Considerações sobre o tondo de Piero di Cosimo de São Paulo: análise formal, história e iconografia

June 29, 2017 | Autor: Inacio Rebetez | Categoria: Entomology, History of Art
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* Estudante do Programa de Pós-Graduação em História da Arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) sob orientação do Prof. Dr. Jorge Coli.
O título latino, que significa "Estrela do mar", é uma interpretação do significado da forma hebraica do nome de Maria, Miriam (Di Lorenzo 2001, p. 1).
Fiorio (2000, p. 25 e 77) observou que uma Virgem de Boltraffio pertencente ao Museu Poldi Pezzoli faz um gesto muito semelhante ao do anjo do tondo do MASP. A autora acredita que ambas as pinturas derivam de uma composição de Leonardo feita em Florença.
Paola Sannucci, que restaurou a obra junto com Karen Barbosa, considera que esta cúpula se baseia naquela da basílica de Santo Spirito, para a qual Piero pintou a Visitação com os santos Nicolas e Antão da National Gallery de Washington.
Dentre as outras obras que incluem este detalhe estão o Volto Santo de Budapeste, a Madonna do Museo degli Innocenti, a Descoberta do mel de Worcester (Massachusetts), a Natividade com o pequeno São João de Washington, a Adoração do Menino do Museo di Casa Martelli, o tondo de Tulsa (Oklahoma) e a Libertação de Andrômeda dos Uffizi. Geronimus (2015, p. 173) considera esses tecidos postos para secar um "detalhe de assinatura" do pintor.
Bacci (1976, p. 94) afirma que a Virgem do Masp deriva de um desenho de uma Leda ajoelhada e o cisne (c. 1504 – 1507) de Leonardo que Federico Zeri (1959, p. 42) já havia relacionado com a torção do anjo musicante que Piero incluiu na Madonna da Coleção Cini de Veneza. O professor Jorge Coli acredita que talvez Piero tenha se inspirado também nas estátuas medievais.
Escreve Vasari (2009, p. 493) na Vida de Piero di Cosimo: "Fece in Fiorenza molti quadri a più cittadini, sparsi per le lor case, che ne ho visti de' molto buoni, e così diverse cose a molte altre persone. E nel noviziato di S. Marco in un quadro una Nostra Donna ritta col Figliuolo in collo, colorita a olio" (Fez em Florença muitos quadros a outros cidadãos, espalhados por suas casas, dos quais vi muito bons, e assim diversas obras a muitas pessoas. E no noviciado de São Marcos, em um quadro, uma Nossa Senhora em pé com o Filho no colo, colorida a óleo). De qualquer forma, acredita-se que a pintura foi produzida em Florença na "segunda metade do primeiro decênio" do Cinquecento (Padovani 2015, p. 296). A passagem de Vasari está na segunda edição das Vidas, de 1568, e portanto não pode ser encontrada na edição brasileira da Martins Fontes, que optou por traduzir apenas a primeira edição, de 1550.
Geronimus 2006, p. 170.
As informações sobre os inventários de 1663, 1730 e 1773 podem ser encontradas em Swoboda 2004/2005, p. 298. Foi a autora que sugeriu que a obra do Masp foi mencionada nos três inventários (comunicação pessoal, 09 de Maio de 2014).
Ferdinand Karl era filho de Leopoldo V de Habsburgo e Claudia de' Medici, e casou-se com Anna de' Medici. A pintura pode ter sido trazida por sua mãe ou sua esposa quando estas se mudaram de Florença para a Áustria ou então já estava na coleção do pai, que visitou Florença em 1618 e adquiriu ao longo da vida diversas obras para o Palácio Imperial de Innsbruck. O arquiduque também pode ter adquirido o tondo em uma das duas viagens que fez à Itália, 1652 e 1661 – 1662, quando compra obras importantes como a Madonna da relva de Rafael, que até hoje encontra-se no Kunsthistorisches Museum de Viena (Swoboda 2009, p. 103 – 114) (Weiss 2011, p. 118).
Estas informações foram fornecidas por Alice Hoppe – Harnoncourt, pesquisadora do KHM (comunicação pessoal, Agosto de 2015). Ela ainda afirma que nos anos 1920 o museu vienense vendeu obras consideradas de menor valor para comprar obras de monastérios e coleções privadas.
