Considerações sobre \" Frankenstein \" à luz da bioética

May 22, 2017 | Autor: Ayala Gurgel | Categoria: Ethics, Bioethics, Biotechnology
Share Embed


Descrição do Produto

Considerações sobre “Frankenstein” à luz da bioética A Bioethics’ view about Frankenstein

Wildoberto Batista Gurgel*

Resumo: Interpretação da obra “Frankenstein” de Mary Shelley à luz da Bioética. Para tanto, recorre-se a uma lectura das falas e seus contextos construindo os principais argumentos e princípios que possam ter paralelo com questões e princípios fundamentais da Bioética. Pretende-se fornecer subsídios para se pensar a Bioética além de textos técnicos, bem como, colocar a questão dos limites do Princípio da Responsabilidade. Descritores: Bioética, Literatura, Frankenstein

Abstract: An interpretation of Mary Shelley’s “Frankenstein”, according to Bioethics’ view. For this, it recurs to a lectura of the speeches and their contexts, building the main arguments and principles that might parallel with fundamental bioethics’ subjects and principles. It is intended to provide data to Bioethics’ discussions, beyond technical literature, as well as to show how to deal with the subject of the limits to the Responsibility Principle. Key words: Bioethics, literature, Frankenstein.

INTRODUÇÃO:

*

Mestre em Filosofia, professor de Filosofia na UFMA e membro do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos do HU-UFMA. [email protected], 98 217 8328.

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

Surgida como uma brincadeira entre intelectuais, a obra Frankenstein or the modern Prometheus, de Mary Shelley1, continua enfrentando o desafio de ser “uma história que falasse aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse um espantoso horror – capaz de fazer o leitor olhar em torno, amedrontado, capaz de gelar o seu sangue e acelerar os batimentos do seu coração” (p.16). Trata-se de uma obra bastante lida e pouco trabalhada no âmbito da Bioética, em especial porque já criamos muitos estereótipos sobre seu conteúdo, dispensando-nos de uma reflexão ou até mesmo de sua leitura. Numa época em que o gênero do terror se tornou anacrônico ou procura nos atingir mais com sons e imagens que propriamente falar “aos misteriosos medos de nossa natureza”, o terror, propriamente dito, parece não mais nos atingir. Paulatinamente nos tornamos insensíveis e, assim como as histórias que nos metiam medo na infância deixaram de nos assustar, a nossa época perdeu o senso de terror. Não nos aterroriza mais o poder da bomba atômica; ignoramos a devastação das florestas e a extinção da fauna; dormimos sossegadamente após a notícia do telejornal sobre a fome e a miséria; mantemo-nos tranqüilos e inalterados frente aos avanços das ciências e das biotecnologias; fazemos ouvidos de mercador às ameaças terroristas e às suas contra-ameaças. Tamanha nossa insensibilidade! E deveríamos nos assustar? Deveríamos construir uma civilização sob o terror, cujos fantasmas impediriam os avanços científicos e mandariam à fogueira homens e mulheres culpados pela sua curiosidade e dedicação à inclinação natural do saber? Evidentemente que não vamos passar de um extremo ao outro. Não é o sonho que nos apavora, é o pesadelo. Do mesmo modo, não é a ciência em si que devemos temer, mas o que incertos “Victor Frankensteins” podem fazer com ela. A obra de Mary Shelley em questão fala de alguns temores e prudência que devemos

2

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

cultuar no mundo das ciências. É na verdade um conselho para que busquemos a “felicidade num viver tranqüilo e evite ser dominado pela ambição, mesmo que seja essa, aparentemente, construtiva, de distinguir-se no campo da ciência e dos conhecimentos” (p. 202). Este conselho se traduz na forma da prudência e da responsabilidade, que ultimamente tem sido tão caras à prática da pesquisa científica. OBJETIVO E MÉTODO: Nosso interesse é, através da lectura (exegese-hermenêutica) das falas atribuídas especialmente a Victor Frankenstein, traduzir este conselho para uma época em que as ciências são desafiadas pela Bioética a continuarem progredindo, mas sem agredirem. Isto significa, portanto, oferecer uma interpretação do significado do terror que está presente na obra desde a projeção do monstro à sua morte e como ele ainda é algo que nos aterroriza. Escrevemos monstro quando muitos já consagraram o nome da criatura por Frankenstein. É bem verdade que, na ótica que estamos propondo, o verdadeiro monstro é Frankenstein, mas este não é o nome da criatura, como se costuma usar. Frankenstein é o sobrenome de Victor, o jovem cientista de Genebra, que dará vida a um ser descomunal formado por partes de diversos outros. A esta criatura não é dado um nome unívoco na obra de Shelley. Há vários nomes, tais como: “horrorosa coisa” (p. 17), “coisa”, (p.17), “horrível espectro de um homem” (p.17); “criatura que tinha aspecto humano, mas parecia de estatura gigantesca” (p.28); “demônio” (p.30); “a aberração humana que eu criara” (p. 95); “cão danado” (p. 97); “uma nódoa na terra” (p. 115); “inimigo diabólico” (p. 195); “monstro gigantesco” (p. 76); “animal” (p. 76); “a quem ninguém queria reconhecer por seu igual” (p. 115); “mísero” (p. 158) e

