Constitucionalismo, Democracia e Ativismo Judicial: olhares sobre a atuação judicial recente. Anais do VIII Seminário Internacional de Demandas Sociais e politicas Publicas na Sociedade contemporânea. Santa Cruz do Sul/RS: EDUNISC, 2012.

July 26, 2017 | Autor: M. Pascotto Palermo | Categoria: Constitutional Law
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CONSTITUCIONALISMO, DEMOCRACIA E ATIVISMO JUDICIAL: OLHARES SOBRE A ATUAÇÃO JUDICIAL RECENTE Marcos Pascotto Palermo Santiago Artur Berger Sito Carolina Salbego Lisowski Resumo: O presente artigo parte de um de dois pressupostos, verificáveis em nossas relações político-jurídicas, no cenário social atual: Primeiramente, considera-se a exclusão da participação social como fator preponderante diante dos dilemas atuais da sociedade hodierna. Em uma frase: os problemas sociais não são adequadamente enfrentados na esfera do político, onde o pluralismo constitucional assenta posições de recepção e aceitação. Em segundo lugar, a automática conversão da ausência de participação política no cotidiano democrático em abertura de espaço para aceitação (e por vezes até promoção) de um ab-uso das funções atípicas dos poderes constituídos. Ao que se entende, contudo, o jogo democrático exige movimentações legítimas, e, nesse sentido, cabe que se questione, como é proposto aqui, a atuação das cortes superiores no Brasil, especificamente tomando a atuação do Superior Tribunal Federal no caso do julgamento acerca da possibilidade de aborto de fetos anencéfalos, a fim de pensar em que medida as resoluções e intervenções jurídicas, as quais se encaminham como decisões que – supostamente - vão ao encontro da manutenção dos valores do regime democrático, podem estar se constituindo de modo apartado a uma atuação legítima, tendo em vista, especialmente, os três poderes constituídos no regime do país, indeléveis, em suas funções, para a manutenção do espírito democrático que se quer. Palavras-chave:. Democracia, Hermenêutica, Legitimidade.

Abstract: This article parts from one of two assumptions, verifiable in our political and legal relations in the current social scenario: First, it is the exclusion of social participation as a major factor of the current dilemmas facing society today. In a phrase: social problems are not adequately faced in the political sphere, where pluralism is based on constitutional positions of receipt and acceptance. Secondly, the automatic conversion of the lack of political participation in the daily opening of democratic space for acceptance (and sometimes even promote) the ab-use of an unnatural function of the constituted powers. As it turns out, however, the democracy demands legitimate movements, and in that sense, it is questioning whether, as proposed here, the performance of the superior courts in Brazil, specifically taking the role of the Federal Supreme Court in the case of judgment about the possibility of abortion of anencephalic fetuses in order to consider the extent to which legal resolutions and interventions, which are headed decisions like that - supposedly - will go through the maintenance of democratic values, can be constructed in a separated way of the legitimate natural course of action, in order, especially the three powers that integrates the country, indelible in their duties to maintain the spirit of democracy we want. Key words:. Democracy, hermeneutics, legitimacy. Introdução Para bem se iniciar o presente trabalho, é necessário, por mais recorrente que possa parecer, considerar que, com a instituição do Estado Democrático (e Social) de Direito, o interesse público passa a legitimar as mais diversas intervenções estatais na esfera privada, com limitações previstas no próprio corpo constitucional. Essa intervenção denota expressão providencial de Estado prestador, garantidor, afiançador, protetor de direitos e garantias fundamentais, até então não pensamos como neste momento. Um Estado que passa a receber dos cidadãos, os quais não mais podem se opor, pessoalmente à quaisquer afrontas aos seus direitos, a incumbência de ser o prestador de direitos e de garantias, como em um contrato. Principalmente na economia e na política, vê-se o Estado obrigado a dar condições, com base nos princípios (agora) constitucionais. Os sujeitos, assim, passam a exigir programas públicos, para que se realizem como indivíduos, usufruindo de sua dignidade. Cidadãos esses legitimados e interpelados – por que não assim dizer – de sujeitos para sujeito de direitos.

