourão, descrevo seus professores de violão – em sua adolescência – e de flauta – na faculdade – como tendo atitudes equivalentes em relação ao aluno. Porém, ainda que de fato meu pai tenha descrito o professor de violão como ―um desses‖ que faz com a música pareça uma série de exercícios sem fim, comentou também que se tratava de um homem ―gente boa‖. Tanto é que esse mesmo professor foi quem o levou para comprar seu primeiro violão – um violão de concerto, de boa qualidade e que é usado até hoje. Já o professor de flauta não mereceu nenhuma outra consideração que relativizasse sua postura de total descaso aos olhos de meu pai. Ainda que classificações subjetivas como ―gente boa‖, ―bem intencionado‖ ou ―boçal‖, ―chato‖, etc., não sejam nem um pouco científicas, são relevantes do ponto de vista de um relato sobre uma situação educacional, onde se pode escutar as reflexões de um ex-aluno – ou de um atual. Tais relatos, tanto em seu conteúdo quanto nas palavras escolhidas para contá-los, nos ajudam a não enxergar o ambiente educacional como um ―preto no branco‖.

E sabemos de tantas outras histórias relatadas sobre educação musical onde o adulto relativiza a demonização que atribuía ao professor ou professora quando era criança. Sabemos de casos, por exemplo, onde, apesar da professora de piano ―velha‖ e ―rígida‖, que chegava a punir fisicamente as ―mãos errantes‖, a criança de então se tornou o músico de hoje. Evidente que isso não justifica os métodos de punição física – mesmo porque, se há casos nos quais tal método não resultou na desistência do aluno, certamente que existem outros tantos que podemos facilmente chamar de traumáticos.

70

Para nós é mais do que óbvia a noção de que não há a menor necessidade de punição física ou tratamento agressivo – que pode ocorrer também apenas com palavras – na educação com crianças e jovens. Entretanto, a aversão a qualquer ato disciplinador mais ―firme‖ 87 pode ser o sintoma de um ―medo de educar‖. A condenação de atos disciplinadores – reforçada por certas psicologias pedagógicas – está ligada a idealização de uma criança ―pura‖ e ―frágil‖ e ao medo do adulto de poder vir a ―traumatizar‖ ou ―estragar‖ essa criança.

O extremo dessas idealizações pode ser visto, por exemplo, na campanha pela Lei Menino Bernardo (lei nº 13.010/14) – inicialmente batizada de Lei da Palmada – que entrou em vigor no Brasil em 2014. A lei em si – que traz alterações na lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) – não parece absurda, basta lê-la. De fato, não se configura como uma proibição à ―palmada educativa‖ – embora deixe um espaço considerável para a interpretação subjetiva do que seria um ―castigo físico‖. O que mais chamou atenção, porém, foi a campanha a favor de sua implantação, encabeçada por ninguém menos que Xuxa Meneguel – a ―rainha dos baixinhos‖. Em entrevista por ocasião de um ano da aprovação da lei, Xuxa deu a seguinte declaração: ―Nesse instante em que estamos aqui, há milhares de crianças apanhando em nome do amor, em nome da educação‖88.

Tal pensamento, além de desconsiderar a agressividade que pode existir em qualquer ser humano – tratando a criança como um ―anjo de vidro‖ –, corre o risco de embasar uma má preparação da criança para o mundo real e para o desejo89. Pressupõe-se aí também que uma agressividade física é pior do que uma agressividade verbal, sendo que esta última dispõe da possibilidade de ser mais sútil ao mesmo tempo que bem mais devastadora. Se tomarmos como exemplo o ensino de capoeira – apenas pelo nosso conhecimento empírico da área – temos um interessante caso da fisicalidade – do corpo envolvido – se manifestando com força e arte. Numa mistura ancestral de dança, luta e música, o jogo de capoeira por vezes aflora num contato físico intenso, podendo despertar a agressividade dos jogadores. Não estamos interessados aqui nos debates teóricos sobre se a capoeira é dança ou é luta, mas nos parece que os traços agressivos de luta (briga) presentes no jogo têm conexão com a própria resistência 87

Uma bronca nas crianças que conversam muito na sala de aula, uma palmadinha no filho(a) vez ou outra, etc. Disponível em: 89 É em relação à desconsideração do desejo e da sexualidade – isto é das pulsões sexuais, pulsões agressivas, etc. – das crianças que Freud afirmou que a educação agia ―como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos‖ (ver p. 17). 88

71

física e cultural de povos africanos escravizados no Brasil90. Essa luta – que em outros tempos podia seguir até a morte – é então sublimada em dança, em jogo, em arte. Portanto, a maneira como o capoeirista lida com a sua agressividade é uma das coisas mais importantes que este pode aprender. Aprender, por exemplo, a sublimar a agressividade despertada pela rasteira do companheiro em ginga, em risada, em capoeira.

Agora, se um aluno de capoeira, hoje em dia, saísse por aí aplicando golpes em qualquer pessoa que o contrariasse, isso seria um problema educacional. Não político. Da mesma forma, não temos notícia de uma criança que saiu atirando o pau no gato da vizinha porque ouviu a famosa canção infantil; mas, se isso acontecesse, a solução seria proibir a canção?91 No capítulo anterior trouxemos a visão de Arendt sobre o problema que há quando se transfere uma questão educacional para o âmbito político. Ainda que a Lei Menino Bernardo tenha seu lado compreensível92, se dependermos da mentalidade e da influencia midiática da apresentadora de TV mencionada, não teremos mais aula de capoeira nas escolas, nem músicas que mencionam qualquer gesto agressivo e, por fim, acabaremos como no filme O Demolidor93 (1993), estrelado por Sylvester Stallone: o ator interpreta um policial que é descongelado no futuro ano de 2032 e se depara com um mundo que, além de ultra avançado tecnologicamente, apresenta uma extrema segregação entre classes sociais onde, nas classes mais altas, predomina de forma radical os ideais do politicamente correto e da não agressividade, chegando a absurdos como fazer sexo por meio de uma máquina telepática, para que o casal não precise ter contato físico.

Retomaremos mais à frente a questão da fisicalidade envolvida na música.

*****

90

Em última instância, diz respeito ao ato de representar qualquer embate físico entre seres humanos, em qualquer cultura. 91 Ver a notícia disponível em: . De acordo com a reportagem, o vereador de Sertãozinho, SP, humorista conhecido como Zezinho Atrapalhado, diz que o seu projeto de lei ―visa impedir a cantiga popular que, em sua visão, estimula maltratar os animais‖. 92 Tendo como símbolo o trágico caso do garoto Bernardo Boldrini, de 11 anos, que foi assassinado pelo pai e pela madrasta. 93 No original Demolition Man, dirigido por Marco Brambilla. Há uma evidente referência no filme ao livro Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley.

72

1.4

―Um diálogo entre escolhas do aluno e do professor‖ (a questão do ―gosto‖)

Pois bem, tendo feito essa relativização da ideia de ensino ―tradicional‖, voltemos à questão do repertório. Já colocamos esta sob duas perspectivas: numa se configurando como um falso dilema e noutra como um problema de ordem político-cultural. Ambas nos levam à noção de renúncia ao gesto de escutar a criança: por um lado acontece quando o educador renuncia o próprio passado e passa a escutar apenas A Criança – isto é, escuta o que quer ouvir e é surdo ao real94– e, por outro, isso se dá num tipo de ―furor pedagógico‖, onde o adulto educa em nome de alguma moral ou tradição a ser mantida.

Onde entraria então o gosto da criança na educação musical? E o gosto do educador? Trago aqui mais um relato pessoal.

Durante uma aula da Profª. Teca Alencar de Brito, já há alguns anos, estávamos em um momento de discussão aberta, onde alunos e professora opinavam sobre um assunto em pauta, do qual não me recordo exatamente. No calor do momento, entre muitas vozes, soltei a frase: ―Acho que um professor tem que ensinar aquilo que a criança gosta!‖. Ao que Teca respondeu: ―Pois eu discordo, não acho que o professor só tem que ensinar o que a criança gosta!‖. Tampouco me lembro do que se seguiu depois disso, mas o momento ficou em minha memória.

Refletindo sobre esse ocorrido alguns anos depois, associei-o a outra lembrança. Na realidade, a algumas outras, mas

que são variações de um mesmo fato: mais de uma vez,

durante a minha adolescência, aconteceu de eu estar entusiasmado com alguma música (ou artista, disco, etc.) que havia descoberto – portanto, nova para mim – e leva-la a meu pai para compartilhar. Claro que não é sempre que um pai, no contexto do cotidiano, compartilha do entusiasmo do filho jovem e, assim ocorreu algumas vezes, dele não dar tanta atenção a minha grande descoberta – por estar preocupado com algum outro assunto ou assistindo futebol (evento de absorção completa do seu ser). Não foram raras as vezes, porém, que, passado um certo tempo, lá vem ele, animadíssimo, me mostrar uma ―música legal pra caralho!‖ (expressão bastante usada por ele) que um aluno ou aluna havia lhe apresentado. E eu não ficava nem um pouco surpreso e achava graça em constatar que, obviamente, se tratava da mesma música da qual eu havia lhe falado duas semanas atrás.

94

Ao caráter pulsional polimorfo infantil (ver p. 28 e p. 33).