3

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

“figura monstruosa” (p. 172). Os nomes mais repetidos são demônio e criatura. Além destes há algumas analogias: com Adão, com os animais e com Satã. HIPÓTESE: Qualquer

leitor

acostumado

com

as

obras

de

terror

da

ficção

contemporânea, após ler a obra de Shelley pode questionar: (a) Onde está o terror? (b) O que há nesta obra que possa ser classificado como terror? e (c) Não é verdade que a obra estaria mais próxima de uma obra existencialista que do gênero terror? Nossa hipótese é: o terror que Shelley nos passa não é o de um maniqueísmo entre o bem e o mal, entre anjos e demônios, mas de um desafio à razão científica que se pretende sem limites, onde o bem e mal não são fáceis de serem discernidos. Este é o nosso terror, isto é o que nos deve meter medo. Ou seja, não é monstro que devemos temer, mas Victor Frankenstein. Esta hipótese se sustenta por dois aspectos: Primeiro: graças à teoria de que alguns fisiologistas alemães, tais como Darwin, “têm dado a entender que o fato sobre o qual se fundamenta esta ficção não é impossível de acontecer” (p.19). Pois, se for verdade o que já dizia Aristóteles 2 sobre ser o medo a expectação do mal, o objeto do terror não o seria sem a possibilidade de ele vir a acontecer. Segundo: a própria autora advertiu para uma provável leitura moralista da sua obra. Ela não quer se comprometer diretamente com qualquer tendência sensacionalista, mas não retira a possibilidade de que os heróis sejam interpretados à luz de convicções universais – mesmo que estas não sejam as suas convicções (cf. pág. 20). E, se a autora não quer assumir enquanto escritora uma postura moral, ela dedica a Victor Frankenstein esta tarefa (e dilema), quando coloca em sua boca: “... imagino que possa tirar algum proveito moral da minha história” (p.33).

4

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

RESULTADOS DA ANÁLISE DOS RELATOS: A forma como Shelley apresenta a cadeia de questões e acontecimentos ao longo desta obra é bastante cuidadosa. Uma primeira leitura, tal como acontecera entre os seus contemporâneos, sem a antecipação dos capítulos nem conhecendo o roteiro da história, manterá no leitor uma inquietação moral somada a um calafrio. Ora tomará partido pelo cientista, ora pelo monstro. Isto talvez tenha sido de propósito, a fim de evitar uma leitura reducionista e maniqueísta, quer das ciências, quer da moral. Este cuidado nos leva a compreender a nobreza da ação de Victor Frankenstein. A sua tarefa é nobre (p. 56) e ele é um homem nobre de espírito elevado, um cidadão acima de qualquer suspeita e amado pelos seus pares (p. 33). Isto nos leva a acreditar que não se trata de uma obra anticientificista, ou mesmo, antitecnicista. Trata-se, no nosso entender, de uma advertência ao espírito humano, que nos seus impulsos costuma desconhecer limites: “... tendo por aliada apenas a sede desenfreada de conhecimento” (p. 43). Não se trata de repreender a busca pelo conhecimento, ao contrário, para a autora, esta é uma atitude nobre e louvável. O que pode acontecer é que ela se transforme em uma “poção embriagadora”, nublando a nossa sensatez (p. 32). Deste modo, tal como acontecerá com o Dr. Jekyll, de Stevenson 3, Frankenstein (ou qualquer um de nós) pode ser possuído por este desejo (e quando isto acontece, o monstro sucede o cientista). Há muitos paralelos entre a obra Frankenstein or the modern Prometheus, de Shelley (1818) e The strange case of Doctor Jekyll and Mister Hyder, de Stevenson (1886), bem como com o Faust de Goethe4 (1808 – primeira parte), ou com obras mais antigas como Prometheus de Ésquilo5 (±462-459 AC), ou mais modernas como os quadrinhos Marvel do Incrível Hulk (em especial a edição comemorativa “O último titã” por Peter David et