Segundo Di Lorenzo (2001, p. 1), o banco era utilizado tanto por Ofenheim como por seus descendentes. Mas por que estes decidiram retirar as obras do falecido pai de Viena? Uma possível hipótese é o antissemitismo. De acordo com Arendt (2011, p. 24), o antissemitismo na Europa ocidental "alcançou o seu clímax quando os judeus haviam (...) perdido as funções públicas e a influência, e quando nada lhes restava senão sua riqueza". Na Áustria, portanto, o antissemitismo "tornou-se violento (...) na República austríaca após 1918, quando era perfeitamente óbvio que quase nenhum outro grupo havia sofrido tanta perda de influência e prestígio em consequência do desmembramento da monarquia dos Habsburgo, quanto os judeus" (Ibid, p. 25). O pai de Wilhelm, Viktor Ofenheim (1820 – 1886), utilizou sua influência no Ministério do Comércio para criar um império econômico, além de ter servido como cônsul honorário do Império Persa na corte vienense. O palacete que mandou construir, o Palais Ofenheim, localiza-se até hoje próximo à Ringstraße. Já seu filho não parece ter sido politicamente influente, pois não há indícios de que Wilhelm tenha herdado o prestígio político do pai frente à burocracia austríaca. Mas, se Arendt estiver certa, Wilhelm e seus herdeiros foram expostos a um clima de ódio antissemita ao qual Viktor não fora. Logo, é plausível supor que os filhos de Wilhelm tenham retirado as obras do pai da Áustria por considerarem os Países Baixos um local mais seguro para os judeus, como de fato foi por séculos.
Disponível em . Acesso em 16 de Fevereiro de 2015.
Para uma discussão sobre a questão, ver Steinberg 1996, p. 165 – 167.
Levi D'Ancona 1977, p. 250, citando Tertuliano e Pierre Bersuire (Berchorius). Geronimus (2015, p. 174), citando a mesma autora, ressalta a relação da árvore com a Virgem: "carvalho da piedade, mãe da Salvação". Este mesmo autor já havia indicado (2006, p. 170) que Maria parece uma "extensão orgânica" da árvore. Sobre a questão do acesso à Árvore da Vida, ver o comentário da edição brasileira Bíblia de Jerusalém sobre João 6: 51.
Levi D'Ancona 1977, p. 235, 78 e 126. Para os fungos, a autora baseia-se em Isidoro da Sevilha e, para a camomila, nas interpretações cristãs sobre Plínio.
Ibid, p. 71, 325 e 200. Sobre a giesta, Levi D'Ancona se apoia nos comentários cristãos das obras de Teofrasto e Plínio.
MARQUES, Luiz. "Piero di Cosimo (chamado Piero di Lorenzo di Piero d'Antonio)". In Catálogo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, Vol. 1. São Paulo: Prêmio Editorial, 1998, p. 71
OLSON, Roberta J. M. The Florentine tondo. Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, p. 251 – 252
Ibid. Op. cit., 2000, p. 251 – 252.
GERONIMUS, Dennis. Piero di Cosimo: Visions beautiful and strange. New Haven e Londres: Yale University Press, 2006, p. 172.
GERONIMUS, Dennis. Catalog, item 23. In: HIRSCHAUER, Gretchen A.; GERONIMUS, Dennis (Org.) Piero di Cosimo: The poetry of painting in Renaissance Florence. Farnham: Lund Humphries, 2015, p. 173.
FIORENZA, Giancarlo. "Tadpoles, Caterpillars and Mermaids: Piero di Cosimo's Poetic Nature". In: SCHLITT, Melinda (Org.). Gifts in Return: Essays in Honor of Charles Dempsey. Toronto: Centre for Reformation and Renaissance Studies, 2012, p. 164 e 168.
Piero pintou uma mariposa de outra espécie em Vênus, Cupido e Marte (Gemäldegalerie de Berlim), que se encontra na perna da deusa.
As diferenças morfológicas entre Acherontia atropos e Sphinx ligustri estão sendo tratadas em um artigo que estou escrevendo com o Prof. Dr. Alcimar do Lago Carvalho, do Departamento de Entomologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O artigo abordará a biota do tondo e suas interpretações iconográficas.
Geronimus 2015, p. 173 – 174.
Levi D'Ancona 2001, p. 67, citando o De Universo de Rábano Mauro.
FIORENZA, Giancarlo. Op. cit., 2012, p. 168.
Levi D'Ancona 2001, p. 62 e 222.
Ibid, 2001, p. 222. Fiorenza (2012, p. 161) afirma que os girinos que Piero pintou na Adoração do Menino que pertence ao Museu de Arte de Toledo (Ohio) também são uma referência a Jesus, uma vez que se acreditava desde Plínio que estes nasciam sem contato sexual.
Steinberg 1996, p. 274.
Há relatos de que as feiticeiras da Idade Média utilizavam estas mariposas em suas poções, e os camponeses europeus as temeram por muito tempo por considera-las um presságio de mau agouro (Costa-Neto 2002, p. 76; Essig 1942, p. 483). Ainda assim, defende-se neste artigo que o simbolismo do inseto no caso da obra do Masp está mais relacionado ao desenho do crânio do que às superstições.
Belting 1994, 174 apud Fiorenza 2012, p. 161. Fiorenza afirma que no tondo de Toledo os mistérios cristãos estão alinhados com o ciclo da natureza, o que também poderia ser dito do tondo de São Paulo.