73

Isso me parece ser uma prova de como o gesto de escutar o aluno(a) é presente em meu pai. No texto do início deste capítulo digo que ele ―nunca foi muito chegado à música erudita contemporânea‖. De fato, não acreditamos aqui que todos devam gostar de tudo, de todos os estilos – admitir isso é, inclusive, ressaltar os traços fundamentais da diversidade. Mas, conhecendo meu pai enquanto educador, não é difícil, para mim, imaginar uma situação onde chegue até ele um aluno novo que tenha especial interesse no gênero citado acima e, a partir disso, eu passe a escutar com certa frequência meu pai em seu ―modo entusiasta‖ discorrendo sobre os elementos ―interessantíssimos!‖ que ele notou na música x de John Cage, trazida pelo aluno. E então, o trabalho com aquele aluno passará a ser uma troca, mesmo que o último não necessariamente o saiba.

Inclusive, numa situação que de fato ocorreu, um estilo inusitado apareceu. Meu pai nunca havia realizado um trabalho coral com crianças95. Certa vez foi trabalhar em uma instituição privada que atende jovens e crianças com problemas cardíacos. Uma ideia que lhe ocorreu em determinado momento foi selecionar diversas canções que tivessem como tema em comum o ―coração‖: Coração Leviano (Paulinho da Viola), Coração Vagabundo (Caetano Veloso), entre outras. O processo então foi o de montar um coral, onde cantavam crianças, jovens e funcionários da instituição e o resultado foi bem tocante para todos os envolvidos.

Teca tem razão em afirmar que não se deve ensinar apenas aquilo que o aluno gosta. Como reiteramos tantas vezes aqui, um ensino totalmente voltado ao ―gosto da criança‖ só pode levar à renúncia ao ato educativo e, provavelmente, se perfilar a um ―mercado escolar‖ que busca satisfazer às supostas necessidades de sua ―clientela‖ – no caso, ―a criançada‖. O ―oito‖ desse ―oitenta‖, seria, como já sabemos, fazer apenas o que o adulto quer, em nome de sua moral96. Novamente, a educação não acontece quando se encontra a ―medida certa‖ entre os dois extremos acima. Não existe ―medida certa‖, pois cada relação educacional é única e admite mil (im)possibilidades de caminhos a percorrer. Mas quando o adulto se abre para o gesto de escutar a criança real – de modo corajoso –, junto à historização de seu próprio passado, então, possivelmente, se está no caminho para uma educação possível.

95

Tampouco a música e o repertório coral tinham sido algo presente em sua vida; quando trabalhava a voz em suas aulas o fazia por outros caminhos. 96 Porém, lembremos que no caso da (psico)pedagogia também o adulto acaba fazendo aquilo que quer, uma vez que o que quer é acreditar numa criança imaginária.

74

E como a história de cada adulto – de cada educador – é única, bem como a de cada criança, a relação que se constrói será singular. Entretanto, indo de novo a uma esfera macro cultural, recorrências e afinidades surgirão em torno de um educador ou escola. Assim, não é de se admirar que as diferentes escolas de música acabem por construir seu perfil. Quer dizer, cada escola terá suas particularidades e suas diversidades internas. E isso acaba decorrendo em um tipo de ―público‖ que procura essa ou aquela escola. Isso é diversidade. Seria uma ilusão acreditar na existência de uma escola que dê conta de tudo que há no universo musical. Ou que ensine de uma maneira que ―servirá‖ para qualquer situação musical. Cada aluno carrega aquilo que aprendeu à sua maneira durante a vida.

Sob essas perspectivas se pode pensar na ideia de inovação de forma relativa. Por um lado, há sempre a possibilidade de inovar, de trazer à luz algo que não se estava fazendo – um lugar novo. O século XX viu inúmeras tentativas, algumas bem sucedidas, outras nem tanto97. O reconhecimento da diversidade do fazer musical – trazido da música erudita contemporânea, da música popular, etc. – apontou para maneiras diferentes de se trabalhar em educação musical. Aí então, é claro que tentativas de educadores possíveis de inserir propostas novas por vezes mostraram-se de alta validade. Por outro lado, não existe inovação ―pura‖. Só existe inovação carregada de história, de passado. Por isso é bom sempre desconfiar da ―nova fórmula‖ do mercado, da ―última descoberta‖ dos cientistas especialistas da educação98. Portanto, seja trazendo para a sala de aula novos instrumentos, música popular, canções, improvisação livre ou o que seja, nada disso fará a coisa acontecer por si só. Ora, aquilo que é trazido à aula deve ter algum sentido! E se o sentido for unicamente algo do tipo, ―porque dizem que essa atividade estimula o lado esquerdo do cérebro‖, melhor procurar uma ―segunda opinião‖.

97

Como nos mostra Hannah Arendt em A Crise na Educação, para citar um exemplo apenas. Assim como nos ensina a área da nutrição, um dia os estudos comprovam que comer ovo faz bem, no dia seguinte, ―descomprovam‖ e o bendito ovo volta a fazer mal. 98

75

2.

Uma Educação Possível

2.1

―Se quer aprender música vai aprender de verdade!‖

Meu pai costuma relacionar a frase acima com outra similar, comum de se ouvir em seus tempos de menino: a uma criança que está absolutamente mergulhada na leitura de um romance popular qualquer (uma novela, aventura, ficção científica, etc.) o adulto educador fala, ―se quer ler, vai ler literatura de verdade!‖. Já sabemos que esse tipo de atitude99 carrega um teor ideológico relacionado àquilo que é considerado ―boa arte‖ – ―literatura de qualidade‖ ou ―música de qualidade‖ – pela intelectualidade hegemônica de uma classe social. Ao mesmo tempo, o pensamento contido nessa frase ―tradicionalista‖ possui também uma ideia de que aquela criança que fazia ―coisas de criança‖ – ouvia/tocava música ―de criança‖ ou ―de moleque‖ ou lia livros ―de criança‖ ou ―infanto-juvenis‖ – deveria passar a fazer ―coisas de adulto‖ – música ou literatura ―de verdade‖, ou seja, de ―gente grande‖. Tomando essa atitude como ―tradicionalista‖ do ponto de vista pedagógico, poderíamos opor a ele a frase ―„Infantilização‟ do ensino‖100. Logicamente porque nesta última o ensino seria pensado de maneira que a criança fizesse ―coisas de criança‖; fizesse aquilo que é o seu suposto ―natural‖.

Partiremos, então, de duas questões latentes em educação musical para pensar sobre uma educação possível: 1) do lado mais ―tradicionalista‖, a clássica separação entre teoria e prática (logo a seguir, ainda sob este mesmo subtítulo); 2) do lado mais ―(psico)pedagógico‖, a questão do brincar x fazer ou criar x imitar (sob o já proposto subtítulo, mas com um adendo: Contra a ―„Infantilização‟ do ensino‖).

Brito (2007) traz o interessante relato de um aluno novo, Miguel, que chegava à sua escola descontente com seu antigo professor de violão. Este último, segundo Miguel, além de sempre dar a

99

Ainda que possa ser tomada com amor de uma mãe para seu filho. Também contida no texto de abertura deste capítulo, como viemos fazendo para discutir determinados pontos sobre educação musical. 100

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aula do jeito que o aluno queria, logo no início de seu curso perguntou se ele gostaria de ―começar pela teoria ou pela prática‖ (BRITO, 2007, p. 152). ―Décadas atrás, todo aluno que desejasse iniciar o estudo de um instrumento musical passava por um período preparatório, teórico, de apresentação aos elementos de estruturação musical. Era preciso aprender a identificar as notas musicais no pentagrama e a ler ritmos grafados com as figuras tradicionais de duração antes de se aventurar a tocar qualquer coisa. [...] Tais abordagens desconsideravam o fato de que ler notas não significa apenas identificar sinais gráficos e que, de nada vale compreender as proporções matemáticas presentes no sistema rítmico, se não se trabalhou corporalmente, internalizando a realização rítmica.‖ (BRITO, 2007, pp. 152-153)

Retomando a questão da fisicalidade envolvida no fazer musical, nos parece evidente, como coloca Brito, a presença do corpo que, inegavelmente, difere de um fazer literário, por exemplo. Isto é, mesmo ao se levar em conta a diversidade que pode existir no fazer musical ou na manifestação da musicalidade, um ensino de música para crianças que não envolva consideravelmente o corpo, nos parece faltoso. E não porque o ―natural‖ da criança seja a atividade física intensa, mas antes por acharmos que a própria história da música nos mostra que a escrita musical – ou a tentativa de registro musical de qualquer ordem – sempre procedeu ao fazer. Segundo Brito, ―O que ocorre, obviamente, é que a teoria, o conceituar, emerge das experiências‖ (2007, p. 154).

Não queremos dizer com isso que a música não possa ser trabalhada apenas em nível intelectual. Tanto a teoria musical quanto o pensar música academicamente alcançam lugares que dispensam a prática (a execução), se assim for almejado por alguém. Mas justamente desse status científico-acadêmico – apesar de todo seu evidente valor – que foi tomando a teoria musical desde o Renascimento até hoje no âmbito da elite erudita101, que surgiu tal estigma em torno da bendita mesma teoria musical.