5

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

all.6 de 2003). Aqui não nos deteremos sobre estes paralelos, mas uma reflexão completa exigiria esta tarefa. Há, no entanto, uma semelhança que merece ser traçada, uma vez que é exigida pela obra de Shelley. Trata-se da semelhança que Frankenstein vê entre ele e o capitão Walton. Esta visão de Frankenstein é como uma esperança de que a sua experiência não tenha sido em vão e que outros não precisem passar pelo mesmo que ele, nem que tenham um destino semelhante: Tal como fiz outrora, você busca conhecimento e sabedoria; e espero que a satisfação desses desejos não venha a tornar-se uma serpente que lhe inocule seu veneno, como a mim sucedeu (p. 33).

Trata-se da esperança de que ninguém mais, por força do seu testemunho, venha a ser possuído pela mesma obsessão que ele. No entanto, nem sempre é fácil perceber ou admitir esta obsessão, pois, muitas vezes, ela se confunde com a nobreza do próprio espírito científico, como Frankenstein revela, ao dizer que “... com muito ardor e sempre ávido por satisfazer minha curiosidade, era um poço de ansiedade de saber, de conhecer, capaz de maior aplicação no sentido de compreender o porquê das coisas” (p.40). Que fazer, então, para ficar alerta e discernir o espírito científico da obsessão científica? Shelley sugere um ponto de corte para este discernimento. Tal ponto se mostra mais claramente quando ela contrapõe as personalidades e formas de estudos realizadas por Victor Frankenstein e as realizadas por Clerval: Ao passo que para Frankenstein eram as ciências naturais que o interessavam, “fossem, porém, a substância das coisas, o âmago da natureza ou os mistérios da alma, que absorvessem minha atenção, minhas indagações eram sempre dirigidas para as origens, para os segredos metafísicos” (p.41); para Clerval, o que interessava era o aspecto moral das coisas (p. 41). Isto nos sugere que a empresa de Frankenstein estava apartada da moral. Não eram, portanto, os valores morais que guiavam a sua vida, mas como ele dita: As ciências naturais foram a bússola da sua vida (p. 42). 6

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

Esta atitude contraria o ensinamento dos sábios sob os quais, inicialmente, Frankenstein se colocara sob seu patrocínio. Há, entre os ensinamentos destes sábios uma fala atribuída a Waldman que é profética: Se o seu desejo é realmente tornar-se um homem de ciência, e não somente um experimentador medíocre, eu o aconselharia a dedicar-se a todos os ramos da filosofia, incluindo a matemática (p.51-52).

Mas, os conhecimentos humanísticos, para um Frankenstein que, no seu entusiasmo inicial, considerava a pesquisa cientifica como ilimitada (Cf. p.53-54), seria apenas um estorvo, um obstáculo a ser removido. Ele não conseguia perceber que o conhecimento humanístico sem a ciência é mera superstição, e o conhecimento cientifico sem o humanístico é pura obsessão. Isto que seus mestres quiseram lhe ensinar e que ele não aprendera, lhe foi muito caro, na ficção (e historicamente muito caro para a humanidade). Daí que a Bioética toma como preocupação originária e originante a prática científica humanizada, contrária à prática científica obsessiva. O conceito de Potter 7 sobre Bioética parece repetir as palavras de Waldman. Por sua vez, a definição oficial de Bioética, tal como se encontra na Encyclopedia of Bioethics (organizada por Reich) também mantém esta dupla preocupação. Deste modo, a reunião destas duas virtudes tenta combater aquilo que – na ótica de Shelley – mais conduz à prática cientifica obsessiva: a ambição. Ambição esta que começara a se solidificar já com a escolha dos novos paradigmas intelectuais por parte de Frankenstein. Nada para a moral, muito para a descoberta da pedra filosofal e tudo para a realização do elixir da longa vida (cf. p. 43). Sua ambição não era unívoca. Por um momento, embora megalomaníaco, ele conseguia pensar numa beneficência para a humanidade, colocando acima da riqueza uma glória que “permitisse banir a doença do organismo humano, tornando o homem invulnerável a todas as mortes, salvo a provocada pela violência!” (p.44). 7