Considerações sobre o tondo de Piero di Cosimo de São Paulo: análise formal, história e iconografia
Inácio Schiller Bittencourt Rebetez*

Em memória de meu bisavô, Clemente Mariani Bittencourt


O tondo de Piero di Cosimo (1462 – 1522), pertencente ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), mostra a Virgem em pé, com um vestido vermelho coberto por um manto azul sobre o qual estão duas estrelas douradas, indicando que ela é a Stella Maris, e cujo forro é amarelo. Atrás dela há um tronco cortado e uma rocha, junto à qual cresceu o carvalho em que o Menino Jesus está sentado. A árvore aparenta estar morta, mas dela nascem folhas de diferentes tamanhos e dois frutos. O Salvador, que recebe a ajuda da mãe para se equilibrar, faz o gesto da benção para o pequeno São João com a mão direita e apoia o outro braço sobre um livro de orações. Com o braço direito, a Mater Dei acaricia a face do Batista, que saúda Jesus com uma cruz de caniço e uma giesta. À direita vê-se um anjo, que com um belo gesto colhe rosas selvagens de cor branca, e que por olhar fixamente para Jesus está prestes a furar o dedo anular da mão esquerda em um espinho. Próximos às pedras há uma camomila, três cogumelos, algumas flores e mais a frente um dente-de-leão. Na esquerda vê-se uma das frequentes bizarrices pelas quais Piero di Cosimo ficou conhecido: uma lagarta de mariposa caveira sobre um ramo sendo observada por um rabirruivo-preto, ambos em cima de um tronco cortado. Ao lado deste há um ranúnculo e uma aspérula. Atrás dos animais vê-se um rio, em cuja margem há outra árvore cortada e sobre o qual há dois barquinhos. Fica evidente a diferença que Piero estabeleceu entre um primeiro plano seco e um segundo plano verdejante. No fundo, acima da auréola do Batista, vê-se uma pequena vila, com uma torre, uma cúpula e algumas casas, sendo que em uma destas há um tecido estendido em uma janela, um detalhe que Piero incluiu em outras obras.

O obra do Masp revela certas estranhezas específicas ao artista, como o fato de a Virgem jogar parte do peso do corpo para a perna "fraca". As estátuas gregas clássicas mostravam as figuras colocando o peso do corpo em apenas uma perna, deixando a outra, a "fraca", relaxada. Esse equilíbrio dinâmico serviu de modelo para os pintores renascentistas, mas a Virgem de Piero produz uma torção incomum para as Madonnas de sua época. Nessa estranha posição, semelhante à da Andrômeda dos Uffizi, a Virgem seria incapaz de aguentar o Menino se este não estivesse apoiado na árvore.

No que se refere à história da obra, muitos autores abordaram a possibilidade desta ser a "Nossa Senhora em pé com o Filho no colo" que Giorgio Vasari viu ou ouviu falar que estava no convento de São Marcos em Florença em meados do século XVI. Esta hipótese ainda não pôde ser comprovada nem refutada, sendo que Vasari pode ter se referido ao tondo do Masp, a uma outra obra com uma Madonna em pé que pertence ao Hermitage de São Petersburgo ou a uma obra que foi perdida.