Não é à toa que Miguel, como tantos outros alunos de música (crianças e adultos!) acham a teoria uma coisa ―chata‖102, quando não demonstram verdadeiro pavor dela. Decorrentes de um ―pensar racionalista‖ (BRITO, 2007, p. 153), ainda existem ensinos que insistem no ―dualismo mente-corpo‖:

101

Bem como da ―elite popular‖ (setores do jazz, da bossa nova, do choro, etc.). ―No começo, ele perguntou se eu queria começar pela teoria ou pela prática. Eu disse que queria começar pela prática porque a teoria é muito chata”, relato do Miguel (BRITO, 2007, p. 152). 102

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―Segundo Greiner (2005), o binômio teoria-prática nada mais é do que uma extensão do dualismo mente-corpo, dualismo que, na música, gera dissociações de ordens e níveis que abrangem do simples ao muito complexo.‖ (BRITO, 2007, p. 153) Lembrando que para a psicanálise a separação entre mente e corpo não faz sentido103. Ambos estão presentes e interligados em qualquer ação ou produção humana. Porém, nos referimos aqui à fisicalidade na música enquanto algo particular de seu próprio fazer artístico – aquilo mesmo que, comumente, chamamos de fazer ―ao vivo‖.

A música é cheia de fisicalidade! Quando eu era menino e ia pelas trilhas de terra e barro que levavam até a praia, costumava caminhar com a ponta dos pés descalços – como que com medo e frescura. Meu pai me dizia então, ―pisa firme no chão!‖.

Da mesma forma, o professor de canto lírico, Francisco Campos, diz aos seus alunos que cantar é uma atividade atlética. Mesmo quando se canta em dinâmica pianíssimo, deve-se ter firmeza corporal e coragem. Claro que, principalmente em se tratando de crianças, deve haver uma maleabilidade em relação à cobrança. Novamente, não podemos considerar A Criança, mas sim uma diversidade de crianças possíveis: uma que seja mais ativa fisicamente, que goste de tocar e experimentar vários instrumentos; outra mais ―calminha‖, que prefira ficar num instrumento só, pacientemente; ou outra ainda que goste mais de desenhar instrumentos e cantar lendo as letras das canções, etc. Mas para produzir som e para fazer música é necessário envolver o corpo numa atividade física empenhada. Ao mesmo tempo, de nada adiantaria uma educação musical focada apenas no ―corpo mecânico‖. Aí se perderia o sentido da mesma forma que perde a teoria quando isolada do fazer musical. ―Tocar um instrumento é atividade do corpo; atividade que implica em gesto, em movimento, em técnica e destreza, que se efetiva na conexão com o pensar. Ainda assim, observamos que os níveis de interação entre os distintos aspectos são, muitas vezes, bastante desequilibrados, de maneira que um instrumentista é capaz de estudar e executar uma obra musical sem a consciência plena daquilo que está a tocar. Uma memoria mecânica, digital, automatiza as sequencias de movimentos das mãos, por conta das repetições, sem que se tenha desenvolvido análises do texto musical que, inclusive, pode também ter sido deixado de lado. O corpo funciona sozinho.‖ (BRITO, 2007, p. 153)

103

Ver p. 30

78

Então o ideal seria o equilíbrio entre corpo e mente? Bem, deve estar claro aqui neste trabalho que não acreditamos muito na noção de ―equilíbrio‖, enquanto propriedade natural a ser alcançada. Sabemos, porém, da existência da diversidade no que toca ao ser humano, suas linguagens, seus desejos e caminhos possíveis. Podemos dizer que os pecados mais óbvios da atitude contida na frase, ―se quer aprender música vai aprender de verdade‖, são dois: 1) Desconsiderar aquilo que já capturou o interesse (o desejo) da criança ou jovem. Aí o ―de verdade‖ se referiria mais à ―validade social‖ do repertório/tradição em questão. 2) A própria maneira de ensinar, que, em muitos casos, se baseia nesse dualismo racionalista clássico descrito por Brito. Nesses casos se perde também o escutar e o olhar a criança, decorrendo, por exemplo, em um ensino que insista em uma postura corporal que evidentemente não funciona para a anatomia daquela criança em particular, sob o argumento de que seria a postura ―correta‖, ―verdadeira‖; ou ainda na insistência do ensino de teoria musical totalmente vazio e desligado do fazer.

Entretanto, estamos inclinados a simpatizar mais com aquele outro pensamento contido nessa mesma atitude – aquele de desejar que a criança passe ao ―mundo adulto‖ – do que com a ideia oposta – a de que a criança permaneça criança.

*****

2.2

Contra a ―„Infantilização‟ do ensino‖

Retomando a ideia de adulto da práxis – o nosso educador possível –, lembramos que este injeta na criança um desejo de saber, pois esta última vislumbra uma realidade adulta que pode vir a ser104. Isso nos remete ao modo como Pedro Mourão lida com o uso de brincadeiras e jogos em aulas. Certa vez ele comentou que não gostava de ―enganar‖ as crianças, ―brincando‖ de fazer música ao invés de fazer música de verdade. A isso repliquei que sabia muito bem de algumas brincadeiras que ele fazia com crianças em aula – como a sua famosa ―corrida‖ pelos nomes dos

104

Ver pp. 35-36

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instrumentos ou a brincadeira da ―estátua‖. Ele respondeu que a intenção disso era, ―mostrar à criança que eu também sei brincar‖ (sic). Refletindo sobre essa afirmação agora, podemos remeter à noção de se haver com a ―criança que foi um dia‖105. Como se a intenção de meu pai nesses momentos fosse justamente mostrar que um dia também foi criança. Como se, intercalando momentos onde se faz música ―pra valer‖, ele dissesse que a brincadeira também cabe na vida. Inclusive, como coloca Vilela: ―O cotidiano na cultura popular nos molda de maneira lúdica, de modo que não percebemos como vamos nos construindo, tampouco percebemos a importância de tudo isso em nosso pensar, sentir e agir.‖ (VILELA, 2013, p. 27).

Mas, tomando emprestado um termo de Lajonquière, o que se pode dizer é que meu pai não faz ―uso pedagógico-instrumental‖ (LAJONQUIÈRE, 1999, p. 61) de jogos e brincadeiras.

Duas coisas devem ser mencionadas nesse momento. Primeiro, o fato de que Mourão sempre trabalhou principalmente com crianças de 6-7 anos para mais. É importante frisar isso, pois existem algumas diferenças gerais evidentes entre faixas etárias infantis – ainda que isso jamais deva ser confundido com o discurso desenvolvimentista ou com o ato de naturalizar as crianças em A Criança. Mas em crianças menores (6-5 anos para menos), mesmo que toda a lógica de apreender o desejo dos adultos se dê na maioria dos casos, a fantasia ainda ocupa um lugar bem maior. Ao mesmo tempo, do ponto de vista fisiológico muitas crianças não são capazes ainda de segurar propriamente um violão ou qualquer outro instrumento com propósito de tocar de fato algum repertório – o que não significa que o desejo de fazê-lo não possa já estar presente e nem que a criança não possa já experimentar o instrumento de outras formas ―não-tradicionais‖. Essas duas diferenças mais óbvias fazem com que o ensino de música para essas idades (6-5 para menos) possa se valer mais de um, digamos, brincar com a fantasia – o que, ao mesmo tempo, não deixa de ser um brincar com a realidade106 –, bem como de atividades que joguem com a sensibilidade musical, que mexam com os sentidos, com movimentos, gestos, interações lúdicas com o outro, etc. Em segundo lugar, fazer música ―de verdade‖, quando se trata de crianças (falando agora dessas de 6-7 anos para mais), significa fazer o que elas podem fazer naquele momento. Isto é, levando em consideração tanto suas limitações quanto o fato de que são ainda crianças. Tampouco 105 106

Ver pp. 36-38 ―(...) a fantasia, diz Lacan, constitui o único acesso possível ao ‗real‘‖ (KAUFMANN, 1996, p. 196).

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se desconsidera a fantasia – essa realidade adulta do ―vir a ser‖ é cheia de fantasia por parte da criança107. Mas a forma de agir de meu pai em relação a seus alunos sempre foi no sentido de que, aquilo que a criança pode fazer – ou pode vir a fazer –, ela será mínima e razoavelmente exigida a fazê-lo. Arendt nos alerta para o problema que há quando se assume que o ―brincar‖ é o ―natural‖ da criança: ―(...) O brincar era visto como o modo mais vívido e apropriado de comportamento da criança no mundo, por ser a única forma de atividade que brota espontaneamente de sua existência enquanto criança. Somente o que se pode ser aprendido mediante o brinquedo faz justiça a essa vivacidade. A atividade característica da criança, pensava-se, está no brinquedo; a aprendizagem no sentido antigo, forçando a criança a uma atitude de passividade, obrigava-a a abrir mão de sua própria iniciativa lúdica. [...] esse processo [a substituição do trabalho pelo brincar] tenta conscientemente manter a criança mais velha o mais possível ao nível da primeira infância. Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância.‖ (ARENDT, 2014, p. 233)

Talvez o que possa levar alguns educadores para o caminho unicamente da ―brincadeira‖ seja justamente uma confusão entre criar (inovar, descobrir, fazer por conta própria) e imitar. Como já trouxemos no capítulo anterior, ―o brincar não obedece a uma imitação psicológica no presente, mas à tentativa de responder à demanda dos adultos significativos‖108. Então, uma criança ou jovem que apresenta certa obsessão por um artista ou gênero musical e passa a demonstrar uma vontade de soar ―igualzinho‖ àquilo que ouve, estaria simplesmente imitando? Se for um artista pop ou gênero em voga no mercado cultural, estaria essa criança/jovem simplesmente influenciada pelo poder midiático absorvedor?