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

Mas, como uma dialética, em outro momento, seu ego dominava completamente suas pretensões e ele entoava um cântico narcisista: Por mais que se tenha feito (...) muito mais eu alcançarei. Desbravarei novos caminhos, explorarei forças desconhecidas e revelarei ao mundo os mistérios da criação (p.50-51).

No entanto, nenhum momento é mais delirante do que quando se apossa dele a idéia revolucionária de fazer voltar à vida um corpo inerte. Neste momento ele tem a clara idéia do poder da “Ressurreição” (p.57), adotando uma prática e desejos não mais científicos, e sim religiosos (embora tecnicamente falando não se trata de um caso nem de ressurreição nem de ressuscitação, sim de criação). Para realizar esta tarefa ele reúne em si as virtudes mais cobiçadas pelos cientistas do século XIX: a capacidade de desapego aos bens materiais, a determinação, a força física, a saúde corpórea e mental, a frieza, a racionalidade e a capacidade intelectual de reunir e processar informações complexas. Estas virtudes levaram-no ao desapego total pelas coisas simbólicas, reduzindo-as a meros fenômenos físicos: “um cemitério não significava para mim mais do que um depósito de corpos privados de vida, que de repositório de força e beleza, haviam passado a pasto dos vermes” (p. 54). Uma ambigüidade, no entanto, acompanhava este desencantamento do mundo. Algo dentro dele ainda se comovia com esta prática, e embora fosse repreendida pela frieza da razão e obsessão pela sua obra, repugnava-a: O necrotério e o matadouro eram minhas fontes usuais de suprimento, e não poucas vezes minha própria natureza repugnava esse tipo de atividade (...) Hoje, estremeço a essas lembranças, mas então um impulso irresistível, frenético, me fazia prosseguir (p.57)

Estas capacidades eram auxiliadas pela obliteração pragmática que Frankenstein

conseguia

desenvolver,

fixando-se

apenas

nos

resultados

e

desprezando os meios para tais (cf, p. 55). Ele mesmo reconhece que sem esta determinação cega não teria conseguido pôr termo à sua empresa, quando diz que

8

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

“parecia ter perdido a alma e tinha chegado a ponto de alijar de mim qualquer sensação, a não ser em função da minha obra” (p.57). Se isto for verdade, só a ciência cega pode produzir tamanhas animosidades. Senão a ciência cega, a ciência sabiamente irresponsável. Como não estamos imunes às práticas cientificas descomprometidas eticamente, Frankenstein não diz como foi feita a reanimação. Ele não se sentia seguro caso este segredo passasse adiante. Esta era a sua possibilidade de redimirse com o mau que cometera: usar seu exemplo para impedir que outros seguissem o mesmo caminho (cf. p. 55). Neste ponto, a obra de Shelley aponta para o princípio ético da prudência: não é necessário fazer o mau para saber que ele é mau. Ou como ensina a milenar sabedoria dos antigos: o erro dos outros é fonte de sabedoria. Aprenda, se não pelos meus preceitos, pelo menos por meu exemplo, o perigo que representa a assimilação indiscriminada da ciência, e quanto é mais feliz o homem para quem o mundo não vai além do seu ambiente cotidiano, do que aquele que aspira tornarse maior do que sua natureza lhe permite (p. 55-56)

Esta consciência do erro aparece incisivamente quando no término da sua obra. Este é um momento decisivo: marca o sucesso e o arrependimento de Frankenstein: (a) o sucesso: conseguiu dar vida à criatura; (b) o arrependimento: primeiro uma decepção, pois a criatura não saiu conforme o esperado (em especial, nos traços estéticos): “Eis que terminada minha escultura viva, esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser que me enchia de terror e repulsa” (p.59); segundo, seus sonhos – de reanimação – seriam seu próprio pesadelo:

“Sonhos

que

me

haviam

embalado

por

tanto

tempo

eram,

repentinamente, transformados numa realidade infernal” (p.60). Como toda obsessão, Frankenstein passa de um extremo para o outro. Se antes ele amava a ciência natural e tudo que com ela se relacionasse, após seu