O primeiro a atribuir o tondo do Masp a Piero foi o historiador da arte Hermann Dollmayr, em um artigo de 1899 intitulado Do depósito da Galeria Imperial de pinturas, atribuição que hoje não é mais questionada. Uma heliogravura inclusa no artigo é a mais antiga imagem conhecida da obra (Imagem 1). Dollmayr também foi o primeiro a sugerir que a pintura fosse aquela que Vasari mencionou. O historiador critica duramente os restauradores austríacos, afirmando que as fortes cores da obra

deixam ao menos pressentir o efeito que esta elegante pintura deve ter tido no passado, quando as mãos de vários restauradores ainda não tinham pecado no brilho e na transparência das cores da imagem. Pois foram eles que roubaram a atmosfera pura, a clareza cristalina da abóboda celeste (DOLLMAYR 1899, p. 218).

Para o que nos interessa especificamente neste texto, o último parágrafo do artigo de Dollmayr é fundamental. Desta forma conclui o autor:

Mas como uma tela tão preciosa chegou do noviciado de San Marco na galeria imperial? Eu não tenho resposta. Os inventários mencionam o quadro pela primeira vez no ano 1730, quando estava localizado no Palácio Ambras. Talvez ela tenha chegado lá através de qualquer uma das relações entre as cortes de Tirol com as de Florença. Eu acho que tenho a permissão de chegar à conclusão que ela é a mesma que, conforme Vasari, Piero tinha criado para o noviciado de San Marco e a qual de lá mais tarde desapareceu (DOLLMAYR 1899, p. 219).

De fato, o tondo do Masp é mencionado em dois inventários do século XVIII. No de 1730, ao qual Dollmayr se refere, acrescenta-se na descrição da pintura (No. 161) que esta está "consideravelmente danificada" (ziemlich schadhaft) e em outro de 1773 (IV, 161) adiciona-se a observação "Está completamente arruinada e inutilizável" (Ist gänzlich ruiniert und unbrauchbar).

Mas parece que Dollmayr ignorava a existência de um inventário ainda mais antigo no qual a obra é mencionada. Em um inventário de 1663 (Códex 8014, Coleção de Manuscritos da Biblioteca Nacional Austríaca) menciona-se no item 255 "Uma peça redonda, pintada em madeira, na qual podemos ver a Nossa Amada Senhora com o Filho no colo, em baixo São João e um Anjo, original do Mestre Rafael de Urbino" (Ain runds stuckh, auf holz gemahlen, darinnen unser liebe fraw das kindl auf der schoss, darundter St. Johannes und ein engl, original von Maestro del Raph. D'Urbino) (Imagem 2). Por mais que a descrição atribua o tondo a Rafael, Gudrun Swoboda, pesquisadora do Kunsthistorisches Museum de Viena, teve a gentileza de comunicar por e-mail que esta descrição se refere à obra de Piero que hoje pertence ao Masp (comunicação pessoal, 09 de Maio de 2014).

Este inventário de 1663 foi feito um ano após a morte do arquiduque Ferdinand Karl, e lista as obras que estavam em sua coleção no Palácio Imperial (Hofburg) e que haviam sido transferidas para o Castelo Ambras, ambos na cidade tirolesa de Innsbruck. Se a informação for correta, a obra deixou a Itália relativamente cedo. Na bibliografia recente sobre as trocas culturais do período entre Florença e Innsbruck não é possível saber como a obra entrou na coleção do arquiduque, mas poder-se-ia formular diversas hipóteses sobre como isso ocorreu.