Sobre a última pergunta, podemos dizer apenas que, apesar da violência com a qual a parte mais nociva da indústria cultural pode se abater sobre o público jovem e infantil, é impossível afirmar que algo carregue um mesmo significado para todos. Ora, desconsiderar algo que tenha despertado interesse em um jovem, mesmo que se trate de algo considerado de ―má qualidade‖ artística sob a ótica do adulto, seria tomar a mesma atitude de ―surdez‖ em relação ao aluno sobre a 107

―Segundo a maneira freudiana ‗clássica‘ [...] ela [a fantasia] é definida como um ‗roteiro imaginário em que o sujeito está presente, e que figura, de maneira mais ou menos deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente‘‖ (KAUFMANN, 1996, p. 196). É curioso observar em muitas crianças a primeira vez que pegam, por exemplo, numa guitarra: é quase possível ver em sua expressão facial a fantasia de realização de algum desejo ligado à ideia fantasiosa que aquele instrumento (ou que o mero gesto de empunhá-lo) carrega para aquela criança. 108 Ver p. 35

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qual discorremos, sob alguns ângulos, anteriormente – o que não significa deixar de debater questões sobre produção cultural! Inclusive, Brito nos relatou o caso de uma educadora que foi ―enrolando‖ uma criança que havia trazido um CD das Chiquititas para ouvir em aula – justamente no dia em que o tema da aula era ―traga de casa a música que você gosta para ouvirmos juntos". A professora, julgando o produto musical como de ―má qualidade‖, foi ―deixando para depois‖ o disco da menina até que esta, ao final da aula, indagou: ―Não vamos ouvir o meu??‖. A professora fez então, ―com cuidado‖, um discurso para dizer às crianças que aquela música não era legal para ser escutada ali... Já a suposição de que a criança esteja apenas imitando algo, quando deveria estar ―criando‖ ou ―descobrindo‖, só pode decorrer de uma preocupação ligada à própria crença de que a criança possuiria uma inclinação inata à inovação. Isto é, do ponto de vista da ―criação artística‖ o adulto estaria preocupado com o fato de a criança estar imitando aquilo que já foi feito quando poderia estar caminhando para o ―despertar‖ e para o ―desenvolver‖ de sua ―arte interior‖, ―pura‖ e ―nova‖109.

A grande nocividade de uma prática educacional baseada nessa crença reside no fato de que aquela criança que procura soar ―igual‖ ao ―ídolo‖, não terá de se haver precisamente com a impossibilidade que existe neste desejo. Mas se, ao contrário, o professor for caminhando na trilha do desejo e mostrar ao aluno, por exemplo, possibilidades reais que existem para executar (tocar) aquela determinada música, o aluno irá se deparar com dificuldades reais – bem como com eventuais facilidades. E essas mesmas (im)possibilidades o levarão a trilhar seu próprio caminho a partir daquele desejo ideal. Voltaremos à questão da impossibilidade do desejo no âmbito da educação musical mais adiante.

Talvez seja um tanto obvio, mas gostaríamos de mencionar que o objetivo de qualquer educação musical jamais deveria ser o de ―formar grandes artistas‖ – ou, pior, ―fabricá-los‖. Seja qual for a ―tradição musical‖ à qual o professor está mais ligado. Assim como em um curso de criação musical ligado a uma tradição de música erudita europeia não se deve esperar a formação de Mozarts, Bachs, Wagners ou Stravinskys, num ensino mais voltado à música popular tampouco se deve esperar a formação de Pixinguinhas, Caetanos, Itamares ou Jobims. Como um Mozart se 109

Como vimos anteriormente, isso decorre da própria necessidade narcisista do adulto de encontrar na criança àquilo que falta a si mesmo (ver pp. 37-38).

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tornou o Mozart ou porque um Caetano é o Caetano será sempre inexplicável – ou, ao menos, terá sempre uma dimensão inexplicável, por mais que tentemos. Não existe faculdade, escola, conservatório, curso, aula ou educação no mundo que seja responsável inteiramente por transformar uma pessoa em um ―grande artista‖110. E tal pretensão seria uma daquele tipo que busca reservar ao aluno um futuro predeterminado, um futuro sonhado pelo adulto. Dizer qual seria então o objetivo da educação musical, achamos que não nos cabe – mesmo porque estamos seguros de que há mais de um. Mas, de acordo com o que já foi dito neste trabalho, podemos dizer que um objetivo seria a transmissão histórica111 de uma tradição – da qual nunca estaremos totalmente seguros de como se transformará durante e depois da transmissão. Ou, ligado a essa ideia, também podemos pensar em termos de experienciar112 ou entrar em contato com a linguagem musical. Isto é, a intenção de quem procura, por exemplo, uma escola de música – para si ou para seu filho – não precisa ser a de se tornar um profissional – ou almejar que seu filho se torne um.

Como ilustração de alguns pontos discorridos até agora, trataremos brevemente sobre a Apresentação de alunos que ocorre na escola de música de Pedro Mourão. Frisando que esse é apenas um aspecto de seu trabalho, não necessariamente o ―mais importante‖ ou ―principal‖.

2.2.1 A Apresentação de alunos

A Apresentação de seus alunos em frente a um público é parte do trabalho de Mourão há bastante tempo – antes mesmo de ele administrar a própria escola. Quando ainda dava aulas individuais particulares em casa, vez ou outra conseguia algum espaço para que seus alunos pudessem se juntar em pequenos grupos, ensaiar algum repertório e apresentá-lo. Também quando fez trabalhos em instituições de ensino públicas, dava um jeito de realizar o evento.

110

Não nos referimos aqui a esses artistas por sua ―fama‖; serviria de exemplo também um artista de quem nunca se ouviu falar, mas nesse caso ficaria difícil para nós mencioná-lo... 111 Ver p. 34 112 Infelizmente essa palavra também é muito usada como marketing de, por exemplo, parques de diversão: ―Venha experienciar seu potencial para a aventura e a adrenalina!‖. Não é esse o sentido – de uma experiência de ―puro prazer para esquecer-se dos problemas da vida‖ – que queremos com o termo.

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Hoje, na Sim! Escola de Música (antiga Domus Escola de Música)113, essa apresentação ocorre semestralmente.

Não pretendemos fazer aqui um levantamento histórico sobre o assunto, mas sabemos que a concepção básica de apresentação de alunos de música não é nova114. Porém, gostaríamos de frisar que hoje em dia, no âmbito do ensino de música institucionalizado, não é raro encontrar apresentações que, como dizem, são ―para pai ver‖. O intuito de Mourão nunca foi esse – muito embora os pais dos alunos, evidentemente, assistam ao evento.

Como já foi dito, o trabalho realizado por Mourão tem em vista um fazer musical real com o aluno. O professor vai ensinar ao aluno e não fazer por ele. Isto é, numa dita apresentação ―para pai ver‖ nota-se muitas vezes que os adultos tocam todos os instrumentos – compondo um conjunto musical propriamente e fazendo a parte mais ―difícil‖ – e às crianças fica reservado um papel pseudoprotagonista, pois, apesar de ocuparem a linha de frente do palco, trata-se, claramente, de uma atividade menos desafiadora e com menos chances de ―dar errado‖ – como apenas cantar e dançar. Não que cantar ou dançar seja mais fácil do que tocar instrumentos, mas pelas nossas observações empíricas constatamos que, pela quantidade de apresentações onde o papel reservado às crianças consiste unicamente nessas duas expressões, arriscamos a opinião de que exista alguma crença velada calcada na ideia de que essas seriam as ―atividades musicais‖ mais ―adequadas‖ às crianças.

Por outro lado, o simples fato de crianças empunharem instrumentos numa apresentação, tampouco é garantia de que se trate de um bom trabalho educacional. Tudo depende da relação que se dá entre professor e aluno durante as aulas, evidentemente. Sabemos, entretanto, que, ao menos em São Paulo (para não arriscar dizer no Brasil), essa atividade, hoje comum – crianças do ensino de música praticando como um conjunto (banda) de música popular propriamente –, era algo raro de se encontrar quando Mourão começou a fazê-la. E, como falamos anteriormente, características inovadoras trazidas por ele não derivaram de um ―deu na telha‖, mas sim de práticas reais, inseridas

113

Para constar, durante 20 anos a escola levou o nome de Domus Escola de Música. Porém, este nome não podia ser usado legalmente por questões de conflito de uso de marca com a Escola Pueri Domus, de ensino básico e secundário da cidade de São Paulo. Quando, há dois anos, resolvemos criar um website tivemos que trocar oficialmente de nome, passando então a ser Sim! Escola de Música. 114 Na tradição erudita, por exemplo, é seguramente anterior ao século XX e leva o nome de recital.

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num contexto coletivo de tradição, transmissão e transformação de uma cultura popular brasileira – que, todavia, carecia de legitimação sob muitas óticas, inclusive a da educação musical115.

A Apresentação, para nós, faz parte do próprio processo de aprender música. Ela não configura um fim ou um objetivo em si. Nem as aulas ―miram‖ a Apresentação. Nenhum aluno é obrigado a se apresentar, mas havendo vontade por parte deste e não havendo algum motivo específico que leve o professor a considerar o caso116, a atividade acontece.

Tendo em mente a ideia de que a educação musical não deve visar necessariamente a formação de futuros músicos ou musicistas, a Apresentação nos mostra como é possível passar pela experiência de palco – a experiência de fazer música em frente a um público – sem ser um profissional. Então, crianças, jovens e adultos ensaiam, sobem ao palco e se apresentam. Uns ficam mais nervosos, outros menos, cada um encara a situação à sua maneira. Para algumas pessoas pode ser a única experiência desse tipo que terão na vida, enquanto, para outras, pode ser uma dentre muitas. Mourão sempre faz uma fala de abertura no dia do evento onde explicita o fato de que aquilo é uma apresentação de alunos e que ninguém está ali na condição de profissional.