Assim, instaurada essa condição subjetiva, passa-se a uma relação contraditória, vez que se4 dá pelo jogo entre (certa, aparente) autonomia e a real sujeição do cidadão a essa noção de Estado. Diante disso, nada mais resta ao cidadão senão requerer, junto ao Estado provedor, a realização e a perfectibilização dos anseios previamente assegurados. Contudo, como pano de fundo da decisão aqui trazida, tem-se um corpo social, em boa parte, desacreditado pelas promessas constitucionais não cumpridas. Verifica-se, então, a questão teórica deste trabalho: Em que medida as decisões dos Tribunais Superiores, especialmente, para esta análise, do Superior Tribunal Federal, mesmo que indo ao encontro do apelo social, não atingem questões Constitucionais basilares ao sustento de um Estado Democrático de Direito? É isso que, neste estudo, se quer abordar, tomando como constituição material para tal, decisões paradigmáticas advindas do STF. O que se pode lançar, desde já, é que a atuação do Judiciário, em casos como os que serão abordados neste texto, pode denunciar duas possibilidades não excludentes: a) a existência de um ativismo legiferante; b) a abdicação de um Poder constituído das suas funções típicas, seja por inépcia de seus componentes , seja por degeneração de sua clássica função de representação democrática. Assim sendo, mobilizando pressupostos teóricos coadunados com o tema que se pretende abordar tal questão. 1.

Participação social e elaboração normativa: considerações históricas e

perspectivas É tão comentado, quanto obviamente sentido, o fato de que viver em sociedade é ação demandante de organização. Esta organização – em tese - é a garantidora da paz entre os conviventes. Seja por uma tese orgânica, oriunda da visão de que o homem é naturalmente dado à sociabilidade, seja por uma concepção racionalista, que privilegia o ato contratual, como o garantidor da mesma, há a necessidade de se estabelecer o mínimo de produção de normas fiadoras da sociedade. A existência da elaboração normativa abre caminho para se pesar

quanto à forma e ao conjunto de elementos que para ela concorrem. Em fenômeno paralelo e relacionado, tem-se a demanda para que o quadro de elaboradores normativos amplie-se, garantindo, assim, a democratização da política e mesmo o controle acerca da aplicação das normas produzidas. É neste contexto que se pensa a participação social e a sua relação com a gênese de regramentos. A crescente complexidade social, que pode ser percebida no que tange ao aumento populacional e a conseqüente procura por territórios, levou também à ampliação da divisão do trabalho, especialização de funções e da racionalidade em busca da eficiência, fazendo com que uma organização institucional como o Estado fosse estabelecida. Como busca de coesão política para a manutenção da instituição estatal, o referencial simbólico da nacionalidade foi construído, atendendo ora às realidades fáticas, ora às construções míticas da etnicidade, religiosidade, ancestralidade e demais tendências socioculturais que levariam à busca de um destino comum. Três etapas, grosso modo, emergem quanto à possibilidade da elaboração normativa e a participação das sociedades neste processo. Estas são aqui pensadas, tomando por referência apenas o Ocidente, no que se convencionou chamar de Modernidade e, para alguns, a já existente Pós-modernidade. A primeira conferiu uma participação social negativa, onde os pressupostos de uma dominação de tipo patriarcal faziam o poder soberano converter-se na figura do monarca, o ente legislador que cumulava as funções de julgador e executor. A legitimidade era conferida pela tradição e respaldada pela religião que adjudicava à existência do monarca como reflexo da vontade divina. Neste contexto, a idéia de figuras notáveis, imbuídas de virtudes e capazes de administrar e distribuir as diferentes nuances da Justiça, era também o anteparo filosófico. A segunda é decorrente da própria evolução do modo de produção capitalista,

que

passa

a

exigir

uma

separação

entre

as

atividades

econômico-comerciais e a atividade política. Assim, a preparação e mesmo o pensar acerca das normas que viriam a reger os diferentes campos da vida humana passa a ser concentrada na figura da assembléia de representantes eleitos. Estes representantes agem com autonomia frente aos que os elegeram, ocorrendo gradativo distanciamento, dentro deste tipo novo de democracia, a parlamentar representativa, entre o político e o social bem como do jurídico. Ao lado disto é dada a separação de poderes e passa a vigorar a laicidade do Estado. Aspectos positivos