De qualquer forma, a obra do Masp entrou na coleção imperial de Viena em 1897, de acordo com Swoboda (comunicação pessoal, 09 de Maio de 2014). Em 1903 é criada uma comissão para discutir como restaurar as obras da Galeria Imperial, da qual participaram funcionários do museu e acadêmicos como o historiador da arte Alois Riegl. Decidiu-se remover aos poucos as repinturas criticadas por Dollmayr, mas os integrantes da comissão ficaram perplexos com o fato de que o tondo de Piero possuía muito mais perdas do que imaginaram. Deve ser por isso que decidiram deixa-lo apenas com o que restou do pincel de Piero (Imagem 3). Um integrante afirmou que tratava-se de um caso perdido. A comissão discute a obra pela última vez em 1909 e em 1923 ela é vendida.
No século XX, a primeira menção ao tondo é um artigo de Stephan Poglayen-Neuwall de 1929, na revista Pantheon. A fotografia que o autor incluiu mostra que entre 1910 e 1929 a obra passou por mais uma restauração (Imagem 4). De acordo com o autor, a obra pertencia ao industrial e banqueiro vienense Wilhelm von Ofenheim, cuja coleção estava dividida entre seu apartamento em Viena e seu castelo em Jevišovice, hoje sul da República Checa. Em 1930, Poglayen-Neuwall publica outro artigo, dessa vez na revista Apollo, em que novamente trata da coleção Ofenheim, afirmando que esta era uma das muitas coleções de arte formadas por conta dos resultados econômicos da Primeira Guerra nos países derrotados.
Em 1932, quando morre Ofenheim, o tondo foi transferido, com outras obras de sua coleção, à sede de um banco de investimentos que o barão havia fundado em 1921 em Amsterdã, o N.V. Nederlansche Standaard Bank. As razões para esta transferência também continuam em aberto. O tondo ficou sob a posse do banco durante os cinco anos que a obra permaneceu nos Países Baixos, mas não ficou apenas na sede da instituição. No dia 1 de Setembro de 1933 a pintura foi depositada junto com outras obras da coleção Ofenheim no Rijksmuseum. Menos de um ano depois o tondo e outras obras de Ofenheim são emprestadas para a mostra "Arte italiana em possessão holandesa" (Italiaansche Kunst in Nederlandsch Bezit) que ocorreu no Museu Stedelijk de Amsterdã entre 1 de Julho e 1 de Outubro de 1934. Na foto do tondo no catálogo da exposição (item 85) percebe-se que a obra passou por mais uma restauração entre 1930 e 1934, sendo a modificação mais evidente a retirada das repinturas do cabelo que a Madonna possuía em sua nuca (Imagem 5).
Em Junho de 1937 o N.V. Nederlansche Standaard Bank pede ao Rijksmuseum que envie diretamente o painel de Piero para um certo "Mr. J. Chevalier de Zawadzki" que possuía um imóvel na cidade costeira de Eastbourne, Inglaterra. Outras obras do banco foram retiradas do Rijksmuseum em 1939. As que lá permaneceram foram confiscadas pelos nazistas entre Julho e Agosto de 1940.
Em 1946, Langton Douglas, em seu livro sobre Piero di Cosimo, comenta apenas que a obra em questão esteve na coleção Ofenheim em Viena. É possível que o autor não tenha buscado essa referência ou que de fato o paradeiro da obra não fosse conhecido nos anos 1940. O que é certo é que no início dos anos 1950 a obra do Masp se encontrava na Galeria Matthiesen de Londres.
Uma matéria de 25 de Dezembro de 1949 do "Diário de São Paulo" afirma que neste dia a Companhia Antarctica Paulista doara o tondo ao Masp. A matéria diz ainda que tanto a obra quanto o São Sebastião de Perugino foram doados ao museu "graças ao 'caçula' da Cia. Antarctica". É possível que a Antarctica tenha conseguido um acordo com Assis Chateaubriand para financiar a compra destas obras ao museu em troca de anunciar o "Guaraná caçula" no império midiático em posse do empresário: "34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18 estações de televisão, editora e a revista O Cruzeiro", de acordo com o site oficial do Masp. Uma foto do mesmo jornal de 23 de Março de 1950 (imagem 6) mostra Matthiesen (à esquerda) com o tondo de Piero di Cosimo na embaixada do Brasil em Londres com Chateaubriand, San Thiago Dantas, o embaixador Antonio Moniz de Aragão e sua esposa. A matéria informa que o tondo chegaria em breve ao museu brasileiro, que havia sido inaugurado pouco antes, em 2 de Outubro de 1947. A obra entra no acervo do museu em 10 de Agosto de 1951, tornando-se a primeira (e por enquanto a única) de Piero di Cosimo a pertencer a um museu do Hemisfério Sul.