Dessa forma, uma mulher adulta, aluna de canto, que é arquiteta e deseja cantar sem ambições profissionais, passa por uma experiência real de se apresentar em público. Se ela é mais ou menos afinada, se seu timbre de voz agrada ao ouvido do público presente, se a interpretação dela é exagerada para uns, sem graça para outros... Se tais suposições passam por sua cabeça antes ou durante sua apresentação – gerando aquilo que comumente se chama de ―nervosismo‖ –, ela terá de lidar com isso, como qualquer pessoa que realiza algo diante de olhos e ouvidos alheios. Afinal, o gosto e a opinião alheia são impossíveis de se prever ou controlar. E se alguém do público pensa de fato alguma dessas coisas, paciência. Ela é uma aluna e está aprendendo no seu ritmo, à sua maneira, bem como à maneira como se dá sua relação com aquele determinado professor.

O menino de oito anos, aluno de bateria, se apresenta em conjunto com outras crianças. Ele oscila um pouco o andamento da música. Depois, o pai de uma das outras crianças do grupo, apesar de alegre por ter visto aquilo que elas realizaram, nos pergunta de maneira simpática, ―mas porque 115

É importante sublinhar (do mesmo modo como fizemos na nota nº57) que o trabalho de Mourão, apesar de profundamente ligado à práxis da música popular (seja vocal ou instrumental), não se reporta especialmente às teorias da canção de Tatit ou a qualquer teoria de validação social de produções populares. 116 Fica a cargo do bom senso do professor, caso a caso. Por exemplo, pode se tratar de um grupo de crianças que começou a ter aulas há pouco tempo e ainda não ―engatou‖ ou algum aluno que não se sinta seguro para apresentar, etc.

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vocês não colocaram alguém tocando uma percussão ao lado da bateria, pra segurar melhor o tempo das músicas?‖. Não precisa. Foi aquilo que aquela criança pôde, ela mesma, realizar naquele momento. E o menino tocou, oras. Foi até o fim! E saiu do palco todo empolgado.

Enfim, cada caso, um caso. Não cabe neste trabalho o relato de tantas outras experiências interessantes ligadas à Apresentação. Alunos que, apesar de dificuldades particulares, faziam questão de apresentar-se todas as vezes durante seu tempo na escola; ex-alunos que relatam a experiência como algo marcante em suas vidas; entre outros. Mas selecionamos um caso para analisar brevemente.

2.2.2 Os Corujas Psicodélicas

Acabamos trazendo o relato da apresentação desse grupo de alunos em particular um pouco por acaso. Enquanto escrevíamos este trabalho nos lembramos da existência do registro em vídeo117 feito pelo pai de uma das crianças. Aproveitando a exigência de que seja apresentado um aspecto prático deste trabalho perante a Banca Examinadora, decidimos expor o vídeo em questão e fazer algumas reflexões sobre o caso, como faremos a seguir.

Trata-se da apresentação de um grupo de crianças de 11 anos de idade, no ano de 2001, que faziam o curso de musicalização na, então, Domus Escola de Música (hoje, Sim! Escola de Música). Diferente do curso de prática de conjunto, onde alunos já com alguma experiência prévia escolhem o(s) instrumento(s) de sua preferência e, a partir daí, praticam repertórios pelos quais têm interesse – como ―integrantes de uma banda‖ propriamente –, na musicalização eles são levados a experimentar diversos instrumentos, compreender a música e a linguagem musical de uma maneira geral, bem como já começam também a praticar o ―tocar em conjunto‖118.

Uma vez que o curso de musicalização com aquelas crianças em particular decorreu no fato de que elas fossem capazes de executar um repertório do qual gostavam, foram se apresentar. Os próprios meninos deram um nome à banda: Os Corujas Psicodélicas. Escolheram e tocaram três 117

Disponível atualmente em: A prática de conjunto não configura, necessariamente, a ―evolução‖ da musicalização, embora seja comum acontecer de os alunos irem se afeiçoando mais a esse ou àquele instrumento e repertório, decorrendo na prática de conjunto. Mas a musicalização pode tranquilamente ser um curso para adultos ou mesmo para quem já tenha experiência musical prévia. 118

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músicas, mas trataremos aqui apenas sobre a execução de Corazón Espinado119. Nessa música, Guilherme (apelido, Guizibi) tocou guitarra e cantou, Pedrinho tocou guitarra, Lucas contrabaixo e André tumbadora. Um professor completou o time na bateria120. Logo que começam a execução – após meu pai dizer, ―vai lá, manda bala!‖ – não há dúvida de que os meninos estão tocando de verdade. Não há nenhuma ―enganação‖ ou imitação em voga ali. A música acontece: Lucas toca muito bem a linha do baixo com ritmo ―latino‖ sincopado, André entra com uma frase na tumbadora que não é das mais simples, Pedrinho faz a introdução na guitarra; enfim, eles formam de fato uma banda e vão seguindo.

À altura daquela apresentação, já era sabido que Guizibi, apesar da idade, apresentava enorme facilidade para tocar guitarra. Assistindo ao vídeo agora, reparamos que todos ali demonstravam bastante musicalidade, porém havia um ―algo a mais‖ que estigmatizava Guizibi, de modo que, inevitavelmente, isso era comentado, tanto pela comunidade da escola, quanto pelos pais, amigos, pais dos amigos, etc. Comentários e expectativas criadas que são impossíveis de se controlar. Em determinado momento da música, então, Guizibi faz um solo de guitarra. E constatase – até com certa graça, por se tratar de uma criança – que ele já possui, de fato, aquilo que se chama de ―pegada‖. Não se trata nem de um solo onde as notas estão todas ―certas‖, mas vê-se claramente certo domínio e entendimento de toda uma linguagem de gestos, frases e intenções próprias de um universo ―guitarrístico‖ – um tanto blues, um tanto rock, com um ―toque latino‖ à la Carlos Santana – que se expressa no corpo e no tocar de Guizibi. Como era de se esperar, o público presente – composto por pais, amigos, bem como por desavisados que também se impressionam ao ver e ouvir a expressão musical daquela criança – vibra, aplaude, grita. Acontece que, depois, é a vez de Pedrinho ―solar‖ na outra guitarra. A princípio ele vira de costas para o público e dirige-se à parte de trás do palco. Podemos somente especular com palavras um tanto vazias do tipo ―nervosismo‖, ―medo‖, ―vergonha‖; mas parece que algum sentimento o invade no momento e o leva a ―enrolar‖ um pouco a situação, se comunicando com alguém que está próximo ao amplificador de sua guitarra. Porém, ele vai voltando a sua posição no palco ao mesmo tempo em que Mourão passa por ele dizendo, ―Você vai ‗solar‘, Pedro?? Você vai ‗solar‘??‖. O menino retruca algo inaudível no vídeo e eis que: encara a situação 119

Composição de Fher Olvera, sendo a interpretação mais conhecida do guitarrista Carlos Santana junto ao grupo Maná. As outras duas músicas apresentadas foram Day Tripper (Lennon/McCartney) e O Bom (Carlos Imperial). 120 Trata-se de Rodrigo Mourão, meu irmão. Nas outras músicas os meninos trocam de instrumentos e André assume a bateria.

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e faz seu solo. Este pode não apresentar tanta segurança e desenvoltura quanto o de Guizibi, mas demonstra também uma familiaridade com o instrumento de quem, um tanto, ―já sabe o que faz‖ e se desenrola sem nenhum problema. De repente, uma surpresa: ao final do solo, Pedrinho leva sua guitarra à altura da boca e a toca com os dentes, num gesto poderoso à la Jimi Hendrix! O público, claramente ganho, se entrega a aplausos e vivas. Guizibi, ao seu lado, também aplaude, avisa a banda em voz alta, ―segunda parte!‖, e a música segue sem maiores impasses.

Uns bons anos depois, assistimos pela primeira vez ao vídeo dessa apresentação na companhia de André, um dos membros dos então Corujas Psicodélicas – seu pai foi o responsável pelo registro. Enquanto víamos a situação dos ―solos‖ descrita acima, André me comentou: ―Seu pai devia ter pensado nisso antes e deixado o Pedrinho ‗solar‘ primeiro!‖. Depois, comentou também achar que Pedrinho havia se virado bem na situação.

Apesar de ter sido fugaz e com boas intenções, nos damos à liberdade de imaginar que o primeiro comentário feito por André poderia ter saído da boca de um psicopedagogo. Suponhamos que meu pai fosse tomado por aquele ―medo de educar‖121, obcecando em alguma instância no controle sobre os efeitos educativos e na idealização de uma criança ―frágil‖, ―a ser protegida dos males do mundo‖. Aí talvez ele tivesse calculado que Pedrinho devesse fazer seu solo antes, para assim poupá-lo da situação embaraçosa de ter que entrar depois do amiguinho que tocava ―melhor‖.