podem ser vistos, como a gestação e aplicação dos princípios da imparcialidade, isonomia, publicidade e a independência de opinião. Entretanto, com o tempo, o referido distanciamento foi percebido como uma espécie de divórcio entre a sociedade e o Estado. Esta

percepção

histórica

veio,

então,

a

requerer

outros

tipos

de

relacionamento entre os entes citados. Por um lado, a incorporação paulatina das massas ao processo político, impôs a adequação das estruturas existentes. Daí a reformulação do sistema eleitoral, a existência de partidos políticos e a extensão de direitos, os sociais em um primeiro momento, os difusos em um segundo e mais próximo período. Por outro, agregou-se a experiência da derrocada dos regimes totalitários, onde a supressão de direitos individuais e a negação da existência aos opositores ou possíveis inimigos, fizeram com que a democracia moderna fosse valorizada e mesmo desejada. A invenção de novos meios de comunicação, e a consequente demanda por acessibilidade à informação somaram-se ao processo descrito. Assim, a insuficiência do mero existir da representação por via eleitoral e o temor de vivências de diferentes matizes autoritárias fizeram com que a participação social viesse e ser reclamada também na contemporaneidade, fazendo surgir a terceira etapa a ser pensada, e para a qual se pode assinalar perspectivas, não sob a forma de previsão, mas como reflexão sobre os desafios atuais. O uso de formas alternativas de aproximação entre o Estado e a sociedade, ainda dentro democracia representativa, advém deste contexto. Esta pode ser vista na criação de fóruns para a discussão participativa de orçamentos estatais e nas consultas, via conselhos e comitês, acerca dos mais variados temas, como o bem-estar de menores e idosos, assistência social, proteção dos consumidores, gerenciamento de rios e demais temas pertinentes ao meio ambiente, entre outros. Possibilidades, portanto, de normatização com participação social. No que se refere ao uso das novas formas de comunicação disponível, a internet, por excelência, revela ser ao mesmo tempo tanto um instrumento de pressão sobre os representantes, quanto um mecanismo de consulta acerca de como determinada norma deva ser produzida. Estas situações revelam a abrangência de temas a serem normatizados em um contexto de diversificação de opiniões de atores sócio-políticos envolvidos. Não raro, se for excluída a participação social, ocorrerão tensões difíceis de serem

resolvidas, implicando em defesa ou conservação de direitos diante da emergência ou ainda que aparente colisão de outros, como os direitos relacionados à evolução da genética e os oriundos da Era Virtual ou digital. Desta maneira, a produção de normas não pode mais excluir a participação da sociedade se tem realmente por escopo a harmonização da vida humana, sendo a última a palavra-chave para a própria existência desta harmonia. As considerações aqui feitas coadunam coaduna com os pressupostos axiológicos utilizados na construção de um Estado Democrático de Direito. Aqui, a lei passa a ser instrumento transformação do status quo do indivíduo e do grupo social no qual está inserido. Leva-se à sociedade um senso comunitário mais aprofundado, visando a reestruturação das próprias relações nela existentes. Tanto a participação social, quanto a atuação do Poder Judiciário são necessárias nesta nova formulação, uma vez que “[...] o Estado Democrático de Direito, carrega em si um caráter transgressor que implica agregar o feitio incerto da Democracia ao Direito, impondo um caráter reestruturador à sociedade e, revelando uma contradição fundamental com a juridicidade liberal a partir da reconstrução de seus primados básicos de certezas e seguranças jurídicas, para adaptá-los a uma ordenação jurídica voltada para a garantia/implementação do futuro, e não para a conservação do passado. Nesse sentido, pode-se dizer que, no Estado Democrático de Direito, há um sensível deslocamento, da esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder Judiciário” .