9

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

surto, ele não consegue suportar sequer ouvir o nome, ou ter qualquer contato que lembrasse a sua empreitada (que ele chama agora de “malogro do meu empreendimento cientifico”, p. 68). Esta passagem é importante, não só para explicar o isolamento de Frankenstein, como a alteração na sua visão de mundo. Pois, ele não consegue mais olhar o mundo com a beleza e esplendor de antes (o mundo é visto como palco de mau augúrio). Mesmo com a companhia de seu estimado amigo Clerval ou com o recurso à literatura oriental, salvo os poucos momentos onde consegue reencontrar o encantamento do mundo, o mais ele vê como sombrio e tenebroso. Este sofrimento aumenta principalmente quando Frankenstein desconfia de que a sua criatura tenha se voltado contra ele. A primeira suspeita disso ocorreu quando Frankenstein imagina que poderia ser o monstro o assassino do seu irmão caçula: William (cf pp. 75 ss). Tal desconfiança, e a seqüência de episódios que se seguem, são um forte argumento contra uma fundamentação ética para as ciências baseadas unicamente no princípio da responsabilidade do cientista. Como perceberemos, ao cientista é impossibilitado ter total controle sob a seqüência dos efeitos de suas ações, e portanto, responder pelas conseqüências de sua pesquisa. Pois, como mostra Shelley, a cadeia de acontecimentos após a criação do monstro é autônoma; Frankenstein não tem controle sobre os sucedâneos: a morte de William e a condenação à morte de Justine (p. 71-86). A causalidade foge da nossa própria capacidade de responder por nossos atos. Quando a cadeia de acontecimentos se abre, o agente inicial não tem como ter controle de cada sucedâneo, nem sequer prevê-los em sua totalidade e plenitude. Assim, há uma inversão de papéis: o cientista se torna um escravo da sua obra e a criatura se torna o criador (p. 159). E, em alguns casos, não tem, mesmo que queira, como repara-los. Deste modo,

10

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

mesmo que Frankenstein tenha a clara noção de sua responsabilidade, quando diz: “Cabia a mim a tarefa de pôr-lhe fim à existência...” (p. 202), esta não é suficiente se não há pleno controle de toda a cadeia de acontecimentos sucedâneos: “... mas fracassei“ (p. 202), pois, “... não sei até onde poderá leva-lo sua sanha vingativa” (p. 202). E ter este controle é, de certo modo, impossível. Como os acontecimentos, há algum tempo, já tinham fugido do seu poder, a sua confissão seria levada como uma manifestação de loucura (cf. p. 78), ou mesmo como um desagravo à capacidade de julgamento das autoridades (cf. p. 82). E, quando não adianta mais assumir a responsabilidade, e no entanto não se quer deixar de ser ético – embora tardiamente –, só resta o remorso (p. 82). Shelley descreve o remorso de Frankenstein de forma bastante típica e amarga: “eu trazia dentro de mim o fogo do inferno, sem nada poder fazer para extingui-lo” (p. 85). É costume entre os moralistas associar o remorso à moral. Com Shelley não é diferente. Nesta obra o remorso está sempre associado à consciência de culpa. Frankenstein assume a culpa e se maldiz: “tudo isso era obra de minhas mãos, três vezes malditas!” (p. 85). E, justamente por assumir esta maldizente culpa, ele, impulsivo como antes, deseja a vingança (p. 89). Não há, no entanto, nenhuma necessidade de que o sentimento de remorso esteja associado ao de vingança (ou ao de perdão). Às vezes ele pode vir associado ao sentimento de aniquilação de si mesmo, como a idéia de suicídio. Shelley também faz Frankenstein considerar esta possibilidade: “Não raro, digo-lhe, eu era tentado a mergulhar no lago silente e deixar que as águas se cerrassem sobre mim e meu infortúnio para sempre” (p. 88). Ou, às vezes, o remorso, quando muito pesaroso, beira à loucura: “Eu errava como um espírito do mal, pois fora o causador de atos de horror indescritível, convencido, ainda, de que mais, muito mais, estava