Bem, se tivesse sido esse o caso, Pedrinho não precisaria encarar uma situação na qual seu amigo tocou melhor do que ele122, não sofreria de nervosismo nem inibição, não ficaria angustiado naquele momento, possivelmente também não teria a ideia de tocar a guitarra com os dentes e, enfim, justamente não teria que se virar na situação. Retomando uma vez mais a metáfora de Freud de que ―a educação age como quem envia pessoas para uma expedição polar com roupas de verão e mapas dos lagos italianos‖, esta se refere justamente à má preparação dos jovens e crianças para o mundo real – a mesma má preparação para o desejo, reconhecida pelo pai da psicanálise na pedagogia de seus tempos. Isto é, o ―mundo real‖ é justamente àquele onde nem tudo é previsível. Sabemos, entretanto, que essa má preparação ainda existe hoje em dia, mas sob outras máscaras, como temos discutido neste trabalho. Hoje a 121

Decorrente de todos os possíveis motivos sobre os quais já discorremos anteriormente. Seria algo parecido com, por exemplo, aquele professor que permite a criança ir ao banheiro quantas vezes quiser, com medo de que essa possa ficar ―traumatizada‖ se fizer xixi nas calças (ver p. 20). 122 Aliás, existe situação mais corriqueira que esta na vida de um músico profissional?!

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psicopedagogia crê que os males do mundo não só são previsíveis como, muitas vezes, remediáveis – no sentido mesmo de ―medicáveis‖. Então, as angústias das quais que não pudermos proteger nossas crianças de antemão, poderemos ao menos receitá-las um antidepressivo depois.

Agora, ensiná-las a lidar com as dificuldades da vida parece algo demasiado trabalhoso. Principalmente porque isso implica que nós mesmos, os adultos, teremos de nos haver com nossas limitações e assumir certos riscos. Afinal, como cada caso é um caso, a história dos solos de guitarra poderia ter sido mais angustiante do que foi. Pedrinho poderia ter lidado ―pior‖ com a situação e isso causaria um mal-estar também em seus educadores – ora, um educador que se importe de verdade com seus alunos evidentemente que sentiria algum tipo de culpa pela angústia que acometera a criança, se questionando, em alguma medida, ―o que eu poderia ter feito para que isso não acontecesse?‖.

Meu pai costuma estar bem atento aos casos e, com os anos de experiência que carrega, tem confiança em seu trabalho. Confiança essa que é apreendida pelos alunos de alguma maneira, mesmo que estes não se deem conta. Inclusive, quando passou por Pedrinho no palco perguntando incisivo, ―Você vai ‗solar‘??‖, podemos entender essa atitude como uma maneira de dizer duas coisas ao mesmo tempo: ―Se vira aí!‖, mas também, ―Qualquer coisa estou aqui, ao seu lado‖. Isso é visível também no vídeo, quando, por alguns instantes, ele se coloca atrás de Pedrinho enquanto este faz seu solo. Nota-se que esta colocação corporal não se dá de maneira ultra protetora – como um ―pegar no colo‖ –, mas parece ser uma preocupação do tipo, ―se ele cair para trás, eu o seguro‖ – aliás, não sabemos nem se Pedrinho percebe sua presença ali.

Não podemos jamais ter certeza do que se passa na cabeça de uma criança, assim como não podemos afirmar o que sentiu Pedrinho naquele momento ou saber de que maneira ele se lembra, hoje, daquele ocorrido. Entretanto, o que sabemos é que, de todos os membros dos Corujas Psicodélicas, Pedrinho foi o único que se tornou músico profissional123.

*****

123

Guizibi também é músico, embora trabalhe profissionalmente em outra área.

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2.3

Musicalidade

Durante este capítulo usamos algumas vezes a palavra musicalidade. Mas o que seria, afinal, musicalidade?

Em primeiro lugar, teremos que deixar para um outro trabalho a importante tarefa de realizar um levantamento sobre os diferentes usos e possíveis definições que foram dadas ao termo, por diversos autores, na área da educação musical ou não. Segundo, não pretendemos aqui defini-lo de maneira fechada e conclusiva, mas antes refletir sobre ele por nossa conta e risco, bem como especular e propor algumas possibilidades sobre seu significado – levando em consideração, evidentemente, as questões que foram tratadas neste trabalho. A primeira vez que mencionamos o termo aqui, foi citando palavras de Pedro Mourão: ―A musicalidade é intuitiva, núcleo da linguagem musical‖. O que podemos entender por ―intuitiva‖ ou ―intuição‖? Aliás, esta é uma palavra bastante corriqueira em conversas entre músicos ou sobre música. Se partirmos do senso comum (muitas vezes um bom lugar para começar) ela aparece como o contrário de ―racional‖. Ou seja, no que toca ao fazer musical, se trata de algo que não foi premeditado, pensado de antemão, calculado, etc. Ao mesmo tempo, se pode dizer algo como, ―calculei intuitivamente‖, ou se pode ter a sensação de que aquilo que aconteceu foi em parte intuitivo, em parte pensado, premeditado.

Há muita gente (musicistas de profissão ou não) que pode relatar sensações subjetivas desse tipo, presentes em atos do fazer musical como, por exemplo: no apreender corporal quase instantâneo do pulso de uma música; no reconhecer, ―de ouvido‖, o campo harmônico de uma música e as notas musicais pertencentes a ele; no ato de relembrar como se toca determinada música que há muito não se tocava; etc. Enfim, também a partir de nossa própria experiência, digamos que o fazer musical não é uma ação que se realiza de todo conscientemente.

Partindo ainda do senso comum, constata-se que musicalidade é um termo usado para se referir à habilidade de alguém no fazer musical – este último também em sua concepção mais comum. Em comentários do tipo, ―nossa, como fulano é musical‖ ou ―fulano leva jeito‖, o que geralmente se está reconhecendo são a fluência e o domínio, em alguma instância, da linguagem musical por parte daquele fulano. Lembrando que já colocamos que, para além da concepção

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clássica da linguagem e do fazer musicais, existem outros olhares que ampliam o horizonte da diversidade de formas de expressão musical124.

Mas pensemos, por enquanto, sobre o fazer musical em sua concepção mais corriqueira: para executar determinada música, cantando ou tocando, não há como escapar de se haver com a linguagem musical e com os elementos básicos que permitem ao sujeito ―falar‖ aquela língua e ser entendido pelos demais. Isto é, se alguém deseja tocar um samba no violão, por mais que existam inúmeros caminhos – arranjos, ―levadas‖, harmonizações, ―simplificações‖, etc., – que o estilo permita, há que se articular o pulso, o ritmo, as mudanças de acordes, etc., de maneira que se configure o tocar samba. Acontece que sabemos empiricamente que esse ―articular‖ deve se dar mais na esfera ―intuitiva‖ do que na ―racional‖. Para pessoas que apresentam uma dificuldade rítmica – principalmente no que toca a, digamos, internalização do pulso –, muitas vezes o entendimento racional do fazer – compreender a escrita, a lógica matemática implicada na rítmica, as divisões rítmicas, etc. – não ajuda tanto assim o corpo – mesmo em se tratando de um ensino que não se perfilou à divisão clássica teoria/prática da qual falamos anteriormente.

Pedro Mourão, em seus anos de experiência lidando com alunos de música, reconhece a existência de pessoas que apresentam tal dificuldade. Essa dificuldade varia de pessoa para pessoa, de diferentes maneiras, em diferentes ―níveis‖ e não é sempre facilmente reconhecível. Mas apresenta esse ―denominador‖ comum que está justamente na questão do pulso. Isso sempre intrigou muito meu pai, porém, muitos que trabalham com música também já devem ter notado – empiricamente – que certas pessoas, mesmo que não sejam musicistas de profissão, apresentam uma evidente facilidade, que pode se observar em diversas ações: no batucar despretensioso, no dançar, no cantar, na rapidez com que a pessoa aprende a tocar um instrumento, etc. Esses hipotéticos observadores devem ter notado também, em outras pessoas, o oposto: uma dificuldade em apreender o pulso da música e, de algum modo, automatizá-lo para que assumam certa liberdade na expressão da linguagem musical.

Claro que, às vezes, pode acontecer também de se achar que o sujeito tem essa dificuldade, mas depois, com o tempo, constatar que se tratava apenas de um ―não costume‖ com o fazer 124

Seja a partir do conceito de canção trazido por Tatit, ou a partir da ideia de aleatoriedade em música de John Cage, etc.

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musical – porque a pessoa nunca tivera muito contato com música ou êne outros motivos. Mas é evidente que aqueles que apresentam mais ou menos essa dificuldade demonstram um esforço maior para ―pegar‖ a linguagem musical. E com ―pegar‖ queremos dizer o fazer musical prático.

Enfim, esse é um assunto delicado e não temos uma conclusão sobre a causa dessa dificuldade. Não sabemos se seria a mesma em todos os casos; não sabemos se se trata de uma questão motora, neurológica, psicológica ou o que seja. Não sabemos.

Mas de que essa dificuldade existe, estamos seguros. A questão que se coloca, então, é: como lidar com ela? Como lidar com um(a) aluno(a) que apresenta essa dificuldade?

Ao invés de tentar responder a essa pergunta, direto e reto, façamos mais algumas constatações empíricas nossas (e de Mourão): vimos, durante anos de Escola de Música, muitos e muitos casos distintos e podemos afirmar que por lá passaram alunos e alunas que, apesar de apresentarem a dita dificuldade, seguiram por anos conosco e demonstravam imensa vontade de fazer música. E houve também casos opostos: pessoas com enorme facilidade que não se encantaram e não mais se aventuraram no fazer musical. Dessa forma, vimos casos onde o sujeito que apresentava dificuldade chegou bem mais longe em suas experiências musicais – encarando aquele mesmo fazer musical com o qual tinha dificuldade – do que o outro que demonstrava facilidade. Voltando à pergunta – como lidar com os que apresentam dificuldade? –, algum educador musical ou músico que se interessa por outros campos da linguagem musical, onde se lida com o pulso de outra forma – colocando este último justamente num ―xeque‖ intelectual –, há de propor: mas por que não mostrar para essas pessoas outros caminhos possíveis do fazer e do usufruir musical (expandindo intelectualmente a própria definição e o próprio entendimento de ―o que é música‖)? Sim, isso pode ser legal.