Entretanto, há a temeridade de que ocorra a mistificação do Estado Democrático de Direito, através de sua metamorfose em uma referência ritual. A superação deste problema é dada pela constante investigação democrática. Isto implica na obrigação de se enfrentar o problema do ativismo judicial. Este pode surgir ainda que com justificativas embasadas na boa fé dos juízes, acarretando a usurpação de funções constitucionalmente delegadas aos demais poderes constituídos. A participação social não empreendida pela sociedade autoriza os demais poderes constitucionalmente constituídos a fazerem uso de funções atípicas para cobrir os “espaços vagos” deixados pela cidadania terceirizada? Destrincha-se o questionamento, de forma a particionar tanto a abordagem como a problemática que dela advém. Primeiramente, considera-se a exclusão da participação social como fator preponderante diante dos dilemas atuais da sociedade hodierna. Em uma frase: os

problemas sociais não são adequadamente (embora não se negue que a participação social seja algo difícil de quantificar em termos de sociologia política) enfrentados na esfera do político, onde o pluralismo constitucional assenta posições de recepção e aceitação. O segundo ponto que merece destaque é a automática conversão da ausência de participação política no cotidiano democrático em abertura de espaço para aceitação (e por vezes até promoção) de um ab-uso das funções atípicas dos poderes constituídos. O jogo democrático exige movimentações legítimas, ou ainda, preocupa-se acerca do emitente de opiniões, para que a movimentação dialética mantenha seu ritmo. Ou seja, a ausência deste deslocamento de tensões tem acabado por acarretar provocações de toda ordem ao Poder Judiciário, devido, principalmente, à proibição do silêncio jurisdicional, o non liquet. Então, de uma forma plural, toda pretensão que não encontre força política para estabelecer-se diante do jogo democrático poderá, seja por conta de um “atalho institucional”, seja por conta do próprio fazer jurídico como substituto do jogo-político, institucionalizado Trazem-se agora as discussões sobre os julgados acerca da união homoafetiva e da possibilidade da interrupção da gravidez do feto anencefálico, para ilustrar a questão do ativismo judicial. Estes casos são exemplos concretos da urgência de se pensar as formas atuais de se garantir a participação popular hodierna

em

uma

elaboração

normativa

que

contemple

a

superação

e

reconhecimento das necessidades reais contemporâneas. 2. UM (NECESSÁRIO) FILTRO (HERMENÊUTICO) À DECISÃO DO STF SOBRE O RECONHECIMENTO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS Prestando homenagens ao início da exposição, não se pretende dizer nada contra a justeza da decisão prolatada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. Nem contra o movimento homossexual. Muito pelo contrário, de acordo com a concepção de Peter Singer, um olhar ético (recordando que ética não é subjetiva nem relativista e possui, sim, caracteres universais) acaba por delatar a posição (antiética e) egoísta da homofobia.

Ocorre que os ataques direcionados ao dispositivo insculpido no art. 1.723 do Código Civil não tinham como ser procedentes, ao menos não como engendrados. E os motivos são diversos: (1) ele reproduz dispositivo constitucional; (2) não cabe Verfassungskonforme Auslegung de dispositivo próprio da Constituição; (3) só caberia uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem redução de texto) se o texto constitucional não tivesse sido reproduzido no art. 1.723; e (4) não há lacuna a ser preenchida, pois lacuna não é ausência daquilo que queríamos que lá estivesse. Segundo Lenio Luiz Streck, o tema pode ser explanado através das seguintes colocações: Desde há muito tenho escrito (está em Verdade e Consenso e em texto que publicamos Vicente Barreto, Rafael Tomaz de Oliveira e eu na revista RECHTD e no Jusnavegandi) que sou absolutamente a favor, não só das uniões homoafetivas, como a que todos tenham os direitos civis disso decorrentes. Com relação à união estável e as repercussões disso decorrentes, sempre vi um obstáculo: o texto da Constituição, que fala "homem e mulher". Ou seja, sempre afirmei que, sem uma lei ou uma emenda a Constituição, não se poderia equiparar as uniões estáveis entre casais homossexuais e casais heterossexuais. Aliás, em países conservadores como Portugal e Espanha, a solução foi a feitura de lei ou plebiscito. Por que, no Brasil, essa questão tem que ser resolvida de forma ativista, no STF? Uma coisa é o STF decidir nos espaços que decorrem das omissões (in)constitucionais e dos problemas de (in)compatibilidade entre leis infraconstitucionais e o texto da Constituição. No caso em pauta, é a Constituição que estabelece um limite semântico-pragmático.