No que se refere à iconografia, o tondo não é apenas estranho por conta desta Virgem torcida cujos pés formam um ângulo de aproximadamente 90 graus. É a única "Virgem com o Menino" que possui uma lagarta. Essa estranheza suscitou questionamentos e interpretações de diversos autores, mas a espécie da lagarta, recentemente descoberta, pode nos auxiliar a compreender melhor alguns pontos.
Como foi dito no início, o anjo está prestes a furar o dedo anular da mão esquerda em um espinho das rosas. Como ele olha fixamente para Jesus, pode-se pensar que se trate de uma referência ao sangue que será derramado na coroa de espinhos que o Menino receberá quando adulto. O Menino, representado na Renascença incircunciso apesar de o evangelista Lucas afirmar que ele passou pelo pacto de Abraão, apoia-se sobre o livro para ressaltar que é a Palavra Encarnada e aparece sentado sobre um carvalho. Esta árvore era considerada símbolo da Salvação e da Árvore da Vida, da qual a humanidade fora privada pelo "pecado" de Adão e que com a vinda do Cristo estaria novamente disponível. Por mais que se mostre danificado e com folhas ressecadas, há pequenos frutos e folhas, o que sugere a ideia de vida nova.
Dos três cogumelos, dois estão em uma região de sombra e um está sob o sol. Os fungos são tradicionalmente associados à morte na pintura renascentista. Ao lado destes vê-se uma camomila nascendo atrás de uma pedra, símbolo da Salvação e da Ressurreição. Mais a frente vê-se um dente de leão, que remete à Paixão de Jesus.
A giesta que o pequeno Batista segura é provavelmente um símbolo da Encarnação. E a pequena cruz de caniço que ele carrega na outra mão é uma lembrança do destino do Menino. À esquerda de São João há duas plantas que não foram discutidas previamente: a maior trata-se de um ranúnculo, símbolo da morte por conta de suas "propriedades venenosas", e a menor de uma aspérula, que no Renascimento representava "aflição e tribulação".
Finalmente, o pássaro preto e a lagarta, detalhe muito singular, devem ser tratados com cuidado. As interpretações sobre estes animais inicia-se já quando Dollmayr atribui a obra a Piero. Só o pássaro se favoreceria da situação. Para Marques, a lagarta seria um símbolo de "metamorfose e renascimento". Pouco depois, Olson ofereceu sua interpretação, mas tudo indica que a autora obteve acesso a uma imagem de baixa qualidade da obra, uma vez que ela diz que Piero pintou "um objeto alongado, que parece ser um casulo". Olson, de uma forma bastante criativa, acha que o pássaro representa "a alma confrontando o sentido da morte e o potencial para ressurreição no Cristo Encarnado". Geronimus salientou que a lagarta pode simbolizar a Ressurreição, mas acredita que no caso trata-se de uma referência às pragas bíblicas. Mais recentemente, o mesmo autor afirmou que trata-se de uma lagarta da mariposa da espécie Sphinx ligustri ("privet hawk moth caterpillar"), o que não parece ter alterado sua interpretação anterior. Por fim, Giancarlo Fiorenza, mesmo afirmando que a lagarta está "prestes a ser sacrificada", acredita que esta convida o espectador a refletir sobre "milagres terrenos e divinos", incluindo os poderes transformadores de Cristo e sua Ressurreição.
São, portanto, leituras diversas a partir de um detalhe singular que desafia a compreensão. Mas elas não levaram em conta o fato de que a lagarta em questão trata-se de uma lagarta da mariposa caveira (Acherontia atropos). A lagarta da espécie Sphinx ligustri, como o inseto do Masp foi identificado recentemente, apresenta uma morfologia diferente. Ocorre que o pintor representou todos os detalhes de uma lagarta de mariposa caveira (imagem 6).
O pássaro e a lagarta estão acima de um tronco cortado, que por si só já carrega uma evocação de morte. A lagarta podia carregar um significado adverso. Era considerada um símbolo do diabo por comer ininterruptamente. Mas o caso aqui parece ser outro. A lagarta não está em seu meio natural. Ela se prende a um ramo que foi cortado e colocado intencionalmente nessa superfície que se assemelha a um altar, estando completamente vulnerável ao pássaro. O rabirruivo-preto, que alimenta a si mesmo e a seus filhotes com lagartas, inclina-se para o inseto. Piero não teria incluído o pássaro sem um propósito. A lagarta está prestes a ser atacada.