Mas e se o sujeito for louco por samba? Pois o samba tem tanto a ver com ele, com sua história, com seus desejos ou por qualquer outro motivo. Será que é obrigação do professor de música listar ao aluno os caminhos ―alternativos‖ da música – seja porque este último apresenta uma dificuldade legítima em fluir na ―cadência do samba‖ ou porque o primeiro simplesmente é interessado nos debates e reflexões da música contemporânea?

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Talvez estejamos nos alongando demais em reflexões que de alguma forma já tratamos aqui. Sabemos que o ―gosto‖ do aluno não deve nem ser desprezado nem se tornar a única razão de ser do ensino. Mas, se pensarmos sobre a educação enquanto algo que é movido pelo desejo – preparação da criança/jovem para este – e, portanto, constituindo uma relação de amor – que se daria também num ensino entre adultos –, talvez possamos especular justamente sobre o que pode levar alguém a se expressar musicalmente, da maneira que seja.

Maria de Fátima Vicente, em seu livro Psicanálise e Música (2014), coloca: ―A sonata materna125 é o modo pelo qual a fala da mãe126 transmitirá ao infans uma dupla vocação para ser humano, a que se traduz por invocação significante e aquela própria à invocação musical. Tal sonata comporta a continuidade vocal e a descontinuidade consonantal e é efeito da voz da mãe ao falar com o bebê e ao falar o bebê. Será pela via da singularidade dessa fala – cuja musicalidade a identifica inequivocamente – que o bebê, nascido apenas como cria da espécie, humanizar-se-á. O mundo lhe será transmitido a partir dessa dupla vocação e será marcado por um contínuo e um descontínuo. No campo do descontínuo ancora-se o regime da lei que irá produzir a discriminação entre as coisas; mas será o mundo do contínuo que o sujeito ‗encontrará no instante em que soar a música‘, o que se repetirá imemorialmente sempre que isso acontecer, sempre que a música soar.‖ (VICENTE, 2014, p. 94, grifo meu)

Em outra passagem, a autora discorre sobre a noção de ―O Outro em mim‖ enquanto um ―lugar para comemorar‖: ―a alteridade, é a intimidade que de fora, pela voz do outro/Outro, falando comigo, me fala e me ensina no futuro a cantar‖ (VICENTE, 2014, p. 53). A autora estaria falando, então, sobre a instalação do desejo a partir de uma musicalidade vinda (e apreendida) do outro.

A expressão musical, também sob uma visão psicanalítica, carregaria então um tanto da ―atemporalidade do inconsciente‖, onde os desejos mais remotos – ―da atualidade do sexual infantil‖ – estariam presentes junto aos mais atuais: ―Equivalente à atemporalidade do inconsciente, a música é, nas palavras de LéviStrauss (1971), ‗uma máquina de suprimir o tempo‘, algo que necessita do tempo cronológico e se desdobra nele, apenas para infligir-lhe um desmentido.‖ (VICENTE, 2014, p. 72).

E, então:

125

Termo de Didier-Weill (1999). ―A ‗fala da mãe‘ diz respeito à fala de qualquer pessoa que consistentemente leve adiante o agenciamento maternante‖ (nota da autora). 126

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―(...) Nessas repetidas ocasiões [sempre que a música soar] se fará para ele [o sujeito], e por ele, a experiência de ‗entrada num novo mundo, cuja novidade, a cada vez igualmente renovadora, irá se especificar por uma súbita colocação entre parênteses dos limites espaçotemporais que ele recebe da ordem da lei‘ (Didier-Weill, 1999, pp. 154-155).‖ (VICENTE, 2014, pp. 94-95)

A partir dessas colocações, bem como de questões já levantadas neste trabalho, podemos pensar na ideia de: musicalidade enquanto desejo. E, como já vimos, falar de desejo é falar, ao mesmo tempo, da impossibilidade do desejo. Haver-se com o desejo é se haver também com a impossibilidade de sua realização plena127.

No âmbito da música e da educação musical essa ideia pode ser traduzida em algo como: apenas porque um sujeito deseja torna-se músico, não significa que se tornará aquele músico que deseja (que imagina, que fantasia). E, embora tenhamos usado a ―dificuldade rítmica‖ como ilustração de algo responsável por eventuais impossibilidades – inclusive porque se trata de algo que reflete na maneira mais comum de se fazer música –, não é só por esse motivo que alguém pode não se tornar aquele músico que deseja128. Então, retomando a pergunta, ―como se lida com os que apresentam dificuldade?‖, podemos responder que se lida como em qualquer relação educativa, oras. Mas, como sabemos, as relações educativas não são todas iguais, na mesma medida em que cada sujeito é singular. O que implica em reconhecer justamente as impossibilidades tanto daquela relação em particular quanto do desejo ali em causa. Ou seja, em qualquer educação possível há o reconhecimento e a aceitação da impossibilidade do desejo – ao invés da tentativa de mascaramento deste, o que levaria à renúncia ao ato educativo em alguma instância. Em outras palavras ainda: numa educação possível as dificuldades – de qualquer ordem – são encaradas e não evitadas.

E é precisamente a dimensão de impossibilidade do desejo que leva aos caminhos da diversidade – às inovações, às transformações nas linguagens, aos eventuais rompimentos estéticos,

127

Podemos nos referir a essa dimensão de impossibilidade por meio do conceito psicanalítico de castração. Para evitar mal-entendidos aos leitores mais distantes da psicanálise, atentamos que o conceito de castração não se refere ao ato mutilador do órgão genital propriamente, mas a uma noção simbólica: precisamente a da impossibilidade de controle do desejo e das ideias: ―(...) O complexo de castração deve ser referido à ordem cultural em que o direito a um determinado uso é sempre correlativo de uma interdição. Na ‗ameaça de castração‘ que sela a proibição do incesto vem encarnar-se a função da Lei enquanto institui a ordem humana (...).‖ (LAPLANCHE, PONTALIS, 1991, p. 76). 128 ―O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos‖ (FREUD, 2010, p. 31).

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etc. Portanto, o reconhecimento da ―dificuldade rítmica‖, por exemplo, não se trata necessária e simplesmente de uma insistência do professor em relação ao pulso. Mas sim de uma atitude na qual não se evita mostrar ao aluno que, se ele deseja tocar samba no violão, ele terá de se haver com uma linguagem que – quer queira quer não – já está estabelecida (ainda que sempre em transformação na práxis, como já dissemos). Que caminho o aluno tomará a partir disso, jamais se saberá a priori.

Lembrando, inclusive, que, em música, muitas vezes aquilo que é, a princípio, reconhecido como uma ―falha‖ na musicalidade (em sua concepção de senso comum) pode ser justamente aquilo que torna aquela pessoa singular como artista (em sua expressividade). Já notamos muitos casos (próximos e distantes) onde o músico, apesar de apresentar, a nosso ver, algum tipo de dificuldade que aparentemente o traz alguma impossibilidade técnica, encontra um ―jeito de tocar‖ que (além de ―funcionar‖!) acaba por se tornar sua marca pessoal. E esses, por vezes, acabam sendo os que mais chamam nossa atenção, nos levando a contemplar a musicalidade (agora enquanto desejo) em sua busca por caminhos de expressão.

Vemos também que, para que haja o reconhecimento da impossibilidade, o professor tem que entrar no jogo do desejo. Isso implica no gesto de escutar o aluno – gesto esse que, por sua vez, tem total impacto na própria relação entre educador e educando. Nas palavras de Vicente: ―A voz da mãe como algo que me ouve é dependente da musicalidade desejante que a voz transmite‖ (2014, p. 50).

Enfim, se pensarmos na impossibilidade de realização do desejo como aquilo que nos move e nos leva, cada um, a traçar nossa própria trilha, ao pensar na musicalidade enquanto desejo e impossibilidade deste, abrimos caminho para a diversidade na música e na educação musical.

Keith Richards, guitarrista e compositor dos Rolling Stones, conta em sua autobiografia sobre seu avô materno, a quem tinha muita afeição. Gus – seu apelido – era músico amador e Richards o apresenta como um dos grandes responsáveis pelo seu interesse por música, ainda quando criança. Desse avô, sua mãe, Doris, teria ―herdado‖ também a ―musicalidade‖ (RICHARDS, FOX, 2010, p. 58). Richards lembra, então, de um violão (inalcançável) que sempre chamava sua

atenção na casa do avô: ―(...) O violão estava completamente fora de alcance. Era uma coisa para se olhar, sobre a qual pensar, mas em que nunca se punha as mãos. Nunca me esquecerei de como o violão 95

ficava sobre o piano de armário dele [do avô], todas as vezes que eu ia lá para uma visita, começando talvez quando eu estava com cinco anos. Eu achava que aquilo vivia ali. Achava que sempre estava lá. E só ficava olhando para ele, e ele não dizia nada. Alguns anos mais tarde, eu ainda estava olhando para ele. ‗Ei, quando você tiver altura suficiente, te deixo experimentar‘, ele disse.‖ (RICHARDS, FOX, 2010, p. 63)

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A Diversidade (À guisa de Conclusão)

Antes de finalizar, gostaríamos de fazer mais uma observação em relação à posição do educador (do mestre) – algo que já dissemos, de certa forma, ao longo das reflexões deste trabalho. Se tomarmos mais uma vez a noção de adulto da práxis como nosso educador possível, remetemos à ideia de educação enquanto uma transmissão histórica e o educador como “historizador” do passado, uma vez que este reconhece o desejo que o anima. Assim, a educação se torna a preparação da criança para o desejo – pois este último, justamente, deixa de ser escondido ou evitado em alguma tentativa de driblar a dimensão impossível nele implicada.