11

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

por vir” (p. 87). Bem como, beira ao mais depressivo pessimismo (p.87). Assim, o remorso se transforma, paulatinamente, num modo de ver o mundo, os outros, o destino e a dor. As coisas perdem o seu amplo sentido e se tornam estreitas e amargas. A ciência que deveria estar a serviço da vida semeia a morte. Como Frankenstein, as pessoas que sobrevivem a uma época desenfreadamente imoral passam a ter vergonha de si mesmas, custam a se projetarem novamente. Não somente o sujeito, mas a sociedade passa a ser julgada e desacreditada. O mundo perde o seu encanto. Isso se resume no estado que Frankenstein se autodefine: Em meu estado, nem a ternura, nem a amizade, nem as belezas do céu e da terra, poderiam redimir minha dor. Mesmo os protestos de amor não logravam efeito. Eu estava envolto numa nuvem impenetrável a qualquer influência benéfica. Minha imagem era a de um gamo ferido que se arrasta nas pernas trôpegas até um lugar afastado no cerrado da mata, para estender a vista até o arco que expediu a seta mortífera e assim morrer (p. 90)

Desencantado, o homem envergonhado com as obras de suas mãos vive deste remorso (caso não se entregue ao suicídio), em especial porque sabe que poderia ter evitado a desgraça que lhe abateu (porque sabe que este é o seu castigo). Vive do remorso enquanto houver algum sentido, alguma esperança de nobreza em suas ações, nem que seja para servir-se como exemplo e escárnio para os seus semelhantes. Ou então, como postura oposta, perde toda a crença na humanidade. E, então, não apenas o mundo, mas a humanidade, os outros, perdem o sentido. Talvez, justamente por isto, que a agonia de Elizabeth se transforma numa descrença/angústia contra a humanidade (cf. p.89). Se o desencantamento de Frankenstein é obra de suas mãos, o de Elizabeth é decorrente das obras alheias. Ambos, no entanto, são produtos de uma sociedade que não encontrou o equilíbrio entre o que pode ser feito e o que deve ser feito: Frankenstein porque não reconheceu limites para as ciências naturais; Elizabeth é fruto da justiça de Genebra que colocou a lei acima da própria vida e da dignidade humana. Frankenstein e a justiça de Genebra fizeram da vida um jogo nas

12

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

mãos dos homens (das ciências e das leis). Talvez por esta razão Shelley criou o argumento de que o monstro não é mau por natureza, mas porque a sociedade o fez assim. Tal como Rousseau8, Shelley não acredita que exista alguma maldade inata na natureza humana (natureza esta da qual o monstro partilha). A maldade está na forma como estes homens estão se organizando, como os mais fortes estão tratando os mais fracos, como os afortunados tratam os miseráveis, como todos tratamos a vida. No entanto, assim como Frankenstein via a ação do monstro como uma ação vil e não percebia de imediato que as suas próprias intenções fossem igualmente vis, a sociedade também não se autodefine como criminosa (como o soberano de Jean Bodin9, aquele que faz as leis se põe acima dela). O argumento do monstro é claro e acusador neste sentido: como uma sociedade que brinca com a vida pode querer julga-la? (p.96). É com esta autoridade persuasiva que o monstro, ao expor o seu ponto de vista e narrar as suas histórias, procurando argumentar que a sua natureza não é má, mas que os homens o fizeram assim, coloca a hipótese de que ele deixou de ser produto exclusivo de Frankenstein e passa a sê-lo da sociedade. (p 96 a 98). Esta associação, no nosso entender, questiona: (a) Quem realmente é o monstro? (b) Como pode a sociedade ser contra aquilo que ela mesma semeia? Talvez a denúncia de hipocrisia não seja apenas uma denúncia que tenha ficado presa ao romance de Shelley. Pode-se cobrar aquilo que não se oferece? A sociedade tem cobrado respeito e dignidade para com a vida por parte das ciências ao passo que ela ignora o significado destas palavras em seu cotidiano e na maioria dos seus projetos. Deste modo, o argumento do monstro se transforma de “sou mau porque sou miserável” (p. 138), para “por que devo eu respeitar o homem se ele me despreza?” (p. 138-139). No entanto, a criatura não deseja uma luta sem fim entre