Portanto, novamente, não se trata de negar direitos a qualquer grupo social, minoria ou não, mas sim de que a análise jurisdicional precisa sempre de limites, e nenhum deles é mais importante que os limites semântico-pragmáticos da Constituição. Violá-los abre precedente insanável, dando permissão ao Supremo Tribunal Federal para manipular entendimento, sempre que precisar. Nos termos do autor, já citado: “hoje foi para o bem, e quando não for?” Veja-se que o art. 1.723 do Código Civil, desenhado como decalque do art. 226,

§

3º,

da

Constituição

Federal,

faz

impossível

o

manejo

da

Verfassungskonforme Auslegung, pois não há como dar uma interpretação conforme a Constituição de um dispositivo que reproduz seu conteúdo. Está se dando uma interpretação conforme a Constituição a um dispositivo constitucional, portanto? Perceba-se que isso repristinaria a (já abandonada) discussão sobre normas constitucionais inconstitucionais.

O Ministro Gilmar Mendes visualizou esse problema, tanto que aduziu que o dispositivo atacado reproduz o termo da Constituição. Não há ambiguidade, pois. Disse que se curvou ao argumento de que “essa norma [o art. 1.723] tem servido para fundamentar decisões no sentido negativo à pretensão formulada em juízo com objetivo de se reconhecer a formalização das uniões homoafetivas”. Assim, questiona-se: se as decisões passarem a utilizar o art. 226, § 3º da CF como fundamentação, poderão então driblar o binding effect da decisão do Supremo Tribunal Federal e continuar a não reconhecer uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo? E com base nisso, o mesmo julgador disse que “não tenho dúvida de que aqui o Tribunal está assumindo um papel, ainda que provisoriamente, pois o legislador ainda pode atuar, mas é inequívoco que o Tribunal está dando uma resposta de caráter positivo”. E pode, então, o Supremo Tribunal Federal legislar? Como sustentar um argumento de Constitucionalismo Contramajoritário (de defesa das minorias) em detrimento ao princípio democrático da Separação dos Poderes? Numa frase: como definir até onde o contramajoritarismo pode ir e partir de então se torna ativismo judicial? Essas difíceis questões se colocam por que o argumento mestre foi a justeza da decisão. Sobre isso ainda aduz Lenio Streck: Como se vê, há (houve) apenas uma justificativa para a decisão: a justeza da causa. Neste ponto, estaria de acordo. Nunca neguei que a causa fosse (e é) justa. Só que há tantas outras causas justas no Brasil e nem por isso o STF faz (ou fez) esse tipo de "atravessamento hermenêutico". A expressiva maioria dos juristas brasileiros aprovaram a decisão do STF. Portanto, aprovaram uma atitude ativista. O que farão os juristas quando o ativismo não for favorável às suas ideias ou teses? Sim, porque o ativismo não tem controle, pela simples razão de que é “ativista”. Ativismo quer dizer “substituir o legislador nos juízos político-morais”.

Pois neste ponto reside o problema: o Supremo Tribunal Federal perde qualquer limite se os juristas permitirem que qualquer “lacuna” seja “reparada” pela sabedoria dos ministros. Não se trata de desmerecer nenhuma inteligência, mas simplesmente de exigir um respeito à Constituição. E isso é dever de todos, pois o pacto civilizatório que ela representa ultrapassa o “eu”, o “tu” e o “ele”. Basta averiguar que não houve um preenchimento de lacuna constitucional. Nas palavras bem lançadas por Hugo José Sarubbi Cysneiros de Oliveira quando da sustentação oral, em plenário: “lacuna não significa que não se encontrou o que se queria no texto constitucional...”