Lagartas e vermes eram comparados a Jesus séculos antes do Renascimento. Segundo Santo Agostinho (354 – 430), o Salvador, como os vermes, nasceu "sem conjugação corpórea". Também Alain de Lille (Alanus de Insulis, 1115 – 1202) salientou que Cristo nasceu como a lagarta do bicho da seda, sem acoplamento, e depois se sentou à direita do Deus cristão. E em um tratado do século XIII, falsamente atribuído a São Bernardo, é dito que Jesus "poderia ser comparado a um verme pela sua humildade em assumir um corpo humano", sendo citado o Salmo 22, em que o rei David se diz um verme, e não um homem.
Poderíamos assim avançar, com cautela, que a lagarta pode ser uma referência a Cristo, tanto pela sua humildade em ter deixado os céus para assumir um corpo humano quanto pelo fato de o inseto ter sido deixado como sacrifício ao seu predador. Ele seria assim ao mesmo tempo uma referência ao mistério da Encarnação e à inevitável morte na cruz. Como se sabe, era comum que os pintores da Renascença carregassem as cenas da infância do Cristo com premonições de sua morte. Ao fundo da cena da lagarta e do pássaro vê-se na margem do rio outro tronco cortado do qual brota um galho que está quebrado. As folhas que nascem do tronco e do galho podem referir-se à Ressurreição.
Mas como o fato de que a lagarta poderia vir a se transformar em uma mariposa caveira muda a interpretação da obra? Piero parece ter indicado que o animal não terá a possibilidade de se metamorfosear em seu estágio final, a famosa mariposa com uma forma que se assemelha a uma caveira humana nas costas (imagem 7). De qualquer forma, a comparação do inseto com o destino de Jesus é reforçada. A mariposa contém o signo da morte. Logo, a lagarta, portadora da imagem da caveira depois de sua metamorfose, seria uma metáfora para o trágico destino de Cristo. Piero fez cada detalhe do inseto, tendo muito provavelmente pintado uma lagarta que teve diante de si como modelo. É muito improvável que um artista tão interessado nos fenômenos naturais ignorasse a natureza desse animal ao qual dedicou tanta atenção.
Mesmo que Piero tenha incluso diversas referências ao trágico destino do Cristo, o artista também nos lembra da Ressurreição com as folhas que nascem do tronco danificado atrás do "altar" onde a lagarta será morta, a camomila ao lado dos cogumelos e os pequenos frutos e folhas que nascem da árvore na qual o Menino está sentado. Na pintura, os mistérios da fé e os da natureza se complementam. Piero celebra a harmonia entre os ciclos de vida, morte e renascimento presentes na natureza e no texto bíblico ao mesmo tempo que exibe sua incomparável criatividade.
Agradecimentos
Sou grato a Margot Rauch, do Castelo Ambras, por ter me chamado a atenção para a obra descrita no inventário de 1663, a Gudrun Swoboda, Alice Hoppe – Harnoncourt e Andrea di Lorenzo pelas informações e imagens fornecidas, e a Alcimar do Lago Carvalho por ter identificado os animais e as plantas da obra.
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Apêndice: Imagens



Imagem 1: Heliogravura inclusa no artigo de Dollmayr em 1899.



Imagem 2: Item 255 do inventário de 1663 que lista a coleção do arquiduque Ferdinand Karl, morto no ano anterior; a obra, atribuída na época a Rafael, seria na verdade o tondo do MASP.

Imagem 3: Tondo limpo de suas repinturas. Foto tirada no pátio do Kunsthistorisches Museum de Viena em 1910.


Imagem 4: Fotografia da obra inclusa no artigo de Poglayen-Neuwall de 1929.


Imagem 5: Tondo quando participou de uma exposição em Amsterdã em 1934.


Imagem 6: Foto de 1950 do jornal Diário de São Paulo com a obra na embaixada brasileira em Londres.





















Imagem 7: Comparação entre a lagarta da obra e uma lagarta de mariposa caveira (Acherontia atropos). Créditos: Wikimedia Commons.






Imagem 8: Mariposa caveira (Acherontia atropos) adulta. Créditos: Wikimedia Commons.


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