13

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

ela e os demais. Como ela acredita que não haverá aceitação por parte do ser humano da sua companhia (e isto justamente porque ela já a testou), não põe mais nesta tentativa a sua esperança. Para ela, só uma outra criatura que lhe fosse tão semelhante poderia aceita-la, daí seu pedido: “Você deve criar para mim uma fêmea, com a qual eu possa viver no decorrer de minha existência. Somente você pode faze-lo e exijo-lhe isso como um direito que não me deve recusar” (p. 138). O pedido é também um pacto: uma fêmea em troca da paz (cf. p. 139). Inicialmente a proposta de uma noiva para a criatura parece ser algo convincente. Finalmente Frankenstein poderia por termo às desgraças que assolavam a sua vida desde a criação do monstro. No entanto, o sentimento inicial é imediatamente substituído por um dilema moral (que não apareceu durante a primeira criação). Assim, a segunda criação, coloca moralmente em dúvida um Frankenstein que durante a primeira criação estava decidido e entusiasmado cientificamente. Esta é a diferença do cientista afetado pela moral daquele outro insensível. A série de dúvidas que aparece nas páginas 157 e 158 pode ser resumida nos seguintes questionamentos: (a) Como seria o caráter da nova criatura?; (b) Ela aceitaria o juramento do monstro?; (c) Eles poderiam se odiar e não dar certo a convivência entre ambos?; (d) Ela poderia ter aversão ao monstro e se inclinar para a beleza humana?; (e) A visão da deformidade do monstro não seria aumentada quando a visse projetada num corpo feminino?; (f) Se ela abandonasse o monstro?; e, (g) Se eles procriassem uma geração de monstros? As dúvidas de Frankenstein levam-no a pensar não em tão-somente no sucesso das experiências científicas (ele agora sabe que pode fazer), o que significaria pensar em si mesmo, mas na humanidade como um todo (ele agora não sabe se deve fazer). E, mesmo que seja “pela primeira vez” (p.158) que ele pensa

14

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

moralmente na sua tarefa, ele não desconhecia de todo alguns dos princípios fundamentais que norteiam a prática científica. Como já mostramos anteriormente, a primeira criação de Frankenstein está, de certo modo, fundada numa vontade de beneficência, pois ele desejava fazer um bem enorme à humanidade: a longevidade (cf. p. 44). No entanto, como nos ensinam os teóricos da Bioética, não basta apenas fazer (ou querer fazer) o bem, é preciso não fazer o mal. Somente agora, com a segunda criação, Frankenstein pensa em termos de não-maleficência, quando diz que se estremeceu “ao pensar na condenação que as gerações futuras poderiam fazer recair sobre mim, que não hesitara em comprar a própria paz ao preço, talvez, do flagelo de toda a raça humana” (p. 158). É bem verdade que este tipo de raciocínio só revela uma postura especista, uma vez que, embora reconhecendo algumas obrigações suas para com a criatura, ele só as concebe como “transferências” e não como direitos inatos da criatura. Seu especismo fica muito mais claro quando ele delibera com quem são as suas reais obrigações (se com a criatura ou se com os da sua espécie) e se decide pelos seus pares: Num acesso de desmedido entusiasmo, criei uma criatura racional e cabia-me, dentro do limite dos meus poderes, assegurar-lhe a felicidade e o bem-estar. Mas a esse dever se sobrepunha outro, sublime. E exigia minha maior dedicação porque dizia respeito aos seres de minha própria espécie, implicando maior proteção de felicidade ou desgraça; sob tal convicção recusei-me a criar uma companheira para a primeira criatura (p. 202)

No entanto, esta dúvida muda completamente o estado de espírito de Frankenstein. Ele passa a chamar a empresa de criar a criatura fêmea de “abominável tarefa” (p. 142), ou de “trabalho nefando de outrora” (p. 143), ou “minha nova obra” (p. 143), ou ainda, “minha repugnante tarefa” (p. 145). Expressões que manifestam uma atitude de repugnância ao que agora estava fazendo. Ele mesmo dizia que “qualquer gesto ou pensamento que dirigisse nesse sentido [de criar uma fêmea para a criatura] causava-me angústia” (p. 152). Assim, coletar os materiais necessários à sua nova criação, realizar estudos com esta finalidade ou viajar em