Logo, a via legislativa é o caminho correto para os redirecionamentos sociais, ao arrepio do que diz a Constituição, e não o Poder Judiciário. Com ou sem genealogias do dispositivo, como fez o Ministro Ricardo Lewandowski, o certo é que os termos “homem” e “mulher” ainda estão lá e merecem respeito integral. Qualquer modificação dos limites semântico-pragmáticos deve ser dada pelo Poder Legislativo, ou, quando há necessidade, pela consulta direta aos cidadãos, via referendo ou plebiscito. É o que se depreende da exposição: Insisto: não há espaço para o STF preencher "lacunas". E, quais lacunas? Se admitirmos lacunas constitucionais contra a própria Constituição, a pergunta que fica é: o que o STF não poderá fazer? Quais os limites do STF? Ainda: dizer que "o que não está proibido, está permitido" é um sofisma, pela simples razão de que é um argumento que vai ao infinito. Posso listar, aqui, um conjunto de coisas que não estão proibidas pela Constituição e nem por isso passarão a ser permitidas. No fundo, trata-se de uma questão de imaginário. Warat dizia que os juristas estão inseridos em um imaginário gnosiológico. Nele, existe a crença de que os juízes criam direito, que os juízes julgam conforme a sua consciência e que decidir é o mesmo que escolher. Como venho dizendo de há muito, na esteira de Dworkin: não importa o que os juízes pensam a respeito dos fatos, da sociedade, etc; quando julgam, devem suspender tais pré-juízos. Não importa o que eu penso sobre determinado assunto. A resposta que tenho que dar é: de acordo com a Constituição e com o ordenamento jurídico, tal resposta é possível? A Constituição permite isso? Entre minha consciência e a Constituição, tenho que ficar com a Constituição. Para quem não pensa desse modo, lamento informar que esse é ônus da democracia. Quando alguém me pergunta sobre a viabilidade das cotas nas universidades, não posso responder a partir de minha concepção pessoal. A resposta deve advir do exame da Constituição. Do mesmo modo, acho justíssima a causa que compôs a ADPF das uniões homoafetivas. Mas isso não quer dizer que essa justa causa não tenha que passar pelos canais democráticos.

Portanto, diante da problemática posta, tem-se que o preço da democracia é uma indiscutível defesa da ordem constitucional, pois só nela há alguma segurança jurídica. A igualdade, a liberdade, a dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica não serão suficientemente prestadas se esse direito for obtido perante a Corte Constitucional ao arrepio do que diz a Constituição. A incoerência ainda está lá. Neste sentido, toda vez que a Constituição for contrariada, quem lutar por ela terá razão e desrespeitará legitimamente a Corte Constitucional (ou alguém duvida da legitimidade da defesa da Constituição?). Só nesse trato, simples e rápido, vê-se que a segurança jurídica não passa de um engodo, pois juízes pelo país estão a

descumprir o que o Supremo Tribunal Federal determinou, com o fundamento mais eloquente de todos: a Constituição Federal. O que fazer? Cabe Reclamação Constitucional contra decisão que afronta o binding effect do STF, mesmo se ela for fundamentada na Constituição Federal? O filtro hermenêutico está, justamente, nesta consideração para além da justeza da decisão, que efetivamente não merece reparo. Ocorre que a defesa da Constituição é uma atitude hermenêutica, pois vê nela um evento autêntico, calcada na tradição, capaz de fornecer subsídio seguro para uma atuação jurisdicional não subjetiva. E no atual “estado de natureza hermenêutico”, como argumenta Streck, que se encontra o Brasil, uma resposta democrática ao problema das uniões homoafetivas seria prova de maturidade desta Democracia, de poder jurisdicional ciente de uma postura self-restraint, algo que ainda se mostra como um distante objetivo. 2. OUTRA SITUAÇÃO, MESMO PROBLEMA: DECISÃO DO STF SOBRE POSSIBILIDADE DA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ DE FETOS ANENCÉFALOS O julgamento da ADPF 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), fornece outro exemplo de decisão em que se debruça sobre o problema da oposição entre o julgado e as normas constitucionais e infraconstitucionais existentes. Ocorre que, o Código Penal vigente, não prevê a ação do médico que interrompe a gravidez, como tipo de ato legal amparado em uma excludente de ilicitude. Assim como o primeiro caso, este tema foi envolto em discussões acerca da moralidade do fato e da juridicidade quanto à possibilidade do aborto em questão. Novamente, não se pretende atacar a justeza da decisão, tampouco desmerecer os argumentos religiosos que vieram à baila neste embate. Isso seria atécnico. Primeiramente, ainda que se tome esta decisão como um caso de ativismo judicial, há de se destacar um ponto positivo: o da afirmação da laicidade do Estado, que mesmo que de forma não tão explícita, perpassou toda a discussão sobre o tema e mesmo quando as pressões de grupos religiosos foram constantes.