Temos aí, então, que a maneira como o educador (professor, familiar ou qualquer pessoa que ocupe essa posição) se mostra mostrando aquilo que ensina, faz diferença. Mas isso não é o mesmo que prega o discurso da ―ciência da educação‖: não se trata de acreditar na existência de uma maneira ―correta‖ de ensinar que se possa aprender em algum curso ou manual e que permita, nas palavras de Arendt, fazer com que o professor se torne ―um homem que pode simplesmente ensinar qualquer coisa‖, pois ―sua formação é no ensino, e não no domínio de qualquer assunto particular.‖129. Esse ―como o educador se mostra mostrando‖ tampouco diz respeito unicamente à questão da didática. Esta última, como já colocamos anteriormente, pode ser de alta validade. Em muitos casos, a didática se trata de experiências acumuladas e passadas de gerações em gerações de educadores de determinada área que foram encontrando bons caminhos para se ensinar esse ou aquele conteúdo. Foram-se passando a frente justamente essas possibilidades de trilhas. Ou seja, o ―como mostrar as ciências‖, que constitui a própria questão da didática, pode se tratar também de uma transmissão histórica. O que, como sabemos, não significa que não ocorram transformações e inovações durante o tempo de uma geração para outra e que, com efeito, novas trilhas sejam abertas.

Mas há ainda uma diferença disso (a questão da didática) para a questão que pode fazer um educador a si mesmo: como eu me mostro mostrando as ciências130. Isso diz respeito ao quanto de 129 130

Ver p. 13 ‗Ciências‘ no sentido de ‗conhecimentos‘, ‗saberes‘, etc. Poderia ser ‗as artes‘ ou ‗a filosofia‘, etc.

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sua, digamos, personalidade o educador coloca quando mostra algum saber. Isto é, o quanto daquilo que o torna singular, único, aparece – ou transparece, se deixar ver, se faz presente – naquilo (e sobre aquilo) que ele fala. Em outras palavras ainda: o quanto do desejo sai atrelado às suas palavras (e gestos)131. Nesse ponto vemos que há algo que vai além da didática.

Essas colocações talvez remetam alguns leitores à lembrança de certo(s) professor(es) que passou por sua vida. Alguém de quem se recorde talvez por se tratar de uma ―figura‖132 – como se diz coloquialmente, ―tal sujeito é uma figura‖133. Algum professor que os tenha marcado de alguma forma – não necessariamente encarada como positiva. Às vezes, justamente porque o jeito do professor nos deixava um pouco desajustados (ou com a pulga atrás da orelha). Mais ou menos como quando um pai nos ―embaraça‖ em frente aos amigos.

Freud, por ocasião do 50º aniversário da escola onde havia estudado quando jovem, escreveu e leu um discurso em frente a professores, alunos, ex-professores e ex-alunos. Em um trecho, lê-se: ―Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente. Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? – ela foi por causa disso definitivamente bloqueada. Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas; imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam; estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformávamos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamos-nos de sua excelência, seu conhecimento e sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido suas inconveniências para os interessados. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los.‖ (FREUD, 1974, pp. 162-163) 131

Claro que não se trata de algo totalmente consciente, nem a referência a ―quantidade‖ tem a ver com um controle disso. 132 Às vezes temos um amigo ou amiga a quem nos referimos, ao mesmo tempo, debochada e carinhosamente como ―uma figura‖. E, por vezes, isso nos faz gostar muito da pessoa e, por outras, pelo mesmo motivo nos irritarmos um bocado com ela. 133 Mas isso não deve ser confundido com uma atitude bem comum em professores de cursinhos pré-vestibulares, por exemplo, que se tornam verdadeiros ―showmans‖, no intuito de prender a atenção e afugentar o sono dos jovens que varam a noite estudando loucamente para passarem nas exigentes catracas universitárias de nosso país.

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Quando o desejo flui – essa ―corrente oculta e constante em todos nós‖ –, emerge também a singularidade daquela pessoa, bem como a fantasia dos alunos e alunas. Isso acontecendo, apesar de não ser uma garantia de que os alunos vão ―gostar‖ do professor, abrem-se caminhos possíveis para que a educação aconteça, em toda sua imprevisibilidade. Justamente quando há a possibilidade de haver surpresa no meio do caminho, que se prepara a criança para a aceitação do desejo e da diversidade.

*****

Em alguns momentos deste trabalho usamos o termo diversidade. Não todas as vezes com a intenção de significar um exato mesmo sentido, nem nos referindo a alguma definição específica de algum estudo ou autor(a), mas como uma ideia em aberto à qual seria desejável estarmos abertos.

Falamos de diversidade não apenas no que se refere às diferentes possibilidades de se realizar uma educação possível – a singularidade de cada relação educador-educando –, mas também no que toca a possibilidades de pensamentos, teorias e elaborações críticas. Ainda que tenhamos nos atido mais a um caso de uma educação possível, sabemos que, apesar de único, não é o único caso possível. Também em relação à escolha da psicanálise como principal ferramenta de crítica, apresentamos nossos porquês e não excluímos a possibilidade de outras visões sobre o assunto. Inclusive, por vezes, mencionamos que o próprio bom senso poderia dar conta de evitar certos males ideológicos. Conhecemos muitos educadores práticos – isto é, sem uma produção teórico-acadêmica – que realizam uma educação possível.

Não acreditamos, porém, que aceitar a diversidade de pensamentos signifique que todos devam concordar entre si em suas escolhas e argumentos. Ao mesmo tempo, apenas porque eventualmente pensemos de maneira diferente uns dos outros não se deve encarar aquilo que é diverso como um sinônimo de adverso. Dessa forma, por exemplo, por vezes a psicanálise pode levar a discordâncias teóricas significativas com a neurologia. Mas isso não quer dizer que não existam neurologistas que possuam um trabalho interessante, que aponte para a diversificação e à diversidade – assim como psicanalistas que se perfilam totalmente como ideólogos. 99

No campo das discussões sobre música e neurologia temos, por exemplo, Oliver Sacks (1933-2015), um autor que encara ―disfunções‖ fisiológicas (neurológicas) justamente sob uma perspectiva de singularização do sujeito e critica a ortodoxia de grande parte da comunidade médica. Ou como na interessante visão do filme Alive Inside: A Story of Music and Memory (2014)134, que nos apresenta reações de pacientes idosos com o Mal de Alzheimer ao serem expostos à músicas das quais gostavam antes da perda de memória. A perspectiva de um tratamento alternativo a partir disso, embasado por argumentos neurológicos nesse caso, leva a uma contundente crítica à indústria farmacêutica e a lógica de saúde pública direcionada a idosos nos EUA.

Também o pensamento de Luiz Tatit apresentado brevemente aqui pode ser encarado de duas maneiras: como algo que procura segregar – ―encaixotar‖ – formas de expressão musical – isso, se se crê que exista uma linguagem musical única e ―universal‖; ou pode ser encarado justamente como algo que aponte à diversidade da expressividade musical, onde, precisamente, formas diversas podem dialogar, gerando tangentes e hibridismos complexos – interessantes para quem gosta de teorizar e para quem não gosta.

Agora, o que temos que combater sempre são aqueles pensamentos e discursos que vão contra a diversidade. Aqueles mesmos que dão suporte à opressão das minorias, que são contrários a todo tipo de debate de ideias – político, econômico, de gêneros, etc. –, procurando, ao contrário, calar as manifestações da diversidade. Sempre que os reconhecermos devemos estar atentos e fortes para criticá-los.

Vimos como o discurso (psico)pedagógico hegemônico carrega (ou é carregado) por uma ideologia que – pela mesma lógica de Marx e Engels – tem como finalidade última a manutenção da hegemonia de uma classe social dominante – do mantimento das coisas ―do jeito como estão‖. Operando no âmbito da educação, funciona impedindo a aceitação da diversidade humana, empurrando a ideia de padronização d‘A Criança e buscando formatar o desejo – tarefa esta impossível, porém nociva em sua tentativa.

134

Direção de Michael Rossato-Bennett.

100

Uma educação possível agiria na contramão disso. Em educação musical, relatamos e refletimos sobre algumas educações possíveis e lembramos que, precisamente, elas não são educações onde se almeja a perfeição ou onde se desconsidera a diversidade. Também são educações onde as dificuldades da vida – em todas as suas possibilidades, diversidades e imprevisibilidades – são encaradas, ao invés de mascaradas. Inclusive, como colocou Freud em sua fala, mencionada há pouco: ―Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? – ela foi por causa disso [da personalidade dos professores] definitivamente bloqueada.‖. Isso pode acontecer. Quando uma pessoa aparentemente ―desiste‖ de tentar se aventurar na música, por exemplo, é possível que outros caminhos se abram para ela. Mas não fique tão surpreso se um aluno ou aluna que tenha desistido da aula de música, inesperadamente, volte algum tempo depois – alguns meses, anos ou até décadas –, dizendo que deseja retomar e dar mais uma chance.

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