15

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22

busca de local adequado, funcionava como uma “tortura da incessante gota de água a cair sobre a cabeça do condenado” (p. 152). Neste ponto, portanto, a angústia de Frankenstein está representando a sua consciência moralizando a prática científica dele. O seu encontro com a moralidade, portanto, foi via as emoções (em especial uma delas: o remorso), como nos mostraria uma análise que traçasse um paralelo entre as duas viagens (a descrita no cap. III e a descrita no cap. XVIII): o mesmo propósito com emoções tão contrárias entre si. A mesma fundamentação encontramos na ocasião em que Frankenstein faz uma comparação entre as duas experiências. Ele mostra como que durante a sua primeira experiência ele estava tomado por uma espécie de frenesi que “encobria o horror” (p. 156) de sua atividade. Tal frenesi era resultado da sua concentração nos trabalhos e na ânsia dos seus resultados (seu dilema era o que podia ser feito). Na segunda experiência (já cônscio do que pode ser feito), ele não tinha mais nenhum entusiasmo pelo seu trabalho, ele “entrava no laboratório a sangue-frio, e todo o meu ser contorcia-se de asco diante de minha tarefa” (p. 156). Seu dilema não é mais científico, é moral: o que é permitido fazer? Embora Frankenstein tenha acessado a moralidade pela via da angústia e do remorso, e seja esta uma via válida, não é a única: não precisamos nos arrepender do que fazemos para sermos sujeitos morais, podemos (e devemos) antecipar (e evitar) os nossos remorsos. Por esta, entre outras razões, a obra é um conselho para que, espelhados na experiência de Frankenstein, contenhamos os nossos desenfreados ânimos intrépidos pela verdade: Quando mais jovem – disse ele –, eu me julgava fadado a algum grande empreendimento. Embora de natureza sentimental, eu era dotado de uma frieza de raciocínio adequada a feitos marcantes. Respaldava-me a noção que tinha dessas características do meu eu, pois julgava nocivo desperdiçar em mágoas atributos de que poderia dispor a serviço de meus semelhantes. Quando refletia na obra que ultimara, transcendente como era a criação de

16

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22 um animal sensível e racional, eu não me classificava no rol dos inventores comuns. Mas essa idéia, que me estimulou no início de minha carreira, agora serve apenas para afundar-me mais ainda no pó (p. 196-197)

Ou ainda como nos mostra a Carta de 7 de setembro, é necessário coragem para dizer não aos nossos sonhos, à nossa sede de conhecer de qualquer forma. É preciso muito mais em sabedoria para deixar de fazer o que pode ser feito que em faze-lo (cf. p. 200). Deste modo, onde muitos viram fracasso, aquela adolescente do século XIX viu uma sabedoria superior. Onde muitos vêem obstáculos, Mary shelley ensinou respeito. Onde muitos se contentam com assumir as responsabilidades e pagar por danos, aprendemos que a prudência ainda é a maior das virtudes, senão a ética por excelência.

REFERÊNCIAS: 1

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o moderno Prometeu. [trad. Pietro Nassetti] São

Paulo: Martin Claret, 2001. Col. A Obra Prima de Cada Autor, Vol. 58. 2

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. [trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da

versão inglesa de W. D. Ross] São Paulo: Nova Cultural, 1987, Col. Os Pensadores, Vol II, 1107a33-1107b4. 3

STEVENSON, Robert Louis. O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyder [trad. Mário

Fondelli], Rio de janeiro: Newton Compton Brasil, 1996. Col. Clássicos Econômicos Newton 4

GOETHE, Johanna Wolfgang. Fausto. [trad. Alberto Maximiliano] São Paulo: Nova

Cultural, 2003. 5

ÉSQUILO. Prometheus In. SÉCHAN, L. Le mythe de Promethée, Paris: PUF, 1951.

6

DAVID, Peter, KWEON, Dale, ENNIS, Garth e McCREA, John. HULK: o ultimo titã.

São Paulo: Marvel & Panini comics, jun/2003 Nº 6. 7

POTTER, Van Rensselaer. Bioethics. Bridge to the future, Englewood Cliffs:

Prentice Hall, 1971, p.2. 8

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité

parmi les homes. Paris: Garnier-Flammarion, 1971

17

GURGEL, W.B. Considerações sobre “Frankesntein” à luz da bioética. In Ciências Humanas em Revista. v.2, n.1, São Luís: UFMA, 2004 p.9-22 9

BODIN, Jean. In MORA, José Ferrater. Diccionario de Filosofia, Madrid: Alianza

Editorial, Alianza Diccionarios, 1986. pp. 356-357.

18

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.