Não se trata aqui de argumentar no sentido de descredenciar a fé individual ou comunitária daqueles que compõe a nação brasileira. Assume-se que exista na vida humana a necessidade da crença em algo transcendente, ou mais especificamente em um Criador Supremo. Entretanto, existem cidadãos não religiosos ou ateus. Estes podem sustentar o posicionamento com a convicção de que há possibilidade de uma experiência vital benéfica e ética em termos não ligados às crenças (sejam elas deístas, teístas, panteístas, entre outras). A definição do que é razoável, justo ou mesmo bom em matéria moral, pode dar-se sem a religiosidade para algumas pessoas. E este fator não pode determinar ou corrigir o direito a partir de fora, pois seu caráter exógeno não pode abalar as instituições profundas da autonomia do direito. O Estado laico, na questão da anencefalia, estaria renunciando aos seus princípios se colocasse em xeque a capacidade de discernimento destes cidadãos, negando em síntese a sua própria capacidade de garantidor da harmonia e da pacificação social. Este modelo de Estado não pode assumir posições em termos de permissão ou não permissão de um ato, tomando por fundamento último à crença ou descrença em Deus e seus desígnios. Deve sim, agir eticamente promovendo o bem-estar de todos os seus cidadãos. Ou seja, sua ação não é justificada pela crença ou ausência dela, mas pela racionalidade de suas prestações ou omissões na vida dos que tutela. E isto se aplica ao reconhecimento da dignidade e dos direitos do feto anencéfalo. Admitindo o possível sofrimento de ambos, mãe e filho, tem-se a necessidade de pensar qual poderia ser abreviado. Crê-se que o do ser que já existe socialmente e psicologicamente, neste caso a mãe. É esta que terá de viver e conviver com seus traumas, enquanto o filho morrerá, dada a sua inviabilidade física e biológica. Daí, a justa opção de se permitir dar uma à mãe, optando o Estado por abreviar o sofrimento do ser que já existe em plenos direitos para a vida civil. O Estado não está aqui incentivando a eugenia. A anencefalia é diferente dos casos de síndromes e de várias outras situações de necessidades especiais, para as quais a laicidade estaria argumentativamente preservada. Deve a ação estatal oferecer

oportunidades

para

que

estas

pessoas

possam,

condicionadas

biologicamente por necessidades especiais, exercer a cidadania plena. A criação de

precedentes, dada à referida possibilidade da interrupção da gravidez, no caso em tela, não licencia outras atitudes. Trata-se, neste caso específico, de diferenciar a viabilidade ou não da vida pós-parto e de evitar maiores angústias às gestantes que encarem a experiência como agrura física e mental. O que se deve pensar em termos de reconhecimento do direito ao desenvolvimento fetal, justificando o mesmo com um argumento laico convincente, não foi possível no debate democrático. Alguns, ainda, poderiam dizer que é até mesmo indigna a manutenção da gravidez frustrada. Isto porque, neste caso, choca-se o direito do feto com a dignidade e direitos das mães que sintam sofrimento ao carregar o anencéfalo. Mas estes são argumentos de cariz material, conectados com o que tem se convencionado chamar de “principiologia neoconstitucional”. Ocorre que a análise do atravessamento hermenêutico realizado pela Corte Excelsa prescinde de tais pontuações, pois o que fica realçado, no debate, são as formas legítimas de se desenhar o direito. O romance em cadeia, de que fala Ronald Dworkin, fica sobrepujado por decisões díspares, que ora concedem e ora não concedem as permissões de interrupção. A previsibilidade é suplantada pela ponderação, onde quem perde é a democracia, e quem ganha é a vontade do poder. Pois é justamente deste ponto de vista que a questão da ADPF 54 merece luminosidade. Poucos têm aventado a verdadeira questão que se esconde por trás da decisão que emite conteúdo positivo, no sentido de legislação. Veja-se que o STF nada mais fez do que ampliar uma excludente de ilicitude, de forma que o legislador foi suplantado. O eufemismo é quase automático: não se quer criticar o fundo, o meritum litis, mas tão somente a instância onde a decisão foi tomada. Pois o argumento para tal atravessamento andou pela dignidade da pessoa humana, de forma que uma conduta notadamente típica, ilícita e culpável tornou-se atípica. Estes apontamentos conduzem ao cerne do presente trabalho, qual seja, concluir acerca da participação político-social em termos da produção democrática do direito, especialmente averiguando se há ou não usurpação de poder nesta marcha constitucional. Abre-se azo para algumas linhas conclusivas. CONCLUSÃO

Pelo exposto, consideradas algumas formas (de certo modo) contraditórias que marcam as relações jurídico-políticas típicas de nossa sociedade, como o fato de os três poderes serem, constantemente, marcados por certa desconfiança advinda dos cidadãos, mas ao mesmo tempo, considerar-se o espaço jurisdicional como o ponto seguro e fixo, da segurança social, ao qual se recorre no anseio da “solução para o problema”, identifica-se um forte anseio social que, ao que parece, cada vez mais está impulsionando decisões judiciais. Esses atos decisórios, ao que parece, reiteradas vezes estão encontrando modos de, confortavelmente, afastarem-se de preceitos como a da legitimidade e outras constitucionalidades. Todo cuidado deve ser tomado para que, no afã de se ir ao encontro dos anseios sociais, nos mais diversos aspectos – o que se busca justificar pela configurada ausência da atuação legislativa, por exemplo – não se venha a ferir, fatalmente, o espírito democrático que sustenta o Estado. Assim sendo, conclui-se, que não obstante possam ser justas as decisões tomadas pela Suprema Corte, para a manutenção dos valores do regime democrático é necessária a consecução de uma legitimidade peculiar. Esta está ancorada em uma elaboração normativa, oriunda de uma adequada participação social, através da participação direta ou indireta dos cidadãos, cabendo ao Judiciário a guarda das instituições que a regulam. Avocar a si o papel de representante é tarefa inglória quando não se está autenticado pelo selo da delegação popular legislativa. Não se discute a boa vontade da na atuação dos juízes, caso a caso. Repete-se, todavia, a argumentação de Lenio Streck, “hoje foi para o bem, e quando não for?”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277. Requerente: Procuradoria-Geral da República. Interessado: Presidente da República e outros. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. Distrito Federal, 04.05.2011. Voto do Min. Carlos Ayres Britto. Disponível em: http://youtu.be/jVKiznsoNtQ. Acesso em: 18 de julho de 2011. ______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277. Requerente: Procuradoria-Geral da República. Interessado: Presidente da República

e outros. Relator: Min. Carlos Ayres Britto. Distrito Federal, 04.05.2011. Voto do Min. Gilmar Mendes. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=f5pckQFS6vs. Acesso em: 18 de julho de 2011. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Madrid: Editorial Trotta, 2010. MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. ______. LENIO STRECK ESCREVE: Sobre a decisão do STF (uniões homoafetivas). 10 mai. 2011 (Internet). Disponível em: http://www.facebook.com/ home.php#!/notes/lenio-streck_oficial/lenio-streck-escreve-sobre-a-decis%C3%A3odo-stf-uni%C3%B5es-homoafetivas/144633118943293. Acesso em: 18 jul 2011. ______. Verdade e Consenso: Uma teoria da decisão. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ______. BOLZAN de MORAIS José Luiz, Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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